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PROVA PERICIAL
ADMISSIBILIDADE
PERÍCIA IMPERTINENTE E DILATÓRIA
Sumário
I - Nos termos do art. 388º, do CC, a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial. Constitui uma modalidade de prova indireta, na medida em que a demonstração do facto é feita através de uma pessoa, o perito, que se interpõe entre o tribunal e o objeto da perícia. II - De acordo com o nº 1 do art. 476º, do CPC, incumbe ao juiz formular um juízo liminar sobre a admissibilidade da realização da prova pericial, analisando se a perícia não é impertinente nem dilatória, à luz do direito probatório material, mormente do disposto no art. 388º, do CC. III - A perícia é impertinente e dilatória e, por isso deve ser indeferida, se diz respeito a matéria de direito e/ou a factos para cuja perceção ou apreciação não são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:
RELATÓRIO AA veio propor contra BB, CC e DD ação declarativa, com processo comum.
Pede que a ação seja julgada procedente e seja proferida decisão a:
“a) declarar a existência do direito de propriedade do Autor relativamente ao muro edificado e implantado no prédio propriedade do Autor, descrito no artigo 1º, e parte integrante do mesmo;
b) declarar que o caminho de servidão onera o prédio propriedade do Autor (constante do artigo 1º), sendo esse o prédio serviente, e mais declare a existência do direito de propriedade do Autor relativamente a toda a área do caminho de servidão de passagem, e como parte integrante que é daquele prédio do Autor;
c) declarar que o limite do prédio propriedade do Autor (constante do artigo 1º) a nascente é com os prédios propriedade da Ré e/ou dos Réus (e não com o caminho de servidão) e a poente com a denominada Rua ... (antiga estrada de ...);
d) declarar a inexistência do direito de propriedade da Ré e/ou dos Réus relativamente ao muro e ao caminho de servidão de passagem, os quais são parte integrante do prédio do Autor;
e) declarar a extinção da servidão de passagem, por se mostrar desnecessária ao prédio dominante dos Réus;
f) condenar a Ré e/ou Réus a removerem e demolirem todas e quaisquer construções (fixas ou amovíveis) existentes na área de terreno da servidão de passagem e a absterem-se de quaisquer práticas violadoras do prédio do Autor, da servidão de passagem, do muro e do direito de propriedade do Autor;
g) ser o Autor reconhecido como único dono e legitimo proprietário do prédio descrito no artigo 1º, sendo a área de terreno onde está a servidão de passagem, bem como o muro aí existente, partes integrantes daquele prédio;
h) demarcar os suprarreferidos prédios confinantes entre si, designadamente os descritos nos artigos 1º e 2º, e ainda o limite a poente do prédio descrito no artigo 1º com a Rua ... (antiga estrada de ...).”
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Os réus contestaram, pedindo a improcedência da ação, e formularam o seguinte pedido reconvencional:
“- devem os RR. CC, DD e BB ser declarados donos e legítimos proprietários do prédio misto situado em ..., a que correspondem os artigos matriciais ...41 Urbano e ...04 Rústico, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com a descrição ...06 – cf. descrição predial junta como Documento ... com a petição inicial;
- deve a parcela de terreno com a área de 51,60m2 assinalada na planta topográfica anexa como Documento ... como área C, ser declarada parte integrante do prédio descrito na alínea anterior;
- deve a R. BB ser declarada dona e legítima proprietária do prédio urbano situado em ... a que corresponde o artigo matricial urbano ...92, descrito na Conservatória do Registo Predial ... com a descrição ...02 – cf. descrição predial junta como Documento ... com a petição inicial;
- deve a parcela de terreno com a área de 70 m2, correspondente à soma das áreas A e B assinaladas na planta topográfica anexa Documento ..., ser declarada parte integrante do prédio descrito na alínea anterior;
- deve o muro que confronta com o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com a descrição ...06 numa extensão de 38,89m ser declarado propriedade dos RR. CC, DD e BB;
- deve o muro que confronta com o prédio descrito na Conservatória do Registo Predial ... com a descrição ...02, numa extensão de 18,96m, ser declarado propriedade da R. BB;
- deve o A. ser condenado a, no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, a retirar do muro a rede em arame que colocou em cima do mesmo.”
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O autor apresentou réplica na qual pediu que a reconvenção fosse julgada improcedente.
Pediu a realização de perícia singular, a ser realizada por Geógrafo da Faculdade da Universidade do Minho por nomeação do Tribunal.
Indicou como objeto da perícia:
“Saber o limite do terreno do Autor e dos Réus atendendo aos elementos físicos e documentais e aos elementos históricos (fotografias, levantamento topográficos e plantas antigas)
Saber a área, localização, do caminho de servidão
Saber a dimensão e características do muro
Apurar qual o imóvel que é onerado com o caminho de servidão e qual o imóvel que beneficia da servidão.
Saber sobre qual imóvel foi constituído o caminho de servidão, quando, desde quando e por quem e sobre qual imóvel foi construído o muro, por quem e desde quando.
Saber se os imóveis propriedade dos Réus têm hoje em dia acesso por outras vias que não o caminho de servidão”.
Apresentou os seguintes quesitos:
“Qual o limite do terreno do Autor e dos Réus atendendo aos elementos físicos e documentais e aos elementos históricos (fotografias, levantamento topográficos e plantas antigas)?
Qual a área, localização, do caminho de servidão?
Qual a dimensão e características do muro?
Qual o imóvel que é onerado com o caminho de servidão e qual o imóvel que beneficia da servidão?
Sobre qual imóvel foi constituído o caminho de servidão, quando, desde quando e por quem?
Sobre qual imóvel foi construído o muro, por quem e desde quando?
Os imóveis propriedade dos Réus têm hoje em dia acesso por outras vias que não o caminho de servidão?
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Por requerimento, de 29.11.2021, os réus vieram pedir que a perícia requerida pelo autor seja indeferida pois tanto o objeto como as questões formuladas nada têm a ver com questões de facto a formular para uma perícia visto que algumas são questões para prova testemunhal (quem construiu o muro por exemplo) e outras são questões de direito que será o Tribunal que terá que dar resposta e não qualquer perito (saber se existe algum caminho de servidão, por exemplo).
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Por decisão de 9.11.2022 foi admitida a reconvenção formulada e foi fixado à causa o valor de € 97 766,12.
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Foi designada data para a realização da audiência prévia, a qual não teve lugar em virtude da greve dos senhores Oficiais de Justiça (cf. informação constante da conclusão de 29.3.2023).
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Em 12.4.2023 foi proferido despacho com o seguinte teor: “Tendo em conta a natureza e objecto do litígio, e bem assim as áreas concretas invocadas pelos RR/reconvindos, correspondendo a específicos pedidos de reconhecimento de áreas, formulados pelos réus/ reconvintes, procedendo a uma adequação e agilização processual decide-se proceder a um levantamento topográfico aos prédios, parcela de terreno e muro em litígio nos autos. Para o efeito nomeia-se o Sr. Topografo EE, habitualmente designado como pessoa idónea para o exercício de tal cargo. Devendo o mesmo elaborar o levantamento topográfico da realidade existente dos prédios dos AA e RR, das parcelas de terreno e muro em litígio com apuramento das respectivas áreas. Paralelamente deverá proceder à elaboração de um levantamento de acordo com a versão de cada uma das partes. Prazo: 20 dias. Prestação do compromisso no próprio relatório. Notifique, sendo o Sr. Perito para dar cumprimento ao disposto no artigo 480º CPC aquando da realização dos actos inspectivos para o(s) levantamento(s).
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Em face da decisão supra, desde já se adianta e se aprecia a requerida prova pericial por parte do A. no sentido do seu indeferimento, atendendo a que o objecto e os quesitos propostos se mostram inadequados a tal meio de prova, concordando-se com os argumentos aduzidos nesta sede pelos réus /reconvintes, estando em causa questões que devem ser submetidas a outros meios de prova que não o da prova pericial, que assim vai indeferida. Notifique.”
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O autor não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1. O douto despacho de fls. (refª ...47) que indeferiu a prova pericial requerida pelo Recorrente padece de erro de julgamento e de violação da lei 2. O despacho recorrido traduz uma decisão de rejeição de um meio de prova, e, também por isso, o mesmo é susceptível de recurso (artigo 644.º, nº 2, alínea d) do Código de Processo Civil (CPC). 3. Conforme resulta do disposto no artigo 476º, nº 1 do CPC a realização da perícia somente deverá ser indeferida se for impertinente ou requerida com intuitos meramente dilatórios. 4. O douto despacho recorrido de fls., violou o disposto no artigo 476º, nº 1 do CPC, 5. e estriba-se em fundamentos que não são os permitidos pela lei. 6. O facto de determinada matéria poder ser submetida a outros meios de prova não é fundamento para indeferir uma perícia. 7. A perícia requerida é adequada e admissível até considerando a causa de pedir e os pedidos e os temas da prova, 8. O despacho objecto do presente recurso não cumpre as exigências legais e não se mostra devidamente fundamentado 9. O indeferimento dos meios de prova requeridos pelas partes apenas pode ocorrer, fundamentadamente (o que não foi o caso), pois que, a recusa da produção de prova pelo juiz só pode ocorrer quando seja manifestamente impertinente ou dilatória, o que não é o caso, nem foi fundamentado. 10. O nosso sistema processual é enformado por uma ideia não restritiva no que concerne à matéria da actividade probatória, sendo nesta linha que aponta o artigo 413° do CPC quando refere que o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas. 11. No nosso ordenamento processual, é manifesta a predominância do princípio dispositivo na fase da proposição ou colheita das provas, na medida em que as partes são mais idóneas, mais sensíveis e têm o conhecimento directo necessário para a indagação dos factos e recolha das provas respectivas. 12. O direito à prova surge no nosso ordenamento jurídico processual constitucional como uma motivação natural, por um lado, da garantia da acção e da defesa e, por outro, com o uma emanação dos direitos, liberdades e garantias que merecem tutela constitucional e que se materializam, no domínio jurisdicional, pela garantia de, por via da acção e da defesa as partes terem o direito de, querendo, utilizarem os direitos de prova que a lei coloca à sua disposição. 13. As normas processuais não podem deixar de ser interpretadas em conformidade com este direito à prova constitucionalmente garantido, restringindo -se ao máximo as limitações ao direito em causa. 14. O entendimento subjacente ao despacho recorrido, ou seja, de que a interpretação e aplicação do artigo 497º do CPC permite a dispensa de prova pericial requerida pelo ora Recorrente (e de forma discricionária), constitui uma violação profunda do direito à tutela jurisdicional efectiva constitucionalmente consagrados nos artigos 20°, n.ºs 1 e 4 e 268°, nº 4 da Constituição da República Portuguesa. 15. A decisão recorrida do Meritíssimo Juiz do Tribunal “a quo” deve ser revogada e substituída por outra que ordene a produção de prova pericial requerida com as legais consequências. 16. A previsão da tutela jurisdicional efectiva e de um processo equitativo impõe que as partes possam ter a possibilidade de realizar todas as diligências instrutórias que considerem necessário para provar os factos que alegam e que considerem fundamentais para o apuramento da verdade material e convenientes para a obtenção de uma pronúncia de mérito sobre o pedido (e a causa de pedir) requerido. A inobservância deste princípio importa para o Recorrente a desconsideração e violação de um dos direitos mais elementares de um Estado de Direito. 17. A produção de prova pericial em causa é necessária, útil e essencial para a descoberta da verdade material e a realização da Justiça.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente, em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.
OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Neste enquadramento, a questão a decidir consiste em saber se deve ser ordenada a perícia requerida pelo autor.
FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTOS DE FACTO
A matéria factual relevante para a decisão a proferir é a que se encontra descrita no relatório e a mesma resulta da consulta dos atos processuais.
FUNDAMENTOS DE DIREITO
O autor requereu a realização de prova pericial a qual veio a ser indeferida pelo tribunal a quo, com os fundamentos do despacho supra transcrito.
A questão a decidir consiste em saber se deve ou não ser realizada a perícia, com o concreto objeto e quesitos apresentados pelo autor e acima referidos.
Como se escreveu no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 8.1.2013, Relatora Maria da Purificação Carvalho (in www.dgsi.pt), “[o] direito à prova é um dos componentes do direito de acesso ao direito e aos tribunais para defesa de direitos e interesses legalmente protegidos que está constitucionalmente consagrado - art.º 20.º da CRP. Este direito faculta às partes a possibilidade de utilizarem em seu benefício os meios de prova que considerarem mais adequados tanto para a prova dos factos principais da causa, como também para a prova dos factos instrumentais ou mesmo acessórios. E a utilização dos meios de prova não se destina apenas à prova dos factos que a parte tem o ónus de provar, como também para pôr em causa os factos que são desfavoráveis às suas pretensões que em princípio não terão o ónus de provar.”
Conforme resulta do disposto no art. 341º, do CC, as provas têm por função a demonstração da realidade dos factos.
Por seu turno, a nível adjetivo, dispõe o art. 410º, do CPC, com a epígrafe “Objeto da instrução”, que a instrução tem por objeto os temas da prova enunciados ou, quando não tenha de haver lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova.
Àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito invocado, ao passo que a prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita, conforme decorre das regras atinentes à repartição do ónus de prova consagradas nos nºs 1 e 2 do art. 342º, do CC.
Podemos, assim, afirmar, com recurso às palavras de Paulo Pimenta (in Processo Civil Declarativo, 3ª ed., págs.382 a 384, que “[a] prova é a atividade desenvolvida em juízo no sentido do convencimento do julgador da realidade de um facto” e tal “atividade passa pela utilização dos meios suceptíveis de assegurar aquele convencimento, ou seja, passa pela utilização de meios de prova. (...) Quando falamos em factos como objeto de prova, estamos a referir os ‘acontecimentos e circunstâncias concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objectivo converteu em pressupostos de um efeito jurídico’ ”.
No que concerne à atendibilidade das provas, o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las, sem prejuízo das disposições que declarem irrelevante a alegação de um facto, quando não seja feita por certo interessado (art. 413º, do CPC).
A prova pericial é um dos meios de prova previstos no nosso ordenamento jurídico e, como decorre do art. 388º, do CC, tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial.
“A prova pericial é uma modalidade de prova pessoal e indirecta, na medida em que a demonstração do facto é feita através de uma pessoa, o perito, que se interpõe entre o tribunal e o objecto da perícia. Este meio de prova consiste na percepção ou apreciação de factos, pelo que o perito ou peritos são convocados a percepcionar os factos e/ou a valorá-los à luz dos seus conhecimentos técnicos. (...) A prova pericial pressupõe que são necessários conhecimentos especiais para percepcionar ou apreciar os factos, conhecimentos esses de que o juiz não dispõe” e, quanto a este “primeiro pressuposto, a prova pericial não deverá ser admitida se não forem exigidos conhecimentos que extravasem o saber do tribunal. A admissibilidade da perícia não está dependente dos conhecimentos concretos do juiz em particular que julga a causa, mas dos conhecimentos que excedem a cultura e experiência comuns, bastando, pois, à parte que pretenda socorrer-se deste meio de prova que invoque que os factos a sujeitar a perícia extravasam essa cultura e experiência. Não será admissível a perícia quando sejam necessários conhecimentos jurídicos, porquanto o tribunal dispõe desses conhecimentos ou deve deles dispor” (Rita Gouveia in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, págs. 881 e 882, com sublinhado nosso).
Assim, e com recurso às palavras de Luís Filipe Pires de Sousa (in Direito Probatório Material, pág. 133), podemos afirmar que o “traço definidor da prova pericial é, de facto, o de se chamar ao processo alguém que tem conhecimentos especializados em determinados aspetos de uma ciência ou arte para auxiliar o julgador, facultando-lhe informação sobre máximas de experiência técnica que o julgador não possui, e que são relevantes para a perceção e apreciação dos factos controvertidos. Em regra, além de facultar ao julgador o conhecimento dessas máximas de experiência técnica, o perito veicula a ilação concreta que se justifica no processo, construída a partir de experiência.”
A nível adjetivo, dispõe o art. 475º, do CPC, que quando a parte requerer a perícia deverá logo indicar, sob pena de rejeição, o respetivo objeto, enunciando as questões de facto que pretende ver esclarecidas através da diligência, podendo a perícia reportar-se, quer aos factos articulados pelo requerente, quer aos alegados pela parte contrária.
Compreende-se plenamente esta exigência da lei processual pois só mediante a concreta indicação das questões de facto que se pretendem ver esclarecidas pela perícia será possível aferir se, à luz do direito probatório material, designadamente dos pressupostos da prova pericial constantes do art. 388º, do CC, que já referimos, este meio de prova é, ou não, admissível.
Nos termos do art. 476º, do CPC, se entender que a diligência não é impertinente nem dilatória, o juiz ouve a parte contrária sobre o objeto proposto, facultando-lhe aderir a este ou propor a sua ampliação ou restrição, devendo, no despacho em que ordene a realização da diligência, determinar o respetivo objeto, indeferindo as questões suscitadas pelas partes que considere inadmissíveis ou irrelevantes ou ampliando-o a outras que considere necessárias ao apuramento da verdade.
Assim, de acordo com o nº 1 do art. 476º, do CPC, incumbe ao juiz formular um juízo liminar sobre a admissibilidade da realização da prova pericial, analisando se a perícia não é impertinente nem dilatória, à luz do direito probatório material, mormente do disposto no art. 388º, do CC. Concluindo no sentido da sua admissibilidade, compete-lhe, de seguida, agora ao abrigo do disposto no nº 2 do citado normativo, determinar o concreto objeto da perícia, excluindo as questões de facto propostas pelas partes que julgue inadmissíveis ou irrelevantes e/ou acrescentando-lhes outras que considere necessárias, podendo, assim, manter, ampliar ou reduzir o objeto proposto.
No âmbito do juízo liminar de admissibilidade, a efetuar pelo juiz nos termos do no 1 do art. 476º, do CPC, importa definir em que casos se pode considerar que a perícia é impertinente ou dilatória.
Segundo Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pereira de Sousa (in CPC Anotado, Vol. I, 2ª ed., pág. 560, com bold apócrifo) “[a] perícia é impertinente ou dilatória quando não respeita a factos condicionantes da decisão final ou porque, embora respeitando a tais factos, o respetivo apuramento não depende de prova pericial, por não estarem em causa conhecimentos especiais que a mesma pressupõe”.
Em anotação ao art 476.º, afirmam José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre (in CPC Anotado, vol. 2.º, 4.ª edição, Coimbra, Almedina, 2017, págs. 325 e 326, com sublinhados nossos) que “[r]equerida a perícia (…) o juiz verificará se ela é impertinente, por não respeitar aos factos da causa, ou dilatória, por, respeitando embora aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que esta pressupõe (artigo 388.º CC)”, acrescentando que “sendo a diligência impertinente ou dilatória o juiz indefere-a”, tratando-se “da aplicação à prova pericial da norma geral consagrada no artigo 6.º-1”.
No mesmo alinhamento de ideias se tem pronunciado a jurisprudência, designadamente os seguintes acórdãos (todos in www.dgsi.pt):
- acórdão da Relação de Évora, de 11.11.2021, Relatora Ana Margarida Leite:
“I– Requerida, no articulado de oposição deduzido em procedimento cautelar, a realização de prova pericial, deve o juiz verificar se a perícia se mostra impertinente ou dilatória, bem como se é necessária a produção de tal meio de prova, recusando a realização de perícia que considere impertinente ou dilatória, assim como a que entenda desnecessária; II – Se a perícia se destina à prova de factos cuja perceção e apreciação não exige conhecimentos especiais, em termos técnico-científicos, de que o juiz não disponha, mostra-se tal prova dilatória; se se destinar à prova de elementos conclusivos que não configuram matéria de facto, a perícia mostra-se impertinente.”
- acórdão da Relação de Lisboa, de 10.3.2022, Relatora Maria Amélia Ameixoeira:
“I - Requerida a prova pericial, a mesma só pode ser indeferida pelo tribunal se se mostrar impertinente ou dilatória e claramente desnecessária. II - Compete ao juiz verificar se a perícia é impertinente, por não respeitar aos factos da causa, dilatória e desnecessária, por, embora, se referir aos factos da causa, o seu apuramento não requerer o meio de prova pericial, por não exigir os conhecimentos especiais que a mesma pressupõe.”
- acórdão da Relação do Porto, de 26.10.2020, Relatora Eugénia Cunha:
“IV - Cabe ao tribunal pronunciar-se sobre as provas propostas e emitir, sobre elas, um juízo, não só de legalidade mas também de pertinência sobre o seu objeto: a prova de factos, controvertidos, da causa, relevantes para a decisão. V - A prova pericial, com a especificidade de ter a mediação de uma pessoa - o Perito – para a demonstração do facto, consiste na perceção ou apreciação de factos pelo perito/s chamado a os percecionar (com os órgãos dos sentidos) e/ou a os valorar (à luz dos seus especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos), conhecimentos esses que, não fazendo parte da cultura geral e da experiência comum, se presumem não detidos pelo julgador. VI - A perícia, para perceção e valoração de factos da causa carecidos de prova (por isso pertinente), só deveria ser indeferida se a perceção e a apreciação desses factos não reclamasse conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos especiais (caso em que seria dilatória).”
- acórdão da Relação de Coimbra, de 11.5.2020, Relator Vítor Amaral:
“5. - O juiz deve indeferir o requerimento de prova pericial em caso de impertinência – se a perícia não é reportada aos factos da causa – ou caráter dilatório – se, embora com reporte a tais factos, o respetivo apuramento não demanda os especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos subjacentes àquela prova específica, tornando-a desnecessária.”
Com base nestas premissas e descendo ao caso concreto, vejamos se a perícia requerida pelo autor deve ou não ser admitida.
Começamos por dizer que, ao contrário do alegado pelo recorrente, o despacho recorrido encontra-se fundamentado, como resulta da sua leitura.
Trata-se de uma fundamentação sintética e concisa, mas que permite apreender os motivos que levaram ao indeferimento da prova pericial, não havendo qualquer discricionariedade na prolação dessa decisão, como sustenta o recorrente.
O autor indicou como objeto da perícia:
“Saber o limite do terreno do Autor e dos Réus atendendo aos elementos físicos e documentais e aos elementos históricos (fotografias, levantamento topográficos e plantas antigas)
Saber a área, localização, do caminho de servidão
Saber a dimensão e características do muro
Apurar qual o imóvel que é onerado com o caminho de servidão e qual o imóvel que beneficia da servidão.
Saber sobre qual imóvel foi constituído o caminho de servidão, quando, desde quando e por quem e sobre qual imóvel foi construído o muro, por quem e desde quando.
Saber se os imóveis propriedade dos Réus têm hoje em dia acesso por outras vias que não o caminho de servidão”
E apresentou os seguintes quesitos:
“Qual o limite do terreno do Autor e dos Réus atendendo aos elementos físicos e documentais e aos elementos históricos (fotografias, levantamento topográficos e plantas antigas)?
Qual a área, localização, do caminho de servidão?
Qual a dimensão e características do muro?
Qual o imóvel que é onerado com o caminho de servidão e qual o imóvel que beneficia da servidão?
Sobre qual imóvel foi constituído o caminho de servidão, quando, desde quando e por quem?
Sobre qual imóvel foi construído o muro, por quem e desde quando?
Os imóveis propriedade dos Réus têm hoje em dia acesso por outras vias que não o caminho de servidão?
Parte destes quesitos refere-se a matéria de direito, e não a factos, constituindo o thema decidedum na ação, face aos pedidos formulados e que supra se encontram transcritos, designadamente, saber qual o limite do terreno do Autor e dos réus atendendo aos elementos físicos e documentais e aos elementos históricos (fotografias, levantamento topográficos e plantas antigas); qual a área, localização, do caminho de servidão; qual o imóvel que é onerado com o caminho de servidão e qual o imóvel que beneficia da servidão e sobre qual imóvel foi constituído o caminho de servidão.
Por não respeitar a factos, mas a matéria de direito, não é admissível prova pericial com este objeto e com vista à resposta a estes quesitos
Mesmo entendendo-se que quando se alude a caminho de servidão não se está a fazer referência a matéria jurídica mas tão só ao caminho fisicamente existente no local, ou seja, aos sinais visíveis e permanentes que aí existam quanto à passagem de pessoas, animais ou veículos, ainda assim não se justifica a realização de qualquer perícia pois que, como explicámos, a prova pericial só é admissível quando a perceção ou apreciação dos factos exijam conhecimentos especiais que os julgadores não possuem. Sendo possível, por mera observação, a perceção da existência, implantação e caraterísticas do caminho físico não se encontra legalmente justificada a intermediação de um terceiro, no caso um perito, para percecionar o que o juiz pode percecionar diretamente.
O mesmo se diga quanto aos quesitos relativos à dimensão e características do muro, ao imóvel onde o mesmo foi construído (na perspetiva física e não na de saber quem é o respetivo proprietário pois tal integra matéria de direito) e à circunstância de atualmente o acesso aos imóveis propriedade dos réus se processar por outras vias que não o caminho de servidão.
Estas questões não exigem conhecimentos especiais que o julgador não possui, sendo diretamente percecionáveis por mera observação e medição.
Finalmente, saber quando e por quem foi constituído o caminho de servidão e saber quem construiu o muro e quando foi efetuada essa construção é matéria que não se enquadra nos conhecimentos especializados de um perito, não lhe permitindo estes conhecimentos dar resposta concreta a estas questões, as quais só podem ser respondidas por quem tenha um concreto conhecimento fáctico da situação.
Decorre do explanado que, face à matéria que o autor propôs como objeto da perícia e aos concretos quesitos que formulou, a perícia é impertinente, porque em parte diz respeito a matéria jurídica, e é dilatória porque, na parte em que se refere a factos, para a respetiva perceção ou apreciação não são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.
Por conseguinte, e face às disposições conjugadas do art. 388º, do CC, e 476º, nº 1, do CPC, a perícia não deve ser admitida.
De referir que o argumento utilizado pelo recorrente de predominância do princípio dispositivo na fase da proposição ou colheita das provas, com o sentido de que as partes são livres de escolher do conjunto de meios probatórios aquele que entenderem mais adequado não podendo a perícia ser indeferida com fundamento em a prova poder ser efetuada por outros meios, não é apto a sustentar a sua pretensão recursória porquanto, como explicámos, no caso não se verificam os pressupostos de admissibilidade de prova pericial, a qual tem de ser considerada impertinente e dilatória e, como tal, indeferida.
Consequentemente, improcede o recurso, sendo de manter a decisão de indeferimento da realização da perícia requerida pelo autor.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente.
Custas da apelação pelo recorrente.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):
I - Nos termos do art. 388º, do CC, a prova pericial tem por fim a perceção ou apreciação de factos por meio de peritos, quando sejam necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem, ou quando os factos, relativos a pessoas, não devam ser objeto de inspeção judicial. Constitui uma modalidade de prova indireta, na medida em que a demonstração do facto é feita através de uma pessoa, o perito, que se interpõe entre o tribunal e o objeto da perícia. II - De acordo com o nº 1 do art. 476º, do CPC, incumbe ao juiz formular um juízo liminar sobre a admissibilidade da realização da prova pericial, analisando se a perícia não é impertinente nem dilatória, à luz do direito probatório material, mormente do disposto no art. 388º, do CC. III - A perícia é impertinente e dilatória e, por isso deve ser indeferida, se diz respeito a matéria de direito e/ou a factos para cuja perceção ou apreciação não são necessários conhecimentos especiais que os julgadores não possuem.
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Guimarães, 28 de setembro de 2023
(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
(2º/ª Adjunto/a) José Carlos Pereira Duarte