EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PRORROGAÇÃO DO PERÍODO DE CESSÃO
QUESTÃO NOVA
VIOLAÇÃO DO CONTRADITÓRIO
ANULAÇÃO DA DECISÃO
Sumário


Deve ser anulada a decisão de recusa de concessão de exoneração de passivo restante, proferida sem a audição contraditória prévia prevista no nº1 do art.244º do CIRE (art.195º do CPC).

Texto Integral


As Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam no seguinte

ACÓRDÃO

I. Relatório:

No presente processo de insolvência de AA, no âmbito do incidente de exoneração do passivo restante:
1. A 18.09.2018 foi proferido despacho liminar de exoneração do passivo restante e fixação de rendimento disponível a ceder ao fiduciário, nos seguintes termos:
«Relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, inexistindo elementos de facto trazidos aos autos que permitam concluir pelo indeferimento liminar, e nos termos do disposto no art.º 237 CIRE, vai o mesmo deferido. (…)
Considerando os elementos alegados pelo requerente, e a falta de quaisquer outros trazidos aos autos pelos credores, determino que o rendimento de cessão seja fixado no montante que exceda o valor de 1 (um) salário mínimo nacional, contados doze meses por ano (não se incluem portanto quaisquer subsídios, que deverão ser entregues ao fiduciário).

*
Nomeia-se como fiduciário o Sr. Administrador da Insolvência, que declara aceitar tal cargo.
*
Nos termos do artº 233º, nº 6 do C.I.R.E., atribui-se carácter fortuito à presente insolvência.».

2. A 09.06.2020 o fiduciário apresentou relatório em relação ao 1º ano de cessão, nos termos do art.240º/2 do CIRE, no qual concluiu que entre outubro de 2018 e setembro de 2019 o insolvente deveria ter entregue à fidúcia o valor de € 1 016, 12.
3. A 25.06.2020 o insolvente requereu, face a I- 2 supra e às invocadas dificuldades económicas, que lhe fosse autorizada «a entrega da quantia de €1.016,12 em 14 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no valor de €72,58, vencendo-se a primeira no dia 15/07/2020 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.».
4. A 29.06.2020 foi proferido despacho, notificado ao mandatário do insolvente, nos seguintes termos: «Defere-se o pagamento faseado do valor em divida à fidúcia, atenta a não oposição dos credores.».
5. A 23.10.2020 o fiduciário apresentou relatório em relação ao 2º ano de cessão, nos termos do art.240º/2 do CIRE, no qual concluiu: que entre outubro de 2019 e setembro de 2020 o insolvente (que cedera apenas em julho o valor de € 654, 46) deveria ter cedido ainda o valor de € 925,01 respeitante a parcelas vencidas de dezembro de 2019 a junho de 2020; que se encontrava em dívida global, em relação aos dois anos, o valor de € 1 286,67.
6. A 28.10.2020 foi proferido o seguinte despacho, notificado ao mandatário do insolvente: «Notifique-se o insolvente para que reponha o valor em dívida à fidúcia, sob pena de abertura do incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração.».
7. A 29.10.2020 o insolvente apresentou novo requerimento, no qual declarou que não pagou as prestações por ter ficado desempregado e requereu «encarecidamente a V.ª Exc.ª se digne autorizar a entrega da quantia de €1.286,67 em 12 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no valor de €107,22, vencendo-se a primeira no dia 10/11/2020 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.».
8. A 24.11.2020, após contraditório, foi proferido despacho que decidiu «Autoriza-se o pagamento da quantia de €1.286,67 em 12 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no valor de €107,22, nos moldes requeridos.», despacho esse notificado ao mandatário do insolvente por ato de 23.12.2020.
9. A 28.10.2021 o fiduciário apresentou informação de falta de elementos para a apresentação do relatório do 3º ano de cessão, após o que:
a) A 04.11.2021 foi proferido o seguinte despacho: «Notifique-se o insolvente, para que preste as informações necessárias à conclusão do relatório apresentado pelo Sr. Fiduciário, sob pena de abertura do incidente de cessação antecipada do procedimento de exoneração.».
b) A 20.11.2021,o insolvente, após ter sido notificado de I- 9-a) supra, declarou e requereu «tendo requerido à sua antiga entidade patronal a entrega dos recibos solicitados, uma vez que os mesmos ainda não lhe foram disponibilizados, vem requerer a V.ª Exc.ª a prorrogação do prazo concedido por mais 10 dias», requerimento esse notificado ao fiduciário a 06.12.2021 (com pedido de informação se foi regularizado o pagamento), sem que este se tenha pronunciado e sem que o Tribunal a quo tenha proferido despacho.
10. A 13.10.2022 o insolvente apresentou o seguinte requerimento:
«3. (…) no final do mês de Setembro de 2021 completaram-se três anos sobre o início do período de cessão.
4. À data em que foi proferido o despacho inicial de exoneração do passivo restante, o periodo de cessão ascendia aos cinco anos, findos os quais se proferia despacho final de exoneração.
5. Sucede que, através da Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, que procedeu à alteração do CIRE, o período de cessão do rendimento disponível foi reduzido para três anos.
6. E foi determinado, nos termos do artigo 10.º, n.º3 da mesma Lei, que “nos processo de insolvência de pessoas singulares pendentes à data da entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo periodo de cessão do rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data da entrada em vigor da presente lei, considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei.
7. A referida norma foi publicada em 4 de Janeiro de 2022 e entrou em vigor em 11 de Abril de 2022, 90 dias após a sua publicação, nos termos do seu artigo 12.º.
8. Ora, na data da entrada em vigor da Lei n.º 9/2022, o período de cessão do aqui devedor tinha já completado mais de três anos pelo que, sendo abrangido pela disposição acima indicada, terminou em 11 de Abril de 2022.

TERMOS EM QUE SE REQUER QUE SEJA DETERMINADO O FIM DO PERIODO DE CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL DO DEVEDOR À DATA DE 11 DE ABRIL DE 2022 E, TENDO O DEVEDOR CUMPRIDO COM TODAS AS OBRIGAÇÕES PREVISTAS NO N.º 4 DO ARTIGO 239.º DO CIRE, SEJA PROFERIDO DESPACHO FINAL DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE, NOS TERMOS DO N.º 1 DO ARTIGO 244º DO CIRE.».

11. A 19.10.2022 o fiduciário apresentou relatório, nos termos do art.240º/3 do CIRE, no qual concluiu: que o insolvente deveria ter cedido à massa fiduciária o valor de € 3 390,00 referente ao 4º e último ano de cessão, compreendido entre outubro de 2021 e março de 2022, o que não fez; que acresce a este valor o de € 1 286,67, referente a verbas em incumprimento de cessões anteriores, o que faz computar o incumprimento total em € 4 676,67.
12. Após o relatório de 11 supra ser notificado no mesmo dia apenas ao insolvente e seu mandatário, a 20.10.2022 o insolvente, reiterando o desenvolvido a 13.10.2022, requereu:
«Termos em que se requer que:
a. Seja determinado que o relatório agora apresentado pelo exmo. senhor fiduciário nos termos do n.º 2 do artigo 240º do cire não deve ser considerado, por respeitar a período posterior aos três anos do período de cessão;
b. Seja de imediato proferida decisão final quanto à exoneração do passivo restante, nos termos do n.º 1 do artigo 244.º do cire, e ser a mesma concedida ao devedor.».
13. A 09.11.2022 foi proferido o seguinte despacho, notificado apenas ao insolvente (na sua pessoa e do seu mandatário) e ao fiduciário:
«Uma vez que a alteração legal respeitante à duração do período de cessão entrou em vigor a 11-4-22 (Lei 9/2022), apenas se poderá considerar esta data como data do terminus deste período, sob pena de concessão de um beneficio injustificado ao devedor.
Assim, notifique-se o insolvente para que reponha o valor em falta, como calculado pelo Sr. Fiduciário, sob pena de não concessão da exoneração do passivo restante.
Oportunamente, regressem os autos para cumprimento do disposto no art.º 244,1 CIRE e para fixação de honorários ao fiduciário, se tal se revelar necessário.».
14. Após notificação do despacho de 09.11.2022, o insolvente apresentou o seguinte requerimento a 24.11.2022:
«1. O Insolvente não dispõe de condições que lhe permitam proceder ao pagamento imediato da quantia constante do Relatório elaborado pelo Sr. Administrador de Insolvência.
2. Não obstante, o Insolvente irá proceder à entrega da quantia de €4.676,67, que sabe ser sua obrigação.
3. Não obstante, o Insolvente não dispõe, momentaneamente, da referida quantia, a qual foi destinada à satisfação de necessidades básicas, tais como despesas de saúde, alimentação, deslocações, água, luz e gás.
4. O Insolvente irá recorrer a familiares e amigos para proceder à reposição da quantia em falta.
5. Para o efeito, requer encarecidamente a V.ª Exc.ª se digne permitir a entrega daquela quantia de €4.676,67 em 42 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no valor de €111,35, vencendo- se a primeira no dia 15/12/2022 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.
6. Cumpre referir que a autorização deste pagamento prestacional não beliscará em nada os direitos dos Senhores Credores, que verão a Massa Insolvente enriquecer na mesma exata medida.
Em face de todo o exposto, o Insolvente requer encarecidamente a V.ª Exc.ª se digne autorizar a entrega da quantia de €4.676,67 em 42 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no valor de €111,35, vencendo-se a primeira no dia 15/12/2022 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.»
15. O requerimento de I-14. supra foi notificado entre mandatários e um credor e notificado por ato da secretaria de 25.11.2022 aos dois credores do processo, sem que estes se tenham pronunciado.
16. A 16.12.2022 foi proferida a seguinte decisão:
«Vem o insolvente requer se autorize a entrega da quantia de €4.676,67 em 42 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no valor de €111,35, vencendo-se a primeira no dia 15/12/2022 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.
Nos termos da lei vigente, inexiste esta possibilidade.
Vejamos.
Admitido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial (art. 239º nº 1 e 2 do C.I.R.E.) determinando que, durante os três anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (o período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, o fiduciário, para os fins do art. 241º do C.I.R.E.
No final do período da cessão, proferir-se-á decisão sobre a concessão ou não da exoneração (art. 244º, nº 1 do C.I.R.E.) e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (art. 245º do C.I.R.E.) – exceptuados apenas os créditos previstos no nº 2 do art. 245º do C.I.R.E.”
Ora, o que se pretende com o requerimento do devedor é o pagamento em prestações do que foi apurado como rendimento de cessão, durante o período concedido. Durante este período não foi requerido e comprovado a insuficiência do rendimento fixado, como lhe competia.
Logo, não pode ser renovada outra hipótese de fresh start, uma vez que o insolvente não agarrou a oportunidade que lhe foi concedida há 4 anos.

Indefere-se, portanto, o requerido.

Dispõe o art.º 244 CIRE, sob a epígrafe “Decisão final da exoneração” que:

1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
Remete-se, portanto, para o art.º 243, o fundamento da recusa da exoneração. Este preceito estatui que:
1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
No caso em apreço, a Sr. AI, no seu relatório, alega que “O insolvente deveria ter cedido à massa fiduciária o valor de 3.390,00 € referente ao 4º e último ano de cessão, o que não fez, a que acresce o valor de 1.286,67 € referente a verbas em incumprimento de cessões anteriores, pelo que o montante total em incumprimento é de 4.676,67 €”.
Cumprido o contraditório, não se pronunciaram os credores.
Cumpre apreciar.
No que aqui releva, é nos reportado um facto conducente à conclusão pela violação dos deveres a que o insolvente ficou obrigado durante o período de cessão, como resulta do art.º 239 CIRE.
Pode, portanto, concluir-se que, face á lei vigente, foram desrespeitados os deveres estatuídos por lei, havendo motivo de indeferimento da exoneração.

Assim, e pelo exposto, não concedo a exoneração do passivo restante a AA.
Notifique.» (bolds apostos nesta Relação).
17. O insolvente interpôs recurso da decisão de I-16 supra, no qual apresentou as seguintes conclusões:
«A. O devedor não pode conformar-se com a decisão proferida pelo Tribunal a quo em 16 de Dezembro de 2022 que indeferiu a entrega parcelada do rendimento disponível em falta, bem como proferiu despacho de recusa da exoneração do passivo restante do devedor.
B. Em 19 de Novembro de 2022 o Exmo. Senhor Fiduciário apresentou relatório nos termos do n.º 2 do artigo 240.º do CIRE relativo à última fase do periodo de cessão, tendo concluido nos seguintes termos: “O insolvente deveria ter cedido à massa fiduciária o valor de 3.390,00 € referente ao 4º e último ano de cessão, o que não fez, a que acresce o valor de 1.286,67 € referente a verbas em incumprimento de cessões anteriores, pelo que o montante total em incumprimento é de 4.676,67 €.”
C. O devedor requereu que fosse desconsiderado tal relatório por entender que, face à alteração legislativa ocorrida com a Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, não deveria ser considerado o periodo em causa por exceder os três anos do periodo de cessão.
D. Não tendo sido dado provimento ao pedido do devedor, foi proferido despacho em 9 de Novembro a determinar: “notifique-se o insolvente para que reponha o valor em falta, como calculado pelo Sr. Fiduciário, sob pena de não concessão da exoneração do passivo restante. Oportunamente, regressem os autos para cumprimento do disposto no art.º 244,1 CIRE e para fixação de honorários ao fiduciário, se tal se revelar necessário.”
E. Tendo sido indeferida a sua pretensão, o devedor requereu a entrega deste montante em “42 prestações mensais, iguais e sucessivas, cada uma no valor de €111,35, vencendo-se a primeira no dia 15/12/2022 e as restantes em igual dia dos meses subsequentes.”
F. É no seguimento desse pedido que é proferido a decisão aqui objecto de recurso.
G. No despacho inicial de exoneração do passivo restante, proferido em 18 de Setembro de 2018, o Fiduciário não foi incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações por parte do devedor.
H. O Tribunal a quo não deu a oportunidade ao aqui devedor, nem mesmo a qualquer credor, para emitir parecer nos termos do n.º 1 do artigo 244.º do CIRE, dado que NÃO FOI FEITA QUALQUER NOTIFICAÇÃO ao devedor e aos credores para o efeito.
I. Após indeferimento do pedido de pagamento prestacional apresentado pelo devedor, não foi dada ao mesmo mais qualquer oportunidade para entregar este valor.
J. O devedor desconhecia que o Tribunal a quo se preparava para emitir Decisão Final nos termos do n.º 1 do artigo 244.º do CIRE, dado que não foi notificado para se pronunciar.
K. Nenhum credor nem sequer o Fiduciário requereram a cessação antecipada do período de cessão do rendimento disponível ou se pronunciaram no sentido da Recusa da Exoneração.
L. Nos termos do n.º 2 do artigo 244.º do CIRE a recusa da exoneração apenas pode suceder com os mesmos fundamentos e subordinada aos mesmos requisitos da cessação antecipada do periodo de cessão, prevista no artigo 243.º do CIRE.
M. Assim, apenas pode acontecer mediante requerimento de algum credor ou do Fiduciário, quando este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor.
N. Não tendo acontecido nenhuma destas hipóteses, o Tribunal não pode oficiosamente determinar a recusa da exoneração do passivo restante.
O. Tendo tal acontecido nos presentes autos, estamos perante uma nulidade de sentença por excesso de pronúncia, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Acresce que,
P. Nos termos do n.º 1 do artigo 244.º do CIRE, antes de ser proferida decisão final quanto à exoneração do passivo restante, o devedor deve ser expressamente notificado para se pronunciar.
Q. Tendo sido indeferida a sua pretensão de entrega parcelada do rendimento presumivelmente em falta, não foi dada qualquer possibilidade de entrega da totalidade do rendimento.
R. Ninguém, credor ou fiduciário, veio requerer a recusa da exoneração.
S. Pelo que não esperava o devedor que fosse desde já proferida decisão final quanto à exoneração do passivo restante, e ainda menos que a mesma fosse no sentido da recusa da exoneração do passivo restante.
T. Houve, assim, uma flagrante violação do princípio do contraditório previsto no artigo 3.º do CPC e no n.º 1 do artigo 244.º do CIRE, que fere de nulidade esta sentença nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Mais ainda,
U. Nos termos das disposições conjugadas da alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE e do n.º 2 do artigo 244.º do CIRE, para que possa ser recusada a exoneração do passivo restante por violação das obrigações previstas no artigo 239.º do CIRE, devem ser preenchidos três pressupostos cumulativos:
1. Violação de uma das obrigações previstas no artigo 239.º do CIRE, mormente o seu n.º 4;
2. Que tal violação tenha ocorrido com dolo ou negligência grave;
3. Nexo de causalidade entre a violação e a existência de prejuizo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
V. Sendo estes factos impeditivos do direito do devedor de obter a exoneração do passivo restante, cabia ao Tribunal a quo alegar e provar os mesmos, fundamentando na sua decisão os factos que determinam o preenchimento de cada um de tais pressupostos, sob pena de o devedor não conseguir apresentar a sua defesa.
W. Sucede que, na decisão em análise sequer é mencionada a norma legal onde consta a obrigação violada pelo devedor, não sendo tecida qualquer argumentação de facto ou de direito quanto aos pressupostos indicados.
X. É clara assim a violação do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607.º do CPC, o que consubstancia a nulidade da sentença proferida nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC.
Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio,
Y. O Tribunal a quo indeferiu a pretensão de entrega parcelada do rendimento disponível em falta por parte do devedor, por entender que tal não será admissível após término do periodo de cessão do rendimento disponível.
Z. Nos termos do disposto no artigo 242.º-A do CIRE, é possível a prorrogação do período de cessão até ao máximo de três anos.
AA. Prorrogação essa que tem como fundamento o incumprimento das obrigações do devedor e deve ser requerida pelo devedor até ao término do período de cessão.
BB. Sucede que, o incumprimento aqui em causa apenas foi conhecido do devedor após apresentação do último relatório do Exmo. Senhor Fiduciário, datado de 19 de Outubro de 2022.
CC. O rendimento do devedor é composto por duas vertentes que acrescem ao seu salário, uma relativa a Ajudas de Custo e outra relativa a Gratificações de Balanço e que totalizam o valor mensal de cerca de Euros 650,00.
DD. O devedor desconhecia que estas componentes também integrariam o seu rendimento disponível e, por esse motivo, não entregou qualquer montante nesse periodo.
EE. Apenas tendo tomado consciência do volume do seu incumprimento aquando do relatório já mencionado, ou seja, em data superveniente ao término do período de cessão.
FF. Pelo que deve ser concedida ao devedor a possibilidade de recorrer ao mecanismo previsto no artigo 242.º-A do CIRE e ser prorrogado o periodo de cessão até ao período máximo aí previsto para entrega do rendimento disponível em falta.
GG. O devedor garante a sua intenção de cumprir com esta obrigação, motivo pelo qual já entregou aos autos em data anterior o total de € 654,46.
Sem prescindir, e por mera cautela de patrocínio,
HH. Ainda que assim não se entenda, o que não se concede, a ser indeferido o pedide entrega parcelada do rendimento disponível em falta, deverá ser proferida decisão no sentido de ser concedido ao devedor um derradeiro prazo para entregar a totalidade do rendimento disponível presumivelmente em falta.

Acresce que,
II. Nos termos das disposições conjugadas do n.º 2 do artigo 244.º do CIRE e do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE, a recusa da exoneração apenas pode suceder quando requerida por um credor, dado que nos presentes autos o Fiduciário não tem legitimidade para o efeito, por não lhe ter sido incumbido o dever de fiscalizar o cumprimento das obbrigações pelo devedor.
JJ. Assim, não tendo nenhum credor requerido a recusa da exoneração, não restará ao Tribunal a quo outra possibilidade que não proferir decisão final quanto à exoneração do passivo restante concedendo ao aqui devedor tal exoneração.
Acresce que,
KK. Não se encontram preenchidos os pressupostos previstos na alínea a) do n.º 1 do artigo 243.º do CIRE para que possa ser recusada a exoneração do passivo restante.
LL. Desde logo, nem sequer é mencionada qual das obrigações previstas no artigo 239.º do CIRE é violada pelo devedor.
MM. Por outro lado, porque não existiu qualquer dolo ou negligência grave por parte do devedor.
NN. Nem resulta provada a existência de nexo de causalidade entre a conduta do devedor a existência de prejuízo sério para a satisfação do crédito dos credores.
OO. Recordando tudo o indicado nos pontos 48 a 61 das presentes alegações, é claro, por um lado, a inexistência de uma consciência de incumprimento por parte do devedor, e por outro lado, a existência de expectativa de um prazo superior para entregar os valores já em atraso em momento anterior, sendo que parte deles havia já sido paga.
PP. Não podemos ainda olvidar que a decisão em apreço nada diz quanto ao preenchimento destes pressupostos,
QQ. Pelo que não restará outra solução senão concluir pelo não prenchimento dos pressupostos previsto no artigo 243.º para a recusa da exoneração do passivo restante devendo, assim, ser proferida decisão final que conceda ao devedor aexoneração do passivo restante.
Sem prescincir, e por mera cautela de patrocínio,
RR. Não tendo sido ouvidos os credores, nem o devedor, nem o Fiduciário nos termos do diposto no n.º 1 do artigo 244.º do CIRE, por ter sido preterida a sua notificação para o efeito, estamos perante decisão judicial que padece de irregularidade por incumprimento de formalismo prévio à mesma, devendo ser corrigida tal irregularidade.

NESTES TERMOS, E NOS MELHORES DE DIREITO QUE V. EXAS. DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVERÁ O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE, POR PROVADO, E, EM CONSEQUÊNCIA:

A. SER DECLARADA A NULIDADE DA SENTENÇA PROFERIDA, NOS TERMOS DAS ALÍNEAS B) E D) DO N.º 1 DO ARTIGO 615.º DO CPC;

B. DEVERÁ SER REVOGADA A DECISÃO QUE INDEFERIU O PEDIDO DE ENTREGA PARCELADA DO RENDIMENTO DISPONÍVEL E SER SUBSTITUÍDA POR OUTRA QUE DETERMINE A PRORROGAÇÃO DO PERIODO DE CESSÃO DO RENDIMENTO DISPONÍVEL NOS TERMOS DO ARTIGO 242.º- A DO CIRE ATÉ AO PERÍODO MÁXIMO AÍ PREVISTO PARA ENTREGA DO RENDIMENTO DISPONÍVEL EM FALTA; ou, caso assim não se entenda, o que não se concede, POR DECISÃO QUE CONCEDA AO DEVEDOR UM DERRADEIRO PRAZO PARA ENTREGAR A TOTALIDADE DO RENDIMENTO DISPONÍVEL EVENTUALMENTE EM FALTA;

Caso não seja julgada a nulidade da referida sentença, o que não se concede,

C. DEVERÁ SER REVOGADA A DECISÃO QUE DETERMINOU A RECUSA DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE E SER A MESMA SUBSTITUÍDA POR SENTENÇA QUE DETERMINE A CONCESSÃO DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE AO DEVEDOR;

D. Caso assim não se entenda, o que não se concede, DEVE SER REVOGADA A DECISÃO QUE DETERMINOU A RECUSA DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE E SER A MESMA SUBSTITUÍDA POR DECISÃO QUE DETERMINE A NOTIFICAÇÃO DO DEVEDOR, DOS CREDORES E DO FIDUCIÁRIO PARA SE PRONUNCIAREM NOS TERMOS DO N.º 1 DO ARTIGO 244.º DO CIRE.».

18. Não foi apresentada resposta ao recurso.
19. A 15.02.2023 foi proferido o seguinte despacho de admissão de recurso e de consideração de inexistência de nulidades da decisão recorrida:
«Não se verifica a nulidade de excesso de pronúncia arguida, porquanto o tribunal se limitou a apreciar e decidir do incidente de exoneração do passivo restante, nos termos legais, nomeadamente como estatuído no art.º 244 CIRE.
Considero, igualmente, que não se verifica a nulidade por falta de audição do devedor, porquanto a sua posição já havia sido manifestada largamente no processo.
Por outro lado, nos termos do disposto no art.º 195 Código de Processo Civil, 1 - (…) a omissão de um ato ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade cometida possa influir no exame ou na decisão da causa.
Em suma, uma eventual omissão da notificação do devedor para, mais uma vez se pronunciar, não consubstancia uma nulidade, no caso concreto, porquanto não houve qualquer ingerência de tal omissão no exame da causa, ou na decisão tomada.
*
Por legal e tempestivo, admito o recurso interposto, que é de apelação, subida imediata, nos próprios autos, e efeito meramente devolutivo.».

20. Subido o processo a esta Relação, determinou-se a descida do mesmo à 1ª instância para a fixação do valor do incidente de exoneração do passivo restante, tendo esta decidido «Fixo em 5.000, 01 euros o valor dos autos para efeitos de recurso- cfr. Ac. Trib. Constitucional n.º70/21, de 27-01.»
21. Recebido o recurso nesta Relação, a subir nos próprios autos e com efeito devolutivo, colheram-se os vistos e realizou-se a conferência.

II. Questões a decidir:

As conclusões das alegações do recurso delimitam o seu objeto, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso não decididas por decisão transitada em julgado e da livre qualificação jurídica dos factos pelo Tribunal, conforme decorre das disposições conjugadas dos artigos 608º/ 2, ex vi do art. 663º/2, 635º/4, 639º/1 e 2, 641º/2- b) e 5º/ 3 do CPC.

Definem-se como questões a decidir:

1. Em relação à 1ª decisão- de indeferimento do requerimento de pagamento prestacional (conclusões A, Y a GG):
1.1. Se foi discutida de direito a decisão, nos termos do art.639º/2 do CPC.
1.2. Se o pedido de prorrogação ao abrigo do art.242º-A do CIRE pode ser apreciado ou constitui questão nova (entendendo o insolvente/ recorrente que apenas não a requereu antes do relatório de outubro de 2022, por apenas neste ter tido conhecimento que as vertentes de ajudas e gratificações de balanço no valor mensal de € 650, 00 também integravam o seu rendimento disponível), razão pela qual requer: que lhe seja concedida a prorrogação do período de cessão até ao período máximo previsto no art.242º-A do CIRE para entregar o rendimento disponível em falta; que, ainda que não se considere poder beneficiar do pagamento prestacional, deve ser-lhe concedido um derradeiro prazo para entregar a totalidade do rendimento disponível em falta.
2. Em relação à 2ª decisão- de recusa de concessão da exoneração do passivo restante:
2.1. Se ocorre uma nulidade da decisão recorrida:
a) Nulidade nos termos do art.615º/1-d) do CPC, por o Tribunal a quo: não ter notificado o devedor e os credores para emitir parecer do nº1 do art.244º do CPC, devendo essa notificação ser feita; não ter dado oportunidade ao devedor para pagar a integralidade da dívida depois do indeferimento do pagamento prestacional, oportunidade que lhe deve ser concedida; não ter nenhum credor ou o fiduciário requerido a cessação antecipada ou a recusa da exoneração (recusa que considera não poder ser oficiosa, nos termos do art.243º CPC, ex vi do nº2 do art.244º do CPC), caso em que, não estando indicados nem verificados os pressupostos da al. a) do nº1 do art.243º do CIRE, deveria ser-lhe concedida a exoneração; não ter o insolvente/recorrente, assim, expectativa que já fosse proferida decisão, sobretudo no sentido da recusa, havendo, por isso, violação do princípio do contraditório dos arts.3º CPC e 244º/1 CIRE (conclusões H a T, HH, RR). 
b) Nulidade nos termos do art.615º/1-b) do CPC, por o Tribunal a quo não ter apresentado qualquer fundamentação de facto ou de direito para preencher os pressupostos do art.243º/1-a), ex vi do art.244º/2 do CIRE (que, no seu entender, exigem a violação de uma das obrigações previstas no art.239º/4 do CIRE, que esta violação tenha ocorrido com dolo ou negligência, que exista um nexo de causalidade entre a violação e a existência de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, no seu entender inexistentes) (conclusões U a X, II e JJ, KK a QQ).

III. Fundamentação:

1. Matéria de facto provada:
Julgam-se provados os atos processuais relatados em I supra, face à força probatória plena dos mesmos (art.371º do CC).

2. Apreciação do objeto do recurso:

2.1. Enquadramento jurídico geral:
2.1.1. Sobre o regime legal aplicável à decisão recorrida do incidente de exoneração do passivo restante:

No incidente de exoneração do passivo restante regulado no CIRE (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas), o devedor singular pode obter a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou no período de cessão posterior ao encerramento deste, nos termos regulados nos arts.235º ss do CIRE.
Este período de cessão- durante o qual o devedor fica obrigado a ceder ao fiduciário o rendimento disponível que venha a obter, nos termos do nº2 do art.239º do CIRE (correspondente ao excedente dos rendimentos referidos no nº3 do art.239º do CIRE) e a cumprir as obrigações do nº4 do art.239º do CIRE («a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão;d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.»), para lograr os efeitos de exoneração do art.245º do CIRE: encontrava-se fixado em 5 anos na data da prolação do despacho liminar referido em I-1 supra (18.09.2018); e foi reduzido para 3 anos na nova versão do CIRE, introduzida pela Lei nº9/2022, de 11 de janeiro (arts.235º, 237º/b) e 239º/2 do CIRE), entrada em vigor a 11 de abril de 2022 (art.12º).

O novo regime, onde se integra a redução de prazo de 3 anos, é aplicável aos incidentes de exoneração pendentes à data de entrada em vigor da nova lei, de acordo com o regime transitório do art.10º/1, 3 e 4 Lei nº9/2022, de 11 de janeiro, que previu:
«1 - Sem prejuízo do disposto nos números seguintes, a presente lei é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor. (…).
3 - Nos processos de insolvência de pessoas singulares pendentes à data de entrada em vigor da presente lei, nos quais haja sido liminarmente deferido o pedido de exoneração do passivo restante e cujo período de cessão de rendimento disponível em curso já tenha completado três anos à data de entrada em vigor da presente lei, considera-se findo o referido período com a entrada em vigor da presente lei.
4 - O disposto no número anterior não prejudica a tramitação e o julgamento, na primeira instância ou em fase de recurso, de quaisquer questões pendentes relativas ao incidente de exoneração do passivo restante, tais como as referentes ao valor do rendimento indisponível, termos de afetação dos rendimentos do devedor ou pedidos de cessação antecipada do procedimento de exoneração.» (bold aposto por esta Relação).
O prazo de cessão de rendimentos (arts. 235º, 237º/b) e 239º/2 do CIRE, em qualquer uma das versões- a anterior e a posterior à introduzida pela Lei nº9/2022, de 11 de janeiro), conta-se a partir do despacho de encerramento do processo, nos termos do art.230º/1-e) do CIRE.

No decurso do período de cessão de rendimentos disponível ao fiduciário:
a) Pode ser prorrogado o período de cessão, a requerimento das pessoas indicadas por lei e de acordo com os procedimentos na mesma previstos, face ao disposto no art.242º-A do CIRE, aditado pela Lei nº9/2022, de 11 de janeiro, que prevê:
«1 - Sem prejuízo do disposto na segunda parte do n.º 3 do artigo 243.º, o juiz pode prorrogar o período de cessão, até ao máximo de três anos, antes de terminado aquele período e por uma única vez, mediante requerimento fundamentado:
a) Do devedor;
b) De algum credor da insolvência;
c) Do administrador da insolvência, se este ainda estiver em funções; ou
d) Do fiduciário que tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, caso este tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, sendo oferecida logo a respetiva prova.
3 - O juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão, e decretar a prorrogação apenas se concluir pela existência de probabilidade séria de cumprimento, pelo devedor, das obrigações a que se refere o n.º 1, no período adicional.»
b) Pode ser declarada antecipadamente recusada a exoneração do passivo restante, a pedido das pessoas indicadas como partes legítimas para este efeito, com os fundamentos indicados e de acordo com o procedimento previsto no art.243º do CIRE, pelo qual se prevê no regime atual:
«1 - Antes ainda de terminado o período da cessão, deve o juiz recusar a exoneração, a requerimento fundamentado de algum credor da insolvência, do administrador da insolvência, se estiver ainda em funções, ou do fiduciário, caso este tenha sido incumbido de fiscalizar o cumprimento das obrigações do devedor, quando:
a) O devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) Se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) A decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência.
2 - O requerimento apenas pode ser apresentado dentro dos seis meses seguintes à data em que o requerente teve ou poderia ter tido conhecimento dos fundamentos invocados, devendo ser oferecida logo a respetiva prova.
3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.
4 - O juiz, oficiosamente ou a requerimento do devedor ou do fiduciário, declara também encerrado o incidente logo que se mostrem integralmente satisfeitos todos os créditos sobre a insolvência.».
Decorrido o período de cessão ou da sua prorrogação, cabe ao juiz conceder ou não a exoneração, nos termos do art.244º do CIRE, que na sua versão vigente prevê:
«1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.
2 - A exoneração é recusada pelos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos por que o poderia ter sido antecipadamente, nos termos do artigo anterior.
3 - Findo o prazo da prorrogação do período de cessão, se aplicável, o juiz decide sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante nos termos dos números anteriores.».
A exoneração, sendo concedida, importa a extinção dos créditos da insolvência com a ressalva dos expressamente previstos por lei, nos termos do art.245º do CIRE:
«1 - A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados, sendo aplicável o disposto no n.º 4 do artigo 217.º
2 - A exoneração não abrange, porém:
a) Os créditos por alimentos;
b) As indemnizações devidas por factos ilícitos dolosos praticados pelo devedor, que hajam sido reclamadas nessa qualidade;
c) Os créditos por multas, coimas e outras sanções pecuniárias por crimes ou contra-ordenações;
d) Os créditos tributários e da segurança social. ».
Todavia, esta exoneração pode ainda ser revogada, nos termos do art.246º do CIRE:
«1 - A exoneração do passivo restante é revogada provando-se que o devedor incorreu em alguma das situações previstas nas alíneas b) e seguintes do n.º 1 do artigo 238.º, ou violou dolosamente as suas obrigações durante o período da cessão, e por algum desses motivos tenha prejudicado de forma relevante a satisfação dos credores da insolvência.
2 - A revogação apenas pode ser decretada até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado do despacho de exoneração; quando requerida por um credor da insolvência, tem este ainda de provar não ter tido conhecimento dos fundamentos da revogação até ao momento do trânsito.
3 - Antes de decidir a questão, o juiz deve ouvir o devedor e o fiduciário.
4 - A revogação da exoneração importa a reconstituição de todos os créditos extintos.»

2.1.2. Sobre os deveres judiciais em relação à decisão (aqui colocados em causa):
2.1.2.1. Cumprimento de contraditório prévio à decisão:
De acordo com a regra processual civil geral, «3 - O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.» (art.3º/3 do CPC).
Numa das concretizações desta regra geral, o CIRE prevê expressamente o cumprimento de contraditório prévio à decisão, em relação ao fiduciário, ao devedor e aos credores, quer no art.243º/3 no caso de recusa antecipada da exoneração («3 - Quando o requerimento se baseie nas alíneas a) e b) do n.º 1, o juiz deve ouvir o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência antes de decidir a questão; a exoneração é sempre recusada se o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.»), quer no art.244º/1 quando lhe couber proferir decisão final após decorrido o período de cessão («1 - Não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.»).
Esta exigência de contraditório, que evita decisões surpresa, baseia-se em exigências constitucionais e reveste: uma expressão objetiva de promover a participação das partes na construção da decisão; uma expressão subjetiva de assegurar o direito de defesa.
Neste sentido, como refere Rui Pinto:
«A garantia do processo equitativo do art.20.º n.º4 CRP implica que a medida de tutela final seja produzida com participação dos titulares da relação litigiosa, como, aliás, sucede com toda a actividade do Estado que interfira com os direitos dos cidadãos.
Num sentido objectivo a participação dos interessados é a própria lógica de estruturação do processo e que se sintetiza numa afirmação: a decisão judicial sobre uma providência requerida deve ser o resultado de um procedimento ou método que implique uma faculdade de comparticipação, colaboração ou influência paritárias. Essa participação exprime-se por meio de uma relação dialéctica (…): com o desenvolvimento do processo, cada parte- independentemente da sua posição originária (…)- pode pronunciar-se previamente sobre cada ato que a afete (proibição da indefesa).
Num sentido subjetivo o princípio do contraditório implica um direito de defesa na sua possibilidade e nas armas de que se serve, e o direito de ser ouvido lato sensu- (…)- de que goza não apenas o réu ab initio em simetria com o direito de acção do autor, mas, em geral, todo o sujeito jurídico directamente atingido nos seus direitos por via dos efeitos do caso julgado, seja parte no processo- cfr. o artigo 631.º, n.º1- seja terceiro- cfr. artigos 631.º, n.º2.»[i].    

Como refere o acórdão desta Relação de Guimarães de 19.04.2018, proferido no processo nº533/04.0TMBRG-K.G1, a que se adere:[ii]

«1- Existe, presentemente, uma conceção ampla do princípio do contraditório, a qual teve origem em garantia constitucional da República Federal Alemã, tendo a doutrina e jurisprudência começando a ligar ao princípio do contraditório ideias de participação efetiva das partes no desenvolvimento do litígio e de influência na decisão, passando o processo visto como um sistema, dinâmico, de comunicações entre as partes e o Tribunal;
2- Cabe ao juiz respeitar e fazer observar o princípio do contraditório ao longo de todo o processo, não lhe sendo lícito conhecer de questões sem dar a oportunidade às partes de, previamente, sobre elas se pronunciarem;
3- Com o aditamento do nº3, do art.3º, do CPC, e a proibição de decisões surpresa, pretendeu-se uma maior eficácia do sistema, colocando, com maior ênfase e utilidade prática, a contraditoriedade ao serviço da boa administração da justiça, reforçando-se, assim, a colaboração e o contributo das partes com vista à melhor satisfação dos seus próprios interesses e à justa composição dos litígios;
4- Contudo, o dever de audição prévia só existe quando estiverem em causa factos ou questões de direito suscetíveis de virem a integrar a base da decisão;».

A falta de cumprimento de contraditório das partes, em matéria em que o mesmo seja exigível por poder interferir com a decisão da causa, corresponde a uma nulidade processual, dependente de arguição da parte interessada, nos termos dos arts.195º a 197º, 199º e 200º/3 do CPC.
Este é o sentido adotado maioritariamente, anotando-se nesse sentido também o referido acórdão da Relação de Guimarães de 19.04.2018, supra citado, que concluiu também: «5- A inobservância do contraditório constitui uma omissão grave, representando uma nulidade processual sempre que tal omissão seja suscetível de influir no exame ou na decisão da causa, sendo nula a decisão (surpresa) quando à parte não foi dada possibilidade de se pronunciar sobre os factos respetivo enquadramento jurídico.».

2.1.2.2. Deveres de fundamentação:
As decisões judiciais devem ser fundamentadas, de acordo com o regime geral do art.154º do CPC e o regime específico do art.607º do CPC.

De facto, de acordo com norma geral do art.154º do CPC, define-se, sob a epígrafe «Dever de fundamentar a decisão», que «1 - As decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas. 2 - A justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade.». Por sua vez, de acordo com a norma especial da sentença prevista no art.607º/3 a 4 do CPC, define-se que, após o relatório e a definição das questões a decidir, «3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final. 4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.».
A violação dos deveres de fundamentação, nomeadamente de facto, gera a nulidade do art.615º/1-b) do CPC (que prescreve que a sentença ou o despacho é nulo quando «Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão.»), se a mesma for arguida pelo interessado, em reclamação se a ação não comportar recurso ordinário ou em recurso se a ação comportar recurso ordinário (arts.615º/2-a), a contrario, e 617º do CPC).
A Doutrina e a Jurisprudência têm entendido, para este efeito, de forma consensual: que esta falta de fundamentação que conduz à nulidade deve ser absoluta e não apenas deficiente ou medíocre[iii], sendo que, quando a insuficiência de fundamentação corresponde à decisão da matéria de facto, esta pode ser suprida nos termos do regime legal expresso do art.662º/1-d) do CPC; que esta falta de fundamentação não se confunde com um erro de julgamento- erro de facto, invocável nos termos do art.640º do CPC ou nos termos do art.663º/2 do CPC, em referência ao art.607º/4 do CPC, ou erro de direito, invocável nos termos do art.639º do CPC, erros esses a apreciar no mérito dos recursos.
Todavia, a violação do dever de fundamentação de facto pode ainda gerar a possibilidade de anulação oficiosa da decisão, por maioria de razão com o disposto no art.662º/1 e 2-c) do CPC (que prevê: «1. A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente  impuserem decisão diversa. 2. A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: (…) c) Anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta»).
Esta anulação deverá ocorrer, assim: se a falta de julgamento de matéria de facto controvertida relevante for absoluta (adere-se ao referido no Ac. RG de 07.06.2023, proferido no processo nº3096/17.2T8VNF-J.G1, relatado por Maria João Matos, que sumaria «II. A possibilidade de alteração oficiosa da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no art. 662.º, n.º 2, do CPC, não pode ser feita de forma tão ampla que pretira a garantia, legal e constitucional, do duplo grau de jurisdição na apreciação, julgamento e decisão da matéria de facto; e, assim, será inaplicável quando tenha ocorrido omissão absoluta de fundamentação de facto.»); se a falta da matéria de facto, ainda que seja objeto de prova plena (passível de aditamento nos termos do art.607º/4-2ª parte do CPC, ex vi do art.663º/2 do CPC), não puder ser atendida por os autos não disporem dos elementos probatórios para esse efeito.

2.1.3. Sobre os limites do recurso quanto às questões novas:
Os recursos de decisões (arts.627º ss do CPC) destinam-se a apreciar apenas as questões apreciadas e decididas pelo Tribunal a quo, face aos pedidos que as partes lhe tenham oportunamente apresentado e às questões que tenham sido debatidas, sem prejuízo da apreciação das questões de conhecimento oficioso, para as quais existam elementos que o permitam.
De facto, conforme refere Abrantes Geraldes, com referência a jurisprudência:
«A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto de, em termos gerais, apenas incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. (…)
(…) A diversidade de graus de jurisdição determina que, em regra, os Tribunais Superiores apenas devem ser confrontados com questões que as partes discutiram nos momentos próprios. (…)
A assunção desta regra encontra na jurisprudência numerosos exemplos:
a) As questões novas não podem ser apreciadas no recurso, quer em homenagem ao princípio da preclusão, quer por desvirtuarem a finalidade dos recursos, pois estes destinam-se a reapreciar questões e não a decidir questões novas, por tal apreciação equivaler a suprimir um ou mais órgãos de jurisdição;
b) Os recursos destinam-se à apreciação de questões já antes levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram antes submetidas ao contraditório e decididas pelo tribunal recorrido, a menos que se trate de questões de conhecimento oficioso;»[iv].

2.2. Apreciação das questões na situação em análise:
2.2.1. Em relação à 1ª decisão- de indeferimento do requerimento de pagamento prestacional (conclusões A, Y a GG):
A primeira decisão recorrida incidiu sobre o requerimento do insolvente de pagamento prestacional da dívida, apresentado a 24.11.2022 e transcrito em I-14 supra (no qual o insolvente pedira ao Tribunal a quo a autorização para pagar a dívida global em 42 prestações, correspondentes a 3 anos e 6 meses), decisão na qual o Tribunal a quo considerou que esta possibilidade legal não existe na lei vigente.
O recorrente, neste recurso, contestou este indeferimento, defendendo a admissibilidade da prorrogação do período de cessão ao abrigo do art.242º-A do CIRE e pedindo a concessão da mesma até ao período máximo previsto no art.242º-A do CIRE para entregar o rendimento disponível em falta (afirmando que apenas não requereu esta prorrogação antes do relatório de outubro de 2022, por só neste ter tido conhecimento que as vertentes de ajudas e gratificações de balanço no valor mensal de € 650, 00 também integravam o seu rendimento disponível; requerendo que lhe fosse concedida a prorrogação do período de cessão).
Impõe-se apreciar se pode ser conhecida ou atendida esta pretensão do recurso.
Examinando a questão suscitada no recurso, em relação à decisão recorrida, verifica-se que o recorrente: não contestou a decisão recorrida por entender que o regime legal aplicável permite o pagamento prestacional estrito da dívida vencida no período compreendido entre outubro de 2018 e abril de 2022, nos termos do art.639º/2 do CPC; pretendeu que lhe fosse admitido neste recurso prorrogar o período de cessão até ao máximo previsto no atual art.242º-A do CIRE, aditado e entrado em vigor de acordo com a nova lei referida em III-1.1. supra, para que nesse período pagasse a dívida vencida até abril de 2022 (com fundamentos de inimputabilidade do conhecimento dos valores vencidos no 4º ano de cessão).
Ora, esta questão suscitada pelo recorrente neste recurso constitui uma questão nova não suscitada na 1ª instância e que tivesse sido decidida.
De facto, o requerimento decidido na 1ª instância correspondeu apenas a um requerimento de pagamento prestacional de uma dívida vencida até abril de 2022 em 3 anos e 6 meses.
Por sua vez, a possibilidade de prorrogação do período de cessão para depois dos 3 anos previstos na nova lei e por um período máximo de 3 anos, nos termos e com os requisitos previstos no art.242º-A do CIRE, no regime aprovado pela nova Lei nº9/2022, de 11.01., corresponde a um quadro legal distinto da possibilidade de pagamento prestacional de uma dívida vencida, uma vez que a prorrogação do período de cessão obriga o devedor/insolvente a manter o dever de entrega do rendimento disponível que se vencer no período prorrogado e a cumprir as obrigações previstas e prescritas no art.239º/3 e 4 do CIRE.
Ora, este pedido não foi formulado nem decidido na 1ª instância, razão pela qual o pedido aqui formulado nesta Relação corresponde a uma questão nova (sendo que, de qualquer forma, o pedido novo apresentado pelo recorrente no recurso, apesar deste invocar o art.242º-A do CIRE, também não pediu substantivamente o decretamento dos seus efeitos jurídicos, em referência ao art.239º/3 e 4 do CIRE).
Desta forma, rejeita-se a apreciação neste recurso da pretensão de prorrogação do período de cessão, nos termos e para os efeitos do art.242º A do CIRE.

2.2.2. Em relação à 2ª decisão- de recusa de concessão da exoneração do passivo restante:
A decisão recorrida, após indeferir o pagamento prestacional da dívida vencida até abril de 2022, proferiu imediatamente decisão de recusa da exoneração do passivo restante, nos termos transcritos em I-16 supra, decisão que ocorre após os atos processuais relatados em I supra, sobretudo de I-11 a 15 supra, que se consideram assentes (art.371º do CC) e para os quais se remete.
2.2.1. Arguições de nulidade processual e de nulidades de decisão:
O recorrente, perante a decisão referida, arguiu nulidades da mesma:
a) Nulidade nos termos do art.615º/1-d) do CPC, por o Tribunal a quo: não ter notificado o devedor e os credores para emitirem o parecer do nº1 do art.244º do CPC, entendendo que essa notificação deveria ser feita; não ter dado oportunidade ao devedor para pagar a integralidade da dívida depois do indeferimento do pagamento prestacional, oportunidade que entende que lhe deveria ser concedida; não ter nenhum credor ou o fiduciário requerido a cessação antecipada ou a recusa da exoneração (recusa que considera não poder ser oficiosa, nos termos do art.243º, ex vi do nº2 do art.244º do CIRE), razão pela qual o Tribunal a quo conheceu questão que não podia e nem devia ter conhecido, sendo que, não estando indicados e verificados os pressupostos da al. a) do nº1 do art.243º do CIRE, ex vi do art.244º/2 do CIRE, deveria ser-lhe concedida a exoneração do passivo restante; não ter o insolvente/recorrente expectativa que fosse já proferida decisão, sobretudo no sentido da recusa, havendo, assim, violação do princípio do contraditório dos arts.3º CPC e 244º/1 CIRE (conclusões H a T, II e JJ, HH, RR). 
b) Nulidade nos termos do art.615º/1-b) do CPC, por o Tribunal a quo não ter apresentado qualquer fundamentação de facto ou de direito para preencher os pressupostos do art.243º/1-a), ex vi do art.244º/2 do CIRE (que, no seu entender, exigem a violação de uma das obrigações previstas no art.239º/4 do CIRE, que esta violação tenha ocorrido com dolo ou negligência, que exista um nexo de causalidade entre a violação e a existência de prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência, no seu entender inexistentes) (conclusões U a X, KK a QQ).
Importa apreciar as arguições, por ordem lógica, face aos atos processuais referidos em I-1 supra e ao regime legal aplicável referido em III- 2- 2.1.1. e 2.1.2. supra.
Por um lado, verifica-se que o Tribunal a quo proferiu a decisão de exoneração do passivo restante, transcrita em I-16 supra, imediatamente após indeferir o pagamento prestacional pedido em I-14 supra: sem ouvir sobre a decisão final de concessão ou não concessão da exoneração, nos termos e para os efeitos do art.244º/1 do CIRE, quer o fiduciário (que não pedira nem se pronunciara sobre a recusa de exoneração no seu último relatório de I-11 supra, nem foi ouvido sobre a decisão final nos atos subsequentes referidos de I-12 a 1-14), quer os credores (em relação aos quais não está comprovada notificação do relatório de I-11 supra e que apenas foram ouvidos sobre o requerimento de pagamento prestacional de I-14 em I-15, sem que ao mesmo se tenham oposto); sem se poder reconhecer que ouviu o devedor insolvente satisfatoriamente para os efeitos do art.244º/1 do CIRE, face à equivocidade dos atos processuais ocorridos desde I-13 supra e seguintes (é normal que o insolvente pudesse esperar, mediante o indeferimento possível do pagamento prestacional, a possibilidade de realizar o pagamento integral e de se pronunciar sobre a concessão ou não concessão da exoneração do passivo restante nos termos do art.244º/1 do CIRE, tendo em conta: que o despacho de 09.11.2022 concedeu ao devedor a possibilidade de pagar a dívida sem indicação do prazo e ordenou a conclusão posterior do processo para o cumprimento do art.244º/1 do CIRE, sendo que esta norma contempla não apenas a decisão mas o cumprimento de contraditório prévio; que o insolvente apresentou requerimento de pagamento em prestações, sem que ao mesmo se tivesse oposto o fiduciário e os credores, que também não foram ouvidos sobre a decisão final).
Desta forma, foi omitido o cumprimento do contraditório do nº1 do art.244º do CIRE, o que gera a anulação de todo o processado posterior, nos referidos termos do art.195º do CPC.
Após esta anulação, o Tribunal a quo deve:
a) Conceder ao insolvente o prazo de 10 dias (face ao indeferimento do pagamento prestacional da decisão recorrida, nesta parte não alterada) para proceder ao pagamento integral da dívida, autorizado no despacho de 09.11.2022.
b) Cumprir, após o decurso do prazo de a) supra, o contraditório em falta em relação ao fiduciário, aos credores e ao devedor, sobre a concessão ou recusa de concessão da exoneração do passivo restante (art.244º/1 do CIRE).
c) Proferir, após decisão, com discriminação de factos objetivos e subjetivos provados (ou não provados), com fundamentação da mesma, nos termos do art.607º/4 e 5 do CPC, com referência à matéria factual relevante para integrar as previsões do art.243º/1 do CIRE, ex vi do art.244º/1 do CIRE.
Face a esta anulação, com as consequências ordenadas, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas.

IV. Decisão:

Pelo exposto, as Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam:

1. Rejeitar a apreciação de prorrogação do período de cessão, em relação à 1ª decisão de 16.12.2022, transcrita em I-16 supra, por se tratar de questão nova.
2. Anular a 2ª decisão 16.12.2022, transcrita em I-16 supra, devendo o Tribunal a quo: conceder ao devedor a possibilidade de pagar a integralidade da dívida vencida no prazo de 10 dias; decorrido tal prazo, ouvir expressamente o fiduciário, o devedor e os credores sobre a concessão ou não concessão da exoneração do passivo restante, nos termos do art.244º/1 do CIRE; por fim, proferir decisão final, com discriminação de factos objetivos e subjetivos provados (ou não provados) e motivação, seguida da apreciação jurídica pertinente.
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Taxa de Justiça pelo insolvente por não ter havido vencimento e ter obtido proveito (art.527º do CPC), com dispensa de encargos e custas de parte.
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Guimarães, 28.09.2023
Elaborado, revisto e assinado eletronicamente pelas Juízes Relatora, 1ª Adjunta e 2ª Adjunta

Alexandra Viana Lopes
Rosália Cunha
Lígia Venade



[i] Rui Pinto, in Código de Processo Civil Anotado, Almedina, volume I, 2018, nota 3-I ao art.3º, pág. 39.
[ii] Ac. RG de 19.04.2018, proferido no processo nº533/04.0TMBRG-K.G1, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/-/9C9B68362E36005280258286003C9906
[iii] Vide, v.g.:
- Rui Pinto e jurisprudência por este citada in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II- Julho de 2018, Almedina, notas 2 e 5-II ao art.615º do CPC, págs.178 e 179.
- José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 4ª edição, Almedina, nota 3 ao art.615º, pág.736.
- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23.03.2017, proferido no processo nº7095/10.7TBMTS.P1.S1, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/-/C3E13ED356928302802580ED0053E3BA.
[iv] António Santos Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 5ª edição, 2018, nota 5 ao art.635º, págs.119 e 120.