ABUSO DE DIREITO
Sumário

I - Uma sociedade devedora executada não pode alegar desconhecimento de dívida contratual, pelo que não se pode concluir, sem mais, pelo abuso de direito de a credora executar juros de mora desde o incumprimento.
II - A herdeira do avalista falecido antes do incumprimento de um contrato de abertura de crédito em conta-corrente, cujo saldo final seria garantido por uma livrança em branco, não é responsável pela dívida de capital (não se alegando a existência de um saldo provisório negativo no momento da morte), nem, por isso, pelos juros vencidos desde o incumprimento.
III - Fosse como fosse, não estando provado que a credora exequente deu conhecimento à herdeira da existência da livrança e da constituição da dívida de capital pelo incumprimento, a herdeira não responderia pelos juros de mora no pagamento da dívida, pelo que, em vez do abuso de direito na execução dos juros, deveria falar-se antes na inexistência do direito aos mesmos.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo identificados:
             
A 30/12/2019, a C-SA, entretanto substituída pela H-SA, requereu uma execução contra R - Unipessoal, Lda, e M, para deles receber 233.396,19€ + 5.473,62€ de juros de mora vencidos desde 30/05/2019 a 30/12/2019.
Alegou para o efeito que celebrou, a 12/09/2007, com a sociedade executada, na qualidade de devedora, e com RR, na qualidade de avalista, um contrato (que juntou) de abertura de crédito em conta-corrente (de utilização simples) ao qual foi atribuído o número PT 20092; o avalista faleceu em 14/02/2013, tendo deixado como única herdeira a sua irmã, a executada, cf. habilitação de herdeiros que junta; verificando-se o incumprimento do contrato a C interpelou os executados, por cartas datadas de 30/05/2019, conforme doc. 3. A livrança, em branco (de que juntou cópia, dizendo que o original seria enviado para o tribunal, o que veio a fazer com a contestação referida abaixo) foi preenchida com o vencimento em 30/05/2019 e o valor de 233.396,19€. Desde aquela data até do requerimento são devidos os juros pedidos, calculados à taxa legal de 4% nos temos do artigo 4 do DL 262/83, de 16/06 e da Portaria 291/2003.
As executadas deduziram embargos, excepcionando, na parte que ainda interessa, a prescrição da obrigação cambiária (e, em consequência, a excepção da ineptidão do requerimento executivo por falta/insuficiência da causa de pedir em relação à obrigação subjacente), das prestações de capital e dos juros e o preenchimento abusivo da livrança.
A exequente contestou impugnando a matéria das excepções, incluindo a dos juros; e excepcionou, dizendo que as executadas foram interpeladas para pagamento da livrança dada à execução antes de ter sido requerida a execução; as partes tentaram alcançar um acordo de pagamento, tendo decorrido várias negociações, desde a data de incumprimento até à data de entrada da acção executiva, razão pela qual a resolução do contrato [sic] e, consequentemente, o recurso à acção executiva foram sendo protelados, a fim de dar possibilidade às executadas de resolver a operação em incumprimento; encontrando-se o contrato em incumprimento, e não tendo as executadas liquidado os valores indicados, o capital deu-se como vencido e automaticamente exigível com a resolução do contrato [sic], pelo que ficou em dívida o montante total disponibilizado, 150.000€, acrescido dos respectivos juros de mora calculados desde 16/08/2013 até 30/05/2019: 78.224,67€; e demais despesas relacionadas com os impostos e comissões.
As executadas impugnaram os documentos juntos pela exequente com a contestação.
Depois de realizada a audiência final foi proferida sentença, julgando parcialmente procedente a oposição e em consequência absolveu as executadas do pedido exequendo no que respeita ao valor de 78.224,67€, peticionado a título de juros vencidos desde a data do incumprimento (16/08/2013) até à data do vencimento da livrança (30/05/2019).
A exequente recorre desta sentença - para que seja revogada na parte em que absolveu as executadas do pagamento dos 78.224,67€ e substituída por outra em que seja determinada a exigibilidade dos juros vencidos desde os 5 anos anteriores à data de vencimento da livrança bem como dos vencidos e vincendos desde a data de vencimento da livrança até integral pagamento -, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, na parte útil:
i) O ordenamento jurídico já contempla um regime especial de protecção aos devedores no art. 310/-d do CC, ao prever a prescrição de juros vencidos há mais de 5 anos, que deveria ter sido aplicado;
j) Precisamente com o intuito de acautelar os devedores perante situações de inércia ou delonga por parte do credor na cobrança judicial de dívidas, evitando dessa forma um acumular de juros que aumentem a dívida de forma substancial;
k) a m) A exequente admite que poderia haver lugar a ser declarada a prescrição dos juros vencidos até aos cinco anos anteriores ao vencimento da livrança que serve de título executivo nos autos principais; […], isto é que os juros vencidos até 19/05/2014 e incluídos no montante da livrança estariam prescritos;
n) Devendo por isso ser judicialmente declarada a exigibilidade dos juros vencidos até aos cinco anos anteriores aos da data de vencimento da livrança;
o) Bem como todos os juros vencidos e vincendos desde a data de vencimento da livrança e até integral e efectivo pagamento da dívida exequenda;
p) Dos factos provados não se pode concluir como o fez o tribunal a quo no sentido de considerar: “(…) o exercício do direito de cobrança dos juros vencidos, contados desde a data do incumprimento […] manifestamente abusivo. (…)”.
q) Porque entra em contradição com o que o próprio tribunal a quo considerou “(…) De facto, como é comumente sabido, as negociações com entidades bancárias em caso de incumprimento são, em regra, morosas, tendo em consideração, não só os valores envolvidos, como também a complexidade dos negócios em causa e a circunstância de os mesmos envolverem diversas entidades. Ademais, as próprias entidades bancárias têm interesse na resolução extrajudicial do litígio, de forma a evitar o registo de perdas ou de imparidades. Todos estes aspectos podem determinar – e, em regra, determinam – um atraso no preenchimento da livrança, não sendo, de todo, imputáveis ao portador da mesma. (…).”
r) Devendo por isso haver lugar à aplicação do disposto no artigo 310/-d do CC;
s) Ocorreu por isso uma incorrecta aplicação do regime do abuso de direito
As executadas não contra-alegaram.
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Questões que importa decidir: se se verifica, ou não, o abuso de direito de pedir juros de mora às executadas desde a data pressuposta como de incumprimento do contrato.
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Foram dados como provados os seguintes factos:
1\ A exequente dedica-se à actividade bancária.
2\ No exercício da sua actividade, a exequente celebrou, a 12/09/2007, com a sociedade executada na qualidade de mutuária e com RR na qualidade de avalista, um contrato de abertura de crédito em conta-corrente (de utilização simples) ao qual foi atribuído o número PT 20092, com a “finalidade” de “apoiar a cliente suas necessidades temporárias de tesouraria”, “até ao montante de 150.000€”, pelo “prazo de 6 meses (…) automaticamente prorrogado por períodos iguais e sucessivos (…)”, podendo “o cliente (…) utilizar a conta corrente” nos termos e condições constantes da cláusula 7.ª, sendo o “pagamento dos juros e do capital” efectuado da seguinte forma:
10. PAGAMENTO DOS JUROS E DO CAPITAL:
10.1- Os juros serão calculados dia a dia, sobre o saldo do capital em dívida, e serão liquidados e pagos postecipada e sucessivamente no termo de cada período de contagem de juros.
10.2- Entende-se, para efeitos deste contrato, por período de contagem de juros o trimestre, iniciando-se o primeiro período na data da perfeição do contrato.
10.3- O capital será reembolsado no termo do prazo do contrato ou, em caso de prorrogação, no termo do último prazo prorrogado.
10.4- Caso a data da perfeição do contrato ocorra num dos últimos cinco dias do mês que estiver em curso, as prestações de juros e de capital só serão pagas no terceiro dia útil do mês seguinte relativamente à data em que as mesmas seriam exigíveis de acordo com os números anteriores, vencendo-se juros até à data do pagamento.
3. Resulta, ainda, do referido contrato o seguinte:
20. GARANTIAS:
20.1 - AVAL: Todas e quaisquer quantias que sejam ou venham a ser devidas à C pela cliente no âmbito do presente contrato, quer a título de capital, quer de juros, remuneratórios ou moratórios, comissões, despesas ou quaisquer outros encargos ficam garantidas pelo aval prestado na livrança prevista no n.º 23, caso a C decida proceder ao seu preenchimento, de acordo com o pacto de preenchimento ali convencionado.
[…]
23. LIVRANÇA EM BRANCO:
23.1- Para titular e assegurar o pagamento de todas as responsabilidades decorrentes do empréstimo, a cliente e o avalista atrás identificados para o efeito entregam à C, neste acto, uma livrança com montante e vencimento em branco, devidamente datada, subscrita pela primeira e avalizada pelo segundo e autorizam desde já a C a preencher a sobredita livrança, quando tal se mostre necessário, a juízo da própria C, tendo em conta, nomeadamente, o seguinte:
a) A data de vencimento será fixada pela C quando, em caso de incumprimento pela devedora das obrigações assumidas, a C decida preencher a livrança;
b) A importância da livrança corresponderá ao total das responsabilidades decorrentes do presente empréstimo, nomeadamente em capital, juros remuneratórios e moratórios, comissões, despesas e encargos fiscais, incluindo os da própria livrança;
c) A C poderá inserir cláusula "sem protesto" e definir o local de pagamento.
23.2- A livrança não constitui novação do crédito, pelo que se mantêm as condições do empréstimo, incluindo as garantias.
23.3 - EM ANEXO: LIVRANÇA EM BRANCO
4. Em cumprimento das cláusulas transcritas/copiadas em 3 e para efeitos de garantia de todas as responsabilidades emergentes do empréstimo foi entregue pela parte devedora à C uma livrança em branco com o número 50422, posteriormente preenchida, quanto ao montante e vencimento, com, respectivamente, o valor de 233.396,19€ e a data de 30/05/2019.
5. RR faleceu em 14/02/2013.
6. No dia 04/03/2013 foi outorgada a escritura pública de habilitação de herdeiros, cuja cópia se mostra junta com o requerimento executivo e aqui se dá por integralmente reproduzida, da qual resulta que, a RR, “sucedeu como única herdeira a sua irmã consanguínea, [a executada].
7. A exequente (por si e/ou pelos respectivos mandatários) elaborou as seguintes cartas:
7.1 Sr. RR - Sociedade Unipessoal, Lda.
Rua X
Registada c/AR
N/Ref: NI. 71294 — 30/05/2019
ASSUNTO: Operação n.º PT 20092
Preenchimento de livrança caução
Como é do conhecimento de V.exas., encontra-se vencida, e não paga, a responsabilidade emergente do contrato de mútuo celebrado em 12/09/2007, de que essa sociedade é mutuária.
De acordo com o estabelecido no contrato de mútuo com aval datado de 12/09/2007, que se encontra em poder desta C por lhe ter sido entregue aquando da contratação da operação acima referida, havendo incumprimento de qualquer das obrigações garantidas, são consideradas vencidas todas as restantes, sendo exigível o pagamento da totalidade do nosso crédito.
Desta forma, e nos termos contratados, consideramos vencida nesta data a totalidade do nosso crédito e fixámos para o dia 30/05/2019 o vencimento da livrança em branco, subscrita pela [sociedade executada] e avalizada por RR, que preenchemos pelo valor de 233.396,19€, correspondente ao valor total do crédito na data de vencimento fixado, a que acrescem juros de mora, e legais encargos, até integral pagamento.
Solicitamos que procedam à sua liquidação no prazo de 5 dias, a contar da recepção da presente carta, sob pena de adequado procedimento judicial para cobrança do crédito.
[…]
Mais informamos que demos conhecimento aos demais intervenientes no título do conteúdo desta carta.
7.2 Senhores HERDEIROS DE RR
Rua X
Registada c/AR
N/Ref: NI. 71390 — 30/05/2019
Assunto:  RR Lda - Operação n° PT 20092
Preenchimento de livrança caução
Exmos. Senhores,
Encontra-se vencida e não paga, a responsabilidade emergente do contrato de mútuo celebrado, em 12/09/2007, com a empresa RR, Lda.
De acordo com o estabelecido no contrato datado de 12/09/2007, que se encontra em poder desta C devidamente assinado por V. Exa, havendo incumprimento de qualquer das obrigações garantidas, são consideradas vencidas todas as restantes, sendo exigível o pagamento da totalidade do nosso crédito.
Desta forma, e nos termos contratados, consideramos vencida nesta data a totalidade do nosso crédito e fixámos para o dia 30/05/2019 o vencimento da livrança em branco, subscrita pela RR, Lda e avalizada por RR, que preenchemos pelo valor de 233.396,19€ correspondente ao valor total do crédito na data de vencimento fixado, a que acrescem juros de mora, e legais acréscimos, até integral pagamento.
Solicitamos que proceda à sua liquidação no prazo de 5 dias, a contar da recepção da presente carta, sob pena de adequado procedimento judicial para cobrança do crédito.
Mais informamos que demos conhecimento aos demais intervenientes no título do conteúdo desta carta.
7.3 E & Associados - Sociedade de advogados
NIPC X Registada na O.A./C.D.L. sob o n° Y
Exma. Gerência
RR Imobiliária Lda.
Rua X
Lisboa, 12 de Setembro de 2019
Carta registada com A/R
Referência: 2066 - C
PT 20092 e PT 50991
Ex.mo Senhor,
Os meus cumprimentos.
Tendo presente a proposta de V.Exa. apresentada por carta recebida em 09 de Julho respeitante aos créditos acima referenciados, venho informar que a mesma não mereceu a aprovação da minha constituinte C, dada a insuficiência do valor proposto perante os montantes em divida.
Sem prejuízo do que antecede reitero a permanente disponibilidade da minha constituinte para analisar eventual nova proposta que permita solução extrajudicial integral dos créditos, constituindo condição prévia para o início da sua análise a entrega mínima de 140.000€, por conta dos encargos.
Assim, sem que tal signifique indício de negociação ou de acordo, informo que aguardarei até ao próximo dia 18 de Setembro pela apresentação de proposta nas referidas condições e na pressuposição desse interesse informo que tal entrega deverá ser por transferência para o que indico o IBAN: PTX, apondo-lhe a identificação da mutuária e remetendo-me o comprovativo via email.
Por último, esclareço que decorrido o mencionado prazo, perante a ausência de resposta nos termos atrás referidos, sem qualquer outro aviso, darei por encerrado o presente assunto, e procederei à imediata instauração do procedimento judicial para cobrança dos créditos.
Colocando-me ao inteiro dispor de V. Exas para qualquer esclarecimento adicional, renovo os melhores cumprimentos, e subscrevo-me,
Os factos não provados são os seguintes:
1. As partes tentaram alcançar um acordo de pagamento, tendo decorrido várias negociações, desde a data de incumprimento até à data de entrada da acção executiva, razão pela qual a resolução do contrato e, consequentemente, o recurso à acção executiva foi sendo protelado, a fim de dar possibilidade às executadas de resolver a operação em incumprimento (cf. artigo 19 da contestação).
2. A C, por si e/ou por intermédio dos respectivos mandatários, remeteram as cartas copiadas sob o ponto 7 dos factos provados, as quais foram recepcionadas pelos respectivos destinatários.
*
A fundamentação da sentença recorrida foi a seguinte, na parte que importa (em síntese e com simplificações):
[…]
No caso dos autos, […] não resulta […] alegada a data do respectivo incumprimento.
A data do incumprimento do contrato cujas obrigações se mostravam garantidas pela livrança dada à execução retira-se, apenas, da alegação inserta no artigo 25 da contestação na parte respeitante à/ao contagem/cálculo dos juros vencidos até à data do vencimento da livrança: “juros calculados desde 16/08/2013 até 30/05/2019: 78.224,67€.”
Infere-se, assim, que a exequente situa o incumprimento do contrato em 16/08/2013.
[…]
[Quanto à prescrição dos juros:]
[…]
No caso dos autos, a C intentou a execução de que dependem estes autos em 30/12/2019, com base numa livrança emitida em 12/09/2007 e com data de vencimento de 30/05/2019, situando o incumprimento da obrigação causal em 16/08/2013, tendo calculado juros desde 16/08/2013 até 30/05/2019, no valor de 78.224,67€, valor, este, englobado na quantia inscrita na livrança dada à execução.
Não resultando dos autos que a falta de realização da citação das executadas nos cinco dias subsequentes à entrada em juízo do requerimento executivo (ocorridas em 28/08/2020, a da sociedade executada, e 10/05/2021, a da habilitada/opoente) seja imputável à exequente, deverá esta beneficiar da interrupção operada em 04/01/2020, por força do disposto no artigo 323/22, do Código Civil (cf. ac. do TRE de 11/04/2019, relatado por Cristina Dá Mesquita).
E, assim sendo, todos os juros vencidos até aos cinco anos imediatamente anteriores a 04/01/2015 estão prescritos – artigo 310/-d do CC —, continuando a vencer-se juros, com prazo ex novo, a partir daquela data, em conformidade com o disposto no artigo 326.º, nº1, do Código Civil.
Esta solução fica, contudo, prejudicada pela procedência da excepção do abuso de direito, a conhecer infra.
[…]
Não estando em causa, como vimos, a existência do direito ao preenchimento livre da livrança no que à data do respectivo vencimento concerne, importa apreciar se o exercício desse direito, por parte do portador, deve considerar-se abusivo ou, dito de outro modo, se, de acordo com o princípio da boa-fé, seria de exigir ao portador o preenchimento da livrança noutros termos, mais concretamente no que respeita ao valor nela inscrito.
Quanto à matéria do preenchimento abusivo da livrança (abuso do direito), refira-se que o STJ tem decidido de forma constante que o simples decurso do tempo, sem que tenha sido exigido o pagamento da dívida por parte do credor, não é susceptível de, sem mais, criar no devedor a confiança de que não lhe vai mais ser exigido o cumprimento da obrigação. Veja-se, a propósito, o ac. do STJ de 19/10/2017, proc. 1468/11.5TBALQ-B.L1.S1 e o ac. do TRG de 20/09/2020, proc. 7754/17.3T8VNF-B.G1.
Mas, não é disso que aqui se trata.
Com efeito, alguns dos argumentos circunstanciais que vêm sustentando estas posições prendem-se, nomeadamente, com o facto de o subscritor e/ou avalista terem tido intervenção no negócio subjacente, podendo, por isso, ter conhecimento do estado do mesmo, especialmente a situação de incumprimento, podendo acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. Tal circunstância, permitiria, ainda, terem cumprido voluntariamente a obrigação face ao incumprimento, evitando a execução da livrança. Acrescenta, ainda, a mesma jurisprudência, que o subscritor e/ou avalista tinham conhecimento dos riscos assumidos, pelo que o mero decurso do tempo e a inércia do portador não podem servir de fundamento para que se eximam à sua responsabilidade.
Refere-se, ainda, que fazer depender o vencimento da livrança do incumprimento da obrigação subjacente, para além de não resultar do pacto de preenchimento, beneficiaria os devedores inadimplentes e impossibilitaria a tentativa de renegociação da dívida que ocorre, em regra, na prática bancária. De facto, como é comumente sabido, as negociações com entidades bancárias em caso de incumprimento são, em regra, morosas, tendo em consideração, não só os valores envolvidos, como também a complexidade dos negócios em causa e a circunstância de os mesmos envolverem diversas entidades. Ademais, as próprias entidades bancárias têm interesse na resolução extrajudicial do litígio, de forma a evitar o registo de perdas ou de imparidades. Todos estes aspectos podem determinar – e, em regra, determinam – um atraso no preenchimento da livrança, não sendo, de todo, imputáveis ao portador da mesma.
Importa, porém, apreciar se, atentos os contornos do caso concreto, o portador exerceu de forma abusiva o seu direito ao livre preenchimento da livrança, não no sentido da data em que entendeu preenchê-la – questão que já ficou resolvida –, mas, antes, no sentido de fazer incluir no valor inscrito na mesma, para além do capital em dívida, os juros de mora vencidos após o incumprimento até à data de vencimento da livrança, por si livremente, aí, aposta.
Correndo o risco de nos repetirmos, temos como assente o seguinte: No exercício da sua actividade, a exequente celebrou, a 12/09/2007, com a sociedade executada na qualidade de mutuária e com RR na qualidade de avalista, o contrato de abertura de crédito em conta-corrente (de utilização simples) pelo prazo de 6 meses, automaticamente prorrogado por períodos iguais e sucessivos. O referido RR faleceu em 14/02/2013. A exequente situou o incumprimento do contrato em 16/08/2013. O que é que estes factos nos dizem?
A sociedade unipessoal por quotas tem, além do mais, as seguintes características: (i) tem um único sócio que pode ser uma pessoa singular ou colectiva; (ii) o sócio é titular da totalidade do capital social; (iii) a responsabilidade do sócio encontra-se limitada ao montante do capital social.
Ou seja, o contrato supra-referido (subjacente à emissão e preenchimento da livrança e que constitui a sua relação causal) foi subscrito por uma só pessoa - RR –, quer na qualidade de legal representante da sociedade mutuária/subscritora (sociedade unipessoal) quer na qualidade de avalista (atenta a responsabilidade limitada da sociedade).
Considerando que o contrato foi celebrado em 2007 (pelo prazo de 6 meses, automaticamente prorrogado por períodos iguais e sucessivos) e atenta a data do invocado incumprimento (16/08/2013) conclui-se que o mesmo foi renovado por diversas vezes (durante cerca de 6 anos), do que se intui que o mesmo vinha sendo pontualmente cumprido.
O único sócio da sociedade mutuária e avalista, RR, faleceu em 14/02/2013, sendo que o exequente situa o incumprimento em 16/08/2013, do que se intui que o incumprimento se deu no termo da última renovação (atendendo às condições de pagamento constantes do contrato – cf. cláusulas 10ª e 13.ª) e após o falecimento daquele.
Nestas circunstâncias, não se pode afirmar que, no caso dos autos, a sociedade subscritora e/ou avalista, porque tiveram intervenção no negócio subjacente, podiam, por isso, ter conhecimento do estado do mesmo, especialmente da situação de incumprimento, podendo acompanhar o desenrolar dos acontecimentos ou que podiam ter cumprido voluntariamente a obrigação face ao incumprimento, evitando a execução da livrança.
E porquê?
Pela simples razão de o único sócio da sociedade subscritora e avalista serem uma e só pessoa que, à data do incumprimento, já havia falecido.
Pela mesma razão, não colhe o argumento de que o subscritor e/ou avalista tinham conhecimento dos riscos assumidos, pelo que o mero decurso do tempo e a inércia do portador não podem servir de fundamento para que se eximam à sua responsabilidade.
Nem se pode afirmar que o preenchimento da livrança imediatamente após o incumprimento, ou pouco tempo depois, impossibilitaria a tentativa de renegociação da dívida que ocorre, em regra, na prática bancária, com o argumento de que as negociações com entidades bancárias em caso de incumprimento são, em regra, morosas, sendo que as próprias entidades bancárias têm interesse na resolução extrajudicial do litígio, de forma a evitar o registo de perdas ou de imparidades.
Isto porque, não resulta dos autos (nenhuma prova foi feita nesse sentido) qualquer comprovativo de comunicação/contacto ou tentativa de comunicação/contacto por parte do C junto da sociedade mutuária e/ou do avalista, na sequência do incumprimento, o que se estranha atento o aparente normal desenvolvimento, por cerca de 6 anos, da relação estabelecida entre as partes contratantes. Mais que não fosse para perceber o que tinha acontecido e/ou motivado tal incumprimento, com vista à resolução extrajudicial do litígio.
Os únicos comprovativos de tentativa de contacto são as cartas elaboradas pelo exequente e respectivos mandatários – cujo envio e consequente recepção não ficaram demonstrados –, que se mostram transcritas/copiadas no facto 7, dirigidas à sociedade subscritora e, genericamente, aos “herdeiros de RR”, todas elas datadas de 2019, ou seja, mais de 6 anos contados da data do incumprimento, sendo certo que nenhuma delas constitui tentativa de resolução extrajudicial, mas tão só uma interpelação ao pagamento, no prazo de 5 dias, de uma quantia, cuja composição não vem identificada, desconhecendo-se, em concreto, a que diz respeito (a capital? a juros? a penalizações? a comissões? etc.)
As referidas cartas, datadas de 30/05/2019, limitam-se a comunicar o seguinte:
[a sentença transcreve aqui os §§ essenciais da carta já transcrita em 7.2, por remissão para 7.1 e continua]
As cartas têm exactamente a mesma data que foi aposta na livrança como data de vencimento (30/05/2019) e, embora faça referência a um valor global (233.369,19€), não especifica a composição de tal valor nem concretiza, de forma minimamente inteligível, a origem da dívida, limitando-se a conceder o prazo de 5 dias para a pagar.
Relembre-se que o único sócio da sociedade subscritora da livrança havia falecido em 2013, não resultando dos autos qualquer comunicação à sociedade subscritora (representada, obrigatoriamente, por pessoa que não interveio nas relações extracartular e cambiária) e/ou à herdeira do avalista e único sócio falecido, efectivamente enviada e recebida, da qual constasse o valor da dívida e respectivas composição e origem.
A terceira carta, elaborada pelos mandatários da exequente (cujos envio e recepção também não ficaram demonstrados) data, igualmente, do ano de 2019 (Setembro), estando longe de demonstrar que as alegadas negociações se iniciaram aquando do incumprimento e perduraram até à entrada da execução. Pelo que não se mostra minimamente justificada a demora no preenchimento da livrança e respectiva execução.
Seja como for – já que as referidas cartas não têm qualquer efeito jurídico, na medida em que não ficou demonstrado o respectivo envio e consequente recepção pelos destinatários –, o que daqui se retira é que a C não demonstrou ter tentado qualquer negociação – alegação que, também, não resultou provada – nem qualquer contacto em data anterior à do preenchimento da livrança, quer na pessoa do falecido (tentativa de contacto), quer na pessoa de quem passou a “gerir” a sociedade, quer na pessoa dos herdeiros do único sócio e avalista que havia falecido.
Nesta medida, não obstante ter liberdade, à luz do pacto de preenchimento e da doutrina dos acórdãos supra citados, de preencher a livrança quando bem entendesse – o que o tribunal já decidiu –, a C actuou, manifestamente, em abuso de direito quando, não tendo demonstrado qualquer tentativa de cobrança extrajudicial do valor em dívida durante 6 anos e/ou comunicação dos concretos valores em dívida e respectiva causa, surpreende a sociedade subscritora (não representada por quem, em seu nome, celebrou o contrato de abertura de crédito e subscreveu a livrança) e “os herdeiros” (no caso, única herdeira) do avalista (falecido após o incumprimento e único interveniente na relação cartular e extracartular), com a execução de uma livrança na qual fez constar o valor de 78.224,67€ a título de juros vencidos desde a data do incumprimento (16/08/2013) até à data do vencimento da livrança (30/05/2019), valor, este, superior a 50% do capital devido.
A C bem sabia que nada fez, em prazo razoável, para cobrar a dívida, não tendo realizado qualquer acto de interpelação durante 6 anos, assim como veio a saber, em data que se desconhece, mas anterior ao preenchimento da livrança, que o único interveniente na livrança e no contrato que lhe subjaz (na qualidade de legal representante da sociedade subscritora e de avalista) havia falecido em data anterior à do incumprimento, tanto mais que faz referência numa das referidas cartas aos respectivos “herdeiros” e instruiu a execução com a cópia da escritura pública de habilitação de herdeiros.
No caso dos autos, a não exigência do direito de crédito (bancário) pelo prazo de 6 anos, além de inabitual, mostrou-se inesperada, na medida em que os devedores (o avalista e a sociedade por este representada, únicos intervenientes passivos na relação cambiária e na relação subjacente), estavam naturalmente (por óbito verificado em data anterior ao incumprimento) impedidos de indagar as razões da demora, assim como o estava a herdeira daquele, na medida em que não ficou demonstrado que tivesse conhecimento de tais relações (cambiária e extracartular). Note-se que a herdeira é irmã do falecido (não é cônjuge, por exemplo), não tendo ficado provada qualquer ligação anterior à sociedade do falecido (único sócio).
Isto para dizer que o decurso do tempo – exclusivamente imputado à C – e a demora no exercício do direito de cobrar o seu crédito, com reflexos directos na parte respeitante ao valor dos juros vencidos entre a data do incumprimento e a data do vencimento da livrança – sem que tenha demonstrado anterior comunicação/interpelação dos valores em dívida –, neste caso concreto, beneficiaram, de forma atentatória das mais elementares regras da boa-fé, os interesses daquele, em manifesto e desproporcionado prejuízo dos devedores, representados que estão por terceiros alheios às relações (cambiária e extracartular) que estiveram na origem do referido crédito e que, por isso, desconheciam a existência e vicissitudes de tais relações.
No caso dos autos, não ficou provado qualquer facto e/ou circunstância que justifique a demora da C em preencher a livrança dada à execução, nomeadamente, repita-se, a tentativa de resolução extrajudicial e/ou qualquer diligência no sentido da cobrança do crédito até 2019, tendo-se limitado a deixar “correr o tempo” e  consequentemente acumular juros à taxa contratual, fazendo avolumar uma dívida que, já de si, era elevada.
Tendo a relação bancária decorrido, aparentemente sem sobressaltos, durante cerca de 6 anos, com renovações semestrais do contrato, estranha-se que a C não tenha, desde logo (por referência à data do incumprimento), tentado estabelecer contacto com a sociedade devedora e com o avalista.
Igualmente se estranha que a C, tendo apurado, antes do preenchimento da livrança, que o único sócio da sociedade devedora e avalista tinha falecido há cerca de 6 anos (em data anterior à do incumprimento do contrato), não tenha efectivamente comunicado, sequer, o valor da dívida à sociedade subscritora (necessariamente representada por outra pessoa) e à herdeira do avalista, nem as tenha efectivamente interpelado ao respectivo pagamento. Ainda que se admita que o tentou fazer através das cartas cujo envio não demonstrou, apenas o teria feito no próprio dia em que preencheu a livrança sem, contudo, especificar o valor globalmente indicado e sem concretizar de forma inteligível a origem da dívida.
Ora, “o princípio da boa-fé exprime a relevância que a ordem jurídica confere às considerações éticas e directrizes morais presentes numa sociedade, sendo transversal a todas as áreas do Direito, revela-se essencialmente no âmbito dos contratos.” – cf. ac. do STJ de 04/11/2021, proc. 17431/19.5T8LSB.L1.S1.
O instituto do abuso de direito encontra-se previsto no art. 334 do CC nos seguintes termos: “É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
E o art. 762 do mesmo código estipula, no seu nº 2 que, “No cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé”.
No caso em apreço, em face dos factos e das circunstâncias supra descritas, o exercício do direito de cobrança dos juros vencidos, contados desde a data do incumprimento até à data do vencimento da livrança (livremente aposta pelo exequente), afigura-se-nos manifestamente abusivo.
Com efeito, ocorre uma situação típica de abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante.
Uma das modalidades que dogmaticamente se tem considerado configurar abuso do direito é o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas, que se pode definir como o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício – cf. ac. do TRC, de 09/01/2017, proc. 102/11.8TBALD.C2.
In casu, essa desproporção é, efectivamente, manifesta e objectiva, o que nos conduz à inexigibilidade dos juros vencidos desde a data do incumprimento (16/08/2013) até à data do vencimento da livrança (30/05/2019), no montante de 78.224,67€.
Deverá, contudo, a execução prosseguir para a cobrança coerciva do montante relativo ao capital, acrescido de juros contados a partir da citação, na medida em que o abuso de preenchimento não gera nulidade do título, mas apenas a redução do capital inscrito – cf. ac. STJ de 10/12/2019, proc. 814/17.2T8MAI-A.P1.S2.
Apreciação:
Antes de mais, diga-se que a sentença recorrida tem extensa fundamentação da decisão da matéria de facto e também para justificar a decisão das outras excepções, e tudo isso serve de pano de fundo à fundamentação desta parte em que está em causa o abuso de direito.
Posto isto, lida a fundamentação da sentença vê-se que ela não incorre na contradição que a exequente lhe aponta: a sentença está a referir-se às razões que levam a jurisprudência (que a sentença recorrida referenciou detalhadamente na parte anterior) a afastar a tese da prescrição de 3 anos para os casos em que as livranças não são preenchidas dentro desse prazo a contar do incumprimento da obrigação fundamental e que poderiam também levar ao afastamento da solução do abuso de direito e a explicar porque é que essas razões não se verificam no caso.
E a sentença recorrida está certa: costuma dizer-se que os credores não têm de ser obrigados a preencher a livrança de imediato, quando se verifica o incumprimento, porque podem estar em negociação para solucionar extrajudicialmente o incumprimento e essa negociação pode levar muito tempo, e isso até é vantajoso para os devedores. Ora, no caso, para além de não terem ficado provados os factos alegados a propósito pela exequente, a sentença recorrida ainda explica que não se verificam indícios da alegada negociação. Logo, aquela razão não pode ser aplicada ao caso.
Quanto ao argumento da exequente de que o instituto da prescrição é suficiente “para acautelar os devedores perante situações de inércia ou delonga por parte do credor na cobrança judicial de dívidas” e, por isso não é aplicável o abuso de direito, está errado porque o abuso de direito não tem os mesmos pressupostos que estão na base da prescrição. Este argumento da exequente merece, ele sim, a crítica que Menezes Cordeiro dirige ao ac. do STJ de 03/05/2021, de que “recusa, ad nutun, uma via de solução – a do abuso de direito – que está sempre em aberto” (Livrança em branco, pacto de preenchimento, ROA Abril/2001, ano 61, vol. II, páginas 1051-1052).
Afastadas as objecções da exequente, tem de se ver se é de confirmar a conclusão da existência do abuso de direito.
O abuso de direito é um instituto de aplicação oficiosa – daí que o tribunal recorrido o possa ter aplicado mesmo sem as executadas o terem invocado – mas está dependente de que estejam provados os factos necessários à conclusão da existência do abuso.
Ora, tendo em conta os factos dados como provados, expressa ou implicitamente, não consta nenhum que permita essa conclusão quanto à sociedade executada.
Quanto a esta, a decisão recorrida tem por pressuposto do abuso de direito que essa sociedade não tinha conhecimento da existência das dívidas (cambiária e da subjacente) e do seu incumprimento e, por isso, diz que a exequente lhe devia ter comunicado esses elementos.
Mas o devedor não pode deixar de ter conhecimento das obrigações que contraiu através de contratos celebrados com ele.
 No caso dos autos, não se está perante uma dívida fraccionada em prestações cujo vencimento estivesse dependente de uma notificação (art. 781 do CC - o que aliás a sentença demonstrou nas partes anteriores, ao decidir as excepções de prescrição), nem perante uma resolução do contrato, também dependente da notificação da declaração correspondente (art. 436 do CC) – embora a exequente diga na contestação que se está perante uma resolução do contrato sem ter qualquer base para o efeito.
No caso, o que decorre dos factos provados é que se está perante a exigência do cumprimento da obrigação de restituição do capital emprestado, findo o prazo da última renovação do contrato com o incumprimento dessa obrigação.
Portanto, não havia nada de que a exequente tivesse que dar conhecimento à sociedade executada, podendo executar, sem mais, a livrança que corporizava essa dívida, com juros desde a data do vencimento da obrigação de restituição do capital.
O facto de a sociedade executada ser uma sociedade unipessoal por quotas e de o sócio-gerente que celebrou o contrato de abertura de crédito ter entretanto falecido, não tem influência na questão, porque a sociedade continuou a existir (como aliás o comprova a existência da oposição à execução, apresentada em nome da sociedade por um advogado mandatado para o efeito por um representante legal da mesma [que, já agora, esclareça-se, não é a outra executada], mais de 7 anos depois da morte do anterior) e a nova gerência tem de ter conhecimento das suas obrigações contratuais.
É isso aliás que justifica que se diga, para efeitos de aplicação do artigo 574/3 do CPC - se o réu declarar que não sabe se determinado facto é real, a declaração equivale a confissão quando se trate de facto pessoal ou de que o réu deva ter conhecimento […] – ou do artigo 454/1 do CPC - O depoimento só pode ter por objecto factos pessoais ou de que o depoente deva ter conhecimento – que:
“Constitui facto pessoal ou de que o réu deve ter conhecimento, não só o acto praticado por ele ou com sua intervenção, mas […] ainda o conhecimento de facto ocorrido na sua ausência (sem prejuízo de este, em si mesmo, não ser um facto pessoal: o réu apenas terá de tomar posição definida sobre o facto do conhecimento).
E que se explique que:
“Pretendendo-se com a expressão ‘de que o réu deva ter conhecimento’ cobrir os casos em que, pela natureza do facto e pelas circunstâncias concretas em que ele se produziu, o juiz deve entender, segundo o seu prudente arbítrio, usado em conformidade com as regras da experiência, que a parte dele teve conhecimento, tal expressão mais não estabelece do que a presunção de que determinado facto, não consistente em acto praticado pela própria parte, lhe é pessoal, isto é, caiu no âmbito das suas percepções, pelo que, em lugar de exprimir o segundo membro duma dicotomia de conceitos, fundado num dever ético de conhecimento, vem apenas reforçar o conceito de facto pessoal.”
E depois se exemplifique:
“Ver, na jurisprudência, os acórdãos do STJ de 06/06/1978 (Santos Vítor), BMJ 278/110 (o novo gerente da sociedade não pode alegar que não é pessoal um facto conhecido ou do conhecimento provável do anterior gerente), [na obra A confissão no direito probatório, Coimbra Editora, 1991, Lebre de Freitas faz uma síntese mais extensa do acórdão na nota 39 da pág. 124; como este TRL não pôde consultar entretanto o acórdão, transcreve-se aqui aquela síntese: “alegado um facto relativo a um fornecimento feito a uma sociedade, não basta que esta, representada por novos gerentes, alegue na contestação não ter podido verificar a sua exactidão, uma vez que, tida em conta a continuidade da personalidade colectiva, o facto lhe era pessoal; e, acrescenta, se não se tratasse dum facto do conhecimento pessoal da sociedade, sempre se deveria julgar que ela dele deveria ter conhecimento, com base no «juízo hipotético sobre a possibilidade ou probabilidade do conhecimento do facto»”] e de 21/03/2012 (Tavares de Paiva), proc. 2359/06.7TVLSB.L1.S1 (o novo gerente não pode ignorar as cláusulas dum contrato celebrado em nome da sociedade por anterior gerente), e o ac. do TRL de  22/02/1974, BMJ, 234, p. 336 (O gerente não pode ignorar a existência duma dívida da sociedade) […]” (todas as passagens citadas nos 3 §§ que antecedem vêm do CPC anotado por Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, vol. 2, 3.ª edição, Almedina, 2017, pág. 573 e 290-291).
Lebre de Freitas, A confissão… citada, pág. 124, nota 38, lembra ainda a resposta de um autor espanhol à questão “se é admissível a confissão pelo representante de uma pessoa colectiva”, resposta positiva "com o argumento de que a memória que possibilita a confissão é a da própria sociedade, devidamente representada.”
Recordando de novo que se está no âmbito de uma execução de um título cambiário que permite a presunção da existência do direito, era à sociedade executada que cabia o ónus da alegação e de prova de factos que levassem a concluir que não tinha conhecimento nem da dívida cambiária nem da subjacente, nem de que esta se tinha vencido com o termo do prazo da renovação, e de que, por isso, a credora devia ter feito algo para lhe dar conhecimento da mesma, sob pena de abuso do direito de executar juros desde o vencimento da obrigação de restituição do capital.
Pelo que, não há factos provados que permitam a conclusão do abuso de direito, já que não basta o simples protelar o exercício do direito para se poder concluir nesse sentido.
Tem de valer aqui, pois, apenas a prescrição da dívida de juros vencidos há mais de cinco anos, que a sentença recorrida só afastou porque julgou verificado o abuso de direito.
E isso nos termos da sentença recorrida - todos os juros vencidos até aos cinco anos imediatamente anteriores a 04/01/2015 estão prescritos – e não nos termos “admitidos” pela exequente (só os vencidos até 19/05/2014).
*
Mas, quanto à outra executada, a sentença recorrida fez bem em ter falado do abuso de direito, embora – avance-se desde já – se considere que se deve ir mais longe, pois que a exequente, em relação a esta executada, nem sequer tem o direito que pretende exercer (isto sempre apenas com base nos factos dados como provados, já que a exequente não impugnou a decisão da matéria de facto para, por exemplo, aditar outros factos aos provados).
Lembre-se que esta executada é uma herdeira do sócio-gerente da sociedade executada e avalista da livrança, não se provando – nem tinha sido alegado – qualquer relação dela com o falecido (para além da relação familiar) ou com a sociedade executada.
Pelo que a exigência do pagamento dos juros de mora não tem qualquer sentido. Juros de mora são juros indemnizatórios de um incumprimento culposo (artigos 804, 805/1 e 806/1 do CC). Ora, sem nada que demonstre que esta executada – que não é uma subscritora cambiária e cuja legitimidade passiva para a execução resulta de uma transmissão por morte e não de um negócio cambiário – tinha conhecimento das dívidas, muito menos do seu vencimento, não se lhe pode censurar o atraso no seu pagamento. Aqui, sim, pode dizer-se que a C tinha que dar conhecimento das dívidas à herdeira para que esta fosse colocada na situação de ter de lhe pagar o valor da livrança, incluindo os juros.
Assim, repete-se, a C (agora substituída pela H) nem sequer tem direito aos juros.
Mas deve-se ir mais longe, aproveitando a desenvolvida lição do Prof. Januário da Costa Gomes (em Assunção fidejussória de dívida, Almedina, 2000, páginas 793 a 807) da questão do destino da fiança no caso da morte do fiador.
Antes de que se rejeite, também ad nutum, o aproveitamento do estudo da fiança para a questão da sucessão por morte na posição de um pré-avalista, lembre-se, com Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, 2.ª edição, Almedina, páginas 213-214 e nota 589, que “a tutela reclamada por estas situações-limite de carácter transversal [uma delas: garantia de dívidas alheias ainda não contraídas] não é posta em causa pelas diferenças estruturais ou discrepâncias de regime emergentes da contraposição entre o carácter acessório da fiança e a autonomia do aval.”
Posto isto, Januário da Costa Gomes lembra que “a morte não constitui, de per si, causa geral de extinção das obrigações decorrentes dos contratos” pelo que, não seria necessária nenhuma alusão expressa do CC ao destino da fiança no caso de morte do fiador (pág. 796).
Por outro lado, “não tendo o carácter pessoal da fiança o significado de obrigação ligada essencialmente à pessoa do fiador em termos de se dever extinguir por sua morte (art. 2025/1 do CC), as obrigações decorrentes da vinculação fidejussória manter-se-iam encabeçadas, agora, na esfera dos herdeiros.” (págs. 796-797).
Mas esta conclusão só é válida em relação às obrigações já constituídas à data da morte do fiador, pois que em relação às ainda não constituídas, “a respectiva cobertura em termos de responsabilidade fidejussória não se estende aos herdeiros do fiador, já que a obrigação de cobertura [esta diz respeito às fianças de créditos futuros – pág. 308] do fiador tem naturalmente intuitu personae” (págs. 804-805), o que, aplicado “ao caso da fiança de uma abertura de crédito […] em conta-corrente, operação em que, à partida, o fiador garante o saldo afinal apurado, pelo que, ocorrendo a morte antes do termo do contrato, não é ainda possível determinar se existirá saldo devedor e, no caso afirmativo, em que montante” (pág. 806), a solução “é a de, em coerência com o reconhecimento da morte como um termo extintivo subjacente [das fianças de dívidas futuras – pág. 802], circunscrever a responsabilidade dos herdeiros [que não foram tidos nem achados na complexa operação – pág. 805] ao saldo – ‘saldo’ provisório – apurado com referência à data da morte, sendo as sucessivas entregas efectuadas pelo devedor ‘abatidas’ a esse saldo, ainda que haja novas utilizações da abertura do crédito.” (pág. 807).
Ora, como no caso dos autos o pressuposto incumprimento do contrato de abertura de crédito em conta-corrente ocorreu depois da morte do avalista e da renovação do contrato, sem que haja prova de qualquer saldo à data da morte do avalista, esta outra executada, a herdeira do avalista, não seria responsável pela dívida de capital constituída depois disso – sem que a este nível se possam tirar consequências para o caso dos autos em benefício da herdeira do avalista, já que só a exequente recorreu - e, por isso, muito menos o seria da dívida de juros (com uma abrangência mais ampla da que foi reconhecida na sentença recorrida que, também aqui, não pode ser alterada em benefício da outra executada por só a recorrente ter recorrido).
E se noutros países não se aceita esta solução – que é a seguida, por exemplo, em França (intransmissibilidade para os herdeiros das obrigações do fiador pelos débitos constituídos após a sua morte – pág. 798) e Inglaterra (a morte do fiador acarreta, como princípio, a extinção da fiança para futuro – nota 240 da pág. 803) -, Januário da Costa Gomes vai lembrando outras posições de jurisprudência e de doutrina desses países quanto a “um dos grandes aspectos a considerar” na questão, qual seja, “a usual falta de informação por parte dos sucessores do fiador relativamente à existência da fiança e dos seus termos” (páginas 802-803 e parte final da pág. 800), sendo uma das soluções para esse problema a de exigir, por aplicação do princípio da boa fé, o dever de o credor informar os herdeiros da existência da fiança” (págs. 799-800, nota 241 da pág. 804 e pág. e 805) e outra a de, com base nesse princípio, negar “as pretensões do credor relativamente a novos vínculos quando seja evidente que o herdeiro só não denunciou a fiança por a desconhecer”, ou, num caso, “considerar contrária à boa fé a pretensão de um banco que demandou em 1930 os herdeiros de um fiador falecido em 1920, tendo a fiança sido prestada em 1912.” (pág. 803).
E a violação deste dever tem de ter a consequência de, pelo menos, impedir a cobrança de juros de mora até à citação para a execução, valendo aqui, por maioria de razão, a posição do mesmo autor quanto ao dever de dar conhecimento ao fiador do incumprimento da obrigação do devedor (nºs. 139 e 140, págs. 941 a 951, e conclusões 235 a 237), posição que é hoje seguida para a fiança e para o aval pela jurisprudência e pela doutrina (vejam-se os acórdãos invocados por Carolina Cunha, obra citada, páginas 236-238, autora que adere à solução).
Sendo que, em última análise, como se viu acima, é sempre viável a aplicação do abuso de direito, como se decidiu em casos com semelhanças; assim, por exemplo:
O saneador-sentença recorrido de 18/09/2017 do Juízo de Execução de Lisboa, Juiz 9, objecto do despacho do relator deste acórdão, de 02/04/2018, proc. 23599/15.2T8LSB-A: “[…] age com abuso de direito o beneficiário de livrança que espera 18 anos para preencher o título cambiário, que lhe permite accionar o avalista, para obter a cobrança de dívida decorrente do contrato de mútuo subjacente à sua emissão e que está em incumprimento desde 1997, ‘pois que há um agravamento desmesurado da prestação do executado, no que respeita a encargos com juros’. Na verdade, fere clamorosamente o sentido de justiça dominante permitir-lhe agora beneficiar dos juros de mora vencidos desde o incumprimento do contrato de mútuo e incorporá-los no título cambiário, mais que duplicando o seu valor, proporcionando-lhe um ‘enriquecimento desmesurado’. Deve, então, considerar-se que “integra abuso de direito a actuação” do exequente, que demorou dezoito anos a preencher livrança ‘para cobrança da dívida, fazendo com que esta se agravasse substancialmente, por via dos juros de mora’ nela incorporados.’”
Esta última passagem citada por aquele saneador-sentença recorrido, vem do ac. do TRL de 16/01/2001, CJ.I, páginas 81 a 84: “Integra abuso de direito a actuação da sociedade gestora da compra em grupo que, não tendo usado dos meios legais referentes ao incumprimento pelos participantes, […] demorou mais de 6 anos a intentar a acção para cobrança da dívida, fazendo com que esta se agravasse substancialmente, por via dos juros de mora. Daí que, no caso, os juros de mora devam ser contados apenas a partir da citação do réu e não desde o vencimento dessas prestações.”
O ac. do STJ de 12/11/2013, proc. 1464/11.2TBGRD-A.C1.S1: IV - Actua com abuso do direito, na modalidade de venire contra factum proprium, o banco que acciona uma livrança, que os executados avalizaram em branco, 8 anos depois de estes se terem afastado da sociedade subscritora, na qual tinham interesse, tendo o exequente conhecimento que estes só avalizaram a livrança por serem pessoas com interesse na sociedade subscritora, sendo que, na altura do afastamento (meados de 2003), a conta caucionada de que a sociedade era titular encontrava-se regularizada e, posteriormente (já depois de 2004), o exequente, sabendo que os executados se sentiam desobrigados e que era bastante a garantia dos restantes avalistas, continuou a conceder crédito à sociedade através da renovação do contrato de abertura de crédito que tivera início em 03-07-2002.
O ac. do STJ de 05/06/2018, proc. 10855/15.9T8CBR-A.C1.S1: I - O abuso do direito – art. 334.º do CC –, na modalidade da supressio, verifica-se com o decurso de um período de tempo significativo susceptível de criar na contraparte a expectativa legítima de que o direito não mais será exercido. II - O Banco exequente, ao deduzir processo executivo contra o avalista duma livrança em branco, 13 anos depois desse mesmo avalista ter abandonado a sociedade subscritora da livrança (entretanto declarada insolvente), e reportando-se as responsabilidades reclamadas (só conhecidas do embargante quando foi citado para a execução), a dívidas contraídas por essa sociedade já após o seu abandono como sócio, age com manifesto abuso do direito, na modalidade da supressio.
O ac. do TRC de 08/03/2022, proc. 360/18.7T8PBL-A.C2 (com um voto de vencido): “Contraria manifestamente o princípio da boa fé a actuação de entidade bancária que, sabendo que os avalistas de uma livrança lhe haviam comunicado por escrito a sua desvinculação dos avales por terem deixado de ser sócios da sociedade subscritora, numa altura em que nada era devido por esta, permitiu a reutilização do crédito sem prestar aos requerentes/avalistas quaisquer esclarecimentos sobre as vicissitudes do subsistente contrato de abertura de crédito em conta corrente e, volvidos mais de 5 anos, sem nada dizer, responder ou esclarecer sobre a comunicação de desvinculação, preencheu e accionou a livrança (que não circulou).”
*
Pelo exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente, revogando-se a sentença recorrida no que se refere ao abuso de direito da exequente cobrar juros de mora da sociedade executada e, em sua substituição, julgam-se os embargos procedentes, quanto à sociedade executada e à excepção da prescrição dos juros de mora vencidos até 04/01/2015, isto é, a exequente só pode cobrar juros sobre os 150.000€ em dívida relativamente ao período posterior a 04/01/2015.
Quanto à outra executada, mantém-se a decisão recorrida, mas pelo fundamento da inexistência do direito em vez de pelo fundamento do abuso de direito.
Mantém-se também a determinação da notificação da exequente para, no prazo de 10 dias contados do trânsito em julgado deste acórdão, proceder a nova liquidação da obrigação exequenda, em conformidade com o decidido (naturalmente a apresentar no tribunal recorrido).
A exequente perde metade das suas custas de parte no recurso (não há outras visto que as executadas não contra-alegaram).
Custas dos embargos na proporção do decaimento, pela exequente e pelas executadas.

Lisboa, 14/10/2023
Pedro Martins
Laurinda Gemas
Higina Castelo