DISPENSA DE DEPÓSITO DO PREÇO
COMPENSAÇÃO
CESSÃO DO CRÉDITO APÓS COMPENSAÇÃO
HABILITAÇÃO DE CESSIONÁRIO
Sumário

1 – A dispensa do depósito do preço analisa-se numa compensação que extingue a obrigação de pagamento do preço e que se torna definitiva com a verificação e graduação dos créditos nos termos previstos.
2 – A cessão de créditos ocorrida depois da dispensa e depois de esta compensação se ter tornado definitiva não opera a transmissão da parte do crédito extinta por compensação, apenas transmitindo o remanescente do crédito garantido verificado.
3 - Cedente e cessionário, são, assim, para os efeitos do art.º 815º do CPC, ambos credores hipotecários, um porque reclamou créditos e pediu e obteve a dispensa de depósito do preço e o outro porque ainda recebeu, em cessão, créditos garantidos pelos bens vendidos.
4 – O caso julgado constituído por determinada decisão abrange não apenas a parte dispositiva, mas também os fundamentos que constituam antecedentes lógicos e indispensáveis à sua emissão.
5 - A cessão de créditos é um dos pressupostos da admissibilidade de habilitação, sendo o negócio jurídico pelo qual se dá a transmissão da coisa, direito ou dever em litígio. A habilitação pressupõe a transmissão, mas não se confunde com ela: enquanto que o negócio jurídico celebrado entre o cedente e o cessionário transmite a coisa, direito ou dever, a habilitação coloca o cessionário na posição processual do cedente, considerando-os a mesma parte processual.
6 - Se, em cumprimento de uma cláusula do acordo havido com a cedente, a cessionária transferiu para aquela o montante recebido em rateio, essa é uma questão alheia ao tribunal, ao processo e às partes. No processo pagou-se a quem tinha o direito de receber, podendo, em consequência exigir-se-lhe, preenchidas as condições legais, que devolva o necessário ao pagamento de credores graduados antes de si ou de dívidas da massa insolvente.

Texto Integral

Acordam as Juízas da 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa

1. Relatório
V…, Lda foi declarada insolvente por sentença de 04/08/2014, transitada em julgado.
Foram apreendidos e liquidados bens.
Foram reclamados créditos. Foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado.
O administrador da insolvência prestou contas que foram validadas por sentença, transitada em julgado.
Por sentença de 18/12/2018, transitada em julgado, foi declarada habilitada AGL, a intervir nos autos na qualidade de credora em substituição do credor CEG.
Realizaram-se rateio final e pagamentos.
Por sentença de 08/07/2020 foi declarado encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto no art.º 230º, nº 1, al. a) do CIRE.
Inconformado apelou o administrador da insolvência pedindo a revogação da sentença recorrida e a sua substituição por outra que determine o reembolso ao recorrente do valor já despendido e comprovado documentalmente, notificando-se para o efeito o cessionário, AGL, para que proceda ao depósito, na conta bancária da massa insolvente, do montante necessário e de valor para custear as despesas futuras do processo.
Contra-alegou AGL pedindo fosse o recurso julgado improcedente por não provado, mantendo-se a decisão recorrida.
Em 23/03/2021 foi proferido Acórdão por este Tribunal da Relação de Lisboa, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto, revogando-se o despacho recorrido, e determina-se o prosseguimento do processo de insolvência, com a consequente manutenção em funções do senhor administrador de insolvência, devendo o tribunal recorrido ordenar a restituição à massa insolvente, após prévio exercício do contraditório perante credores (cedente e cessionário) e senhor administrador de insolvência, de quantia necessária à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender, sem prejuízo dos ulteriores termos necessários, mormente nova prestação de contas supervenientes às já prestadas e rateio final.
Custas pela massa insolvente (art.º 304º, do CIRE).
Notifique.”
Em 05/09/2021, após trânsito e baixa dos autos, foi proferido o seguinte despacho:
Tomei conhecimento do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
Notifique as partes da baixa dos autos.
Em obediência ao determinado em sede recursiva, determino se notifiquem os credores (cedente e cessionário) e o Sr. Administrador de Insolvência para, querendo, exercerem em dez dias o contraditório, nos exatos termos determinados pelo Tribunal da Relação de Lisboa.”
AGL veio, expondo não estarem ainda estabilizadas as quantias despendidas e previsivelmente a despender pela massa, requerer se aguarde pela decisão do Tribunal Arbitral, pronunciando-se as partes posteriormente.
O administrador da insolvência juntou lista das quantias despendidas e a despender, no valor global de€  340.557,37.
CEG veio expor entender ter havido condutas ilícitas do administrador da insolvência responsáveis por um significativo agravamento das possibilidades de recuperação dos créditos por parte dos credores reclamantes, porque violadores de deveres legais, deverão ser considerados para efeitos de responsabilidade extracontratual.
O administrador da insolvência veio expor ter sido interposto recurso da decisão arbitral para o STA e ter sido pedida a revisão oficiosa da liquidação, pedindo seja ordenada a notificação do credor CEG para proceder ao imediato depósito de€  22.000, montante necessário para o pagamento de despesas do administrador da insolvência e fundo para despesas necessárias.
Ordenado o contraditório vieram:
- CEG opor-se ao último requerimento apresentado pelo administrador da insolvência por contrariar frontalmente o decidido no Ac. TRL de 23/03/2021;
- o administrador da insolvência veio expor ser a massa alheia às relações entre cedente e cessionário e solicitar seja dado cumprimento ao decidido no Ac. TRL de 23/03/2021, havendo despesas já ocorridas e a reembolsar;
- AGL reafirmando o anteriormente requerido e alegando que o valor entregue por rateio à ora cessionária foi transferido a favor da cedente CEG como previsto no contrato de cessão entre ambas celebrado;
- o administrador da insolvência reiterando o requerido;
Foram juntos aos autos as decisões arbitral e Acórdão do STA, nos termos das quais improcedeu a pretensão da massa insolvente.
O administrador da insolvência reiterou o pedido de depósito de€  22.000, vindo, entretanto, pedir a notificação do credor CEG para depositar€  23.000.
Novamente ordenado o cumprimento do contraditório vieram:
- CEG pedir seja indeferido o pedido do Sr. Administrador da Insolvência relativo ao depósito de€  23.000, por contrariar o Ac. TRL de 23/03/2021;
- AGL alegando ter procedido à transferência da quantia recebida em rateio para a CEG e pediu seja julgada infundada a argumentação desta, a qual deverá assumir a reposição das quantias que se verifique serem devidas.
Em 19/10/2022 foi proferido o seguinte despacho:
Em obediência ao determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa no seu Acórdão de 23-03-2021, nos termos do artigo 815º, nº 4, do CPC, ex vi do artigo 17º, nº 1, do CIRE, ordeno a restituição à massa insolvente da quantia necessária à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender pelo senhor administrador de insolvência.
Nos termos do aludido Acórdão, essa obrigação provisória de restituição à massa para salvaguarda daquelas quantias incumbe, em primeira linha e até ao montante de€  212.290,08 ao habilitado AGL e, no que vier a ultrapassar tal montante, o ónus incumbe à cedente CEG.
Após, deverá o senhor administrador de insolvência prestar contas atualizadas a fim de viabilizar a realização de novo rateio final.”
Inconformada apelou AGL pedindo “seja o presente recurso julgado totalmente procedente por provado, revogando-se o Despacho proferido a 19-10-2022, em virtude do mesmo ser nulo nos termos do art.º 615º nº 1 alíneas d) e nº 4, 608º nº 2 do CPC e 607º nº 2, ex vi art.º 613º nº3, todos do CPC, e se determine que seja proferido novo Despacho em que sejam apreciadas e resolvidas as questões suscitadas, e que seja afinal proferido Despacho a determinar que a CEG devolva as quantias por si recebidas e que a mesma deposite ainda as quantias necessárias para fazer face às despesas da massa insolvente, conforme disposto no nº4 do art.º 815º do CPC,”
Formulou as seguintes conclusões:
“1 - O presente recurso tem como objeto o Douto Despacho proferido a 19-10-2022, com a Ref. Doc. 419591102, proferido na sequência do Douto Acórdão do Tribunal de Lisboa de 23/03/2021.
2 - Não se conforma a Apelante com o referido Despacho na parte em que no mesmo se decide que a “obrigação provisória de restituição à massa para salvaguarda daquelas quantias incumbe, em primeira linha e até ao montante de€  212.290,08 ao habilitado AGL”.
3 - Considera a Apelante que o Despacho proferido pelo Tribunal a quo é nulo nos termos do art.º 615º nº1 alíneas d) e nº 4, ex vi art.º 613º nº 3, todos do CPC, em virtude do mesmo não se ter pronunciado sobre questões que estava vinculado a apreciar, conforme estatui o art.º 608º nº2 e 607º nº2 do CPC.
4 - O Juiz do Tribunal a quo não se pronunciou sobre as questões que as partes, nomeadamente a AGL e o Sr. Dr. Administrador de Insolvência, submeteram à sua apreciação e resolução e que eram em absoluto essenciais para a justa decisão da causa:
I - Quem é o credor hipotecário nos autos, se a CEG, Cedente dos créditos, se a AGL, Cessionária do remanescente dos créditos reclamados, para efeitos de cumprimento do disposto no nº4 do art.º 815º do CPC; e
II - Quem é que detém o valor recebido em sede de rateio final, e, portanto, tem que o restituir.
I – Quanto à questão quem é o credor hipotecário nos autos, se a CEG, Cedente dos créditos, se a AGL, Cessionária do remanescente dos créditos reclamados, para efeitos de cumprimento do disposto no nº 4 do art.º 815º do CPC:
5 - A referida questão foi suscitada já em fase final, após realizado o rateio final e respetivos pagamentos aos credores, quando 22-10-2019 o Sr. Dr. Administrador de Insolvência junta requerimento aos autos dando conhecimento do relatório de inspeção referente ao exercício de 2015 da empresa insolvente, no qual a AT considera que a venda dos 4 imóveis apreendidos no processo de insolvência e adjudicados ao credor hipotecário CEG pelo valor total de 3.243.000,00€(três milhões e duzentos e quarenta e três mil euros) em 2015, gerou uma mais-valia para a empresa insolvente, a qual era suscetível de tributação em sede de IRC, razão pela qual requereu o Sr. Dr. Administrador de Insolvência, e passo a citar, “a urgente notificação do credor CEG para o disposto no art.º 815º do CPC, devendo este disponibilizar à massa Insolvente a liquidez necessária para contestar o conteúdo do relatório da AT (em anexo) ou providenciar directamente a defesa dos seus interesses, sabendo que, a confirmação da liquidação da IRC, obrigará ao pagamento do imposto e demais encargos pelo credor CEG”.
6 - Atenta a reiterada postura de recusa assumida pela CEG perante as sucessivas reivindicações do Sr. Dr. Administrador de Insolvência, e de forma a demonstrar quem é o credor hipotecário para efeitos de cumprimento do disposto no nº4 do art.º 815º do CPC, tanto a ora Recorrente como o Sr. Dr. Administrador de Insolvência, evidenciaram nos autos os seguintes factos:
a) A CEG em 2014 reclamou 3 créditos no valor total de 4.742.342,07€ (quatro milhões, setecentos e quarenta e dois mil e trezentos e quarenta e dois euros e sete cêntimos).
b) Por sentença de verificação e graduação de créditos proferida a 17-05-2017, dois dos referidos créditos, no montante total de 4.737.293,78€ (quatro milhões, setecentos e trinta e sete mil, duzentos e noventa e três euros e setenta e oito cêntimos) foram reconhecidos e graduados como créditos garantidos (por hipotecas), nos termos do art.º 47.º1 e 4, al. a) do CIRE, reconhecida à CEG a qualidade de credor hipotecário quanto a esses 2 créditos, por estarem garantidos pela hipoteca de 4 imóveis a favor da CEG
c) Os referido imóveis foram adjudicados em 2015 ao credor hipotecário, CEG, pelo valor total de 3.243.000,00€ (três milhões e duzentos e quarenta e três mil euros), sendo que, nos termos do disposto no art.º 815º do CPC (ex vi artigo 165º do CIRE), a CEG depositou apenas o montante total de 305.850,00€  (trezentos e cinco mil e oitocentos e cinquenta euros), logo, foi dispensada de depositar o remanescente do preço, no montante total de 2.937.150,00€  (dois milhões, novecentos e trinta e sete mil e cento e cinquenta euros).
d) Após a adjudicação à CEG dos 4 imóveis que garantiam os 2 créditos reconhecidos como garantidos, em 30/06/2017, mediante contrato de cessão de créditos, a CEG cedeu à AGL o apenas remanescente dos 3 créditos reclamados no processo de insolvência, conforme o demonstra o requerimento de Incidente de Habilitação de Cessionário, apensado ao processo no Apenso E a 18/10/2017, os subsequentes requerimentos de aperfeiçoamento a 23/01/2018 e 27/02/2018.
7 - Não obstante as referidas provas inequívocas carreadas nos autos de que o credor hipotecário é a CEG, tanto a AGL, como o Sr. Dr. Administrador de insolvência juntaram aos autos inúmeros requerimentos, nomeadamente a 22/10/2019, 30/03/2019, 08/04/2020, 15/04/2020, 06/09/2021, 18/10/2021, 02/11/2021, 22/11/2021 e 12/10/2022, 17/09/2021 e 17/08/2022, identificando a CEG como credora hipotecária, fundamentando tal qualificação
8 – Sobre tais requerimentos o Tribunal a quo não se pronunciou nem decidiu, como estava obrigado, por força do disposto no art.º 608º nº2 do CPC, sobre a questão de quem era afinal o credor hipotecário, se a CEG se a AGL.
II – Quanto à questão quem é que detém o valor recebido em sede de rateio final, e, portanto, tem que o restituir.
9 - A 13/05/2019 o Sr. Dr. Administrador de Insolvência juntou aos autos a proposta de rateio final, da qual resulta que o saldo disponível a ratear, depois de deduzidas as despesas da liquidação e de pagas as custas do processo, provém unicamente dos depósitos recebidos aquando da adjudicação dos quatro imóveis aí identificados.
10 - Em virtude da AGL se encontrar habilitada nos autos no lugar da CEG, do rateio resultou que a AGL tinha a receber o montante total de 212.290,07€ (duzentos e doze mil, duzentos e noventa euros e sete cêntimos).
11 - Não obstante ter sido rateado à AGL o montante de 212.290,07€  (duzentos e doze mil, duzentos e noventa euros e sete cêntimos), o valor efetivamente transferido para a AGL foi de 212.253,68€ (duzentos e doze mil, duzentos e cinquenta e três euros e sessenta e oito cêntimos), e não o montante de 212.290,08€  (duzentos e doze mil, duzentos e noventa euros e oito cêntimos), porquanto ao valor de 212.290,08€  foram deduzidas a comissão de 35,00€  e imposto selo de 1,40€  .
12 - No cumprimento das suas obrigações contratuais que derivam do estatuído no ponto 6.3.2 do contrato de cessão de créditos, a 04-07-2019, a AGL procedeu à transferência para o IBAN da CEG do montante de 212.253,68€  (duzentos e doze mil, duzentos e cinquenta e três euros e sessenta e oito cêntimos), valor esse que lhe havia sido transferido pelo Sr. Dr. Administrador de Insolvência, na sequência do pagamento aos credores dos valores rateados, e que corresponde a depósitos de preço efetuados em 2015 pela CEG, na qualidade de credora hipotecária a quem foram adjudicados os imóveis (art.º 815º do CPC, ex vi artigo 165º do CIRE).
13 – Desde que procedeu à referida transferência, o Cessionário AGL não detém qualquer valor recebido no âmbito do processo de insolvência, não tendo recuperado qualquer valor do remanescente dos créditos que lhe foram cedidos.
14 - No entanto, em contraste com a nula recuperação por parte do Cessionário, a Cedente CEG recuperou, enquanto credora hipotecária, o montante total de 3.149.440,07€  (três milhões, cento e quarenta e nove mil, quatrocentos e quarenta euros e sete cêntimos), porquanto em 2015 foram-lhe adjudicados os 4 imóveis no valor total de 3.243.000,00€  (três milhões e duzentos e quarenta e três mil euros), ficando dispensada de depositar o remanescente do preço, no montante total de 2.937.150,00€  (dois milhões, novecentos e trinta e sete mil e cento e cinquenta euros), e ainda em 2019, já após ter cedido o remanescente dos créditos, ainda lhe foi devolvido o montante de 212.253,68€  (duzentos e doze mil, duzentos e cinquenta e três euros e sessenta e oito cêntimos) correspondente a parte do depósito do montante total de 305.850,00€  (trezentos e cinco mil e oitocentos e cinquenta euros) que havia prestado, nos termos do art.º 815º do CPC, ex vi artigo 165º do CIRE, aquando da adjudicação dos imóveis.
15 - O Tribunal a quo no Despacho objeto de recurso, além de não se ter pronunciado quanto à questão a saber de quem era o credor hipotecário para efeitos do cumprimento do disposto no nº4 do art.º 815º do CPC, também não se pronunciou quanto ao facto de a AGL ter informado e provado nos autos que transferiu para a CEG o montante de 212.253,68€  (duzentos e doze mil, duzentos e cinquenta e três euros e sessenta e oito cêntimos).
16 - Esse facto não foi sequer mencionado no Despacho objeto de recurso, tendo sido ignorado em absoluto na tomada de decisão, quando se impunha pronuncia sobre o mesmo, pois o fato de se ter provado de forma inequívoca que quem detém efetivamente na sua posse o valor rateado nos autos é a CEG e não a AGL, é absolutamente relevante para a decisão em causa porquanto impõe decisão diversa da tomada no Despacho proferido a 19-10-2022, ora objeto de recurso.
17 – O Douto Acórdão do Tribunal de Lisboa datado de 23/03/2021 considerou que deve proceder-se à devolução à massa de valores necessários à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender, e que a AGL só deverá devolver o que recebeu, não mais do que isso.
18 – Termos em que a AGL nada tem a devolver, porquanto todo o valor que recebeu em sede de rateio foi transferido na íntegra para a CEG.
19 - É a CEG quem tem na sua posse o valor transferido pelo Sr. Dr. Administrador de Insolvência, e, por consequência, é esta que tem que devolver/restituir à massa o valor que recebeu.
20 - Mais se diga que o Despacho proferido a 19-10-2022, ora objeto de recurso, também não se pronunciou quanto à apreciação feita pelo Douto Acórdão do Tribunal de Lisboa de 23/03/2021 que se passa a transcrever: “Compulsados os autos, verifica-se que no apenso E de habilitação de adquirente, e com data de 18 de dezembro de 2018, o tribunal recorrido decidiu nos seguintes termos:
“Pelo exposto, declaro habilitada AGL, pessoa coletiva nº 5606545, (…) a intervir nos presentes autos na qualidade de credora em substituição do credor CEG.”
Uma visão puramente formalista do processo levar-nos-ia a considerar que, nada estando ressalvado na sentença de habilitação a despeito do teor da petição inicial corrigida ali apresentada, o referido ónus recairia sobre a adquirente. Não partilhamos, todavia, de tal entendimento.” E “à data da adjudicação, se houvesse já conhecimento da alegada dívida perante a autoridade tributária, não havendo liquidez na massa, a quantia a depositar pelo adjudicante seria a mesma? É que, em tese, considerar a adquirente integralmente responsável pela alegada reposição à massa, poderia conduzir a este absurdo: a de a mesma poder nada receber e, ainda assim, ser responsabilizada por dívidas da massa por factos anteriores à sua habilitação e concernentes ao ato de adjudicação dos bens ao credor transmitente. Afigura-se nos, assim, que à luz do princípio da boa fé, não poderá considerar- se integrada na cessão realizada a responsabilização por alegadas dívidas da massa que à data não podiam razoavelmente antever (art.º 239º do Código Civil).”
21 – O Tribunal a quo que proferiu o Despacho ora objeto de recurso, estava vinculado, nos termos do art.º 608º nº 2 do CPC, a pronunciar-se sobre as questões essenciais colocadas pelas partes e que relevavam de forma determinante para a justa decisão da causa, o que não fez.
22 - O Despacho proferido a 19-10-2022, ora objeto de recurso, não se pronunciou nem decidiu quanto a quem é o credor hipotecário nos autos, e quem é que detém o valor recebido em sede de rateio final, e, por conseguinte, está obrigado a o devolver.
23 - Nestes termos o Despacho proferido a 19/10/2022 pelo Tribunal a quo é nulo nos termos do art.º º615º nº1 alíneas d) e nº 4, ex vi art.º 613º nº3, todos do CPC, em virtude do mesmo não se ter pronunciado sobre questões que estava vinculado a apreciar, conforme estatui o art.º 608º nº 2 do CPC e 607º nº2.
Contra-alegou CEG, pedindo seja negado provimento ao recurso e mantida a decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
“1. O Douto Despacho proferido pelo tribunal a quo, em 2022.10.24, com referência 419591102, limita-se ordenar o que anteriormente lhe havia sido ordenado pelo Douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa datado de 2022.03.23;
2. Nestes termos, pôr em causa o despacho, seria, pôr em causa, de modo indireto, o próprio Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, já transitado em julgado.
Por sua vez,
3. Igualmente ininteligível parece ser a alegação da omissão de uma resposta à questão [a mais premente]: «Quem é o credor hipotecário nos autos, se a CEG, Cedente dos créditos, se a AGL, Cessionária do remanescente dos créditos reclamados, para efeitos de cumprimento do disposto no n.º 4 do art.º 815º do CPC.»,
4. Uma vez que, em ambos os casos – despacho e acórdão, é referida e expressamente decidida a aludida questão:
5. [acórdão] - «Assim, nos termos do art.º 815º, nº4, do CPC, ex vi art.º 17º, nº 1, do CIRE, deverá o tribunal recorrido ordenar a restituição à massa insolvente, após prévio exercício do contraditório perante credores (cedente e cessionário) e senhor administrador de insolvência, de quantia necessária à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender, sem prejuízo dos ulteriores termos necessários, mormente nova prestação de contas supervenientes às já prestadas e rateio final.
Considerando o supra exposto, essa obrigação provisória de restituição à massa para salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender incumbirá em primeira linha e até ao montante de €212.290,08 ao habilitado AGL.»
6. [despacho] - «em obediência ao determinado pelo tribunal da relação de Lisboa no seu Acórdão de 23-03-2021, nos ermos do artigo 815.º, n.º 4, do CPC, ex vi do artigo 17.º, n.º 1, do CIRE, ordeno a restituição à massa insolvente da quantia necessária à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender pelo senhor administrador de insolvência.
Nos termos do aludido acórdão, essa obrigação provisória de restituição à massa para salvaguarda daquelas quantias incumbe, em primeira linha e até ao montante de €212.290,08 ao habilitado AGL e, no que vier a ultrapassar tal montante, o ónus incumbe à cedente CEG.».”
Em decisão que não admitiu o recurso, proferida em 27-02-2023, a Sra. Juiz a quo havia desatendido arguição de nulidade da decisão recorrida, formulada nos autos pela apelante, nos seguintes termos:
«Por requerimento de 08-11-2022, veio AGL interpor recurso do despacho proferido a 19-10-2022.
Tal despacho limitou-se a reproduzir o decidido no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-03-2021, dando cumprimento ao mesmo.
Aliás, os factos agora invocados pela recorrente para colocar em causa o aludido despacho foram invocados pela ora recorrente na resposta ao recurso que apresentou a 13-08-2020 e foram devidamente ponderados por aquele tribunal superior.
Com tal fundamento se entende igualmente não ter sido cometida qualquer nulidade por este tribunal, o qual se limitou a dar estrito cumprimento ao determinado superiormente, sendo certo que dos factos aduzidos pela mesma nas suas conclusões, v.g. 15, 16 e 22, não poderia o tribunal conhecer porquanto os mesmos, por terem sido incluídos na sua resposta ao recurso que motivou o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-03-2021, foram objeto de conhecimento por parte deste tribunal superior.
Mais se refira que, por outro lado, a factualidade alegada nas, ora suas, alegações de recurso e nas conclusões das mesmas, designadamente as vertidas sob os pontos 12, 14 e 18 se reportam a questões internas suas e da CEG e que não podem ser resolvidas por via incidental neste processo de insolvência por extravasar o seu âmbito e os poderes de cognição deste tribunal.
Face ao exposto, desatendo a arguição de nulidade da decisão de 19-10-2022 por omissão de pronúncia e, bem assim, rejeito o recurso interposto por se tratar de decisão que, limitando-se a reproduzir e dar cumprimento ao determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa, não é suscetível de recurso.”
O recurso foi admitido por decisão deste tribunal de 15/06/2023, proferida no apenso F, em sede de reclamação.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre apreciar.
*
2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos art.ºs 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- se o despacho proferido é nulo, nos termos da alínea d) do nº1 do art.º 615º do CPC;
- em caso afirmativo, se, considerados os elementos factuais necessários, deve a credora cedente dispensada do depósito do preço ser integralmente responsabilizada nos termos do nº4 do art.º 815º do CPC, excluindo-se a responsabilidade da recorrente.
*
3. Fundamentos de facto
Com interesse para a decisão do recurso, além dos factos constantes do relatório, resultam dos autos os seguintes factos:
1 – Em 12/09/2014, o Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos a lista prevista no art.º 129º do CIRE, listando como reconhecido, entre outros, o crédito reclamado por CEG no valor global de €4.742.342,07, garantido por hipoteca[1].
2 – Em 17/05/2017 foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado[2], cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nos termos da qual:
“A) Julgo verificados os créditos reclamados por:
1. CEG, no montante de 4.742.342,07€, sendo 4.737.293,78€ garantido (hipoteca) e 5.048,29€ crédito comum;
2. Fazenda Nacional, no montante de 7.702,91€, sendo 7.243,79€ crédito garantido (IMI) e 331,25€ crédito comum;
3. Herdeiros de CLT, no montante de 1.900,00€, crédito subordinado (suprimentos);
4. LGT, no montante de 47.875,00€, crédito subordinado (suprimentos);
5. MGT, no montante de 56.913,13€, crédito subordinado (suprimentos).
*
B) Graduo os créditos verificados na presente sentença, nos seguintes termos:
I – para serem pagos pelo produto da venda do Prédio urbano, lote 25, sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras, … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de …:
1. Em primeiro lugar,
- Crédito da Fazenda Nacional referente a IMI, no montante de 1.810,95€;
2. Em segundo lugar:
- Crédito da CEG, no montante de 4.737.293,78€;
3. Em terceiro lugar, rateadamente, os créditos comuns;
4. Em quarto lugar, os créditos subordinados (em igualdade).
*
II – para serem pagos pelo produto da venda do Prédio urbano, lote 26, sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras, … e inscrito na matriz predial urbana sob o art.º … da freguesia …:
1. Em primeiro lugar,
- Crédito da Fazenda Nacional referente a IMI, no montante de 1.810,95€;
2. Em segundo lugar:
- Crédito da CEG, no montante de 4.737.293,78€;
3. Em terceiro lugar, rateadamente, os créditos comuns;
4. Em quarto lugar, os créditos subordinados (em igualdade).
*
III – para serem pagos pelo produto da venda do Prédio urbano, lote 27, sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … freguesia de …:
1. Em primeiro lugar,
- Crédito da Fazenda Nacional referente a IMI, no montante de 1.810,95€;
2. Em segundo lugar:
- Crédito da CEG, no montante de 4.737.293,78€;
3. Em terceiro lugar, rateadamente, os créditos comuns;
4. Em quarto lugar, os créditos subordinados (em igualdade).
*
IV – para serem pagos pelo produto da venda do Prédio urbano, lote 28, sito em …, descrito na Conservatória do Registo Predial de Oeiras, sob o nº …. e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da freguesia de …:
1. Em primeiro lugar,
- Crédito da Fazenda Nacional referente a IMI, no montante de 1.810,94€;
2. Em segundo lugar:
- Crédito da CEG, no montante de 4.737.293,78€;
3. Em terceiro lugar, rateadamente, os créditos comuns;
4. Em quarto lugar, os créditos subordinados (em igualdade).
*
Nos termos do disposto nos artigos 303.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, a actividade processual relativa à verificação e graduação de créditos, quando as custas devam ficar a cargo da massa, não é objecto de tributação autónoma.”
3 – Por escritura pública celebrada em 21 de janeiro de 2015[3], LMR, na qualidade de administrador da insolvência de V…, Lda, declarou vender a CEG, que declarou comprar, pelo preço global de €958.000,00:
“1) Pelo preço de quatrocentos e setenta e nove mil euros, o prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado no …, lote …, freguesia de …, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o número …da mesma freguesia, inscrito na matriz predial sob o artigo … União de freguesias de … (proveniente do artigo … da freguesia de … (extinta)) com o valor patrimonial correspondente de 389.495,75€;
2) Pelo preço de quatrocentos e setenta e nove mil euros, o prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado …, lote 26, freguesia de …, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o número …da mesma freguesia, inscrito na matriz predial sob o artigo …. da União de freguesias … (proveniente do artigo … da freguesia de … (extinta)) com o valor patrimonial correspondente de 389.495,75€;
4 – Mais declarou LMR, na qualidade de administrador da insolvência de V…, Lda que “já recebeu a quantia de cento e noventa e um mil e seiscentos euros, correspondente a vinte por cento do preço, e a CEG adquirente ficou dispensado do depósito do preço atenta a sua qualidade de credor hipotecário nos termos do n.º1 do artigo 815.º do Código de Processo Civil.”
5 - Por escritura pública celebrada em 14 de abril de 2015[4], LMR, na qualidade de administrador da insolvência de V…, Lda, declarou vender a CEG, que declarou comprar, pelo preço global de €2. 285.000,00:
“1) Pelo preço de um milhão cento e dez mil euros, o prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado no …, lote …, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o número … da mesma freguesia, inscrito na matriz predial sob o artigo … da União de freguesias de …, com o valor patrimonial correspondente de 389.495,75€;
2) Pelo preço de um milhão cento e setenta e cinco mil euros, o prédio urbano composto por lote de terreno para construção, situado no …, lote …, descrito na Primeira Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o número … da mesma freguesia, inscrito na matriz predial sob o artigo … da União de freguesias de …, com o valor patrimonial correspondente de 389.495,75€;
6 – Mais declarou LMR, na qualidade de administrador da insolvência de V…, Lda que “recebeu nesta data cinco por cento do preço, ou seja cento e catorze mil duzentos e cinquenta euros, e a CEG adquirente ficou dispensado do depósito do preço atenta a sua qualidade de credor hipotecário nos termos do n.º 1 do artigo 815.º do Código de Processo Civil.”
7 – Em 18/10/2017 AGL requereu incidente de habilitação de cessionário[5] contra a massa insolvente de V…, Lda e contra V…, Lda, invocando a celebração de um contrato de cessão de créditos celebrado em 30/06/2017 com a CEG, pedindo a sua habilitação no lugar desta.
8 – Em 23/01/2018, na sequência de convite do tribunal, juntou nova petição inicial aperfeiçoada, juntando cópia legível do contrato de cessão de créditos, cujo teor se dá aqui por reproduzido, intentando o incidente também contra a CEGe os demais credores, especificando expressamente ser “a actual titular dos créditos sub judice, correspondentes a:
- contrato abertura em conta corrente n.º 027301001106, celebrado em 27 de Dezembro de 2006;
- contrato de abertura de crédito n.º 027301001239, celebrado em 25 de Julho de 2008; e,
- conta de depósitos à ordem aberta junto do Balcão do Cacém – Bons Amigos (conta n.º 027100136863).”
9 - Bem como que:
“Para garantia do integral cumprimento das obrigações contratuais a insolvente constituiu a favor da CEG (doravante CEG) hipotecas voluntárias sobre os prédios melhor identificados nos autos.”
Os imóveis foram adjudicados à CEG. Assim, e tendo em consideração a mencionada adjudicação, a requerente informa que a CEG cedeu apenas o remanescente do crédito que detinha sobre a Insolvente V…, Lda.”
10 – Por sentença de 18/12/2018, transitada em julgado, foi decidido:
“Pelo exposto, declaro habilitada AGL., pessoa coletiva n.º …, com sede em …, a intervir nos presentes autos na qualidade de credora em substituição do credor CEG”.
11 - Em 13/05/2019 foi elaborado mapa de rateio, nos termos do qual:
 (…)
12 – Foram efetuados os pagamentos conforme mapa de rateio, que não sofreu qualquer reclamação.
13 – Consta da fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 23/03/2021, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido:
 “Há, assim, que considerar extemporânea a decisão de encerramento do processo numa altura processual em que ainda estão em discussão hipotéticas dívidas da massa insolvente (art.º 172º, do CIRE). Não cremos, assim, que a questão a discutir no processo tributário seja estranha a estes autos de insolvência, podendo originar a necessidade de um novo rateio e necessários ajustamentos, em tese, com a devolução pelos credores dos montantes necessários para satisfação das dívidas da massa insolvente.
Não pode, assim, manter-se a decisão recorrida de encerramento do processo e consequente cessação de funções do senhor administrador judicial, procedendo nesta parte o recurso interposto.
O recorrente pediu depois que, como consequência da revogação do despacho se determinasse o seu reembolso do valor já despendido e se determinasse a notificação do credor cessionário para depositar na conta bancária da massa insolvente do montante necessário, também para salvaguarda das despesas futuras do processo.
Todavia, uma coisa é a necessidade de continuação do processo e do exercício de funções do senhor administrador de insolvência, coisa diferente é aceitar sem reservas a necessidade de despesas e respetivo montante, que obviamente terão de ser sindicadas em sede de prestação de contas.
Inexistindo liquidez na massa insolvente, constituiria sacrifício injusto para o senhor administrador de insolvência estar a adiantar do seu bolso montantes que poderá ou não vir a receber. A questão que então se coloca é a de saber quem deverá suportar o ónus dessas despesas, rectius, da devolução à massa de valores necessários à salvaguarda das mesmas.
Compulsados os autos, verifica-se que no apenso E de habilitação de adquirente, e com data de 18 de dezembro de 2018, o tribunal recorrido decidiu nos seguintes termos:
“Pelo exposto, declaro habilitada AGL, pessoa coletiva nº …, (…) a intervir nos presentes autos na qualidade de credora em substituição do credor CEG.”
Uma visão puramente formalista do processo levar-nos-ia a considerar que, nada estando ressalvado na sentença de habilitação a despeito do teor da petição inicial corrigida ali apresentada, o referido ónus recairia sobre a adquirente.
Não partilhamos, todavia, de tal entendimento.
Na notificação da Autoridade Tributária que o senhor administrador de insolvência juntou ao processo com o seu requerimento de 22 de outubro de 2019, na página 4 da mesma, consta o seguinte: “Conforme referido no Cap. II.2, constatou-se que o sujeito passivo alienou bens imóveis, devidamente relacionados no quadro 1 da presente informação, no valor total de €3.243.000,00, sem ter efetuado a entrega da declaração de rendimentos mod. 22 de IRC, bem como da declaração anual de informação contabilística e fiscal (IES), do ano de 2015, em sede de IRC.”.
É evidente que o alegado crédito da Autoridade Tributária, a confirmar-se, constituirá dívida da massa insolvente, por força de atos que tiveram a ver com a adjudicação de tais bens imóveis. Mas a questão que se terá de colocar é a seguinte: à data da adjudicação, se houvesse já conhecimento da alegada dívida perante a autoridade tributária, não havendo liquidez na massa, a quantia a depositar pelo adjudicante seria a mesma? É que, em tese, considerar a adquirente integralmente responsável pela alegada reposição à massa, poderia conduzir a este absurdo: a de a mesma poder nada receber e, ainda assim, ser responsabilizada por dívidas da massa por factos anteriores à sua habilitação e concernentes ao ato de adjudicação dos bens ao credor transmitente. Afigura-se-nos, assim, que à luz do princípio da boa fé, não poderá considerar-se integrada na cessão realizada a responsabilização por alegadas dívidas da massa que à data não podiam razoavelmente antever (art.º 239º do Código Civil). Todavia, é também evidente que aquando do novo rateio, se vier a ter de ser realizado, terão de ser tomadas em consideração todas as quantias, designadamente os €212.290,08 que o cessionário AGL recebeu. Ou seja, havendo vencimento da Autoridade Tributária na pretensão que deduziu e pelo montante em que o fez, o cessionário AGL terá de repor a quantia recebida, pois sendo dívida da massa, terá de ser paga em primeiro lugar (art.º 172º, nº1, do CIRE). No que vier a ultrapassar tal montante necessário à satisfação do alegado crédito, o ónus incumbe à cedente CEG.
Assim, nos termos do art.º 815º, nº4, do CPC, ex vi art.º 17º, nº1, do CIRE, deverá o tribunal recorrido ordenar a restituição à massa insolvente, após prévio exercício do contraditório perante credores (cedente e cessionário) e senhor administrador de insolvência, de quantia necessária à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender, sem prejuízo dos ulteriores termos necessários, mormente nova prestação de contas supervenientes às já prestadas e rateio final. Considerando o supra exposto, essa obrigação provisória de restituição à massa para salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender incumbirá em primeira linha e até ao montante de €212.290,08 ao habilitado AGL.”
14 – AGL juntou aos autos principais em 02/11/2021 comprovativo da transferência, em 04/07/2019, de €212.253,68[6] para CEG.
*
4. Fundamentos do recurso
O processo de insolvência é um processo especial, regido pelas normas do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil, nos termos dos art.ºs 17º nº1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa (doravante CIRE) e 549º do Código de Processo Civil (doravante CPC), sendo este o quadro normativo de base a considerar.
Num processo em que todo o ativo foi liquidado e foram realizados rateio final e pagamentos, surgiram, posteriormente a estes, despesas tributárias que, a confirmarem-se, sempre seriam da responsabilidade da massa, já então inexistente.
Em recurso da decisão, então proferida pelo tribunal, de encerramento do processo foram colocadas ao tribunal superior duas questões[7], que, aliás, foram então definidas como objeto do recurso: “apurar da correção da decisão de encerramento do processo e sobre a alegada autonomia dos presentes autos relativamente à decisão do processo tributário a correr termos.”
A decisão então proferida dividiu-se em dois claros segmentos decisórios: i) revogação do “despacho recorrido, e determina-se o prosseguimento do processo de insolvência, com a consequente manutenção em funções do senhor administrador de insolvência,” e
ii) “devendo o tribunal recorrido ordenar a restituição à massa insolvente, após prévio exercício do contraditório perante credores (cedente e cessionário) e senhor administrador de insolvência, de quantia necessária à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender, sem prejuízo dos ulteriores termos necessários, mormente nova prestação de contas supervenientes às já prestadas e rateio final.”
Após baixa dos autos e cumprido o ordenado contraditório, o tribunal proferiu a decisão recorrida, respeitante ao cumprimento do segundo segmento decisório, “Em obediência ao determinado pelo Tribunal da Relação de Lisboa no seu Acórdão de 23-03-2021, nos termos do artigo 815º, nº 4, do CPC, ex vi do artigo 17º, nº 1, do CIRE, ordeno a restituição à massa insolvente da quantia necessária à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender pelo senhor administrador de insolvência.
Nos termos do aludido Acórdão, essa obrigação provisória de restituição à massa para salvaguarda daquelas quantias incumbe, em primeira linha e até ao montante de €212.290,08 ao habilitado AGL e, no que vier a ultrapassar tal montante, o ónus incumbe à cedente CEG.”
O recurso interposto pela cessionária e habilitada, AGL imputa ao despacho recorrido nulidade, nos termos da al. d) do nº1 do art.º 615º do CPC, por, tendo proporcionado às partes interessadas o contraditório, não se ter debruçado sobre as questões por estas suscitadas no exercício do mesmo, identificando como omitidas as seguintes:
- para efeitos do art.º 815º nº4 do CPC, quem assume a posição de credor hipotecário nos autos?
- consequências do facto de ter transferido para o cedente o valor recebido em rateio, nos autos, assim nada tendo recebido.
A cedente CEG[8] contra-alegou concluindo inexistir qualquer omissão, dado que a decisão recorrida está em conformidade com o caso julgado formado pelo ac. TRL de 23/03/2021, que conheceu expressamente da primeira questão identificada.
Apreciando:
Dispõe o n.º 1 do art.º 615º do CPC:
«1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.»
O art.º 615º do CPC prevê o elenco taxativo de nulidades que podem afetar a sentença.
Como é uniformemente prevenido pela doutrina e jurisprudência, importa sempre distinguir as nulidades de processo e as nulidades de julgamento, sendo que o regime deste preceito apenas se aplica às segundas.
Para os efeitos da alínea d) do nº1 do art.º 615º do CPC, quando se comina com nulidade a sentença, em que o juiz “…deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar…” referem-se as questões que constituem o objeto da sentença. O preceito deve ser conjugado com o art.º 608º, com vista à determinação das questões a resolver na sentença. Essas questões, aquelas que se impõe ao juiz resolva na sentença são, em primeira linha as questões de forma, alegadas pelas partes ou de conhecimento oficioso e finalmente as questões de fundo, que constituem o mérito da causa, suscitadas pelas partes como fundamento do pedido ou como fundamento das exceções e ainda as que o juiz deva conhecer oficiosamente – cfr. nº2 do art.º 608º.
Na lição de Ferreira de Almeida[9] “Integra esta causa de nulidade a omissão do conhecimento total ou parcial do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão (não fundamentação jurídica adrede invocada por qualquer das partes). Não confundir, porém, questões com razões, argumentos ou motivos invocados pelas partes para sustentarem e fazerem vingar as suas posições (jurídico-processuais ou jurídico-substantivas); só a omissão da abordagem de uma qualquer questão temática central integra vício invalidante da sentença, que não a falta de consideração de um qualquer elemento da retórica argumentativa produzida pelas partes.”
Trata-se, aliás, de questão pacífica na jurisprudência, como nos apontam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe de Sousa[10] - o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as questões de conhecimento oficioso, mas que não obriga a que se incida sobre todos os argumentos, pois que estes não se confundem com “questões”.
“Na verdade, o que a lei impõe é, antes de mais, que os fundamentos e a parte dispositiva de uma decisão sejam construídos em jeito de resposta aos problemas fundamentais com que as partes construíram a causa de pedir, os pedidos ou as exceções; não em jeito de resposta aos raciocínios em que as partes suportam as suas posições. Deste modo, uma decisão não tem de ser o espelho do teor argumentativo da extensão do requerimento ou dos articulados respetivos.
Dito isto, é natural que uma decisão bem fundamentada “dialogue” com a argumentação das partes quando esta seja decisiva na substanciação da causa de pedir, pedidos ou exceções. Ou seja: a não apreciação de certo argumento expendido pela parte pode, indiretamente, ter consequências na (já referida) suficiência do mérito demonstrativo dos fundamentos da decisão, sindicável por recurso, quando admissível.”[11]
No caso concreto, como acima se referiu, são duas as omissões apontadas à decisão recorrida, sendo, a primeira das quais, quem revestiria (se cedente, se cessionário) a posição de credor hipotecário para os efeitos do art.º 815º do CPC.
Embora seja esta a questão apontada como omitida, a questão a resolver pelo despacho decidido – e pelo Ac. TRL que o antecedeu – não é exatamente essa, mas sim sobre quem recai a obrigação prevista no nº4 do art.º 815º do CPC quando ocorreu, entretanto, uma cessão dos créditos garantidos após o primitivo credor ter solicitado e visto concedida a dispensa de depósito do preço nos termos do nº1 do art.º 815º do CPC.
Senão, vejamos:
Nos termos do disposto no art.º 815º nºs 2 e 3 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi art.ºs 17º, 164º e 165º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não estando ainda graduados os créditos, o credor com garantia sobre os bens imóveis que adquirir só é obrigado a depositar o excedente do preço ao montante não necessário para pagar a credores graduados antes dele e excedente do crédito que tiver reclamado, ficando o mesmo hipotecado à parte do preço não depositada[12].
No entanto, no âmbito do processo de insolvência, as dívidas da massa insolvente são pagas antes dos créditos sobre a insolvência, nos termos do disposto nos art,ºs 172º nº1 e 51º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, devendo, por conseguinte, ficar sempre em depósito 10%[13] do produto da venda para garantia do pagamento das dívidas da massa insolvente, nos termos previstos no art.º 172º nº2 do referido diploma.
O que implica que, em processo de insolvência, uma das adaptações exigidas é de que a dispensa nunca é total, sendo que pelo menos 10% do valor do preço não é suscetível de dispensa. A base legal para a impossibilidade de dispensa total do depósito do preço é a regra geral do art.º 172º nºs 1 e 2 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, da qual resulta que, até 10% do produto da venda de cada bem, móvel ou imóvel, terá que ficar afetado à satisfação das dívidas da massa.
A redação da regra do art.º 815º do CPC provém, em termos muito gerais, da norma do art.º 906º do CPC de 1939, que Alberto dos Reis[14] explicava ter sido alterado em relação ao código anterior pelo facto de, ao contrário do que sucedia até então, o concurso de credores ter deixado de ser posterior à arrematação. A regra essencial, porém, ensinava o Ilustre Processualista era simples e a mesma: o credor não é obrigado a depositar a quantia correspondente àquela que tem o direito de receber.
 “Opera-se uma espécie de compensação. O arrematante deve à execução o preço por que arrematou os bens; mas por outro lado é credor da execução por determinada quantia: tem direito a receber do produto dos bens arrematados certa importância fixada na sentença de verificação e graduação de créditos. Em vez de depositar a totalidade do preço para depois levantar todo ou parte dele, faz-se o encontro entre as duas verbas – a da dívida e a do crédito – e só deposita aquilo que excede o montante do que tem direito a receber.”[15]
Ainda hoje a regra essencial é a mesma. Com as diferenças relativas ao facto de a lei ter passado a consagrar a possibilidade de o exequente e o credor com garantia real poderem ser dispensados do depósito do preço, mesmo que ainda não tenha sido proferida sentença de verificação e graduação de créditos, ainda hoje pode ser resumida da mesma forma: o credor só deposita o que excede o que tem direito a receber.
Assim Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, que escrevem, em anotação ao art.º 815º do CPC[16] : “1. Na pressuposição de que já está feita a graduação de créditos e, portanto, já estão definidos os termos em que cada credor (exequente ou reclamante) poderá a ser pago, o nº 1 consagra uma dispensa de depósito que se reconduz a uma compensação, total ou parcial, nos casos em que a venda é feita a favor do exequente ou de credor com garantia real sobre os bens por si adquiridos. Atento o teor do art.º 541º, a dispensa do depósito do preço de que beneficia o credor com garantia real sobre o bem não abrange as custas prováveis da execução, incluindo os honorários e despesas devidos ao agente de execução (RP 26-10-17, 6993/10). Quem aprecia o pedido de dispensa do depósito é o agente de execução (art.º 719º, nº 1).
2. Se não estiverem ainda graduados os créditos, a dispensa de depósito é provisória, sendo fixada por referência ao montante do crédito exequendo ou reclamado, de modo que o exequente só tem de depositar a parte que exceda o crédito exequendo e o credor só depositará o montante que supere o crédito que tenha reclamado sobre os bens adquiridos (nº 2).”
Também Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes[17], em anotação ao artigo correspondente ao atual art.º 815º do CPC, ensinam que “o exequente ou o credor com garantia sobre o bem comprado é dispensado de depositar a parte do preço que não seja necessária para pagar credores graduados antes dele (Estado, pelas custas, incluído) e não exceda a importância que tem direito a receber (art.º 887-1). Dá-se assim, com atenção ao lugar que em que o crédito do comprador tenha sido graduado e ao seu montante, a compensação (total ou parcial) entre a dívida do preço e o crédito exequendo ou verificado. Esta compensação é idêntica à que se dá no caso da adjudicação de bens (ver o n.º 2 da anotação ao art.º 875 e o art.º 878).
Se à data da venda, não houver ainda graduação, a dispensa não é definitiva: esta só tem lugar quando, por os créditos já estarem verificados e graduados, haja certeza, não só sobre o montante do crédito do comprador, se credor reclamante, mas sobretudo sobre a sua colocação na escala das preferências (n.º 4); provisoriamente, atende-se tão-só ao montante do crédito exequendo ou reclamado (n.º 2).”
A dispensa do depósito do preço analisa-se, assim, numa compensação que extingue a obrigação de pagamento do preço e que apenas se torna definitiva com a verificação e graduação dos créditos.
Aplicando ao nosso caso concreto diremos então que, ao tempo em que foi formulada a proposta com dispensa do depósito do preço não estava ainda proferida sentença de verificação e graduação de créditos, pelo que a dispensa não extinguiu a obrigação do pagamento do preço do bem.
A sentença de verificação e graduação de créditos vem, entretanto, a ser proferida em 17/05/2017 e transita em julgado, graduando o crédito da ora cedente tal como reclamado, ou seja, como garantido e parcialmente comum.
O que significa que a dispensa de depósito do preço, nessa data, se tornou definitiva e que o crédito correspondente se extinguiu, por compensação, de acordo com os dados então disponíveis e regulados por lei.
A cessão de créditos para a ora cessionária e recorrente dá-se apenas em 30/06/2017[18], ou seja, depois da dispensa e respetiva compensação se ter tornado definitiva.
A implicação desta sequência cronológica é que a CEG não transmitiu a parte extinta do seu crédito, ou seja, do crédito verificado e graduado como garantido de €4.737.293,78, extinguiram-se, por compensação €2.937.150,00[19], tendo assim, sido transmitidos por via do contrato de cessão[20] apenas o remanescente do crédito garantido verificado.
É o que resulta do regime legal aplicável pelo que, na sentença de habilitação proferida, não se impunha fosse feita qualquer menção – embora, até porque a própria cessionária fez essa alegação, na petição aperfeiçoada, o pudesse ter sido, a bem da clareza e segurança jurídicas.
E aqui chegados, sabemos que ambos, cedente e cessionário, são credores hipotecários para os efeitos do art.º 815º do CPC, um porque reclamou créditos e pediu e obteve a dispensa de depósito do preço e o outro porque ainda recebeu, em cessão, créditos garantidos pelos bens vendidos.
Tendo presente o regime legal – as dívidas da massa insolvente (art.º 51º do CIRE), saem precípuas na devida proporção do produto da venda de cada bem móvel nos termos do art.º 172º nºs 1 e 2 do mesmo diploma – a questão seria sempre, assim, e como já referimos, quem seria o responsável, nos termos do nº4 do art.º 815º do CPC, num caso em que, posteriormente ao rateio e pagamentos, se verificou um aumento das dívidas da massa e se verifica que os pressupostos da extinção do crédito por compensação não estavam verificados.
Devidamente identificada a questão, vejamos se o respetivo conhecimento deveria ter sido efetuado – e não o tendo sido, se terá sido omitido – pelo despacho recorrido.
A resposta, quanto a nós é claramente negativa. O despacho recorrido fundamentou-se no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa de 23/03/2021, na qual a questão foi expressamente conhecida nos termos transcritos no ponto 13 da matéria de facto provada.
O tribunal tinha então essa questão para resolver, conheceu-a e decidiu sobre quem recaía a responsabilidade: “Considerando o supra exposto, essa obrigação provisória de restituição à massa para salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender incumbirá em primeira linha e até ao montante de €212.290,08 ao habilitado AGL.”
Ou seja, precisamente, considerou que a obrigação prevista no nº4 do art.º 815º recaía sobre os “dois credores hipotecários”, quem tinha obtido a dispensa e quem tinha adquirido ainda um crédito garantido por esses bens, mas na medida dos montantes recebidos, ou seja, o cessionário apenas pelo montante recebido em rateio e o credor originário, que tinha sido dispensado do depósito do preço, pelo demais.
Mas na verdade, pese embora esta claríssima fundamentação o que veio a ficar consagrado na parte decisória do acórdão foi um pouco menos (sublinhado nosso): “Pelo exposto, julga-se procedente o recurso interposto, revogando-se o despacho recorrido, e determina-se o prosseguimento do processo de insolvência, com a consequente manutenção em funções do senhor administrador de insolvência, devendo o tribunal recorrido ordenar a restituição à massa insolvente, após prévio exercício do contraditório perante credores (cedente e cessionário) e senhor administrador de insolvência, de quantia necessária à salvaguarda das quantias despendidas e previsivelmente a despender, sem prejuízo dos ulteriores termos necessários, mormente nova prestação de contas supervenientes às já prestadas e rateio final.”
Embora a questão não tenha sido expressamente arguida em recurso, há que aferir, face à arguição de nulidade por omissão de pronúncia, se o caso julgado formado pela decisão do Tribunal da Relação de Lisboa de 23/03/2021 abrange os respetivos fundamentos. Se assim for, ao remeter para o decidido no Ac. TRL de 23/03/2021, não foi omitido o conhecimento da questão assinalada, por ela ter sido conhecida, em toda a sua amplitude, no douto aresto. Se a resposta a esta questão for negativa, a omissão terá sido cometida[21].
Nos termos do disposto no art.º 619º nº1 do CPC, aplicável ex vi art.º 17º nº1 do CIRE, «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.»
Nos termos do art.º 621º, também do CPC «A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga: se a parte decaiu por não estar verificada uma condição, por não ter decorrido um prazo ou por não ter sido praticado determinado facto, a sentença não obsta a que o pedido se renove quando a condição se verifique, o prazo se preencha ou o facto se pratique.»
É entendimento uniforme na doutrina e na jurisprudência que decorre das regras legais aplicáveis que a eficácia do caso julgado, em regra, apenas cobre a decisão contida na parte final da sentença ou acórdão, ou seja, a resposta injuntiva do tribunal à pretensão do autor, réu, ou recorrente[22].
Como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa[23] “O objecto do caso julgado é a decisão referente ao pedido, não cada uma das suas premissas de facto ou de direito. O caso julgado não se estende a cada uma destas premissas, quando consideradas de forma isolada e separada da decisão, pois que não é possível desligar esses fundamentos da respetiva decisão e atribuir-lhes a indiscutibilidade própria do caso julgado.”
É, porém, também pacífico que este princípio “não é absoluto. (…) Nem exclui que se possa e deva recorrer à parte motivatória da sentença (ou acórdão) para interpretar a decisão (para reconstruir e fixar o seu verdadeiro conteúdo): neste sentido é a communis opinio.”[24] (primeiro entre parêntesis nosso).
Ou, e novamente nas palavras de Castro Mendes e Teixeira de Sousa[25] “A circunstância de o fundamento não valer autonomizado da decisão implica que a decisão também não pode valer autonomizada do seu fundamento: a vinculação à decisão é sempre uma vinculação à decisão no contexto do seu fundamento. Isto significa que, sempre que se invoque uma decisão em juízo, o tribunal perante o qual essa decisão é invocada está vinculado não só à decisão mas também aos fundamentos que constituam antecedentes lógicos e indispensáveis à sua emissão.”[26]
Na jurisprudência trata-se igualmente de posição pacífica, podendo citar-se, por todos o Ac. STJ de 11/11/2021 (Rosa Tching - 1360/20.2T8PNF.P1.S1)[27], no qual se sumariou[28]:
“III. Os fundamentos da decisão adquirem o valor de caso julgado quando criam uma relação de prejudicialidade entre a decisão transitada em julgado e o objeto da ação posterior, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objeto de uma ação posterior, por ser tida como situação localizada dentro do objeto da primeira ação, sendo seu pressuposto lógico indispensável.
IV. Para aferir da repercussão da autoridade deste caso julgado formado sobre os fundamentos de uma decisão final sobre o objeto da ação dela dependente, torna-se, assim, necessário, definir e objetivar, de forma precisa e suficiente, os fundamentos de facto e de direito em que assenta a dita decisão prejudicial, de modo a determinar-se se e em que medida aquela decisão se impõe, indiscutivelmente, como julgada com prejudicialidade sobre o objeto da ação posterior.”
Transpondo, a prejudicialidade resulta clara num caso como o presente em que estamos no mesmo processo, entre as mesmas partes, a dar cumprimento ao decidido em anterior acórdão, no qual já se colocava ao tribunal a questão da responsabilização nos termos do nº4 do art.º 815º do CPC, precisamente entre cedente dispensado do depósito do preço, e cessionário[29].
A fundamentação do tribunal na parte em que esclarece a ocorrência de responsabilidade quer da cessionária, quer da cedente é premissa do segmento decisório que, ordenando o prévio cumprimento de contraditório, emite um mandado de que seja depositado o montante necessário, a efetuar entre cedente e cessionário (cuja notificação foi expressamente ordenada).
Assim, no caso concreto, a decisão proferida pelo tribunal a quo, ao reproduzir os fundamentos da decisão do Acórdão TRL que visa cumprir, não necessita, quanto à repartição da responsabilidade nos termos do nº4 do art.º 815º do CPC, de qualquer outra justificação ou fundamentação que não a já contante do douto acórdão transitado em julgado.
Nesta parte, não se surpreende, assim, qualquer nulidade por omissão de pronúncia.
Questiona a recorrente porque foi ordenado o exercício do contraditório se depois nada foi atendido dos argumentos esgrimidos.
O Tribunal superior ordenou o cumprimento prévio do contraditório prevenindo a hipótese de ocorrerem outros factos e circunstâncias não disponíveis nos autos, mas não obliterando os fundamentos do que já havia decidido.
Mas a verdade é que a segunda omissão apontada – a não pronúncia do tribunal sobre o facto, só depois alegado, e na sequência do contraditório, de a recorrente/cessionária ter entregue à cedente o montante recebido em rateio, surge exatamente como uma daquelas ocorrências que a ordem de que fossem ouvidas as partes visou prevenir. Como aponta a recorrente, o Tribunal da Relação ergueu em premissa da sua decisão que “o cessionário AGL terá de repor a quantia recebida”, sendo, pois, relevante saber se se pode considerar o montante recebido em rateio como “não recebido” por ter sido entregue à cedente.
Esse facto foi alegado e foi objeto de resposta, mas o tribunal a quo não aludiu sequer ao mesmo. Vem a fazê-lo ao julgar improcedente a nulidade por omissão de pronúncia, fundamentando como o não havia feito no despacho recorrido[30].
Verificamos, assim, de facto, no alinhamento processual iniciado com o douto Ac. TRL de 23/03/2021, que o tribunal não apreciou factualidade nova relevante (na perspetiva das plausíveis soluções de direito) para a concreta decisão que era chamado a tomar. Bastaria a indicação do tribunal superior da necessidade do contraditório para inferir que, havendo questões não levadas em conta por aquele Tribunal, deveriam agora ser apreciadas na 1ª instância.
Verificamos, assim, uma omissão de pronúncia que consubstancia a nulidade prevista na alínea d) do nº1 do art.º 615º do CPC, materializada na omissão de apreciação de uma questão nova (em relação à decisão do Ac. TRL de 23/03/2021) potencialmente relevante para a decisão a tomar, mas que, no caso concreto, não gera anulação da decisão proferida pela 1ª instância, atento o disposto no art.º 665º nº 1 do CPC.
Tendo as partes alegado o que entenderam sobre esta específica questão, não se justifica nova audição das mesmas nos termos do nº 3 do art.º 665º do CPC – a nulidade apontada é objeto do recurso, foi expressamente arguida bem como as consequências que o tribunal, na opinião da recorrente, deve tirar do conhecimento da matéria e a cedente, devidamente notificada, contra-alegou como entendeu quanto à mesma. A finalidade da regra é evitar decisões surpresa[31] e esta era matéria posta à consideração do tribunal desde o exercício do contraditório, nos termos amplamente descritos no relatório.
Tendo por certo que a ora recorrente/cessionária foi habilitada nos autos passando a ocupar a posição da cedente, surge como corolário dessa sua posição processual que lhe tenha sido entregue o montante a ratear para pagamento do crédito que lhe foi cedido.
A habilitação por transmissão entre vivos, regulada no art.º 356º do CPC (sendo ainda relevante o disposto no 263º do mesmo diploma) é uma das formas previstas de modificação subjetiva da instância.
Pressupõe a transmissão do direito (ou coisa) ou dever litigioso, sendo, porém, facultativa, dado que nos termos do nº1 do art.º 263º do CPC a transmissão não afeta a legitimidade do transmitente.
Como referem Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pereira de Sousa[32] em anotação ao art.º 356º “por via do incidente de habilitação do cessionário, permite-se que o cedente seja substituído no processo pelo cessionário, o qual adquire a posição processual que o cedente tinha no pleito, não sendo admissível que continuem ambos na lide.”
Trata-se de posição unânime na jurisprudência[33] e que explica que se passe a lidar apenas com o cessionário, que substituiu o cedente, nos autos, para praticamente todos os efeitos.
São pressupostos da admissibilidade de habilitação: “pendência de uma ação; existência de uma coisa ou de um direito litigioso; transmissão da coisa ou direito litigioso na pendência da ação, por ato entre vivos e conhecimento da transmissão durante a ação.”[34]
Este o primeiro ponto a relevar[35] – a habilitação do cessionário apenas visa a modificação dos sujeitos da lide e os seus efeitos são de natureza meramente processual[36].
A cessão de créditos é um dos pressupostos da admissibilidade de habilitação, o negócio jurídico pelo qual se dá a transmissão da coisa, direito ou dever em litígio. A habilitação pressupõe a transmissão, mas não se confunde com ela: enquanto que o negócio jurídico celebrado entre o cedente e o cessionário transmite a coisa, direito ou dever, a habilitação coloca o cessionário na posição processual do cedente, considerando-os, aliás, a mesma parte processual[37].
Mostra-se apurado que a ora recorrente transferiu para a cedente o que lhe coube em rateio, referindo tê-lo feito em cumprimento do acordado entre ambas, nos termos constantes na cláusula 6.3.2. do contrato de cessão de créditos.
Como já referimos, não se confunde o negócio jurídico de transmissão da coisa, direito ou dever com a substituição processual que se opera quando o cessionário requer e vê deferida a habilitação.
A habilitação, neste caso, é facultativa, pelo que, independentemente do acordado entre as partes do contrato de cessão, e que só a elas vincula, a ora recorrente podia ter optado por, celebrado o negócio, não se habilitar, permanecendo apenas titular dos créditos cedidos e não tomando a posição processual do credor originário – atento o regime do art.º 263º do CPC.
Ou seja, o acordo de cessão é alheio ao tribunal, aos autos e aos demais interessados, apenas vinculando as partes celebrantes entre si.
Quem recebeu o montante devido em rateio – em primeiro lugar como credor garantido – foi a ora recorrente.
Se, em cumprimento de uma cláusula do acordo havido com a cedente a cessionária transferiu para aquela o montante recebido em rateio, essa é uma questão alheia ao tribunal, ao processo e às partes. No processo pagou-se a quem tinha o direito de receber, podendo, em consequência exigir-se-lhe, preenchidas as condições legais, que devolva o necessário ao pagamento de credores graduados antes de si ou de dívidas da massa insolvente.
Ou seja, a recorrente recebeu o que tinha a receber em rateio, sendo ela, neste momento, a credora nos autos, pelo que responde pelo que recebeu, nessa exata medida, devendo resolver noutra sede e exclusivamente com a cedente as questões emergentes do contrato de cessão de créditos com ela celebrado.
Não há qualquer questão relativa à exatidão do montante recebido, dado que também a massa insolvente verá deduzidas comissão e imposto de selo pela operação.
Assim, pese embora a procedência de uma das nulidades arguidas, suprida a mesma verifica-se que improcede a pretensão da recorrente de que a responsabilidade prevista no nº 4 do art.º 815º do CPC recaia exclusivamente sobre a cedente CEG. Tal implica que, mesmo tendo procedido algumas das conclusões do recurso, a decisão recorrida, agora com acrescida fundamentação, deve ser mantida.
*
A apelante, porque vencida, suportará integralmente as custas do presente recurso que, in casu se traduzem apenas nas custas de parte devidas, porquanto se mostra paga a taxa de justiça devida pelo impulso processual do recurso e este não envolveu diligências geradoras de despesas – art.ºs 663.º, n.º 2, 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º e 533.º, todos do Código de Processo Civil[38].
*
5. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em julgar integralmente improcedente a apelação, decidindo-se manter a decisão recorrida.
Custas de parte na presente instância recursiva pela recorrente.
Notifique.

Lisboa, 17 de outubro de 2023
Fátima Reis Silva
Teresa de Sousa Henriques
Paula Cardoso
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[1] Cfr. apenso B (reclamação de créditos).
[2] Cfr. apenso B (reclamação de créditos).
[3] Junta em 22/11/2022 no apenso A (prestação de contas).
[4] Junta em 22/11/2022 no apenso A (prestação de contas).
[5] Cfr. apenso E (habilitação de cessionário).
[6] Ao débito acresceram €20,80 de comissão de transferência e imposto de selo.
[7] As conclusões do recurso terminavam com o seguinte pedido: “Termos em que se alega e conclui devendo o presente recurso ser julgado totalmente procedente revogando-se a decisão proferida substituída por outra na qual se determine o reembolso ao aqui recorrente do valor já despendido, já comprovado documentalmente, notificando-se para o efeito o cessionário AGL para que proceda ao depósito, na conta bancária da massa insolvente, do montante necessário e de valor para custear as despesas futuras do processo.”
[8] Doravante CEG.
[9] Em Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, pg. 371.
[10] Em Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pg. 738.
[11] Rui Pinto, local citado, pg. 26.
[12] Formalidade não cumprida no caso, mas que não prejudica a aplicabilidade da regra.
[13] Formalidade, de novo, não integralmente cumprida, dado que em relação a um dos contratos apenas ficou em depósito 5% do preço, pese embora no outro tenham ficado 20%.
[14] Em Processo de Execução, Vol. 2º, reimpressão, Coimbra Editora 1985, págs. 391 e 392.
[15] Autor e local citado, pg. 392.
[16] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2020, pg. 236.
[17] Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3.º, Coimbra Editora, 2003, pg. 569.
[18] Facto nº 7.
[19] Diferença entre o preço pelo qual os bens foram vendidos e os depósitos efetuados, tal como consta das escrituras constantes dos nºs 3 a 6 da matéria de facto apurada.
[20] E, na verdade, independentemente do que dele consta, que não contraria a realidade verificada no processo.
[21] O que implica que deve ser avaliado o seu suprimento.
[22] Seguimos de perto Antunes Varela em Manual de Processo Civil, 2ª edição, Coimbra Editora, 1985, pg. 714.
[23] Em Manual de Processo Civil, Vol. I, AAFDL Editora, 2022, pg. 655.
[24] Manuel de Andrade em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pg. 318.
[25] Local citado.
[26] Solução que estes autores estendem expressamente aos fundamentos de facto e de direito, sempre desde que premissas da decisão.
[27] Disponível, como os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt.
[28] Entre outro, e no mesmo sentido podemos também citar os Acs. STJ de 11/07/2023 (Graça Amaral -1284/21.6T8MCN-A.P1-A.S1 ), também de 11/07/2023 (Ana Resende - 3158/11.0TJVNF-N.G1-A.S1), também de 11/07/2023 (Maria Clara Sottomayor - 2816/20.2T8BRG.G2.S2), de 25/03/2021 (Rosa Tching - 453/14.0TBVRS-A.L1.S1), de 12/07/2011 (Moreira Camilo - 129/07.4TBPST.S1), de 28/03/2019 (Tomé-Gomes - 6659/08.3TBCSC.L1.S1).
[29] Naquele primeiro recurso a aqui recorrente contra-alegou e deixou expresso nas suas conclusões: “F. Tão pouco cabe à Recorrida suportar tais encargos ou custos, porquanto, apesar de ter sido julgada habilitada no processo, a Recorrida não beneficiou dos direitos decorrentes das hipotecas registadas sobre os imóveis adjudicados pela credora CEG, nem do produto da venda respetiva.
G. Pelo que à Recorrida não pode atribuir-se posição idêntica à do credor hipotecário, ao contrário do que defende o Recorrente, desde logo porque, à data da cessão, os créditos cedidos não dispunham já das hipotecas associadas.”
[30] Recordando, nesse despacho, que tinha como pressuposto o conhecimento da nulidade arguida por não ser admissível o recurso interposto, o tribunal decidiu: “Mais se refira que, por outro lado, a factualidade alegada nas, ora suas, alegações de recurso e nas conclusões das mesmas, designadamente as vertidas sob os pontos 12, 14 e 18 se reportam a questões internas suas e da CEG e que não podem ser resolvidas por via incidental neste processo de insolvência por extravasar o seu âmbito e os poderes de cognição deste tribunal.”
[31] Cfr. Abrantes Geraldes em Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, 2018, pg. 336.
[32] Em Código de Processo Civil Anotado, 3ª edição, Almedina 2022, pg. 451.
[33] Entre outros, neste exato sentido, os Acs. TRG de 24/04/2019 (José Alberto Moreira Dias), TRP de 30/01/2012 (Maria Adelaide Domingos) e TRP de 05/11/02 (Alziro Cardoso).
[34] Idem, citando o Ac. TRL de 02/12/2015 (Ondina Carmo Alves).
[35] Onde se fundamentou pela seguinte forma:
“Em síntese, o cessionário, que é habilitado para prosseguir na causa no lugar do cedente, substitui este na posição processual que lhe cabia, assumindo integralmente a posição daquele.
Estamos aqui no âmbito da relação processual, não sendo de convocar, como faz a requerente, as obrigações assumidas entre cedente e cessionário, designadamente, no que respeita a direitos e obrigações decorrentes do contrato entre ambas celebrado e que apenas a ambas vincula.
Para os efeitos do processo, do presente processo, a cessionária substituiu para todos os efeitos a cedente, como se refere no acórdão transcrito, passando a “ocupar a posição do cedente, exercendo os direitos e cumprindo as obrigações que a este competiam, estando sujeito à sua anterior atuação processual, devendo aceitar a tramitação no estado em que a encontrar e apenas impulsionando para o futuro e dentro destes limites, o processo”.
Logo, falece por completo a argumentação da requerente porquanto, no que a este processo respeita, o BANIF (cedente) deixou de existir, já não é parte, tudo se passando como se nunca tivesse estado nos autos, estando nesse lugar, nos exactos termos em que o lugar se configura neste momento, a requerente, que ao celebrar o contrato de cessão, e ao pedir a sua habilitação para intervir no processo em substituição e no lugar do BANIF, aceitou assumir as vantagens e desvantagens daí decorrentes, não podendo agora pretender que a substituição
apenas produza efeitos na parte que lhe é favorável, mas já não no mais.”
[36] Cfr. Ac. TRL de 11/03/2021 (Adeodato Brotas), disponível em www.dgsi.pt, tal como os demais citados sem referência.
[37] Como referem Castro Mendes e Teixeira de Sousa em Manual de Processo Civil, vol. I, AAFDL Editora, 2022, pg. 285: “a identidade de partes é aferida pela qualidade jurídica dos sujeitos (art.º 581º nº2), o que justifica, por exemplo, que o de cuiús e herdeiro ou transmitente e o adquirente sejam a mesma parte”.
[38] Vide neste sentido Salvador da Costa in Responsabilidade das partes pelo pagamento das custas nas ações e nos recursos, disponível em https://blogippc.blogspot.com/.