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CONTRATO DE SEGURO
DECLARAÇÕES INEXACTAS
NEXO DE CAUSALIDADE
Sumário
I - São declarações inexactas as declarações não conformes com a realidade, que tanto podem ser dolosas (de má fé) como involuntárias (negligentes). II - São declarações reticentes as que omitem factos e circunstâncias essenciais para a seguradora poder avaliar de forma correcta o risco, se o pretende assumir e em que condições. III – Apesar da letra do disposto no art. 429º do Cód. Comercial, as declarações inexactas e as declarações reticentes determinam apenas anulabilidade do contrato de seguro, desde que respeitem a factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro e que fossem susceptíveis de, se conhecidas pela outra parte, influir sobre a existência ou as condições do contrato. IV – Cabe à seguradora o ónus da prova de lhe terem sido prestadas declarações inexactas ou reticentes com essa susceptibilidade (art. 342º, n.º 2, do Cód. Civil). V – O mencionado art. 429º do Cód. Comercial não estabelece o requisito da existência de nexo de causalidade entre os factos omitidos e o sinistro para que se verifique a anulabilidade do contrato.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório
AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra M..., SA, pedindo a condenação da Ré:
- No pagamento ao Banco 1..., SA, do capital em dívida nos três contratos de mútuo que com ele celebraram, à data da verificação da invalidez profissional do Autor AA, no montante global de € 36 403,18;
- No pagamento aos Autores do remanescente do capital do contrato de seguro de vida celebrado com a Ré, no montante de € 78 596,82;
- No reembolso aos Autores das quantias pagas a título de prémio do contrato de seguro celebrado com a Ré, desde 2 de maio de 2018, que à data da petição inicial atingiam a quantia de “cerca de € 9 000,00” (sic.);
- No pagamento aos Autores do montante correspondente ao reembolso das prestações mensais dos contratos de mútuo celebrados com o Banco 1..., pagas desde 2 de maio de 20181, que à data da petição inicial atingiam o montante de “cerca de € 17 000,00.”
Alegaram, em síntese, que, em 29 de dezembro de 1999, celebraram três contratos de mútuo com o Banco 2..., SA, entretanto incorporado, por fusão, no Banco 1..., por via dos quais ficaram obrigados a restituir-lhe o montante global de € 166 786,42.
Em 25 de outubro de 2006, celebraram com a Ré um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º ...54, que garantia a restituição do capital em dívida ao Banco 1... na referida data, no montante de € 115 000,00, em caso de morte ou invalidez profissional permanente de qualquer um dos Autores. Esse seguro garantia também o pagamento do remanescente do capital seguro aos Autores, no caso de invalidez profissional permanente de um deles, ou aos respetivos herdeiros legais, no caso de morte.
A proposta de seguro e o questionário clínico que a acompanhava foram preenchidos por um comercial da Ré, ao qual disseram que o Autor AA, por sofrer de ansiedade, com períodos de depressão, estava medicado com Xanax 0,5 mg e Triticum 100 mg.
No início do ano de 2015, o Autor AA começou a evidenciar deterioração cognitiva e funcional, com repercussões importantes a nível profissional, quadro que se foi progressivamente agravando, até lhe ter sido diagnosticado síndrome demencial (doença de Alzheimer). Por essa razão, em 2 de maio de 2018, foi submetido a uma junta médica que lhe conferiu uma incapacidade permanente global de 80%.
Comunicada essa situação à Ré, designadamente através de carta de 25 de setembro de 2018, esta recusou o cumprimento das obrigações que para si decorrem do contrato de seguro e continuou a cobrar os respetivos prémios aos Autores. Estes, por sua vez continuaram também a pagar as prestações devidas ao Banco 1... para garantia dos capitais mutuados.
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Citada, a Ré contestou, pugnando pela procedência da exceção peremptória da anulabilidade do contrato, julgando-se a acção improcedente (ref.ª ...94 - fls. 37 a 40).
Alegou, em síntese, que os Autores ocultaram, aquando do preenchimento da proposta de seguro e do questionário clínico, que o Autor AA sofria de clínica relacionada com a doença que originou a sua invalidez. Com efeito, o Autor era acompanhado em psiquiatria, por sintomatologia ango-depressiva, insónia e queixas de memória, havia mais de 20 anos e, não obstante, respondeu negativamente ao ponto em que era perguntado se lhe tinha sido diagnosticada alguma doença nos dez anos anteriores, pelo que o seguro é anulável.
Acresce que os prémios de seguro foram cobrados pelo Banco 1... e não pela Ré, por estarem associados ao montante da prestação do crédito à habitação.
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Os Autores responderam, dizendo que deram conhecimento ao comercial da Ré do estado de saúde do Autor AA, designadamente da medicação que lhe estava prescrita. Assim, a omissão desse facto apenas pode ser imputada àquele comercial. Acrescentaram que nunca lhes foi entregue cópia do questionário, nem das condições gerais, especiais e particulares do contrato.
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Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, onde se afirmou a validade e regularidade da instância; foi fixado o objeto do litígio e enunciados os temas de prova, bem como foram admitidos os meios de prova (ref.ª ...74 - fls. 60/61).
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Procedeu-se à realização de audiência de discussão e julgamento (ref.ªs ...34 e ...66 - fls. 180 e 181).
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Posteriormente, o Mm.º Julgador “a quo” proferiu sentença, nos termos da qual, “no reconhecimento da anulabilidade do contrato de seguro celebrado nos termos referidos em D) da factualidade assente”, decidiu julgar totalmente improcedente a ação e, em consequência, absolveu a ré do pedido contra si deduzido pela autora (ref.ª ...51).
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Inconformados, os autores interpuseram recurso da sentença (ref.ª ...22) e, a terminar as respectivas alegações, formularam as seguintes conclusões (que se transcrevem):
«1) Os Autores/Recorrentes, não concordam e dessa forma impugnam a decisão proferida relativamente à matéria de facto dada como: 1. Provada na Douta Sentença na medida em que da mesma (matéria de facto dada como provada) não consta e deveria ter sido dada como provada a matéria de facto alegada pelos Autores na sua Petição Inicial mais concretamente nos artigos n.º 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, 35 e 36; 2. Provada e constante dos itens n.ºs 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20 (parte final onde se refere “Invalidez absoluta e permanente (CE 03) Considera-se contratada a cobertura complementar de invalidez absoluta e permanente, conforme na Condição Especial 03, garantindo, em caso de invalidez absoluta e permanente de uma das Pessoas Seguras, o capital indicado nas Condições Particulares”, 24 e 26 dos factos dados como provados na Douta Sentença e que deveria ter sido dada como não provada; 3. Não provada e constante dos itens n.ºs 43, 44, 45, 46, 47 e 48 dos factos dados como não provados na Douta Sentença e que deveria ter sido dada como provada. 2) Os Autores/Recorrentes, não concordam com a procedência da exceção perentória invocada pela Ré e, em consequência, não deveria te sido decretada a anulabilidade do contrato de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré, M..., SA, e os Autores, AA e BB, titulado pela apólice n.º ...1, 4) Os Autores/Recorrentes, não concordam com a absolvição da Ré, por entenderem que presente ação deveria ter sido julgada procedente e por consequência deveria a condenar-se a Ré, M..., SA, no pedido formulado pelos Autores, AA e BB, 5) Os Autores nos artigos n.ºs 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, 35 e 36 da sua PI, alegaram o seguinte: 7. tomador do referido contrato de seguro de vida era o Autor marido, sendo as pessoas seguras ambos os aqui Autores. 8. O prémio do contrato de seguro era pago mensalmente pelos Autores através de desconto automático na conta bancária que aqueles tinham aberto no Banco 1... S.A.” com o NIB nº ...70. 9. Conforme se disse, esse contrato de seguro vida tinha como capital garantido o montante de €115.000,00, sendo que, caso se verificasse algum dos riscos contratados, morte ou invalidez profissional permanente de qualquer um dos Autores, o capital seria entregue a favor do “Banco 1... S.A.” até ao montante que, no momento de qualquer desses acontecimentos, estivesse em dívida a este por parte dos Autores, 10. E o remanescente seria entregue aos Autores ou aos seus herdeiros legais, conforme se tratasse de invalidez profissional permanente ou morte. 11. O referido contrato de seguro de vida foi negociado e celebrado em 25/10/2006, na residência do Autores, entre os ora Autores e um comercial/mediador de seguros ligado/ou agente de seguros da Ré que se deslocou à residência dos mesmos e actuou como representante da ora Ré seguradora e com poderes delegados pela mesma para o efeito, de nome CC. 12. De acordo com o que foi negociado e acordado na referida data de 25/10/2006 entre os ora Autores e o comercial/mediador de seguros ligado/ou agente de seguros da Ré de nome CC, das condições gerais, especiais e particulares do referido contrato de seguro vida, entendia-se por Invalidez Absoluta e Permanente a situação física ou mental irreversível que impossibilitasse por completo as Pessoas Seguradas para o exercício da profissão indicada na Proposta de Seguro/Condições Particulares/Actas Adicionais, mais concretamente de empregado de restauração para o Autor marido e de cozinheira para a Autora Esposa. 35. Ora, de acordo com as cláusulas constante das condições Condições Gerais, Especiais e Particulares do referido contrato de seguro de vida, e no que concerne aos seus beneficiários, em caso de ocorrência dos riscos de morte ou invalidez profissional permanente, por vontade expressa dos Segurados, foi convencionado que a Companhia (ora Ré) pagará directamente à Entidade Credora (“Banco 2...,S .A.” atualmente “Banco 1... S.A.”) o capital em dívida dos empréstimos associados na data do falecimento ou na data da comprovação da invalidez profissional de qualquer um dos Autores. 36. Sendo que, mais foi convencionado nas cláusulas constante das condições Condições Gerais, Especiais e Particulares do referido contrato de seguro, quanto “ ao remanescente/ao diferencial entre o capital seguro e o capital em dívida” à entidade bancária que, “em caso de Invalidez Profissional Permanente”, o mesmo será entregue ao “tomador do seguro/pessoa segura”, ou seja, aos Autores. 6) A referida matéria de facto foi alegada pelos Autores nos artigos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, 35 e 36 da sua PI e foi confessada/não impugnada pela Ré na sua Contestação junta aos autos em 06/05/2021 com a refª citus ...23, 7) Os Autores por requerimento datado de 09/06/2021, com a refª citius ...19 vieram aos autos, nos termos do preceituado nos artigos 352º e seguintes do C. Civil e artigos 46º, n.º 1 e 465º, n.ºs 1 e 2 do C.P. Civil, aceitar especificada e expressamente a não impugnação/confissão pela Ré dos factos alegados pelos Autores nos artigos n.ºs 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8 , 9, 10, 11, 12, 13, 14, 24, 31, 32, 35, 36, 37, 38, 39,42, 43, 44, 55 e 56 da sua P.I., a qual não mais pode ser retirada para todos os devidos efeitos legais, 8) Motivo pelo qual a referida matéria de facto alegada pelos Autores nos artigos 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, 35 e 36 da sua PI deverá ser aditada e passar a constar da matéria de facto dada como provada na Douta Sentença. 9) A matéria de facto dada como provada e constante dos itens n.ºs 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20 (parte final onde se refere “Invalidez absoluta e permanente (CE 03) Considera-se contratada a cobertura complementar de invalidez absoluta e permanente, conforme na Condição Especial 03, garantindo, em caso de invalidez absoluta e permanente de uma das Pessoas Seguras, o capital indicado nas Condições Particulares”, 24 e 26 na Douta Sentença, deveria ter sido dada como não provada na Douta Sentença, 10) A matéria de facto dada como não provada e constante dos itens n.ºs 43, 44, 45, 46, 47 e 48 dos factos dados como não provados na Douta Sentença, deveria ter sido dada como provada na Douta Sentença, a saber: 43. Os Autores, aquando do preenchimento, pelo comercial da Ré CC, referiram expressamente ao mesmo, por diversas vezes, que o Autor tomava medicação, por sofrer se ansiedade, com períodos de depressão. 44. Inclusive, a Autora foi buscar todas as caixas de medicamentos que o Autor tomava, mais concretamente as caixas de Xanax 0,5mg e Triticum 100mg, as quais exibiu ao referido CC, ficando estas em cima da mesa o tempo todo e perfeitamente visíveis. 45. Foi dito ao referido CC que o Autor sofria de ansiedade, com alguns períodos de depressão, tendo aquele retorquido que não havia qualquer problema pois que os medicamentos Triticum e Xanax eram medicamentos apenas para dormir. 46. O referido CC preencheu o denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” sem o ler aos Autores. 47. Os Autores limitaram-se a assinar esse formulário já preenchido, quando este foi colocada à sua frente. 48. Não foi facultada aos Autores uma cópia do denominado “Questionário– Proposta de Seguro de Vida” nem das Condições Gerais,Especiais e Particulares da apólice. 11) O Mº Juiz de Direito “a quo”, deveria fundamentar a sua convicção e respetiva: 1. resposta negativa à matéria de facto dada como provada e constante dos itens n.ºs 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20 (parte final onde se refere “Invalidez absoluta e permanente (CE 03) Considera-se contratada a cobertura complementar de invalidez absoluta e permanente, conforme na Condição Especial 03, garantindo, em caso de invalidez absoluta e permanente de uma das Pessoas Seguras, o capital indicado nas Condições Particulares”, 24 e 26 na Douta Sentença, bem como, 2. resposta positiva aos itens n.ºs 43, 44, 45, 46, 47 e 48 dos factos dados como não provados na Douta Sentença, 12) Nos seguintes meios de prova: 1. No depoimento da testemunha DD, o qual ficou gravado através de gravação efetuada através do sistema integrado de gravação digital "Habilus Media Studio", tendo as suas declarações ficado gravadas/registados no sistema digital H@bilus Media Studio com o tempo de duração 00h27m44s, tudo conforme consta da própria acta de audiência de discussão e julgamento datada de 19-12-2022, referência Citius ...34; 2. No depoimento da testemunha EE, o qual ficou gravado através de gravação efetuada através do sistema integrado de gravação digital "Habilus Media Studio", tendo as suas declarações ficado gravadas/registados no sistema digital H@bilus Media Studio com o tempo de duração 00h35m40s, tudo conforme consta da própria acta de audiência de discussão e julgamento datada de 19-12-2022, referência Citius ...34; 3. No depoimento da testemunha FF, o qual ficou gravado através de gravação efetuada através do sistema integrado de gravação digital "Habilus Media Studio", tendo as suas declarações ficado gravadas/registados no sistema digital H@bilus Media Studio com o tempo de duração 00h15m21s., tudo conforme consta da própria acta de audiência de discussão e julgamento datada de 19-12-2022, referência Citius ...34, 4. No depoimento da testemunha GG, o qual ficou gravado através de gravação efetuada através do sistema integrado de gravação digital "Habilus Media Studio", tendo as suas declarações ficado gravadas/registados no sistema digital H@bilus Media Studio com o tempo de duração 00h19m08s, tudo conforme consta da própria acta de audiência de discussão e julgamento datada de 19-12-2022, referência Citius ...34, 5. No depoimento da testemunha CC, o qual ficou gravado através de gravação efetuada através do sistema integrado de gravação digital "Habilus Media Studio", tendo as suas declarações ficado gravadas/registados no sistema digital H@bilus Media Studio com o tempo de duração 00h:44m:39s., tudo conforme consta da própria acta de audiência de discussão e julgamento datada de 17-01-2023, referência Citius ...66. 13) A testemunha DD no seu depoimento foi perentória em afirmar o seguinte: 1. À data da assinatura da proposta e da elaboração do contrato de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores (25/10/2006), era contabilista dos Autores e simultaneamente agente de seguros da Ré M..., 2. O comercial da Ré CC em 25/10/2006 efetuou o seguro do Ramo Vida entre a Ré e os Autores em seu nome (DD) como mediador e na sua carteira de seguros, 3. Da proposta de seguro ramo vida junta aos autos pela Ré e assinada pelos Autores consta o seu nome como mediador (DD) desse mesmo contrato Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006, 4. Que como mediador da Ré (DD) se encontra a receber uma comissão desse mesmo seguro Ramo vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006, 5. O comercial da Ré CC logo após a assinatura da proposta de seguro pelos Autores em 25/10/2006 e antes de o mesmo contrato de seguro ter sido aceite pela Ré, informou-o de a ele que o Autor tomava xanax, 6. Se fosse ele (DD) a fazer o seguro teria colocado essa anotação no questionário da proposta de seguro Ramo vida, 7. Na qualidade de contabilista dos Autores e em simultâneo agente de seguros da Ré M..., logo após à data da celebração do contrato Ramo vida celebrado entre Autores e Ré em 25/10/2006 e mesmo antes de o contrato de seguro ter sido aceite pela Ré, teve/tinha conhecimento de que o Autor tomava xanan e nada fez no sentido de informar a Ré dessa circunstancia, apesar de constar como mediador de seguros na proposta de seguro ramo vida Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores (25/10/2006), 8. Que os Autores aquando da assinatura da proposta de seguro Ramo Vida em 25/10/2006 não omitiram ao comercial da Ré Sr. CC que o Autor marido tomava xanax, sendo essa circunstância do seu próprio e pleno conhecimento como mediador de seguros da Ré e contabilista dos Autores. 14) A testemunha EE no seu depoimento foi perentória em afirmar o seguinte: 1. Os Autores, aquando do preenchimento, pelo comercial da Ré CC, referiram expressamente ao mesmo, por diversas vezes, que o Autor marido tomava medicação, por sofrer se ansiedade, com períodos de depressão. 2. Inclusive, a Autora foi buscar todas as caixas de medicamentos que o Autor tomava, mais concretamente as caixas de Xanax 0,5mg e Triticum 100mg, as quais exibiu ao referido CC, ficando estas em cima da mesa o tempo todo e perfeitamente visíveis. 3. Foi dito ao referido CC que o Autor sofria de ansiedade, com alguns períodos de depressão, tendo aquele retorquido que não havia qualquer problema pois que os medicamentos Triticum e Xanax eram medicamentos apenas para dormir. 4. O referido CC preencheu o denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” sem o ler aos Autores. 5. Os Autores limitaram-se a assinar esse formulário já preenchido, quando este foi colocada à sua frente. 6. Não foi facultada aos Autores uma cópia do denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” nem das Condições Gerais, Especiais e Particulares da apólice, 15) A testemunha FF no seu depoimento foi perentória em afirmar o seguinte: 1. A Ré não teve interesse nem diligenciou junto dos Autores, por saber: 2. qual o médico psiquiatra que pretensamente assistiu o Autor marido, 3. em que datas, 4. qual o episodio/sintomatologia que o Autor padeceu, 5. se o Autor ficou curado e em que data, 6. se ficaram sequelas, 7. nem solicitou quaisquer relatórios a esse médico no sentido de aferir um eventual nexo de causalidade entre as pretensas declarações inexactas/factos omitidos na proposta – antecedentes psiquiátricos - e a verificação do risco/dano coberto pelo Seguro Ramo vida celebrado entre Autores e Ré em 25/10/2006, 9. O primeiro registo de perturbação depressiva do Autor ocorreu em 22/03/2011, 10. O primeiro registo psiquiátrico do Autor no Centro Hospitalar de ... ocorreu em 25/01/2027, conforme consta de fls 2 e 3 do relatório pericial junto aos autos, de onde consta “AP: sem antecedentes médico cx de relevo” 11. Não ocorreu qualquer nexo de causalidade entre as pretensas declarações inexactas/factos omitidos na proposta e a verificação do risco/dano coberto pelo Seguro Ramo vida celebrado entre Autores e Ré em 25/10/2006. 16) A testemunha GG no seu depoimento foi perentória em afirmar o seguinte: 1. A Ré não teve interesse nem diligenciou junto dos Autores, por saber: 2. qual o médico psiquiatra que pretensamente assistiu os Autor marido, 3. em que datas, 4. qual o episodio/sintomatologia que o Autor padeceu, 5. se o Autor ficou curado e em que data, 6. se ficaram sequelas, 7. nem solicitou quaisquer relatórios a esse médico no sentido de aferir um eventual nexo de causalidade entre as pretensas declarações inexactas/factos omitidos na proposta – antecedentes psiquiátricos - e a verificação do risco/dano coberto pelo Seguro Ramo vida celebrado entre Autores e Ré em 25/10/2006, 8. O primeiro registo de perturbação depressiva do Autor ocorreu em 22/03/2011, 9. O primeiro registo psiquiátrico do Autor no Centro Hospitalar de ... ocorreu em 25/01/2027, conforme consta de fls 2 e 3 do relatório pericial junto aos autos, de onde consta “AP: sem antecedentes médico cx de relevo” 10. Não ocorreu qualquer nexo de causalidade entre as pretensas declarações inexactas/factos omitidos na proposta e a verificação do risco/dano coberto pelo Seguro Ramo vida celebrado entre Autores e Ré em 25/10/2006 17) A testemunha CC a no seu depoimento foi perentória em afirmar o seguinte: 1. Preencheu o denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” sem o ler aos Autores, 2. Os Autores limitaram-se a assinar esse formulário já preenchido, quando este foi colocada à sua frente, 3. Não foi facultada aos Autores uma cópia do denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” nem das Condições Gerais, Especiais e Particulares da apólice, 4. À data da assinatura da proposta e da celebração do contrato de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores (25/10/2006), o mediador da Ré DD era contabilista dos Autores e simultaneamente agente de seguros da Ré M..., 5. À data da assinatura da proposta e da celebração do contrato de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores (25/10/2006), o mediador da Ré DD deslocou-se com ele ao restaurante dos Autores. 6. Em 25/10/2006 efetuou o seguro do Ramo Vida entre a Ré e os Autores em nome (DD) como mediador e na sua carteira de seguros, 7. Da proposta de seguro ramo vida junta aos autos pela Ré e assinada pelos Autores consta nome do mediador (DD) desse mesmo contrato Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006. 18) Não ocorreram quaisquer declarações inexatas ou omissão de quaisquer factos aquando do preenchimento da proposta de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006 e em que intervieram o mediador da Ré DD (era contabilista dos Autores e simultaneamente o agente de seguros da Ré M...) e o comercial da Ré (CC), 19) Em momento algum os Autores ocultaram ou prestaram aos mesmos representantes da Ré quaisquer declarações inexatas, falsas ou omitiram quaisquer circunstâncias em relação ao seu estado de saúde, 20) A terem existido quaisquer declarações inexatas ou omissão de quaisquer factos aquando do preenchimento da proposta de seguro, as mesmas são imputáveis ao mediador da Ré DD na qualidade de contabilista dos Autores e em simultâneo agente de seguros da Ré M..., 21) Mesmo que assim não se entenda, não o foi de forma intencional, dolosa ou deliberada, na medida em que as pretensas declarações inexatas ou omissões eram do pleno conhecimento do mediador da Ré DD (contabilista dos Autores e simultaneamente agente de seguros da Ré M...), 22) O mediador da Ré DD na qualidade de contabilista dos Autores e em simultâneo agente de seguros da Ré M..., aquando do preenchimento da proposta do contrato Ramo vida celebrado entre Autores e Ré em 25/10/2006, teve/tinha conhecimento de que o Autor tomava xanan e nada fez no sentido de informar a Ré dessa circunstancia, apesar de constar como mediador de seguros na proposta de seguro ramo vida Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores (25/10/2006), 23) O denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” foi preenchido pelo comercial da Ré sem que fosse lido e/ou explicado aos Autores o seu conteúdo e alcance, 24) Os Autores limitaram-se a assinar esse formulário já preenchido, quando este foi colocada à sua frente, 25) Não foi facultada/enviada aos Autores qualquer cópia da Proposta de Seguro de Vida por eles assinada, 26) Não foi facultada/enviada aos Autores uma cópia do denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” por eles assinada nem das Condições Gerais, Especiais e Particulares da apólice contrato de seguro de vida, para que os mesmos pudessem ler e confirmar o conteúdo da mesma proposta, 27) Não doi dada a possibilidade aos Autores de conhecerem as pretensas declarações inexatas ou omissões e consequentemente corrigirem as mesmas, 28) As eventuais declarações inexatas ou omissões devem ser atribuídas ao agente de seguros da Ré DD, na medida em que eram do seu conhecimento e os Autores não podia nem deviam ter conhecimento das mesmas pois que a Proposta de Seguro de Vida por eles assinada não lhes foi lida e /ou explicada Autores quanto ao seu conteúdo e alcance, nem lhes foi facultada cópia da mesma, 29) A terem existido, as mesmas omissões não influenciaram a existência ou as condições do seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006, 30) Inexiste qualquer nexo de causalidade entre as pretensas declarações inexatas ou omissões e a verificação do risco/dano coberto pelo contrato de seguro Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores em 25/10/2006, 31)Tendo um agente de uma companhia de seguros preenchido a proposta de seguro e o segurado se limitado a assiná-la, com desconhecimento do seu conteúdo, a eventual inexatidão das declarações nela insertas deve ser atribuída a esse agente, desde que não se demonstre que o segurado podia e devia ter conhecimento dessa inexatidão, 32) A declaração do segurado na proposta de seguro só será inexacta ou reticente se puder influir sobre a existência ou condições do contrato, 33) Traduzindo-se a declaração inexacta ou reticente num facto impeditivo ou extintivo da validade do contrato, incumbe à seguradora, nos termos do n.º 2 do art. 342.º do C. Civil, fazer a prova da sua influência sobre a existência ou condições do contrato, 34) O encargo que recai sobre o tomador do seguro de declarar o risco sem omissões, reticências ou inexactidões não pode deixar de envolver também a seguradora, 35)Terá de haver nexo de causalidade entre as alegadas declarações inexactas ou factos omitidos na proposta de seguro e a verificação do risco/dano coberto pelo contrato de seguro, para que haja lugar à consideração da invalidade do contrato., 36) Atento tudo o supra alegada nas duas anteriores questões, deverá a deve a presente ação ser julgada totalmente procedente por provada para todos os efeitos legais e, em consequência deve ser a Ré condenada: A. no pagamento ao Banco 1... S.A., do capital em dívida dos três contratos de mútuo invocados, à data da verificação da invalidez profissional do Autor marido (02/05/2018), no montante global à data de e €36.403,18, valor esse ao qual deverá ser abatido e reembolsado aos Autores o valor das prestações mensais dos contratos de mútuo celebrados com o Banco 1... S.A., pagas desde 02 de Maio de 2028 e cuja total e integral quantificação se relega para posterior incidente de liquidação B. no pagamento aos Autores do remanescente do capital do contrato de seguro de vida invocado, à data da verificação da invalidez profissional do Autor marido (02/05/2018), no montante de €78.596,82, acrescido do pagamento/reembolso aos Autores das quantias pagas a título de prémio do contrato de seguro invocado desde 02/05/2018, que, na data da propositura da ação ascendiam ao montante de cerca de €9.000,00 e cuja total e integral quantificação se relega para posterior incidente de liquidação, acrescido ainda do pagamento/reembolso aos Autores do montante correspondente ao reembolso das prestações mensais dos contratos de mútuo celebrados com o Banco 1... S.A., pagas desde 02 de Maio de 2028, que, na data da propositura da ação, ascendiam ao montante de cerca de €17.000,00 e cuja total e integral quantificação se relega para posterior incidente de liquidação. 37) Foram violados, entre outros que V.Exas mui doutamente suprirão, as seguintes disposições legais: 1. artigo 798.º do C. Civil, 2. artigos 342º, 500.º, n.º1, 998.º, n.º1 do Código Civil, 3. artigo 429.º do Código Comercial e artigo 2.º do código das sociedades comerciais, pelos quais: “A sociedade responde civilmente pelos atos ou omissões dos seus (…) agentes (…) nos mesmos termos em que os comitentes respondem pelos atos ou omissões dos seus comissários” – nº1 do artigo 998º do Código Civil, aplicável subsidiariamente às sociedades comerciais por força do disposto no artigo 2º do Código das Sociedades Comerciais” 4. art. 42º do Decreto-lei n.º 144/2006 de 31 de Julho), 5. art. 24º n.º 3 d) do Decreto-lei n.º 72/2008 de 16 de Abril, 6. Artigos 32.º e 102.º do Decreto-Lei nº 72/2008, de 16 de Abril (Regime Jurídico do Contrato de Seguro).
NESTES TERMOS E NOS DEMAIS EM DIREITO APLICAVÉL, QUE V.EX.AS MUI DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO DE APELAÇÃO SER JULGADO TOTALMENTE PROCEDENTE POR PROVADO, DEVENDO A DOUTA SENTENÇA ORA RECORRIDA SER REVOGADA E SUBSTITUIDA POR DOUTO ACORDÃO QUE CONDENE A RÉ/RECORRIDA NA MEDIDA DO ACIMA ASSINALADO, COM AS DEMAIS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS. E ASSIM COMO SEMPRE, V.EX.AS FARÃO A DEVIDA E HABITUAL JUSTIÇA.».
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Não consta que tenham sido apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito devolutivo (ref.ª ...).
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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II. Delimitação do objeto do recurso
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do(a) recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso e não tenham sido ainda conhecidas com trânsito em julgado [cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Civil (doravante, abreviadamente, designado por CPC), aprovado pela Lei n.º 41/2013, de 26 de junho].
No caso, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal, por ordem lógica da sua apreciação, consistem em saber:
i) – Questão prévia: rectificação de lapso de escrita.
ii) – Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto;
iii) – Da (inverificação da) exceção peremptória da anulabilidade do contrato de seguro;
iv) – Da procedência da acção.
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III. Questão prévia (rectificação de lapso de escrita).
Por despacho datado de 7 de setembro de 2023, prolatado pelo ora relator, foi determinada a notificação das partes para, no prazo indicado, indicarem o que tivessem por conveniente quanto à eventual rectificação da redacção do ponto 25 dos factos provados, bem como, no pressuposto dessa rectificação, aduzirem eventual impugnação desse ponto fáctico rectificado.
Respondeu a recorrida, pugnando pelo suprimento do ponto 25 dos factos provados, na sua formulação negativa, dada a evidência do manifesto lapso de escrita (ref.ª ...69).
Por sua vez, os recorrentes propugnam pela manutenção da redação do ponto 25 dos factos provados da sentença recorrida; subsidiariamente, e para a hipótese de rectificação da redação do referido ponto fáctico, procederam à impugnação da matéria de facto constante desse ponto fáctico eventualmente rectificado (ref.ª 46504233).
Coloca-se a questão de saber se a situação descrita pode, ou não, ser tida como um lapso material manifesto, susceptível de ser corrigido, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 249º do Código Civil (CC).
Sob a epígrafe “Erro de cálculo ou de escrita”, estatui o referido art. 249.º que o “simples erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita, apenas dá direito à rectificação desta”.
Este preceito consagra um princípio geral aplicável tanto a actos extrajudiciais como a actos judiciais, pelo que é aplicável a declarações de vontade não negociais produzidas no decurso de um processo judicial, quer pelas partes, quer pelo juiz[1].
A correcção da declaração visa simplesmente fazer coincidir a vontade real com aquela que foi materializada ou exteriorizada, a rectificação do que se escreveu em função daquilo que, efectivamente, se quis escrever.
Decisivo é que se verifiquem os pressupostos da correcção.
Em primeiro lugar, é necessário que seja patente que ocorreu lapso na declaração, que o declarado não correspondia ao pretendido.
O erro só pode ser rectificado se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto.
Trata-se, em suma, de um erro notório no sentido de que se apresenta evidente a divergência entre a vontade declarada ou realizada e a realmente querida, divergência que é claramente detectada por qualquer observador comum.
Em segundo lugar, é necessário que seja evidente aquilo que se quis afirmar.
Sendo manifesto o lapso cometido, não pode subsistir qualquer fundada dúvida sobre o que se quis declarar.
Em terceiro lugar, é necessário que essa desconformidade entre o declarado e o pretendido declarar resulte da própria declaração ou das circunstâncias em que a mesma teve lugar.
“Lapso manifesto é, em princípio, aquele que de imediato resulta do próprio teor da decisão ou, no caso de elementos ou documentos inconsiderados, que de modo flagrante e sem necessidade de elaboradas demonstrações, logo revelem que só por si a decisão teria de ser diferente da que foi proferida”[2].
A lei adjetiva faz aplicação daquele princípio estabelecido no art. 249º do CC, designadamente no art. 614º do CPC, cujo n.º 1 prescreve:
“Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz”.
Resulta do citado preceito que os erros, omissões e lapsos cometidos pelo juiz na sentença ou nos despachos (art. 613º, n.º 3, do CPC), são susceptíveis de rectificação, O que a ordem jurídica exige é que a vontade real prevaleça sobre a vontade declarada.
No caso sub júdice está em causa a redacção, na formulação positiva, do ponto 25 dos factos provados da sentença recorrida, que consta com o seguinte teor: «25. Nas referidas datas, quando respondeu aos questionários sobre o seu estado de saúde, o Autor relatou os factos que antecedem aos seus interlocutores».
Constata-se, porém, que o Mm.º Julgador “a quo”, ao responder ao referido ponto fáctico, omitiu, por lapso, a partícula negativa (“não”), pelo que a resposta tal como se encontra apresenta (indevidamente) uma formulação afirmativa ou positiva.
Com efeito, do próprio contexto da declaração emitida extrai-se claramente que o Juiz “a quo” queria antes responder que, nas referidas datas, quando o Autor respondeu aos questionários sobre o seu estado de saúde, não relatou aos seus interlocutores os factos que antecedem, concretamente, que sofria de ansiedade, com períodos de depressão, pelo menos desde 2003, o que era do seu conhecimento, bem como de que era acompanhado por médico particular, que lhe prescreveu Xanax 0,5 mg e Triticum 100 mg.
A manifesta evidência desse lapso de escrita resulta não só da motivação da matéria de facto, em concreto da explicitação da fundamentação ao ponto 25 dos factos provados, mas também da análise e apreciação da excepção peremptória da anulabilidade do contrato de seguro por omissão do dever de declaração inicial do risco por parte da pessoa segura.
No tocante à motivação da matéria de facto, quando o Mm.º Julgador “a quo” deu inteira credibilidade ao depoimento da testemunha CC, em detrimento dos depoimentos das testemunhas DD e EE, explicitando que aquele interveniente acidental “afirmou, perentoriamente, que não lhe foi dito, no dia em que preencheu o “Questionário – Proposta de Seguro”, que o Autor tomava medicação, mais concretamente Xanax e Triticum, nem que o Autor sofria de ansiedade, com períodos de depressão. Afirmou mesmo que esse seria um facto que, a ter-lhe sido comunicado, ficaria a constar do questionário”.
Aliás, a manter-se imutável a redacção do ponto 25 dos factos provados, estaria o mesmo em direta e frontal contradição com os pontos 43 a 45 do rol dos factos não provados.
Acresce que, na fundamentação da matéria de direito, ao apreciar a invocada exceção peremptória o Mm.º Juiz “a quo” expressamente alude ao facto de ter resultado provado que “o Autor omitiu que sofria de ansiedade, com períodos de depressão, estando medicado com Xanax e Triticum, em dois momentos – primeiro, aquando da elaboração e assinatura da proposta do seguro e, depois, aquando do exame médico”.
E, nessa decorrência bem como de outras circunstâncias fácticas e de direito que por ora e para o efeito não relevam, julgou procedente a exceção peremptória invocada pela Ré e, em consequência, decretou “a anulabilidade do contrato de seguro do Ramo Vida”, determinando a improcedência da acção.
Reconduzindo-se o referido lapso a um erro de escrita (art. 249º do CC), revelado no próprio contexto das declarações, dá o mesmo direito à respectiva rectificação.
Mas mesmo que porventura a hipótese enunciada não pudesse ser configurada como um erro material de escrita justificador da sua correção e sujeita à disciplina prevista nos arts 249º do CC e 614º do CPC, sempre se imporia a este Tribunal lançar mão do regime previsto no art. 662º, n.º 2, al. c) do CPC, nos termos do qual a “Relação deve ainda, mesmo oficiosamente” “c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Isto porque, a manter-se inalterada a resposta ao ponto fáctico em apreço, existiria, como já dissemos, directa e frontal contradição entre o ponto 25 dos factos provados e os pontos 43 a 45 dos factos não provados, bem como (eventual) contradição entre os fundamentos e a decisão, gerador da nulidade da sentença e do presente acórdão (arts. 615º, n.º 1, al. c) e 666º, n.º 1, ambos do CPC), em caso de não suprimento daquele vício.
Ora, nessa situação, compete à Relação suprir o referido vício visto constarem do processo todos os elementos indispensáveis à sua apreciação. Relembre-se que, no caso de a matéria de facto se reputar deficiente, obscura ou contraditória, a Relação deve proceder à sua apreciação e introduzir na matéria de facto as modificações que forem consideradas oportunas, posto que a anulação da decisão da 1ª instância apenas deve ser decretada se não constarem do processo todos os elementos probatórios relevantes[3], o que não é o caso.
Nesta conformidade, ao abrigo do disposto nos arts. 249º do CC e no art. 614º do CPC determina-se a rectificação do ponto 25 dos factos provados, passando este a valer, doravante, com a seguinte formulação:
25. Nas referidas datas, quando respondeu aos questionários sobre o seu estado de saúde, o Autor não relatou os factos que antecedem aos seus interlocutores.
A impugnação do referido ponto fáctico, na formulação ora rectificada, será objecto de apreciação ulterior aquando da análise da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
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IV. Fundamentos
V. Fundamentação de facto.
A sentença recorrida deu como provados os seguintes factos [tomando já em consideração a retificação do ponto 25 dos factos provados]:
1. No dia 29 de Dezembro de 1999, ambos os Autores celebraram com o Banco 2..., S.A., por escritura pública, três contratos de mútuo garantidos por hipoteca, outorgados no ... cartório Notarial de .
2. Através dos três referidos contratos de mútuo, os Autores ficaram devedores ao Banco 2..., S.A., respetivamente, das seguintes quantias: i) € 28 144,44 (à data 5 636 441$00) destinado a transferência da habitação própria e permanente com o n.º ...93; ii) € 51 376,16 (à data 10 300 000$00) destinado a crédito hipotecário com o n.º ...93; e iii) € 87 295,82 (à data 17 501 249$00), destinado a transferência da habitação própria e permanente com o n.º ...03, perfazendo assim o montante global de € 166 786,42, a que acresceriam os respetivos juros remuneratórios.
3. Para garantia dos referidos três contratos de mútuo, foi constituída hipoteca a favor do Banco 2..., S.A., sobre o Prédio urbano, propriedade dos Autores, composto de casa de habitação de cave, ..., andar e sótão, com quintal, sito no lugar ..., freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o nº ...96 e inscrito na respetiva matriz 992, tudo conforme escrituras públicas cujas cópias foram apresentadas como documentos ..., ... e ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
4. Para garantia do capital mutuado pelo referido banco, os Autores celebraram um contrato de seguro de vida com a seguradora “Companhia de Seguros A..., S.A.”, com efeitos a partir do dia 29/12/1999, pelo prazo de um ano, renovável, cobrindo o risco de morte ou invalidez profissional permanente de qualquer um dos Autores, com o capital de € 166 786,42.
5. Em 25/10/2006, deslocou-se à residência dos Autores um comercial da Ré, em representação desta, de nome CC, que lhes propôs a celebração de um outro contrato de seguro de vida, que substituísse aquele, oferecendo-lhes melhores condições.
6. Foi devido às melhores condições contratuais apresentadas pelo referido comercial da Ré, e por não ter qualquer período de carência, que os Autores aceitaram e concordaram em mudar o seguro para a ora Ré.
7. Nessa ocasião, aquele comercial preencheu, pelo seu punho, o formulário denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida”, a que foi atribuído o n.º ...04, identificando o Autor como tomador e ambos os Autores como pessoas seguras, com as seguintes profissões: Autor – Empresário de restauração; Autora - Cozinheira.
8. Como beneficiário irrevogável, indicou o Banco 1... “até ao montante do capital em dívida. O remanescente para os herdeiros legais.”
9. No questionário, escreveu “Não” nas seguintes questões: “1. Esteve de baixa alguma vez, ou interrompeu a sua atividade habitual, por um período superior a 15 dias devido a doença ou acidente?; 2. Encontra-se atualmente submetido a tratamento ou controle médico? 3. Encontra-se atualmente de baixa por doença ou acidente? 4. Nos últimos dez anos, esteve alguma vez internado num hospital, clínica ou sanatório? 5. Vai submeter-se proximamente a alguma intervenção cirúrgica? 7. Padece de alguma limitação física, como consequência de alguma doença ou acidente (surdez, coxear, mudez, perda de membros, etc.)? 8. Utiliza ou utilizou alguma vez estupefaciente (drogas)? 9. No último ano, o seu peso diminuiu 10 kg ou mais? 12. Nos últimos dez anos, foi-lhe diagnosticada alguma doença?”
10. Escreveu “Sim” nas seguintes questões: “6. Já fez alguma vez alguma análise ou exame médico especial, tal como eletrocardiograma, TAC, radiografias a algum órgão concreto, curva de glicose, provas à função renal ou hepática, teste da SIDA ou outros?; 10. Nos últimos dez anos foi visto ou tratado por algum médico?; 13. Tem algum tipo de defeito ou limitação visual, como miopia hipermetropia, presbitia, astigmatismo, etc.)?”
11. Nada escreveu na seguinte questão: “11. Consultou alguma vez um cardiologista ou oncologista?”
12. De seguida aos dizeres “Se respondeu afirmativamente a alguma questão, detalhe por favor, para cada caso, o tipo de doença, a data de início, o tipo de tratamento ou intervenção e o estado atual (…)”, escreveu: “6. Em Abril/2005 fez ecografia vesico-prostática com resultados normais conforme relatório anexo e em Outubro/2015 fez exame aos intestinos com resultados normais conforme relatório anexo. 10. Idem pergunta n.º 6. 13. Miopia (…)”, tudo cf. documento ... apresentado com o requerimento com a ref. ...23, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
13. O preenchimento do questionário nos termos indicados foi feito de acordo com as indicações dadas pelo Autor ao referido CC.
14. No final do preenchimento, o Autor assinou o formulário.
15. No dia 8 de janeiro de 2007, o Autor foi submetido a um exame médico, por clínico indicado pela Ré, tendo respondido a questionário.
16. As resposta do Autor foram negativas às seguintes questões: “1. Tem alguma doença atualmente? 2. Está atualmente submetido a algum tratamento ? Toma algum medicamento? (…) 9. Esteve submetido a algum tratamento médico prolongado (mais de 15 dias)? (…) 42. Necessitou recorrer a um médico ou tomar algum medicamento por problemas emocionais? (Quando? Motivo?).”
17. No final, com as suas respostas assinaladas, o Autor assinou o questionário, cf. documento ... apresentado com o requerimento com a ref. ...23, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
18. Após análise dos referidos questionários e exame médico, a Ré aceitou a proposta de seguro, emitindo a respetiva apólice, a que atribuiu o n.º .../11, com início no dia 31 de janeiro de 2007, sendo o pagamento do prémio feito através de débito na conta bancária indicada para esse efeito pelo Autor, cf. documento ... apresentado com o requerimento com a ref. ...47, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
19. Nos termos da Condição Especial 2.2., “(…) a M..., SA, obriga-se caso a Pessoa Segura fique inválida de forma absoluta e permanente para todo o trabalho, a pagar a quantia que se especifica nas Condições Particulares, ficando a apólice automaticamente anulada. / Entende-se por invalidez absoluta e permanente para todo o trabalho, a situação física ou mental irreversível que impossibilita por completo a Pessoa Segura para a manutenção de qualquer relação laboral ou atividade profissional. / Faz-se constar expressamente que se considera invalidez absoluta e permanente a paralisia permanente de todo o corpo ou metade do corpo, a perda anatómica ou funcional dos dois membros superiores ou inferiores ou de um superior e outro inferior ou das duas mãos completas ou dos dois pés completos, a alienação mental absoluta e incurável, a cegueira incompleta e incurável e as doenças crónicas que provoquem um estado geral de fraqueza do organismo (caquexia) em consequência do qual o doente fique definitivamente condenado à imobilidade”, cf. documento ... apresentado com o requerimento com a ref. ...23, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
20. As condições particulares da apólice são do seguinte teor: “Pessoa segura: AA (…)
Pessoa segura: BB
Em caso de morte: Herdeiros legais das pessoas seguras por esta apólice; Banco 1..., SA
Irrevogáveis: Banco 1..., SA Cláusula beneficiária:
O Banco 1..., SA, até ao montante em dívida. O remanescente para os herdeiros legais.
Garantias
Cobertura principal – Capital: € 115 000,00; Invalidez abs. Permanente – Capital: € 115 000,00 (…)
Outras cláusulas (…)
CE008
Invalidez absoluta e permanente (CE 03)
Considera-se contratada a cobertura complementar de invalidez absoluta e permanente, conforme na Condição Especial 03, garantindo, em caso de invalidez absoluta e permanente de uma das Pessoas Seguras, o capital indicado nas Condições Particulares”, tudo cf. documento ... apresentado com o requerimento com a ref. ...47, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
21. Em 25 de outubro de 2006, o Autor trabalhava como empresário de restauração e a Autora como cozinheira.
22. O Autor sofria de ansiedade, com períodos de depressão, pelo menos desde 2003, o que era do seu conhecimento.
23. Era acompanhado por médico particular, que lhe prescreveu Xanax 0,5 mg e Triticum 100 mg.
24. Tanto em 25 de outubro de 2006 como em 8 de janeiro de 2007, o Autor mantinha esse acompanhamento e a toma regular da referida medicação.
25. Nas referidas datas, quando respondeu aos questionários sobre o seu estado de saúde, o Autor não relatou os factos que antecedem aos seus interlocutores.
26. Se a Ré tivesse tomado conhecimento desses factos, teria exigido exames complementares, ao nível da psiquiatria, para fundar a sua decisão de aceitar ou rejeitar a proposta de seguro e, caso a aceitasse, calcular o prémio a pagar pelo Autor.
27. No início do ano de 2015, o Autor começou a evidenciar deterioração cognitiva e funcional, com repercussões importantes a nível profissional, manifestando algum descontrolo comportamental com os clientes do seu restaurante.
28. Em virtude destes factos, esteve de baixa médica de janeiro 2015 até de dezembro 2017.
29. Desde então não voltou a exercer a sua atividade profissional.
30. Ficou reformado por invalidez relativa pela Segurança Social em 29/01/2018, tudo cf. documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
31. Atualmente, são evidentes as dificuldades causadas pela deterioração cognitiva, encontrando-se o Autor incapaz de conduzir, desorientado no tempo e espaço, não conseguindo fazer compras nem gerir o dinheiro.
32. Necessita de supervisão para algumas atividades de vida diária, nomeadamente na toma da medicação.
33. O seu estado de saúde tem vindo a agravar-se progressivamente desde 2015, com tendência ao isolamento e anedonia, intolerância ao ruído, não vê televisão, preferindo ficar sozinho e sem qualquer atividade/ocupação.
34. Encaminhado pelo Médico de Família, para o Centro Hospitalar do ..., E.P.E., em ..., o Autor passou a ser seguido em consulta de Especialidade de Psiquiatra desde janeiro de 2017, tendo-lhe sido diagnosticado síndrome demencial, bem como na Especialidade de Neurologista, onde lhe foi diagnosticado síndrome demencial (D. Alzheimer).
35. O Autor, em 02/05/2018, foi submetido a uma junta medica para efeitos de Atestado Medico de Incapacidade Multiuso, a qual, de acordo com a TNI, aprovada pelo Dec. Lei n.º 352/2007, de 23 de Outubro, atestou que o Autor é portador de forma grave, irreversível e em definitivo de uma deficiência que nessa data lhe conferiu uma incapacidade permanente global de 80% em virtude de ser considerado uma pessoa com 78% de deficiência intelectual ou perturbação do espetro do autismo, que o incapacita de forma permanente e definitiva para o exercício a sua profissão, cf. documento ... apresentado com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
36. Na data de 13 de Julho de 2018, por força dos três contratos de mútuo supra referidos, os Autores tinham um capital em divida para com o Banco 1... no montante de € 36 403,18, discriminado da seguinte forma: 1. € 6 018,96 relativo ao empréstimo destinado á transferência da habitação própria e permanente com o n.º ...93; 2. € 11 331,40 destinado ao empréstimo para crédito hipotecário com o n.º ...93; 3. € 19 266,40, ao empréstimo destinado a transferência da habitação própria e permanente com o n.º ...03.
37. Em data anterior a 18 de setembro de 2018, os Autores reclamaram da Ré o pagamento do capital seguro.
38. A Ré respondeu, por carta de 18 de setembro de 2018, a declinar a sua responsabilidade com o seguinte fundamento: “(…) após análise de toda a documentação clínica que nos foi facultada, foi possível concluir que a Pessoa Segura possuía patologia prévia à data da apólice, omitida no momento da contratação do seguro. / Face ao exposto, (…) declinamos o sinistro participado, não havendo lugar ao pagamento de qualquer indemnização, considerando-se o contrato de seguro em causa anulável por omissão do dever inicial do risco, tanto mais que se a M... tivesse conhecido o facto omitido, a apólice assumiria outro enquadramento de contrato de seguro”, cf. documento apresentado com o requerimento com a ref. ...47, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
39. Em 25 de setembro de 2018, os Autores insistiram com a Ré, através de carta enviada para a sede, em ..., que o capital fosse pago nos termos acordados e atrás descritos, cf. documento ...0 com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
40. Os prémios do seguro continuaram a ser debitados na conta bancária indicada pelos Autores e entregues à Ré.
41. Os Autores continuaram a pagar as prestações devidas ao Banco 1... para amortização dos capitais mutuados.
42. Em 12/09/2019, o “Banco 2..., S.A.”, NIPC ..., foi incorporado, por fusão, no “Banco 1... S.A.” NIPC ..., adquirindo este último, todos os direitos e obrigações daquele, cf. documento ... com a petição inicial, cujo conteúdo aqui é dado por integralmente reproduzido.
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2) E como não provado os seguintes:
43. Os Autores, aquando do preenchimento, pelo comercial da Ré CC, referiram expressamente ao mesmo, por diversas vezes, que o Autor tomava medicação, por sofrer se ansiedade, com períodos de depressão.
44. Inclusive, a Autora foi buscar todas as caixas de medicamentos que o Autor tomava, mais concretamente as caixas de Xanax 0,5mg e Triticum 100mg, as quais exibiu ao referido CC, ficando estas em cima da mesa o tempo todo e perfeitamente visíveis.
45. Foi dito ao referido CC que o Autor sofria de ansiedade, com alguns períodos de depressão, tendo aquele retorquido que não havia qualquer problema pois que os medicamentos Triticum e Xanax eram medicamentos apenas para dormir.
46. O referido CC preencheu o denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” sem o ler aos Autores.
47. Os Autores limitaram-se a assinar esse formulário já preenchido, quando este foi colocada à sua frente.
48. Não foi facultada aos Autores uma cópia do denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida” nem das Condições Gerais, Especiais e Particulares da apólice.
49. A Ré, se tivesse tomado conhecimento dos factos dos pontos 23 a 24 teria rejeitado a proposta de seguro ou, no mínimo, agravado o prémio.
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VI. Fundamentação de direito.
1. Da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Em sede de recurso, os AA./apelantes impugnam a decisão sobre a matéria de facto proferida pelo tribunal de 1.ª instância.
Para que o conhecimento da matéria de facto se consuma, deve previamente o/a recorrente, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o (triplo) ónus de impugnação a seu cargo, previsto no artigo 640º do CPC, no qual se dispõe:
“1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes. 3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º».
Aplicando tais critérios ao caso, constata-se que os recorrentes indicam quais os factos que pretendem que sejam decididos de modo diverso, inferindo-se por contraponto a redação que deve ser dada quanto à factualidade que entende estar mal julgada, como ainda o(s) meio(s) probatório(s) que na sua óptica o impõe(m), incluindo, no que se refere à prova gravada em que fazem assentar a sua discordância, a indicação dos elementos que permitem a sua identificação e localização, procedendo inclusivamente à respectiva transcrição de excertos dos depoimentos testemunhais que considera relevantes para o efeito, pelo que podemos concluir que cumpriram suficientemente o triplo ónus de impugnação estabelecido no citado art. 640º.
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1.2. Sob a epígrafe “Modificabilidade da decisão de facto”, preceitua o art. 662.º, n.º 1, do CPC, que «a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa».
Aí se abrangem, naturalmente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto feita pelo recorrente.
O âmbito da apreciação do Tribunal da Relação, em sede de impugnação da matéria de facto, estabelece-se, resumidamente, de acordo com os seguintes parâmetros[4]:
- só tem que se pronunciar sobre a matéria de facto impugnada pelo recorrente;
- sobre essa matéria de facto impugnada, tem que realizar um novo julgamento;
- nesse novo julgamento forma a sua convicção de uma forma autónoma, de acordo com o princípio da livre apreciação das provas, mediante a reapreciação de todos os elementos probatórios que se mostrem acessíveis (e não apenas os indicados pelas partes);
- a reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem que ter a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância;
- a intervenção da Relação não se pode limitar à correção de erros manifestos de reapreciação da matéria de facto, sendo também insuficiente a menção a eventuais dificuldades decorrentes dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação das provas;
- ao reapreciar a prova, valorando-a de acordo com o princípio da livre convicção, a que está também sujeita, se conseguir formar, relativamente aos concretos pontos impugnados, uma convicção segura acerca da existência de erro de julgamento da matéria de facto, deve proceder à modificação da decisão;
- se a decisão factual do tribunal da 1ª instância se basear numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção - obtida com benefício da imediação e oralidade - apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
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1.3. Por referência às suas conclusões, extrai-se que os AA./recorrentes pretendem:
i) – A demonstração da factualidade alegada nos arts. 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, 35 e 36 da petição inicial por estar confessada/não impugnada pela Ré na sua contestação, sendo que essa não impugnação/confissão foi objeto de aceitação específica e expressa pelos AA. nos termos do preceituado nos arts. 352º e ss. do Código Civil (CC) e arts. 46º, n.º 1, e 465º, n.ºs 1 e 2, do CPC;
ii) – A alteração da resposta positiva para negativa dos pontos n.ºs 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20 (parte final onde se refere “Invalidez absoluta e permanente (CE 03) Considera-se contratada a cobertura complementar de invalidez absoluta e permanente, conforme na Condição Especial 03, garantindo, em caso de invalidez absoluta e permanente de uma das Pessoas Seguras, o capital indicado nas Condições Particulares”, 24, 25[5] e 26 da matéria de facto provada da decisão recorrida;
iii) – A alteração da resposta negativa para positiva dos pontos n.ºs 43, 44, 45, 46, 47 e 48 da matéria de facto não provada da decisão recorrida.
Apreciamos, especificadamente, cada um dos blocos de factos impugnados.
i) – Arts. 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, 35 e 36 da petição inicial.
A matéria objeto do ponto impugnado corresponde ao alegado, pelos autores, nos artigos supra citados do articulado inicial, cujo teor alegatório se reproduz: «7. O tomador do referido contrato de seguro de vida era o Autor marido, sendo as pessoas seguras ambos os aqui Autores. 8. O prémio do contrato de seguro era pago mensalmente pelos Autores através de desconto automático na conta bancária que aqueles tinham aberto no Banco 1... S.A.” com o NIB nº ...70. 9. Conforme se disse, esse contrato de seguro vida tinha como capital garantido o montante de €115.000,00, sendo que, caso se verificasse algum dos riscos contratados, morte ou invalidez profissional permanente de qualquer um dos Autores, o capital seria entregue a favor do “Banco 1... S.A.” até ao montante que, no momento de qualquer desses acontecimentos, estivesse em dívida a este por parte dos Autores, 10. E o remanescente seria entregue aos Autores ou aos seus herdeiros legais, conforme se tratasse de invalidez profissional permanente ou morte. 11. O referido contrato de seguro de vida foi negociado e celebrado em 25/10/2006, na residência do Autores, entre os ora Autores e um comercial/mediador de seguros ligado/ou agente de seguros da Ré que se deslocou à residência dos mesmos e actuou como representante da ora Ré seguradora e com poderes delegados pela mesma para o efeito, de nome CC. 12. De acordo com o que foi negociado e acordado na referida data de 25/10/2006 entre os ora Autores e o comercial/mediador de seguros ligado/ou agente de seguros da Ré de nome CC, das condições gerais, especiais e particulares do referido contrato de seguro vida, entendia-se por Invalidez Absoluta e Permanente a situação física ou mental irreversível que impossibilitasse por completo as Pessoas Seguradas para o exercício da profissão indicada na Proposta de Seguro/Condições Particulares/Actas Adicionais, mais concretamente de empregado de restauração para o Autor marido e de cozinheira para a Autora Esposa. 35. Ora, de acordo com as cláusulas constante das condições Condições Gerais, Especiais e Particulares do referido contrato de seguro de vida, e no que concerne aos seus beneficiários, em caso de ocorrência dos riscos de morte ou invalidez profissional permanente, por vontade expressa dos Segurados, foi convencionado que a Companhia (ora Ré) pagará directamente à Entidade Credora (“Banco 2...,S .A.” atualmente “Banco 1... S.A.”) o capital em dívida dos empréstimos associados na data do falecimento ou na data da comprovação da invalidez profissional de qualquer um dos Autores. 36. Sendo que, mais foi convencionado nas cláusulas constante das condições Condições Gerais, Especiais e Particulares do referido contrato de seguro, quanto “ao remanescente/ao diferencial entre o capital seguro e o capital em dívida” à entidade bancária que, “em caso de Invalidez Profissional Permanente”, o mesmo será entregue ao “tomador do seguro/pessoa segura”, ou seja, aos Autores».
Na contestação, e relativamente à referida factualidade alegada pelos autores, a R. declarou aceitar a matéria aduzida nos arts. 1º a 14º, 24º, 31, 32º, 35. 36º, 42º e 43 da p.i.
Em face da alegação que antecede, dir-se-ia assistir razão aos recorrentes quando defendem que a ré não só não impugnou, como aceitou expressamente, entre o mais, a matéria dos arts. 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, 35 e 36 da petição inicial.
A questão colocada pelos recorrentes não tem tanto a ver com a apreciação da prova produzida em julgamento, mas sim com a violação das regras de direito probatório material, mais precisamente de disposições legais expressas que fixam a força probatória de determinado meio de prova, isto é, um verdadeiro erro de aplicação de direito[6].
Preceitua o art. 607º, n.º 4, do CPC que, «[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência».
Embora o legislador tenha consagrado o princípio da livre convicção da prova, não deixou de instituir limitações a esse princípio.
Isso mesmo resulta do estatuído no n.º 5 do art. 607º do CPC, nos termos do qual o “juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto”, sendo que essa “livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes” (sublinhado nosso).
Tais factos cuja prova resulta de acordo das partes ou confissão estão submetidos ao regime da prova legal (tabelada ou tarifada), impondo-se ao juiz a força probatória de tais meios de prova, não tendo aquele qualquer margem de valoração acerca da factualidade expressa por tais meios probatórios[7].
Segundo o disposto no art. 352º do Código Civil (CC), confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária.
A confissão pode ser judicial ou extrajudicial (art. 355º, n.º 1, do CC).
A confissão judicial é a que é feita em juízo, competente ou não, mesmo quando arbitral, e ainda que o processo seja de jurisdição voluntária (art. 355º, n.ºs 1 e 2 do CC).
A confissão judicial escrita tem força probatória plena contra o confitente (art. 358º, n.º 1 do CC).
As afirmações e confissões expressas de factos, feitas pelo mandatário nos articulados, vinculam a parte, salvo se forem retificadas ou retiradas enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente (art. 46º do CPC).
E o art. 465º do CPC, com a epígrafe “Irretratabilidade da confissão”, estatuiu, no seu n.º 1, que “a confissão é irretratável”, ressalvando, porém, no seu n.º 2, que “as confissões expressas de factos, feitas nos articulados, podem ser retiradas, enquanto a parte contrária as não tiver aceitado especificadamente”.
Por fim, sob a epígrafe “Ónus de impugnação”, prescreve o art. 574º do CPC, no seu n.º 1, que, ao contestar, o réu deve tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, estatuindo, no n.º 2, que, “consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior”.
O que significa que a falta de impugnação dos factos alegados pelos autores implica a admissão desses factos por acordo (confissão tácita ou ficta), o que conduzirá a que, em regra, os mesmos sejam tidos como assentes e provados nos autos.
Contudo, como excepção ao ónus de impugnação, o citado normativo prescreve que, apesar de não impugnados, não se têm como admitidos por acordo os factos que se apresentem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto.
Assim, para evitar aquele efeito probatório da ausência de impugnação, bastará que a versão apresentada pelo réu seja incompatível com o facto não expressamente impugnado.
Revertendo ao caso dos autos, e considerando que não impugnaram a referida facticidade alegada nos arts. 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13, 35 e 36 da p.i. deve ter-se, em princípio, como provada.
Sucede que:
- a matéria alegada no art. 7º da p.i. mostra-se já refletida nos pontos 7 e 20 dos factos provados (quer quanto à identificação do tomador de seguro e das pessoas seguras), pelo que é de evitar a sua duplicação;
- a matéria alegada no art. 8º da p.i., na parte relevante, mostra-se já inserta no ponto 18 dos factos provados (o pagamento do prémio era feito através de débito na conta bancária indicada pelo Autor), o que dispensa a sua repetição;
- a matéria alegada no art. 11º da p.i., na parte que releva, e ainda que com outra redacção, mostra-se já contemplada no ponto 5 dos factos provados (o contrato de seguro de vida foi negociado em 25/10/2006, sendo que para o efeito deslocou-se à residência dos Autores um comercial da Ré, em representação desta, de nome CC, que lhes propôs a celebração de um outro contrato de seguro de vida, que substituísse aquele, oferecendo-lhes melhores condições), pelo que (mais uma vez) é de rejeitar a sua duplicação;
- a matéria alegada no art. 12º da p.i., na parte relevante, mostra-se já reflectida nos pontos 19 e 20 dos factos provados, por referência aos documentos constantes de fls. 48 a 50 e 64 vº a 66, dos quais constam efectivamente especificadas as condições gerais, especiais e particulares do contrato de seguro vida outorgado entre as partes.
- a matéria dos arts. 9º, 10º, 35º e 36º da p.i. mostra-se já incorporada nos pontos 19 e 20 dos factos provados, por referência aos documentos constantes de fls. 48 a 50 e 64 vº a 66 (quanto ao valor do capital garantido e beneficiários em caso da verificação de algum dos riscos contratados), o que determina a sua não inclusão nos termos peticionados.
Nesta conformidade, improcede o requerido aditamento da matéria de facto, posto esta estar já abrangida na materialidade fáctica provada, ainda que com redacção/formulação diversa.
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ii) – A alteração da resposta positiva para negativa dos pontos n.ºs 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20 (parte final onde se refere “Invalidez absoluta e permanente (CE 03) Considera-se contratada a cobertura complementar de invalidez absoluta e permanente, conforme na Condição Especial 03, garantindo, em caso de invalidez absoluta e permanente de uma das Pessoas Seguras, o capital indicado nas Condições Particulares”, 24, 25[8]. e 26 da matéria de facto provada da decisão recorrida; e a
iii) – A alteração da resposta negativa para positiva dos pontos n.ºs 43, 44, 45, 46, 47 e 48 da matéria de facto não provada da decisão recorrida.
Com vista a estribar a impugnação deduzida aos mencionados pontos fácticos constata-se que os recorrentes circunscrevem as suas razões ao que foi afirmado pelos diversos intervenientes inquiridos em audiência de julgamento, reproduzindo por súmula o que por eles foi declarado[9], sem que tenham cuidado – como se impunha – de emitir um juízo crítico e valorativo sobre o teor de tais depoimentos.
Por se nos afigurar um exercício estéril para o efeito pretendido, não iremos enunciar o que cada interveniente inquirido declarou, centrando antes a nossa atenção na apreciação crítica da prova feita pelo Mm.º Juiz “a quo” na motivação da sentença recorrida, assim aquilatando da sua bondade.
Partindo da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto e tendo em atenção o objecto do recurso, dela destacamos o seguinte excerto: «(…). Assim, no que tange aos factos dos pontos 7, até “denominado”, e 13, atendeu-se ao depoimento da testemunha CC, o referido comercial da Ré, que admitiu ter preenchido, pelo seu punho, nas apontadas circunstâncias de tempo e lugar, o “Questionário – Proposta de Seguro.” A mesma testemunha afirmou que fez o preenchimento de acordo com as indicações que lhe foram dadas pelo Autor, o que mereceu total credibilidade, por duas razões: em 1.º lugar, porque é o mais conforme ao id quod plerumque accidit (não é minimamente provável que um funcionário de seguros, que não conhece o proponente de um seguro de vida, preencha o questionário clínico, determinante para a sua entidade patronal aceitar o risco, de “uma forma cega”); em 2.º lugar, porque os termos em que foi preenchido o questionário, designadamente na parte transcrita no ponto 12, evidenciam que houve efetiva participação do Autor. Com efeito, são ali referidos dados concretos, com indicação de datas e pormenores relativos ao estado de saúde do Autor, dos quais, naturalmente, apenas este tinha conhecimento. No que tange ao facto do ponto 25, cumpre dizer, em 1.º lugar, que a testemunha CC afirmou, perentoriamente, que não lhe foi dito, no dia em que preencheu o “Questionário – Proposta de Seguro”, que o Autor tomava medicação, mais concretamente Xanax e Triticum, nem que o Autor sofria de ansiedade, com períodos de depressão. Afirmou mesmo que esse seria um facto que, a ter-lhe sido comunicado, ficaria a constar do questionário. Este testemunho foi contrariado pelos que foram prestados por DD, mediador de seguros e contabilista do Autor, e por EE, filho dos Autores. O primeiro, dizendo não ter estado presente no momento em que foi preenchido o “Questionário – Proposta de Seguro”, descreveu uma conversa ocorrida dias depois com a testemunha CC em que esta teria comentado o facto de “o AA tomar Xanax” (sic.); o segundo, descreveu pormenorizadamente a conversa entre os Autores e a testemunha CC, designadamente a propósito da medicação tomada pelo Autor e da exibição das caixas de Xanax e Triticum. Não obstante isto, a testemunha de CC mereceu, também neste particular, inteira credibilidade. Em 1.º lugar, porque o modo como a testemunha preencheu o questionário demonstra especial cuidado. Veja-se que discriminou os exames feitos pelo Autor e os respetivos resultados e indicou os graus da miopia que afetava o Autor. Este cuidado indicia que a testemunha teria procedido do mesmo modo se lhe tivesse sido dado a saber que o Autor tomava medicamentos destinados ao tratamento da ansiedade e da depressão, como é o caso do Xanax e do Triticum, em lugar de desvalorizar a informação, dizendo, de forma leviana, que se tratavam de meros medicamentos “para dormir.” Mais incoerente seria ainda se lhe tivesse sido concretizado que a medicação se destinava ao tratamento da ansiedade e depressão sofridas pelo Autor e que estiveram na génese da prescrição médica. Em 2.º lugar, não foi aquele o único questionário médico a que o Autor respondeu: no dia 8 de janeiro de 2007, compareceu a um exame médico agendado pela Ré, no qual lhe foi perguntado, entre o mais, se tinha alguma doença, se tomava medicação, se tinha sido submetido a algum tratamento médico prolongado e, sobretudo, se tinha necessitado de recorrer a um médico ou tomar algum medicamento para problemas emocionais. A todas essas questões o Autor respondeu negativamente, tanto assim que, no final, assinou o referido questionário, facto que não impugnou, o que levou a que o teor do mesmo fosse considerado com assente nos termos indicados supra a propósito dos factos dos pontos 15 a 17. Em 3.º lugar, porque quanto confrontada com o testemunho de sentido contrário do referido DD, a testemunha CC manteve-se firme e segura, o mesmo sucedendo quando acareada com aquela, olhando de frente o seu interlocutor e o julgador. A este propósito, não pode deixar de dizer-se que o depoimento do DD sofreu de duas aporias: em 1.º lugar, não se afigura plausível que, decorridos mais de quinze anos, a testemunha se lembre de uma conversa, pela própria descrita como banal, com a testemunha CC relacionada com a medicação tomada pelo Autor; em 2.º lugar, menos credível se afigura que a testemunha DD não estivesse presente no momento em que foi preenchido o “Questionário – Proposta de Seguro.” Isto porque era ela quem conhecia os Autores, que nela depositavam confiança (era o seu contabilista), e que “levou até eles” a testemunha CC, para que esta lhes apresentasse os produtos da M.... Finalmente, a propósito do testemunho de EE, deve dizer-se que não se afigura crível que a testemunha, que em 2006 tinha 16 anos (tinha 32 na data em que depôs), estivesse presente no momento em que foi preenchido o “Questionário – Proposta de Seguro”, um assunto “de adultos”, e, sobretudo, que fosse capaz de se recordar dele dezasseis anos depois, ao ponto de o descrever pormenorizadamente. A tudo acresce que a testemunha evidenciou falta de imparcialidade, designadamente quando afirmou que a testemunha CC apenas fez perguntas sobre a saúde geral do Autor, acrescentando, em jeito de comentário, que aquela estava mais preocupada em “vender o seguro.” No que tange ao facto do ponto 26, afigura-se axiomático que a Ré teria ponderado existir um risco acrescido, o que, no mínimo, teria reflexos no valor do prémio, juízo que, sendo do senso comum, atenta a natureza do estado do Autor, resultou reforçado pelo depoimento da testemunha HH, médico a quem a Ré pediu parecer sobre a reclamação apresentada pelos Autores. Segundo afirmou, ao aperceber-se dos antecedentes do Autor, logo entendeu que, aquando da contratação, tinha sido omitida informação relevante. Esta testemunha, a única ouvida a propósito, não afirmou, porém, que a Ré teria recusado a proposta ou exigido um prémio superior, mas apenas que necessitaria de um relatório de psiquiatria para tomar a sua decisão».
Perante tais depoimentos e a prova documental junta aos autos, afigura-se inteiramente correcto o decidido e a respectiva fundamentação.
Não obstante a antecedente conclusão, permitimo-nos complementar e concretizar os judiciosos argumentos supra aduzidos com as seguintes breves considerações.
Desde logo, oferece-nos sérias dúvidas a credibilidade do depoimento da testemunha DD, o qual, à data da assinatura da proposta (25/10/2006) e da elaboração do contrato de seguro do Ramo Vida celebrado entre a Ré e os Autores, além de mediador de seguros (era agente de seguros da Ré), era - e é - contabilista do Autor, pelo que não poderá dizer-se que não tem interesse no desenlace da lide.
Sendo o autor seu cliente (pois o seguro passou para a sua carteira, recebendo comissão pelo contrato) e tendo sido a testemunha que o encaminhou para a Ré, o seguro acabou por ser celebrado pelo comercial da Ré, CC.
Certo é que, juntamente com o referido CC na qualidade de gestor comercial, o indicado DD consta do “questionário - proposta de seguro” como o mediador do contrato, como se alcança do documento constante de fls. 45, sendo ele quem tem recebido as comissões pela feitura do referido contrato.
Ora, segundo as regras da experiência comum, sendo o Autor seu cliente e assumindo o DD a qualidade de mediador do contrato não é normal que este não tenha presenciado e participado nas negociações preliminares à celebração do contrato de seguro.
Tendo o DD declarado que não assistiu às referidas negociações preliminares e que posteriormente o CC conversou com ele, mas nada (lhe) dizendo especificamente sobre o seguro, não se afigura plausível que aquele tenha com ele comentado, num tom de admiração, que o A. AA já tomava xanax. Das duas uma: ou o agente comercial valorizava a referida declaração emitida pelo proponente (da toma do xanax) e a incluía no questionário da proposta de seguro ou, não o fazendo por não ter valorizado essa informação, não se descortina o motivo porque terá comentado essa (alegada irrelevante!) menção com o mediador, tanto mais que este foi peremptório ao afirmar que, na conversa ulteriormente tida com o CC, especificamente sobre o seguro não disse nada, apenas tendo falado “nessa medicação e em mais nada”.
Por outro lado, da análise da proposta de seguro descortina-se o cuidado colocado pelo gestor comercial na sua elaboração, o qual não se limitou a apor um “Não” em todos os itens; escreveu “Sim” nas seguintes questões: “6. Já fez alguma vez alguma análise ou exame médico especial, tal como eletrocardiograma, TAC, radiografias a algum órgão concreto, curva de glicose, provas à função renal ou hepática, teste da SIDA ou outros?; 10. Nos últimos dez anos foi visto ou tratado por algum médico?; 13. Tem algum tipo de defeito ou limitação visual, como miopia hipermetropia, presbitia, astigmatismo, etc.)?; e aos dizeres “Se respondeu afirmativamente a alguma questão, detalhe por favor, para cada caso, o tipo de doença, a data de início, o tipo de tratamento ou intervenção e o estado atual (…)”, escreveu: “6. Em Abril/2005 fez ecografia vesico-prostática com resultados normais conforme relatório anexo e em Outubro/2015 fez exame aos intestinos com resultados normais conforme relatório anexo. 10. Idem pergunta n.º 6. 13. Miopia (…)”, conforme documento constante de fls. 45 v.º
Esta circunstância é elucidativa duma postura cuidada e não facilitadora ou leviana na elaboração da proposta de seguro, o que, conjugado com o valor do capital seguro, terá determinado a submissão do candidato a um exame médico, cujo resultado consta de fls. 46 e 47.
Este exame foi feito por um médico indicado pela ré, Dr. II, que perguntou ao Autor AA, entre outras questões (no caso 44 questões):
“1. Tem alguma doença atualmente? 2. Está atualmente submetido a algum tratamento ? Toma algum medicamento? (…) 9. Esteve submetido a algum tratamento médico prolongado (mais de 15 dias)? (…) 42. Necessitou recorrer a um médico ou tomar algum medicamento por problemas emocionais? (Quando? Motivo?)”.
Tais questões obtiveram resposta negativa.
Ora, a ter reportado que sofria de ansiedade, com períodos de depressão, pelo menos desde 2003, e que era acompanhado por médico, que lhe prescreveu Xanax e Triticum, mal se concebe que o médico examinador nomeado pela seguradora (e pago por esta) não tivesse feito constar tais menções do exame médico, tanto mais que o mesmo atestou ter examinado o candidato e ter respondido com exactidão às perguntas anteriores.
Ou seja, este comportamento do autor AA, omitindo informações clínicas relevantes sobre o seu estado de saúde, não obstante ter sido diretamente confrontado com tais questões, permite reforçar a convicção firmada pelo Mm.º Julgador “a quo” no sentido daquele ter igualmente omitido tal informação ao gestor comercial aquando das conversações que estiveram na base da elaboração da proposta de seguro.
Acresce que o Autor AA já padecia desse problema de saúde pelo menos desde 2003, portanto pelo menos há cerca de três anos, pelo que nem poderá dizer tratar-se duma patologia recente ou irrelevante.
Aliás, o Autor sempre defendeu ao longo da acção jamais ter omitido a referida informação clínica, mas a verdade é que essa argumentação mostra-se objetivamente contraditada pelo facto de não se mostrar refletida no referido exame médico.
Ainda que se pudesse aventar a hipótese de os agentes comerciais, na busca desenfreada pela celebração de contratos de seguro, com o fito de alcançarem objetivos comerciais, serem, porventura, levianos, imprudentes, negligentes e facilitadores na elaboração da proposta de seguro, a verdade é que essa reserva não colhe quando está em causa a submissão do candidato a um exame médico, realizado por clínico indicado pela Ré, nos moldes que constam dos autos.
A estas circunstâncias sempre se acrescentará que o depoimento da testemunha EE, filho dos AA., revelou-se parcial e interessado, tendo o mesmo enfatizado por diversas vezes que o agente comercial estava essencialmente interessado em vender o seguro aos pais, não tendo feito praticamente nenhuma pergunta ao pai, o que se mostra contrariado pela especificação concreta da proposta de seguro (pontos 9 e 10 e 12 dos factos provados).
Revelou-se, aliás, evasivo nas respostas às questões que poderiam comprometer a situação dos progenitores, mas preciso na parte que lhes servia de contento.
Se a isto acrescentarmos – como bem salientado na motivação da sentença recorrida – que à data das negociações preliminares à feitura do contrato de seguro a referida testemunha contava apenas com 16 anos, e tratando-se de uma conversa envolvendo um assunto “de adultos”, não é crível que o mesmo tenha assistido a essa conversa e que dela se recordasse tão pormenorizadamente.
Sobreleva também o depoimento da testemunha CC, profissional de seguros na área comercial ao serviço da Ré, o qual no dia 25/10/2006, deslocou-se ao restaurante explorado pelos AA., afirmando que o fez acompanhado pelo mediador de seguros e a pedido deste, a fim de o ajudar a fazer e a avaliar um seguro de vida e outros, confirmando a facticidade objeto dos pontos 5 a 14 dos factos provados.
Esclareceu que o questionário médico feito ao Autor, posterior à recolha por si efectuada dos elementos constantes da proposta de seguro, foi realizado por um médico indicado pela seguradora, sendo que a testemunha não teve qualquer intervenção nesse exame medico.
Atestou que se o candidato lhe reportar a tomar de alguma medicação tem de a fazer constar na proposta de seguro, sendo sua função obter/recolher informação prévia que depois vai ser trabalhada pela seguradora na área da saúde.
Rejeitou peremptoriamente que o autor AA alguma vez lhe tenha mencionado que tomava xanax, pois a tê-lo feito teria necessariamente de o fazer constar da proposta de seguro para a Seguradora ficar ao corrente da situação clínica do cliente.
De destacar o facto de, no âmbito da acareação realizada com a testemunha DD, o CC ter adoptado uma postura assertiva e convincente na confirmação e defesa da versão dos factos por si antes apresentada, ao invés daqueloutra testemunha acareada que revelou dúvidas ou incerteza quanto ao facto de ter acompanhado ou não o agente comercial ao restaurante explorado pelos AA. para as conversações preliminares e elaboração da proposta de seguro[10]; de igual modo, foi evasiva a alusão feita pela testemunha DD sobre a alegada conversa ulterior em que o CC terá comentado com ele que o A. AA tomava xanax, sem que tenha logrado particularizar o contexto em que essa conversa se deu, limitando-se enfaticamente a reproduzir aquela menção (a qual se apresenta benéfica aos interesses dos segurados, seus clientes, por ser o seu contabilista).
No tocante o ponto 26 dos factos provados, a mais do que consta da motivação da sentença recorrida e a fim de reforçarmos o acerto da resposta dada, salientamos o depoimento da testemunha GG, colaboradora da Ré, técnica de seguros e que foi a gestora do processo de sinistros, a qual, instada se a Ré tivesse tido antes conhecimento das informações omitidas (antecedentes psiquiátricos) teria feito o seguro, afirmou não poder dar uma resposta taxativa, porquanto falta informação que seria fundamental para aferir a situação clínica da pessoa. A ter sabido dessa informação, o médico da companhia de seguros iria pedir mais informação, esclarecendo que, no caso de pessoas com patologias do foro psiquiátrico e de outras especialidades, a seguradora tem adoptado variados posturas: i) pode determinar a não celebração do seguro (a sua exclusão ou negar a apólice), ii) impor um agravamento do prémio ou iii) o ajustamento de um produto que seja mais do interesse também do cliente.
Por fim, apesar da impugnação dos AA. aos documentos constantes de fls. 45 a 47, essa prova documental – conjugada com a prova testemunhal produzida – é relevante para dar provada a facticidade objeto dos 24 a 28 dos factos provados (contrariando, assim, o juízo impugnatório deduzido pelos recorrentes).
Não obstante tais documentos (particulares) terem sido validamente impugnados pelos AA.[11], esse meio de prova podia – tal como foi – ser livremente apreciado pelo julgador, pois, como decorre do art. 607º, n.º 5 do CPC, “o juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção a cada facto”, sendo que a prova da factualidade em questão não era suscetível de ser provada unicamente por documento (vide ainda a segunda parte do referido nº 5 do referido art. 607º). Encontrando-se perante a prova documental, o julgador pode dele retirar as ilacções e inferências que julgue apropriadas e pertinentes face ao seu conteúdo, ou seja, avalia, estima e determina o seu valor probatório, fixando a materialidade adequada conforme a sua convicção (normalmente conjugada com os outros elementos probatórios produzidos)[12].
Nesta conformidade, por referência à prova produzida nos autos e nos termos supra explanados, não se evidenciam razões concretas e circunstanciadas capazes de infirmar a apreciação crítica feita pelo tribunal recorrido sobre os pontos fácticos impugnados [pontos n.ºs 13, 15, 16, 17, 18, 19, 20 (parte final), 24, 25 e 26 dos factos provados e dos pontos n.ºs 43, 44, 45, 46, 47 e 48 da matéria de facto não provada da decisão recorrida].
De facto, a judiciosa e clarividente fundamentação que serviu de base a essas conclusões dadas pela 1.ª instância – que integralmente subscrevemos, nos termos supra explicitados –, baseando-se na livre convicção e sendo uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, revela-se convincente e sustentada à luz da prova auditada e não se mostra fragilizada pela argumentação probatória dos impugnantes, não se impondo decisão sobre os referidos pontos da matéria de facto diversa da recorrida (art. 640º, n.º 1, al. b) do CPC).
Como tem sido salientado, baseando-se a decisão factual do tribunal da 1ª instância numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível onde se optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com benefício da imediação e oralidade – apenas poderá ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Nesta conformidade, inexistindo razões para divergir do julgamento de facto empreendido pelo tribunal recorrido quanto aos concretos factos impugnados, resta-nos concluir pela total improcedência da impugnação da matéria de facto, mantendo-se inalterada a decisão sobre a matéria de facto fixada na sentença recorrida[13].
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2. Reapreciação da decisão de mérito.
2.1. Da (inverificação da) exceção peremptória da anulabilidade do contrato de seguro.
Não suscitam reparos as considerações feitas na sentença recorrida sobre a qualificação do contrato de seguro objeto dos autos.
Com efeito, como aí se explicitou, a pretensão do autores/recorrentes tem por base a existência de um contrato de seguro, que consideram válido e eficaz, que tem como tomador de seguro o Autor AA, como segurados ambos os AA. e como seguradora a ré M..., SA, tratando-se de seguro do ramo vida, em que os riscos cobertos são a morte ou invalidez absoluta e permanente por doença ou acidente dos segurados, sendo beneficiário irrevogável o Banco 1... “até ao montante do capital em dívida. O remanescente para os herdeiros legais”.
A ré seguradora reconheceu que o aludido contrato de seguro foi realizado, que abrange, entre outras, a cobertura do risco invalidez absoluta e permanente, e que garante o pagamento ao beneficiário das quantias devidas pelos segurados, no momento em que ocorra alguma das situações de risco mencionadas.
A ré, todavia, recusou ou declinou o pagamento aos autores das quantias pedidas e assumir o pagamento das quantias em falta ao beneficiário invocando para o efeito a anulabilidade do contrato com fundamento em omissão do dever inicial do risco e declarações falsas do tomador de seguro, o autor AA, cuja relevância na formação da sua decisão de ter celebrado o dito contrato considera essencial.
A questão debatida no presente recurso tem, pois, a ver com a definição do âmbito do dever de declaração inicial do risco por parte dos segurados, bem como o seu regime e as consequências em caso de incumprimento do mesmo.
Como é sabido, o contrato de seguro é a convenção pela qual uma das partes (a seguradora) se obriga, mediante retribuição (prémio) paga pela outra parte (o segurado), a assumir determinado risco e, caso a situação de risco se concretize, a satisfazer ao segurado ou a terceiro uma indemnização pelos prejuízos sofridos ou um determinado montante previamente estipulado[14].
Trata-se do “contrato pelo qual uma parte, mediante retribuição, suporta um risco económico da outra parte ou de terceiro, obrigando-se a dotar a contraparte ou o terceiro dos meios adequados à supressão ou atenuação de consequências negativas reais ou potenciais da verificação de um determinado facto”[15].
Também não merece controvérsia a determinação do regime jurídico aplicável.
Como se decidiu, considerando que o contrato de seguro em causa foi celebrado, com a emissão da apólice, no dia ...1 de janeiro de 2007, é de concluir que o regime jurídico a considerar, no que tange a aspetos genéticos ou da formação do contrato, como aqueles que se suscitam na acção e no presente recurso, é o anterior à entrada em vigor do novo Regime Jurídico do Contrato de Seguro (RJCS)[16], aprovado pelo Dec. Lei n.º 72/2008, de 16/04.
Não obstante a revogação dos arts 425.º a 462.º do CCom pelo art. 6º, n.º 2, al. a), do Dec. Lei n.º 72/2008, e de o seu art. 2º (“aplicação no tempo”), n.º 1, prever a sua aplicação ao conteúdo de contratos de seguro celebrados anteriormente que subsistam à data da sua entrada em vigor, certo é que «a lei nova não se aplica à formação do contrato, mas tão-só ao seu conteúdo, ou seja, a questões relacionadas com a execução do vínculo»[17].
Efetivamente, em conformidade com o disposto no art. 12º do Cód. Civil, as regras de direito transitório do novo regime jurídico do contrato de seguro (RJCS), concretamente as constantes dos arts. 2º e 3º, ressalvam a aplicação da lei nova à formação do contrato, em especial à sua validade, situações que continuam a reger-se pela lei vigente à data da sua celebração, mesmo que esta já tenha sido revogada quando a questão vier a ser dirimida[18]. «É, assim, de afastar a aplicação do disposto no (v.g. arts. 24º e ss.), no que toca a inexactidões ou omissões na declaração inicial do risco, ou seja, no plano do cumprimento de um dever que recai sobre o tomador ou segurado na fase da formação do contrato»[19].
Por conseguinte, relativamente ao contrato de seguro objeto dos autos, tal como se decidiu na sentença recorrida, uma vez que a Ré aceitou a proposta de seguro, emitindo a respetiva apólice, a que atribuiu o n.º .../11, com início no dia 31 de janeiro de 2007, ou seja, antes da entrada em vigor do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, é aplicável o regime constante do art. 429º do Código Comercial (CCom), por ser a lei em vigor à data da sua celebração.
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É usual distinguir duas fases no processo de formação dos contratos: i) a «fase negociatória», que se caracteriza pelo conjunto de actos tendentes à celebração do contrato, incluindo propostas, convites a contratar, contrapropostas, acordos pré-contratuais e os actos inseridos em concurso para a formação do contrato; ii) a «fase decisória», que consiste na conclusão do acordo assente na emissão de declarações, a proposta e a aceitação[20].
Durante as fases referidas, a lei impõe que cada parte «deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte» (art. 227º do CC).
É sabido que o contrato de seguro tem uma vertente fundamentalmente aleatória, “porquanto a obrigação contraída por uma das partes (o segurado) é certa, enquanto a obrigação principal assumida pela outra parte (a seguradora) é incerta, além de futura”. Ao concluir o contrato, o tomador do seguro sabe que tem de pagar o prémio, já o segurador não sabe se terá de realizar a prestação convencionada, porque não sabe se se verificará o evento previsto[21].
O risco é um elemento essencial do contrato de seguro, posto que sem risco não há contrato de seguro.
A «exacta determinação do risco constitui um aspecto fundamental da disciplina do contrato de seguro, uma vez que o montante do prémio a pagar pelo segurado é fixado em relação ao risco e que uma exacta determinação do risco por parte do segurador é susceptível de se repercutir na gestão da empresa e na possibilidade de proporcionar à generalidade dos segurados a garantia e a segurança pretendidas»[22].
No que se refere ao risco que se pretende segurar, muitas vezes é o tomador do seguro ou o segurado quem estão em melhores condições de transmitir as informações relevantes para previsão e cálculo do mesmo (porque relativos a si próprio, por se referir à sua saúde, às características de um bem ou negócio seu, que conhece melhor que ninguém).
Por declaração de risco entende-se o conjunto de informações que devem ser unilateralmente prestadas pelo tomador do seguro ou pelo segurado ao segurador na proposta de seguro, as quais visam permitir que o último, mediante o cálculo exato do risco e do correspondente valor do prémio e a apreciação das restantes cláusulas contratuais, decida aceitar ou recusar tal proposta. Constitui, assim, um dever informativo pré-contratual, por surgir na formação do contrato de seguro, isto é, antes da celebração do contrato, antes da sua celebração e com vista à sua celebração[23].
Impõe-se, por isso, ao segurado ou ao tomador do seguro que forneça ao segurador elementos relevantes e verdadeiros de que este carece para a assunção e delimitação do risco.
Reportando-nos, em particular, aos contratos de seguro do Ramo-Vida, quando visem a transferência de responsabilidade referente ao pagamento de empréstimos bancários, entre as diligências que estão na livre disponibilidade do segurador conta-se a formulação de um questionário mais ou menos extenso, cujo conteúdo está na sua exclusiva disponibilidade, ao qual o tomador do seguro deve responder, habilitando a contraparte a aceitar, rejeitar ou modelar o contrato ou, porventura, fornecendo-lhe elementos suscetíveis de indiciarem a necessidade de serem efetuados exames médicos complementares, mais ou menos profundos[24].
Elemento decisivo para a celebração do contrato é, assim, o questionário apresentado ao potencial segurado, na medida em que se presume que não são aí feitas perguntas inúteis e, através dele, é o próprio segurador que indica ao tomador quais as circunstâncias que julga terem influência no contrato a celebrar. É através de tal questionário que a seguradora faz saber ao candidato as circunstâncias concretas em que se baseia para assumir o risco.
Como tal, impõe-se que o tomador do seguro ou o segurado responda com absoluta verdade ao questionário/minuta do contrato de seguro, informando a seguradora de todos os elementos necessários, para que esta possa avaliar o risco, decidir sobre a sua aceitação e em que condições e estabelecer o respetivo prémio de seguro[25].
Donde a lei estabeleça para o segurado o ónus de, no momento da formação do contrato, comunicar ao segurador todas as circunstâncias conhecidas que possam influenciar a determinação do risco, que no caso do seguro do ramo Vida consistirá essencialmente na informação sobre o estado de saúde da pessoa a segurar. Este ónus resulta, além do mais, do princípio da boa fé, precisamente porque a avaliação do risco depende das informações prestadas pelo segurado no momento da formação do contrato[26].
E daí que a lei também determine as consequências, quanto à validade ou eficácia do contrato, da inobservância de tal ónus pelo segurado.
Assim, dispõe o art. 429º do CCom:
"Toda a declaração inexacta, assim como toda a reticência de factos ou circunstâncias conhecidas pelo segurado ou por quem fez o seguro, e que teriam podido influir sobre a existência ou condições do contrato tornam o seguro nulo. § único. Se da parte de quem fez as declarações tiver havido má fé o segurador terá direito ao prémio".
As duas referidas expressões “declarações inexatas” e “reticência de factos ou circunstâncias”, têm sentido e alcance diversos. As declarações inexactas consistem “na declaração de factos ou circunstâncias que não correspondem à realidade”; é a afirmação falsa, errónea ou incompleta, que tanto pode ser dolosa (de má fé) como involuntária (negligente). As reticências de factos ou circunstâncias traduzem-se em “silenciar o que se sabia e se tinha o dever de dizer, é a omissão de factos e circunstâncias que servem para a exacta apreciação do risco”[27] (por ex., num seguro de vida, o proponente omite o seu historial clínico ou o conhecimento da doença da qual virá a morrer).
O art. 429º do CCom tem, portanto, como objetivo dar concretização à referida necessidade de determinar com exactidão o risco do contrato de seguro, sendo a consequência do incumprimento do dever de declaração exacta a invalidade do contrato, configurada como um caso de erro vício de vontade que incide sobre a própria formação do contrato[28].
Apesar do aludido preceito aludir à nulidade, a doutrina e a jurisprudência maioritárias têm entendido tratar-se antes de uma anulabilidade (ou “nulidade relativa”)[29], cuja relevância depende da essencialidade da concreta incorreção cometida.
Neste sentido, defende-se que o citado art. 429.º visa tutelar predominantemente interesses particulares, pelo que, de acordo com uma interpretação correctiva e teleológica, é o regime da anulabilidade que melhor defende o interesse público de ressarcimento dos lesados, naturalmente alheios às relações contratuais entre a seguradora e o seu segurado[30]. Assinala-se que a sanção da anulabilidade prevista no dito preceito constitui um reconhecimento da existência de erro como vício de vontade, incidindo sobre a própria formação do contrato. Incidindo sobre a própria formação do contrato, as declarações falsas ou as omissões relevantes impedem a formação da vontade real da contraparte (no caso, a seguradora), dado que essa formação assenta em factos ou circunstâncias ignorados, por não revelados ou deficientemente revelados[31].
Porém, não é qualquer declaração inexacta ou reticente que pode desencadear a possibilidade de anulação do contrato de seguro, tornando-se relevante a essencialidade das declarações na formação da vontade negocial. Ou seja, torna-se necessário que as declarações inexactas ou reticentes influam ou, melhor dizendo, possam influir ou sejam susceptíveis de influir[32] na existência e nas condições do contrato, de tal modo que, se o segurador as conhecesse, não contrataria ou teria contratado em diversas condições.
A lei também não exige o carácter doloso das omissões ou reticências de factos com relevância para a determinação da probabilidade ou grau de risco, mas pressupõe que o declarante conheça os factos ou as circunstâncias passíveis de influir sobre a aceitação ou as condições do contrato, ou seja, que aja com negligência[33].
E esse conhecimento deve, obviamente, reportar-se ao momento da subscrição da proposta contratual.
Por sua vez, a jurisprudência maioritária propendia a considerar que, para se aferir da inexatidão ou reticência da declaração do segurado, o citado art. 429º do CCom não exige qualquer nexo de causalidade entre o facto ou circunstância omitido ou inexactamente declarado e o facto ou circunstância que determinou o sinistro[34].
E, como refere o S.T.J. no Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 10/2001, de 21/11/2001[35], “a avaliação do que sejam declarações inexactas ou omissões relevantes, determinantes do regime de invalidade do negócio, terá de ser feita caso a caso (…)”. Por último, referir que cabe à seguradora o ónus da prova de que o segurado ou o tomador do seguro, quando respondeu ao questionário incluído na proposta de seguro bem como ao questionário clínico aquando da realização do exame médico, tinha conhecimento de que padecia da doença que o vitimou, ou de que exarou nessas respostas declarações falsas ou reticentes de factos ou circunstâncias dele conhecidas, susceptíveis de influir na formação do contrato e suas condições, enquanto relacionadas com a avaliação do risco a assumir, porquanto a declaração inexacta ou reticente traduz-se num facto impeditivo da validade do contrato – cfr. art. 342º, n.º 2 do CC[36].
No caso vertente, mostra-se provado que:
- No dia 29 de dezembro de 1999, ambos os Autores celebraram com o Banco 2..., S.A., por escritura pública, três contratos de mútuo garantidos por hipoteca, outorgados no ... cartório Notarial de ;
- Para garantia dos referidos três contratos de mútuo, além da constituição de hipoteca sobre um prédio urbano, os Autores celebraram um contrato de seguro de vida com a seguradora “Companhia de Seguros A..., S.A.”, com efeitos a partir do dia 29/12/1999, pelo prazo de um ano, renovável, cobrindo o risco de morte ou invalidez profissional permanente de qualquer um dos Autores, com o capital de € 166 786,42;
- Em 25/10/2006, deslocou-se à residência dos Autores um comercial da Ré, em representação desta, de nome CC, que lhes propôs a celebração de um outro contrato de seguro de vida, que substituísse aquele, oferecendo-lhes melhores condições, sendo que foi devido às melhores condições contratuais apresentadas pelo referido comercial da Ré, e por não ter qualquer período de carência, que os Autores aceitaram e concordaram em mudar o seguro para a ora Ré;
- Nessa ocasião, aquele comercial preencheu, pelo seu punho, o formulário denominado “Questionário – Proposta de Seguro de Vida”, a que foi atribuído o n.º ...04, identificando o Autor como tomador e ambos os Autores como pessoas seguras, com as seguintes profissões: Autor – Empresário de restauração; Autora – Cozinheira;
- No questionário, escreveu “Não” nas seguintes questões: “1. Esteve de baixa alguma vez, ou interrompeu a sua atividade habitual, por um período superior a 15 dias devido a doença ou acidente?; 2. Encontra-se atualmente submetido a tratamento ou controle médico? 3. Encontra-se atualmente de baixa por doença ou acidente? 4. Nos últimos dez anos, esteve alguma vez internado num hospital, clínica ou sanatório? 5. Vai submeter-se proximamente a alguma intervenção cirúrgica? 7. Padece de alguma limitação física, como consequência de alguma doença ou acidente (surdez, coxear, mudez, perda de membros, etc.)? 8. Utiliza ou utilizou alguma vez estupefaciente (drogas)? 9. No último ano, o seu peso diminuiu 10 kg ou mais? 12. Nos últimos dez anos, foi-lhe diagnosticada alguma doença?”;
- Escreveu “Sim” nas seguintes questões: “6. Já fez alguma vez alguma análise ou exame médico especial, tal como eletrocardiograma, TAC, radiografias a algum órgão concreto, curva de glicose, provas à função renal ou hepática, teste da SIDA ou outros?; 10. Nos últimos dez anos foi visto ou tratado por algum médico?; 13. Tem algum tipo de defeito ou limitação visual, como miopia hipermetropia, presbitia, astigmatismo, etc.)?”
- Nada escreveu na seguinte questão: “11. Consultou alguma vez um cardiologista ou oncologista?”;
- De seguida aos dizeres “Se respondeu afirmativamente a alguma questão, detalhe por favor, para cada caso, o tipo de doença, a data de início, o tipo de tratamento ou intervenção e o estado atual (…)”, escreveu: “6. Em Abril/2005 fez ecografia vesico-prostática com resultados normais conforme relatório anexo e em Outubro/2015 fez exame aos intestinos com resultados normais conforme relatório anexo. 10. Idem pergunta n.º 6. 13. Miopia (…)”;
- O preenchimento do questionário nos termos indicados foi feito de acordo com as indicações dadas pelo Autor ao referido CC;
- No final do preenchimento, o Autor assinou o formulário;
- No dia 8 de janeiro de 2007, o Autor foi submetido a um exame médico, por clínico indicado pela Ré, tendo respondido a questionário;
- As respostas do Autor foram negativas às seguintes questões: “1. Tem alguma doença atualmente? 2. Está atualmente submetido a algum tratamento ? Toma algum medicamento? (…) 9. Esteve submetido a algum tratamento médico prolongado (mais de 15 dias)? (…) 42. Necessitou recorrer a um médico ou tomar algum medicamento por problemas emocionais? (Quando? Motivo?).”
- No final, com as suas respostas assinaladas, o Autor assinou o questionário;
- Após análise dos referidos questionários e exame médico, a Ré aceitou a proposta de seguro, emitindo a respetiva apólice, com início no dia 31 de janeiro de 2007;
- Nos termos da Condição Especial 2.2., “(…) a M..., SA, obriga-se caso a Pessoa Segura fique inválida de forma absoluta e permanente para todo o trabalho, a pagar a quantia que se especifica nas Condições Particulares, ficando a apólice automaticamente anulada. / Entende-se por invalidez absoluta e permanente para todo o trabalho, a situação física ou mental irreversível que impossibilita por completo a Pessoa Segura para a manutenção de qualquer relação laboral ou atividade profissional. / Faz-se constar expressamente que se considera invalidez absoluta e permanente a paralisia permanente de todo o corpo ou metade do corpo, a perda anatómica ou funcional dos dois membros superiores ou inferiores ou de um superior e outro inferior ou das duas mãos completas ou dos dois pés completos, a alienação mental absoluta e incurável, a cegueira incompleta e incurável e as doenças crónicas que provoquem um estado geral de fraqueza do organismo (caquexia) em consequência do qual o doente fique definitivamente condenado à imobilidade”;
- O Autor sofria de ansiedade, com períodos de depressão, pelo menos desde 2003, o que era do seu conhecimento;
Era acompanhado por médico particular, que lhe prescreveu Xanax 0,5 mg e Triticum 100 mg.;
- Tanto em 25 de outubro de 2006 como em 8 de janeiro de 2007, o Autor mantinha esse acompanhamento e a toma regular da referida medicação;
- Nas referidas datas, quando respondeu aos questionários sobre o seu estado de saúde, o Autor não relatou os factos que antecedem aos seus interlocutores;
- Se a Ré tivesse tomado conhecimento desses factos, teria exigido exames complementares, ao nível da psiquiatria, para fundar a sua decisão de aceitar ou rejeitar a proposta de seguro e, caso a aceitasse, calcular o prémio a pagar pelo Autor;
- No início do ano de 2015, o Autor começou a evidenciar deterioração cognitiva e funcional, com repercussões importantes a nível profissional, manifestando algum descontrolo comportamental com os clientes do seu restaurante e, em virtude destes factos, esteve de baixa médica de janeiro 2015 até de dezembro 2017;
- Desde então não voltou a exercer a sua atividade profissional, ficando reformado por invalidez relativa pela Segurança Social em 29/01/2018; Deste quadro factual é forçoso concluir que as declarações do proponente/segurado AA sobre o seu estado de saúde e historial clínico são inexactas por contrárias à realidade e reticentes por serem omissas quanto a elementos relevantes para a determinação do risco. Na verdade, várias questões enunciadas no questionário da proposta de seguro, assim como no questionário objeto do exame médico realizado, obtiveram uma resposta frontalmente desconforme com a situação clínica vigente à data da subscrição da proposta contratual; em concreto, na proposta de seguro perguntava-se se estava a ser submetido a controlo ou tratamento médico e no exame médico também se tinha alguma doença e se tinha recorrido a médico, se estava submetido a algum tratamento e se tomava medicamento ou necessitado de medicação por problemas emocionais (questões 1, 2 e 22), tendo respondido negativamente a todas essas questões. Em dois momentos – primeiro, aquando da elaboração e assinatura da proposta do seguro e, depois, aquando da sujeição ao exame médico – o segurado omitiu que sofria de ansiedade, com períodos de depressão, estando medicado com Xanax e Triticum e sujeito a acompanhamento médico. Omitiu e ocultou, portanto, o facto de padecer de determinada patologia, designadamente a referida doença mental, que fazia medicação e era acompanhado por médico.
Igualmente é de concluir que o referido segurado tinha consciência dessas inexactidões (pois estava em causa um facto pessoal, referente à sua saúde e era uma circunstância por si conhecida – ponto 22 dos factos provados), o que determina que, pelo menos, não possa deixar de se entender que agiu com negligência ao prestá-las, tanto mais que não podia deixar de saber da relevância das mesmas para a seguradora com vista a aferir do risco envolvido no contrato.
Por outro lado, também está patenteado que, para a seguradora, as questões colocadas eram relevantes e com base nas informações prestadas pelo referido proponente decidiu aceitar a contratação, o que não sucederia sem mais se tivesse tido conhecimento da realidade omitida, posto que teria exigido exames complementares, ao nível da psiquiatria, para fundar a sua decisão de aceitar ou rejeitar a proposta de seguro e, caso a aceitasse, calcular o prémio a pagar pelo Autor. Portanto, tais declarações inexactas ou deficientes eram suscetíveis de influir de forma decisiva nessa formação da vontade contratual, designadamente sobre a decisão de contratar ou de contratar naquelas condições.
Vontade esta que se formou com base num erro no que concerne à avaliação do risco, causado pela violação do dever pré-contratual de prestar informações sobre o estado de saúde a cargo do proponente inserto no referido art. 429.º do CCom, determinativo da anulabilidade do contrato de seguro em apreço.
Daí que seja irrelevante saber do nexo causal entre as declarações inexactas e o sinistro: independentemente de se saber se tal nexo se verifica ou não, o que pesa na apreciação da seguradora é a base circunstancial necessária e decisiva à celebração do contrato nas condições pactuadas[37].
Por fim, embora rejeitando terem prestado declarações inexatas ou omitido circunstâncias em relação ao seu estado de saúde – o que se tem por infundado, como vimos –, os recorrentes, no caso da inviabilidade dessa argumentação, contrapõem afirmando que, então, a prestação das declarações falsas ou a omissão daqueles factos será imputável ao mediador da Ré, DD, na qualidade de contabilista dos autores e, em simultâneo, agente de seguros da Ré, o qual tinha conhecimento de que o Autor tomava xanax e nada fez no sentido de informar a Ré dessa circunstância.
A referida argumentação jamais poderá proceder, por uma dupla ordem de razões:
Em 1º lugar, por se tratar duma questão nova, só agora suscitada em sede de recurso, consubstanciando uma linha argumentativa inovatória, que não faz parte da causa de pedir e que jamais foi invocada, discutida e apreciada na 1ª instância.
Ora, como é sabido, os recursos – ordinários – visam permitir que um tribunal hierarquicamente superior proceda à reponderação da decisão recorrida, o que tem direta repercussão na delimitação das questões que lhe podem ser dirigidas.
O ponto de partida do recurso é sempre uma decisão que recaiu sobre determinada questão, de facto e/ou de direito, visando-se com ele apreciar da manutenção, alteração ou revogação daquela
Sendo um meio de impugnação de uma decisão judicial, o recurso apenas pode incidir, em regra, sobre questões concretas, de facto ou de direito, que tenham sido anteriormente apreciadas pelo tribunal recorrido, não podendo o tribunal “ad quem” confrontar-se com questões novas (ou seja, sobre matéria que não foi alegada pelas partes na instância recorrida e sobre pedidos que nela não foram formulados), salvo quando estas sejam de conhecimento oficioso (como, por exemplo, o abuso do direito ou os pressupostos processuais, gerais ou especiais, oficiosamente cognoscíveis e se não estiverem já resolvidas por decisão transitada em julgado) e o processo contenha os elementos imprescindíveis. É o que resulta da conjugação dos arts. 627º, n.º 1, 635º, n.º 2, 663º, n.º 2 e 608º, n.º 2, do CPC. Tal regra justifica-se quer em atenção ao princípio da preclusão, quer para impedir que seja desprezada a finalidade dos recursos (art. 676º, n.º 1 do CPC), quer para não possibilitar a supressão de graus de jurisdição[38].
Nesta conformidade, constituindo a aludida questão agora invocada pelos recorrentes uma questão completamente nova, que não foi colocada nem alegada – expressa ou sequer implicitamente – na 1.ª Instância, e que esta não decidiu por não ter sido chamada a decidi-la, está-nos vedado de a conhecer.
Em 2º lugar, porque a referida narrativa agora ensaiada pelos recorrentes em sede de apelação não encontra respaldo na matéria de facto provada.
Conclui-se, pois, que a ré logrou cumprir o ónus que sobre si recaía de demonstrar a omissão e/ou a inexatidão das declarações do segurado, assim como de que as mesmas eram susceptíveis de influenciar a seguradora na decisão de contratar, irrelevando que exista ou não nexo causal entre a doença ou situação clínica omitida nas declarações prestadas na proposta e no exame médico e a que efectivamente se veio a revelar.
Portanto, o contrato de seguro é anulável nos termos do art. 429º do CCom.
Consequentemente, mercê da confirmação da apreciada excepção peremptória, fica prejudicada a apreciação da terceira questão.
Em suma, merecendo plena confirmação a sentença recorrida, improcede a apelação.
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As custas do recurso, mercê do princípio da causalidade, são integralmente da responsabilidade dos recorrentes, atento o seu integral decaimento (art. 527º do CPC), sem embargo do benefício de apoio judiciário de que gozam.
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VI. DECISÃO
Perante o exposto acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso de apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas da apelação a cargo dos apelantes (art. 527º do CPC), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário de que gozam os mesmos.
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Guimarães, 4 de outubro de 2023
Alcides Rodrigues (relator)
Joaquim Boavida (1º adjunto)
José Carlos Dias Cravo (2º adjunto)
[1] Cfr. Maria João Vaz Tomé, em Comentário ao Código Civil, parte geral, Universidade Católica Editora, p. 588; Ac. da RP de 14/04/2015 (relator Fernando Samões) e Acs. da RL de 10/03/2016 (relator Ondina Carmo Alves) e de 15/01/2015 (relator Rui Vouga), in www.dgsi.pt. [2] Cfr. Ac. do STJ de 14/03/2006 (relator Duarte Soares), in www.dgsi.pt. [3] Cfr., Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 295. [4] Cfr., na doutrina, Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017 – 4ª ed., Almedina, pp. 271/300, Luís Filipe Pires de Sousa, Prova testemunhal, 2017 – reimpressão, Almedina, pp. 384 a 396; Miguel Teixeira de Sousa, em anotação ao Ac. do STJ de 24/09/2013, Cadernos de Direito Privado, n.º 44, Outubro/dezembro 2013, p. 33 e Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2015, Almedina, pp. 462 a 469; na jurisprudência, Acs. do STJ de 7/09/2017 (relator Tomé Gomes), de 24/09/2013 (relator Azevedo Ramos), de 03/11/2009 (relator Moreira Alves) e de 01/07/2010 (relator Bettencourt de Faria); Acs. da RG de 11/07/2017 (relatora Maria João Matos), de 14/06/2017 (relator Pedro Damião e Cunha) e de 02/11/2017 (relator António Barroca Penha), todos consultáveis em www.dgsi.pt. [5] Mercê da impugnação deduzida no requerimento apresentado a 14/09/2023 (ref.ª 46504233). [6] Cfr. Ac. do STJ de 03/12/2015 (relator Abrantes Geraldes), in www.dgsi.pt.
Nas palavras de J.P. Remédio Marques, designa-se por direito probatório material as normas que, atendendo à substância do ato de produção da prova (capacidade, legitimação, falta de vontade da parte que confessa factos), regulam os ónus da prova, a inversão do ónus da prova, a admissibilidade dos meios de prova e a força probatória de cada um deles, estando por isso mesmo mais ligadas ao direito material, ao direito substantivo (cfr. Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 2007, p. 389). [7] Cfr. Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, 2ª ed., Almedina, 2017, p. 354 e Helena Cabrita, A fundamentação de facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra Editora, pp.196/200. [8] Mercê da impugnação deduzida no requerimento apresentado a 14/09/2023 (ref.ª 46504233). [9] Tendo anexado ao recurso a transcrição integral de tais depoimentos. [10] Respondeu, entre o mais, “não tenho memória disso”, “não tenho memória nenhuma de ter ido”. [11] Art. 14º da oposição. [12] Cfr., neste sentido, Ac. do STJ de 14/02/2017 (relator Garcia Calejo), in www.dgsi.pt. [13] Com a ressalva da rectificação (por mor do erro de escrita) do ponto 25 dos factos provados. [14] Cfr. Almeida Costa, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 129.º, n.º 3862, pp. 20-21. [15] Cfr. Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudo de Direito Civil, Coimbra Editora, 2010, p. 66. [16] Que entrou em vigor em 1/01/2009 (art. 7º do RJCS). [17] Cfr. Pedro Romano Martinez, Lei do Contrato de Seguro Anotada, 3ª edição/2016, Almedina, p. 23 [18] Cfr. Ac. desta Relação de 14/03/2019 (relator Joaquim Boavida), in www.dgsi.pt. [19] Cfr. Ac. do STJ de 28.06.2018 (relatora Maria do Rosário Morgado) e Ac. da RP de 4/10/2010 (relatora Maria Adelaide Domingos), in www.dgsi.pt. [20] Cfr. Joana Galvão Telles, Deveres de Informação das Partes, Temas de Direito dos Seguros, 2ª ed., Almedina, 2020, pp. 330/331. [21] Cfr. Nuno Manuel Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, 2011, p. 132. [22] Cfr. Acórdão do TC n.º 524/99, de 29/09/1999 (relatora Maria Helena Brito), in www.dgsi.pt. [23] Cfr. Joana Galvão Telles, obra citada, p. 364. [24] Cfr. Ac. do STJ de 11/02/2016 (relator Abrantes Geraldes) in www.dgsi.pt. [25] Cfr. Ac. do STJ de 2/12/2013 (relator Granja da Fonseca), in www.dgsi.pt. [26] Cfr. Ac. da RC de 13/09/2016 (relator Fonte Ramos), in www.dgsi.pt. [27] Cfr. José Vasques, Contrato de Seguro, Coimbra Editora, 1999, p. 222. [28] Cfr. Ac. STJ de 06/07/2011 (relator Alves Velho), in www.dgsi.pt. [29] Cfr. Joana Galvão Telles, obra citada, p. 367, José Vasques, obra citada, pp. 379/380; na jurisprudência, entre outros, os Acs. do STJ de 9/09/2010 (relator Oliveira Vasconcelos), de 2/12/2013 (relator Granja da Fonseca) e de 27/03/2014 (relator Lopes do Rego), disponíveis in www.dgsi.pt. [30] Cfr., entre outros, cfr. Acs. do STJ de 08/04/2008 (relator Paulo Sá) e de 06/11/07 (relator Nuno Cameira), in www.dgsi.pt. [31] Cfr. Ac. STJ de 06/07/2011 (relator Alves Velho), in www.dgsi.pt. [32] Cfr. Acs. do STJ de 2/12/2013 (relator Granja da Fonseca) e de 27/05/2008 (relator Moreira Camilo), in www.dgsi.pt. [33] Cfr. Acs. do STJ de 06/07/2011 (relator Alves Velho) e de 02/12/2008 (relator Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt. [34] Cfr. Acs. do STJ de 17/10/2006 (relator Urbano Dias) e de 06/07/2011 (relator Alves Velho) e o Ac. da RC de 13/09/2016 (relator Fonte Ramos), in www.dgsi.pt. [35] Publicado no D.R. n.º 298, série I-A, de 27/12/2001, e referente a contratos de seguros de acidente de trabalho. [36] Cfr. Acs. do STJ de 4/03/2004 (relator Santos Bernardino) e de 11/02/16 (relator Abrantes Geraldes) in www.dgsi.pt.; Acs. do STJ, de 17/11/05, CJSTJ, T. III, p. 120, e de 24/02/08, CJSTJ, T. I, p. 116; José Vasques, obra citada, p. 225; José A. Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, Almedina, 7ª ed., 2020, p. 696. [37] Cfr. Acs. do STJ de 17/10/2006 (relator Urbano Dias), de 24/04/2007 (relator Silva Salazar), de 27/05/2008 (relator Moreira Camilo) e de 06/07/2011 (relator Alves Velho), in www.dgsi.pt. [38] Cfr. Abrantes Geraldes, obra citada, pp.28, 29, 109 e 110, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2º ed., 1997, Lex, p. 395, Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2.ª Ed., Almedina, p. 566; Acs. STJ 3-02-2011 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), de 12-5-2011 (relator Sérgio Poças), de 5/05/2016 (relator Oliveira Vasconcelos), Ac. da RC de 22.10.2013 (relator Barateiro Martins) e Ac. da RG de 23/11/2017 (relator Beça Pereira), todos disponíveis in www.dgsi.pt.