Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto se entender que os concretos factos objecto da impugnação, atentas as circunstâncias do caso e as várias soluções plausíveis de direito, não têm relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual puramente gratuita ou diletante.
I – RELATÓRIO
A “Associação dos Moradores do Bairro de Vilar”, com sede na rua Abade de Faria, nº 51, Porto, intentou perante o juízo central cível do ... (J3) acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, residente na rua ..., nº 94, rés-do-chão direito, ....
Alegou a autora, em súmula, na petição inicial, que, por acordo celebrado em Maio de 1984, concedeu a BB o direito de uso e habitação correspondente ao apartamento sito no rés-do-chão direito do prédio, com entrada pelo nº 94, sito na rua ..., união das freguesias de ..., contrato que foi por mútuo acordo revogado por escrito datado de 16 de Maio de 2015, na sequência tendo o BB entregue o imóvel.
Invoca que o réu, sem qualquer consentimento, conhecimento ou autorização da autora, ilegalmente ocupou o referido apartamento, recusando a sua entrega à autora.
Conclui pedindo:
a) a declaração judicial de reconhecimento do direito de propriedade da Autora sobre o prédio urbano sito na Rua ..., nº 94, rés-do-chão direito, da união de freguesias ... e ..., Concelho do ..., inscrito na respectiva matriz predial urbana do Porto sob o artigo 2732º;
b) a condenação do réu a reconhecer o direito de propriedade da Autora sobre o prédio urbano sito na Rua ..., nº 94, rés-do-chão direito, da união de freguesias ... e ..., concelho do Porto, inscrito na respectiva matriz predial urbana do porto sob o artigo 2732º, e a restitui-lo à autora;
c) a condenação do réu, pela ocupação indevida, a pagar à Autora a quantia mensal de € 1 000,00, acrescida de juros de mora, desde a presente data até efectiva desocupação do imóvel;
d) a condenação do réu a pagar à autora e ao Estado, em partes iguais, a título de sanção pecuniária compulsória, a quantia não inferior a € 150,00/dia, até à efectiva entrega do imóvel, acrescida de juros, à taxa de anual de 5%;
e) a condenação do réu a pagar à autora, pelos danos causados no imóvel pelo Réu durante a sua ocupação e que se vierem apurar em execução de sentença.
Citado, o réu apresentou contestação, na qual, em súmula, principia por alegar a ilegitimidade da autora, por não demonstrar o direito de propriedade que invoca.
Afirma que a autora não alega nem prova a sua capacidade.
Em sede de impugnação, afirma ser falso o acordo de revogação invocado pela autora, e nega que o BB tenha restituído o imóvel à autora.
Alega que o imóvel cuja restituição a autora exige desde 2004 corresponde à habitação permanente do Réu.
Invoca a seu favor o disposto no nº 2 do artigo 60º do Regulamento Interno da Associação de Moradores do Bairro do Vilar.
Entende que a autora litiga de má fé, alegando factos que sabe não corresponderem à verdade.
Conclui pedindo a procedência das excepções invocadas, com a consequente absolvição do réu do pedido; se assim se não entender, pede a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição do pedido; em qualquer caso, pede a condenação da ré, em multa e indemnização, pela sua litigância de má fé.
Notificada para se pronunciar quanto às excepções arguidas na contestação, a autora apresentou novo articulado, no qual, em súmula, reafirma o seu direito de propriedade sobre o imóvel em causa nos autos.
Nega que o apartamento em questão tenha desde 2004 constituído a habitação do réu.
Reafirma a validade e eficácia do acordo de revogação invocado na petição inicial, bem como a consequente entrega do imóvel à autora.
Reafirma a ocupação ilegal feita pelo réu. Conclui como na petição inicial.
A autora foi notificada para concretizar os fundamentos do pedido de condenação do réu no pagamento de € 1 000,00/mês, tendo esclarecido que, na sua perspectiva, tal valor corresponde à rentabilidade do imóvel indevidamente ocupado pelo réu, elevado ao dobro, tratando-se do lucro que por causa imputável ao réu a autora deixou de auferir.
Foi proferido despacho saneador, que julgou a autora devidamente representada nos autos, considerou que a autora possui capacidade para a lide, e entendeu serem as partes legítimas, tendo o réu interposto recurso, que não foi admitido por se ter considerado que de tal decisão não cabia recurso autónomo [cfr apenso A].
Procedeu-se à fixação do objecto do processo e à enunciação dos temas da prova, sendo indeferida a reclamação apresentada pelo réu.
Instruída a causa, foi proferida sentença que, na procedência parcial da acção,
a) declarou a autora, Associação dos Moradores do Bairro de Vilar, titular da propriedade superficiária do edifício sito rua ... implantado no prédio urbano denominado “terreno para construção – parcela A”, descrito na Conservatória do Registo Predial do Porto na ficha n.º 236/19980902-..., atualmente inscrito na matriz predial urbana no artigo 4496.º da União das Freguesias de ... e ..., incluindo da fração não juridicamente autónoma que correspondente ao rés-do-chão direito com entrada pelo n.º 94; e
b) condenou o réu, AA, a restituir à autora o rés-do-chão direito com entrada pelo n.º 94 referido na alínea anterior.
Desta decisão apelou o réu, vindo a Relação do Porto, em acórdão, a “negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida”.
CONCLUSÕES
A. A intervenção do STA afigura-se de manifesta necessidade para apreciar se o Acordão proferido pelo Tribunal da Relação,
i) é nulo, por omissão de pronúncia, nos termos dos artigos 666º nº 1, 615º nº 1 al. d) e 674º nº 1 al. c), do CPC;
ii) se fez um incorreto julgamento do Recurso, por violação da lei substantiva, adoptando fundamentação essencialmente diferente da Sentença de 1ª instância, ao abrigo do disposto nos artigos 671º nº 1 e 3 e 674º nº 1 al. a), do CPC, D
iii)se acordo com o previsto no artigo 672º nº 1 al. b) e considerando a situação e posição do Recorrente nos autos, a decisão de restituição da habitação à AMBV choca com valores sócio-culturais e direitos fundamentais capazes de provocar um alarme social determinante de sentimentos de inquietação na generalidade das pessoas.
DA NULIDADE DO ACÓRDÃO POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
B. Da leitura do Acordão proferido, verifica-se que o Tribunal a quo não se pronunciou sobre as conclusões apresentadas pelo Recorrente quanto à alteração da matéria de facto provada e não provada na sentença proferida pela 1ª instância, escudando essa omissão na reduzida menção de que se a “(…) decisão sobre a matéria de facto provada lograsse integral deferimento, a decisão jurídica da causa manter-se-ia inalterada – o réu não é titular de direito que legitime a recusa da entrega à autora do rés-do-chão direito do prédio sito na rua rua ..., nº 94, da união de freguesias ... e ..., concelho do Porto”.
C. Para proceder à apreciação das conclusões de direito das alegações de recurso, a Tribunal a quo tinha, impreterivelmente, que conhecer o mérito do pedido da alteração da matéria de facto, pois da alteração da matéria de facto provada e não provada, tendo por referência a fundamentação adoptada pelo Tribunal de 1ª instância, resultaria uma diferente análise e conclusão de direito e, em consequência, uma decisão distinta.
D. Tendo em conta a fundamentação da decisão proferida pela 1ª instância, caso fosse reconhecido ao Réu/Recorrente a qualidade de terceiro beneficiário da prestação prometida, ou seja, que o direito pessoal de gozo do falecido BB se transmitia ao ora Réu/Recorrente em resultado da análise da impugnação da matéria de facto, a decisão de direito seria obrigatoriamente distinta, pois o Tribunal teria de analisar o Regulamento Interno da AMBV tendo como não provados e provados os factos identificados na alegação 8ª do presente recurso, que aqui se dão por reproduzidos.
E. Não limitando a questão do direito do Réu/Recorrente à qualidade associado da AMBV como fundamento da inexistência do direito tal como decidiu o Tribunal a quo – fundamentação que na sentença de 1ª instância não assumia qualquer relevância caso o direito de gozo do imóvel ao abrigo do disposto no artigo 60º do RIAMBV tivesse sido transmitido ao Réu/Recorrente – o Tribunal a quo omitiu, por completo, pronúncia quanto ao conhecimento da matéria de facto, que importaria um enquadramento e iter decisório distinto do adoptado.
F. É, por isso, nulo, o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação, nos termos dos artigos 666º nº 1, 615º nº 1 al. d) e 674º nº 1 al. c), do CPC, por omissão de pronúncia quanto à impugnação da matéria de facto.
DA FUNDAMENTAÇÃO ESSENCIALMENTE DIFERENTE ENTRE O ACÓRDÃO E A SENTENÇA DE 1ª INSTÂNCIA
G. Embora o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação tenha confirmado a decisão proferida pelo Tribunal de 1ª Instância, fê-lo tendo por base fundamentação essencialmente diferente da fundamentação daquela anterior sentença.
H. A sentença de 1ª instância considerou, tendo por referência a matéria de facto que deu como provada e não provada, que o Réu/Recorrente não tinha direito a ocupar a fracção porque não se enquadrava na posição de terceiro beneficiário, tal como previsto no artigo 60º do RIAMBV e, ainda que aí se enquadrasse, não tinha direito a ocupar definitivamente a fracção até que a mesma lhe fosse atribuída mediante deliberação da assembleia geral.
I. A sentença fundamenta a sua decisão excluindo, quanto ao terceiro beneficiário do gozo do imóvel, a necessidade de cumular a qualidade de associado da AMBV.
J. Por sua vez, o Acórdão do Tribunal da Relação interpretou o RIAMBV de forma distinta e argumentou a sua decisão única e exclusivamente com base no critério da necessidade do Réu/Recorrente ser associado da AMBV, com base no nº 1 do artigo 56º, nºs 1 e 2 do artigo 59º e alínea a) do artigo 62º, do RIAMBV.
K. Ou seja, em qualquer caso, não possuindo o Réu/Recorrente a qualidade de associado da AMBV, não lhe assiste qualquer direito à atribuição do direito à habitação de que era titular o falecido BB, ficando, por isso, prejudicado o reconhecimento a favor do Réu/Recorrente de qualquer direito sobre o imóvel que ocupa, ainda que durante 1 ano tenha convivido com o falecido BB.
L. Na onda desta solução e interpretação do RIAMBV o Tribunal não se pronuncia sobre a alteração da matéria de facto objecto do recurso interposto, pois mesmo que o Réu/Recorrente fosse terceiro beneficiário do direito à habitação de que era titular o falecido BB nos termos do artigo 60º do RIAMBV.
M. As fundamentações da solução jurídica do Acórdão da Relação assentado, de forma inovatória, em normas e interpretações diversas e autónomas das que justificaram e fundamentaram a decisão na sentença apelada, a qual, embora tenha indeferido a pretensão do Réu/Recorrente, fê-lo com base numa errada análise da prova produzida.
N. Para além da radical e manifesta diferenciação da fundamentação jurídica da sentença da 1.ª instância, a fundamentação adoptada no Acórdão é gravosa para o Réu/Recorrente, pois face à essencialidade da diferença na fundamentação, foi impedido ao Réu/Recorrente de ver analisada a impugnação da matéria de facto das suas alegações, a qual, face à decisão da 1ª instância, podia importar uma alteração da decisão no sentido de lhe ser atribuído o direito definitivo de ocupação do imóvel em assembleia geral a realizar pela AMBV para esse efeito.
O. De acordo com a posição jurídica do Acórdão da Relação, em nenhuma circunstância o Réu/Recorrente teria direito à atribuição do imóvel, pois não é associado da AMBV.
P. Essa decisão decorre de uma aplicação e interpretação errada do nº 1 do artigo 56º, nºs 1 e 2 do artigo 59º e alínea a) do artigo 62º, do RIAMBV.
Q. Note-se que o que está em causa nos autos, não é a atribuição devoluta e livre de pessoas e bens, mas sim a atribuição de um direito de uso e habitação a uma pessoa que coabitou com o usufrutuário do direito de uso e habitação, prestando-lhe cuidados, e que continuou a habitar a casa, com a sua autorização, até à data da sua morte em 29.9.2015, e desde aí até aos dias de hoje.
R. O nº 1 do artigo 56º do RIAMBV refere-se ao direito de uso e habitação a conceder aos associados e não define em nenhum dos seus artigos que tal direito apenas possa ser atribuído àqueles que detém essa qualidade.
S. O Acórdão interpreta o nº3 e 4 do artigo 60º do RIAMV no sentido de ao cônjuge sobrevivo ou unido de facto no caso de falecimento de associado titular de um direito de uso e habitação nãos ser exgida a qualidade de associado, pelo facto de a atribuição do direito de habitar ser imediata, mas não há nenhum artigo no RIAMBV que diferencie a atribuição directa da atribuição em assembleia geral, no que respeita à necessidade do beneficiário do direito ser ou não detentor da qualidade de associado da AMBV.
T. Do artigo 57º dos RIAMBV, também não resulta qualquer limitação quanto à atribuição de uma casa a pessoas que não detenham a qualidade de associados.
U. De acordo com o n.º 5 e 8 do artigo 60º do RIAMBV, aplicáveis às situações de atribuição das casas quando sobrevivam descendentes ou ascendentes que com o falecido usufrutuário vivessem há pelo menos um ano e pretendam continuar a habitar a habitação e a descendentes ou ascendentes que não tivessem vivido com o mesmo, deve ser realizada em assembleia geral convocada para o efeito, sob proposta da direcção, utilizando os critérios do artigo 62º.
V. Por sua vez, o artigo 62º do RIAMBV estabelece os critérios de seriação que servem de base à elaboração da lista de prioridades e do processo de atribuição da habitação pela Direcção, tal como definido no artigo 61º do RIAMBV.
W.E, de acordo com o artigo 61º do RIAMBV, “Para efeitos do disposto nos números 2), 5) e 8) do artigo anterior, a direcção deverá elaborar uma lista de prioridades para atribuição de casas, que servirão de base à discussão da Assembleia-Geral. (…)”
X. Para efeito de elaboração dessa lista, a direcção terá de considerar os coabitantes que residiram com o falecido usufrutuário, resultando essa obrigação da interpretação ad contrarium dos n.º 2, 5 e 8, do artigo 60º, conjugado com a consignação da prioridade estabelecida nas regras do artigo 63º, designadamente na al. c) do n.º 1.
Y. Das normas indicadas e respectivo enquadramento no caso do Réu, resulta, sem margem de dúvida, que cabia à AMBV diligenciar pela convocação de uma Assembleia Geral, com indicação do Réu na lista de prioridades para atribuição da habitação, com vista a deliberar-se a atribuição do direito de uso e habitação do rés-do-chão direito, com entrada pelo n.º 94, na rua ..., no Porto., nada impedindo que o Réu/Recorrente utilizasse a casa temporariamente até essa atribuição definitiva (art. 60 nº 9).
Z. Não obstante a qualidade de associado não ser um requisito para a atribuição das casas – esse não é, nem pode ser um motivo para que a AMBV obstasse à indicação do Réu/Recorrente como preferente na atribuição da casa na Assembleia geral que venha a designar para o efeito, visto que, a aquisição da qualidade de sócio ou a sua readmissão, apenas carece de proposta dirigida à AMBV - o que o Réu já fez, conforme identificado na acta n. º 169, 173º e 175º - e não de qualquer deliberação da Assembleia Geral, conforme previsto nos artigos 4º, 5º e 6º dos EAMBV.
AA. Nestes termos, face à fundamentação essencialmente diferente adoptada pelo Tribunal a quo, não há dupla conforme e, por isso, deve o Tribunal da Relação apreciar, na íntegra, as alegações da apelação, visto que, erradamente, fundamenta a sua posição na obrigação, inexistente, do Réu/Recorrente ser associado da AMBV.
DOS INTERESSES DE PARTICULAR RELEVÂNCIA SOCIAL EM CAUSA
BB. O direito à habitação é um direito fundamental, consagrado no artigo 65º da Constituição da República Portuguesa, cabendo, essencialmente, ao Estado assegurar o esse direito.
CC. O Tribunal não podia descartar, atendendo à situação pessoal do réu/Recorrente, de 69 anos de idade, com um rendimento mensal de pensão de € 400,00, que padece de graves problemas de saúde (doente oncológico), a possibilidade de ponderar, tendo por princípio o direito fundamental à habitação, a aplicação e integração da decisão em disposições que salvaguardassem ao Réu/Recorrente a possibilidade de manter a habitação que usa há mais de 16 anos.
DD. Estão, por isso, em causa, interesses de particular relevância social, pois o objecto da acção recai sobre o direito de uma pessoa, com 69 anos de idade, doente e de condição económica precária, à atribuição de uma habitação, habitação essa que usa há 16 anos, tudo porque não lhe é concedida a possibilidade de ser realizada uma assembleia geral para esse efeito.
EE. O desalojamento de uma pessoa, principalmente de idade avançada, causa impacto na sociedade e suscita questões essenciais referentes à intervenção do Estado e, no caso, do Tribunal.
FF. Quanto à fundamentação das razões pelas quais o Acórdão enferma na dua decisão, remete-se para o alegado nos artigos 23º a 40º do presente Recurso.
GG. Das normas previstas no RIAMB e das suas lacunas, resulta, sem margem de dúvida, que cabia à AMBV diligenciar pela convocação de uma Assembleia Geral, com indicação do Réu na lista de prioridades para atribuição da habitação, com vista a deliberar-se a atribuição do direito de uso e habitação do rés-do-chão direito, com entrada pelo n.º 94, na rua ..., no Porto.
HH. Por isso, impõe-se a este Tribunal que a decisão do Tribunal a quo seja revogada e substituída por outra que obrigue, pelo menos, a realização de assembleia deliberativa de atribuição da casa ao Réu/Recorrente, ainda mediante injunções que possam revelar-se adequadas, como a admissão de associado e pagamento de valores referentes ao uso.
II. Aliás, ainda que se mantenha a decisão de que o Réu/Recorrente não tem direito à habitação, não devia a decisão consignar o encaminhamento para as entidades competentes prestarem o apoio necessário à concessão de uma outra habitação e definir um prazo mais alargado para a desocupação, tendo em conta o direito fundamental em causa? Dando uso à Lei de Bases da Habitação?
TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente, e, em consequência, ser julgado nulo por omissão de pronúncia, ordenando-se a apreciação da matéria de facto impugnada e que seja revogada a decisão de que não assistir qualquer direito ao Recorrente à atribuição do direito à habitação de que era titular o falecido BB.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
Nada obsta à apreciação do mérito da revista.
Com efeito, a situação tributária mostra-se regularizada, o requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC). Para além de que tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).
Cremos haver lugar a revista normal, pois nos parece que a fundamentação das instâncias é essencialmente diferente: a sentença considerou, em especial, tendo por referência à matéria de facto que deu como provada e não provada, que o Réu/Recorrente não tinha direito a ocupar a fracção porque não se enquadrava na posição de terceiro beneficiário, tal como previsto no artigo 60º do Regulamento Interno da A. (até trouxe à colação as normas do contrato-promessa…); já o acórdão recorrido interpretou esse Regulamento de forma distinta e assentou a sua decisão fundamentalmente no critério da necessidade do Réu/Recorrente ser associado da AMBV, com base no nº 1 do artigo 56º, nºs 1 e 2 do artigo 59º e alínea a) do artigo 62º, do RIAMBV.
• Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia
• Se assiste ao Réu/Recorrente o direito à ocupação do rés-do-chão direito do prédio urbano sito na Rua ..., nº 94, da união de freguesias ... e ..., Concelho do Porto.
III – FUNDAMENTAÇÃO
III. 1. FACTOS PROVADOS
1. Direito da autora
1 – Pelas apresentações nos 1 e 2, de 26 de novembro de 1979, 4, de 12 de março de 1980, 2 de 23 de abril de 1980, 1, de 27 de maio de 1980, 6, de 1 de outubro de 1980, 5, de 27 de outubro de 1992, e 35, de 5 de fevereiro de 1993, foi inscrita a favor do Município do Porto a aquisição por expropriação da propriedade do prédio urbano denominado “terreno para construção – parcela A”, descrito na Conservatória do Registo Predial ... na ficha n.º 236/19980902-..., anteriormente inscrito na matriz predial urbana no artigo 2964.º/....
2 – O anterior artigo 2964 da extinta freguesia de ... foi inscrito na matriz no ano de 1999, como parcela A, urbana, terreno para construção, com a área de 723,80 m2.
3 – O atual artigo urbano 4496.º da União das Freguesias de ... e ..., corresponde ao anterior artigo 4407.º, antes ao artigo 2732.º da União das Freguesias de ... e ... (e antes ainda ao artigo 2964.º da extinta freguesia de ..., ao artigo 2854.º da extinta freguesia de ... e a parte omissa).
4 – A Associação de Moradores do Bairro de Vilar (adiante, AMBV) é uma associação sem fins lucrativos que tem por objeto a prestação de serviços aos seus moradores, atuando também nos âmbitos formativo, desportivo, cultural e recreativo.
5 – No “terreno para construção – parcela A” referido no ponto 1 – factos provados –, a AMBV fez construir um edifício de quatro pisos, composto por 32 frações suscetíveis de utilização independente para habitação, distribuídas por quatro blocos com entradas independentes contíguos e oito prumadas.
6 – O edifício referido no ponto 5 – factos provados – tem frente para a rua ..., tendo uma entrada pelo n.º 94, União das Freguesias de ...e ....
7 – A fração suscetível de utilização independente que constitui o rés-do-chão direito do bloco do edifício referido no ponto 5 – factos provados – com entrada pelo n.º 94, fiscalmente identificada como “RCDT” do atual artigo matricial urbano 4496.º/União das Freguesias de ... e ..., tem a tipologia T3, tendo 86 m2.
8 – Em 22 de fevereiro de 1995, pelo Município do Porto e pela AMBV foi subscrita a escritura pública de “cedência de cinco parcelas de terreno que a Câmara Municipal do Porto faz à Associação de Moradores do Bairro de Vilar”, junta aos autos, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
PRIMEIRO
(…) Câmara Municipal do Porto (…).
EM SEGUNDO LUGAR:
(…) Associação de Moradores do Bairro de Vilar (…).
PELA PRIMEIRA OUTORGANTE, FOI DITO:
Que a Câmara Municipal do Porto (…) deliberou ceder, em direito de superfície, à Associação segunda outorgante, tendo em vista a construção de cinco blocos habitacionais, cinco parcelas de terreno municipal, sitas à Rua de ..., (…) nas seguintes condições:
Primeira – Os terrenos são entregues à Associação segunda outorgante (…) e destinam-se à construção de cento e quarenta e quatro habitações;
Segunda – O prazo da cedência é de setenta anos, a contar da data desta escritura, considerando-se desde já prorrogável por um período de trinta e cinco anos;
Terceira – O preço da cedência (…);
Quarta – Não poderá a Associação segunda outorgante alienar o direito de superfície (…); Quinta – (…);
Sexta – Os blocos habitacionais a construir, destinam-se exclusivamente aos associados e não podem ser objecto de fraccionamento em unidades autónomas;
Sétima – (…).
Que em cumprimento do deliberado, vem por esta escritura ceder à Associação segunda outorgante, referidas parcelas de terreno, (…) nos precisos termos que antecedam e para ela transfere e cede todo o direito, acção e posse, que até agora tem tido nas parcelas de terreno aqui cedidas, as quais têm as seguintes descrições e inserções:
Parcela A (Edifício 1), com a área de setecentos e vinte e três vírgula oitenta metros quadrados, estando (…) descrita na Segunda Conservatória do Registo Predial do Porto, sob parte do n.º 160, a folhas 88 do Livro B-1 (…) e parte do inscrito na Matriz Predial Urbana da Freguesia de ... sob o artigo 2854; (…) descrita na mesma conservatória, sob parte do n.º 9378, a folhas 74 v., do Livro B-28 (…) omisso na Matriz (…); descrita na mesma conservatória, sob parte do n.º 9395, a folhas 102 v., do Livro B-28 (…) omisso na Matriz (…); (…) descrita na conservatória, sob parte da ficha 00119/271092 ... (…) omisso na Matriz (…); (…) descrita na mesma conservatória, parte do n.º 9338, a folhas 28 v. do Livro B-28 (…), omisso na Matriz (…); (…) descrita na mesma conservatória, sob parte do n.º 9403, a folhas 113 v, do Livro B-28 (…), omisso na Matriz (…); (…) descrita na mesma conservatória, sob parte do n.º 9337, a folhas 28, do Livro B-28 (…), omisso na Matriz (…);
Parcela A1 (Edifício 2), (…); Parcela A2 (Edifício 3), (…); Parcela A3 (Edifício 4), (…); Parcela A4 (Edifício 5), (…);
PELOS SEGUNDOS OUTORGANTES, NA QUALIDADE QUE REPRESENTAM, FOI TAMBÉM DITO:
Que aceitam e concordam com a cedência que por esta escritura é feita, nos precisos termos que antecedem.
9 – Em 2 de setembro de 1998, foi registada a constituição a favor da AMBV do direito de superfície, pelo prazo de 70 anos, sobre o “terreno para construção – parcela A” referido no ponto 1 – factos provados.
2. Prévia ocupação da fração
10 – Em 1 de maio de 1984, por BB (adiante, BB) e pela AMBV foi subscrito o documento intitulado “Concessão do Direito de Uso e Habitação”, junto aos autos, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
CONCESSÃO DO DIREITO DE USO E HABITAÇÃO
O abaixo assinado BB, (…) tendo como agregado familiar as seguintes pessoas:
CC
foi-lhe concedido em Assembleia Geral realizada nesta data direito de uso e habitação no Novo Bairro de ... no número noventa e quatro, RÉS-DO-CHÃO Direito, de apropriação coletiva da Associação de Moradores do Bairro de Vilar.
O mesmo declara comprometer-se a:
PRIMEIRO – Pagar uma amortização de SEIS MIL ESCUDOS (…). SEGUNDO – (…).
TERCEIRO – Cumprir o Regulamento de Uso e Habitação (…). P’la Associação de Moradores do Bairro de Vilar.
DIREÇÃO – [assinatura] [assinatura]
[assinatura]
CONCELHO FISCAL – [assinatura] ASSEMBLEIA GERAL – [assinatura] SÓCIO TITULAR – [assinatura] (…)
11 – Em 1 de dezembro de 2014, por BB foi subscrito o documento intitulado “Atualização de Agregados Familiares”, junto aos autos, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
AGREGADO FAMILIAR (RESIDENTES HÁ MAIS DE UM ANO)
Não têm agregado familiar
(…)
RESIDENTES HÁ MENOS DE UM ANO
Não têm agregado familiar
12 – A partir de meados de 2012, depois de ter alta hospitalar, BB passou a pernoitar e a tomar refeições em casa de familiares na rua de ..., n.º 42, rés-do-chão, União das Freguesias de ... e ....
13 – Em 28 de fevereiro de 2015, por BB e pela AMBV foi subscrito o documento intitulado “Acordo de Revogação de Contrato do Direito de Uso e Habitação”, junto aos autos, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
Acordo de Revogação de Contrato do Direito de Uso e Habitação
Primeiro Outorgante: Associação dos Moradores do Bairro de Vilar, (…) na qualidade de proprietária de um prédio urbano sito na Rua ..., n.º 94 – R/C Dto. (…); Segundo Outorgante: BB, residente na Rua ..., n.º 94 R/C Dto., (…) na qualidade de Arrendatário;
Primeiro e Segundo Outorgantes declaram, pelo presente acordo, que acordam na Revogação do Contrato do Direito de Uso e Habitação, celebrado entre si em 01 /05/1984, relativo ao rés-do-chão direito do prédio urbano sito na Rua ..., n.º 94, (…) nos seguintes termos e condições:
Cláusula Primeira
O Contrato do Direito de Uso e Habitação cessará no prazo de 15 dias a partir da presente data;
Cláusula Segunda
Nessa data o Segundo Outorgante entregará o locado livre de pessoas e bens e deverá entregar as respectivas chaves do locado.
Cláusula Terceira
O Segundo Outorgante, à data, deve à Primeira Outorgante a quantia de 4.680,00 € (…) respeitante ao valor das mensalidades em divida no período compreendido entre Dezembro de 2011, Janeiro a Dezembro de 2012, Janeiro a Dezembro de 2013, Janeiro a Dezembro de 2014 e Janeiro e Fevereiro de 2015, inclusive;
Cláusula Quarta
O Segundo Outorgante prescinde, de livre e expressa vontade, do valor de 1/3 das amortizações liquidadas durante o tempo que deteve o Direito de Uso e Habitação, nos termos do n.º l, do artigo 86.º do Regulamento Geral da Associação de Moradores do Bairro de Vilar e pelo distrate do contrato do Direito de Uso e Habitação;
Cláusula Quinta
O Primeiro Outorgante prescinde do valor em dívida, 4.680,00 €, e da realização das obras necessárias à reposição do locado no bom estado de conservação em que se encontrava no início do contrato do Direito de Uso e Habitação, por parte do segundo outorgante, em detrimento do expresso pelo mesmo na cláusula quarta.
Cláusula Sexta
O Segundo Outorgante pagará, a título de indemnização, por cada mês ou fracção que decorrer até à entrega do locado, o dobro da mensalidade estipulada, bem como as despesas judiciais elou extrajudiciais decorrentes desse incumprimento.
14 – Visando satisfazer o conteúdo do documento referido no ponto 13 – factos provados –, BB não mais retornou à fração referida no ponto 7 – factos provados.
15 – Em ... de agosto de 2015, BB foi internado numa unidade de cuidados continuados, vindo a falecer em ... de setembro de 2015, sem descendentes nem ascendentes.
3. Direito do réu
16 – Em 11 de dezembro de 2008, a Assembleia Geral da AMBV deliberou aprovar o “Regulamento Interno da Associação de Moradores do Bairro de Vilar”, junto aos autos e ainda não alterado, onde consta, além do mais que aqui se dá por transcrito:
ARTIGO 60.º
CONSTITUIÇÃO DO DIREITO DE USO E HABITAÇÃO
1. O direito de uso e habitação constitui-se pela atribuição feita em Assembleia Geral, nos precisos termos cm que esta delibere a sua atribuição e constará de contrato, conforme modelo em anexo a este regulamento (anexo 2), assinado por três representantes da direção, um dos quais deverá ser obrigatoriamente o Presidente ou Vice-presidente, e pelo sócio titular, que formalizará as respetivas posições jurídicas.
2. Quando se verifique falecimento de usufrutuário que não habitasse com descendentes, ascendentes ou outros conviventes que lhe prestassem serviço há mais de um ano, a atribuição da casa devoluta deverá ser realizada em assembleia geral, sob proposta da direção, utilizando os critérios definidos no art. 61.º;
3. As situações de novas atribuições a cônjuge sobrevivo, são imediatas, devendo a direção por delegação de poderes conferidos nesta assembleia geral, promover a elaboração do contrato correspondente, nos moldes descritos no ponto 1;
4. As situações de novas atribuições a companheiro(a) em união de facto sobrevivo, são imediatas, devendo a direção por delegação de poderes conferidos nesta assembleia geral, promover a elaboração do documento correspondente, conforme modelo anexo a este regulamento (anexo 2) e nos moldes descritos no ponto 1. Nestas condições o direito real de habitação é limitado ao prazo de cinco anos, findos os quais têm direito de preferência na sua venda ou arrendamento, caso tal se verifique, conforme o disposto no n.º 1 do art. 40.º da Lei n.º 135/99 de 28 de agosto.
5. O disposto no número anterior não se aplica caso ao falecido sobrevivam descendentes ou ascendentes que com ele vivessem há pelo menos um ano e pretendam continuar a habitar a habitação, ou no caso de disposição testamentária em contrário, de acordo com o disposto no n.º 2 do art. 40.º da Lei n.º 135/99 de 28 de agosto. Nas condições descritas neste ponto a nova atribuição, deverá ser efetuada em assembleia geral convocada para o efeito, sob proposta da direção utilizando os critérios definidos no art. 62.º;
6. (…); 7.
(…);
8. Em situação de nova atribuição do direito de uso e habitação a descendentes ou ascendentes, por falecimento do usufrutuário em que não se verifiquem as situações previstas nos n.º 2 e n.º 3 deste artigo e as disposições descritas no n.º 4, deverão ser efetuada em assembleia geral convocada para o efeito, sob proposta da direção utilizando os critérios definidos no art.º 62;
9. Ninguém poderá ocupar definitivamente qualquer habitação sem que lhe seja previamente atribuído o direito de uso e habitação;
(…)
ARTIGO 63.º
CRITÉRIOS DE PRIORIDADE COABITANTES
1. Para efeitos do disposto no n.º 5 e n.º 8 do art. 60.º, os critérios de seriação para ordenação das prioridades de atribuição de novo direito de uso e habitação, deverão obedecer aos seguintes critérios:
a) Aos descendentes;
b) Aos ascendentes;
c) Aos restantes coabitantes que lhe prestassem serviço há mais de um ano; (…)
17 – Em momento não anterior ao ano de 2006 e não ulterior ao ano de 2008, o autor passou a residir alguns meses por ano na fração referida no ponto 7 – factos provados –, então ainda habitado por BB.
18 – Após a data referida no ponto 12 – meados de 2012 –, o autor continuou a residir na fração referida no ponto 7 – factos provados –, nos termos em que até então o vinha fazendo.
19 – Desde data não ulterior ao ano de 2015, o autor reside permanentemente na fração referida no ponto 7 – factos provados –, nela dormindo, tomando as suas refeições e recebendo os seus amigos.
20 – A autora não deliberou nem declarou autorizar a ocupação referida no ponto 17 – factos provados.
21 – A autora solicitou verbalmente ao réu que abandone a fração referida no ponto 7 – factos provados.
22 – Em 9 de outubro de 2015, a Assembleia Geral da AMBV deliberou rejeitar a proposta “para a admissão do Sr. AA”, conforme consta da ata n.º 175, junta aos autos, a qual reza, além do mais que aqui se dá por transcrito:
O Presidente pediu a palavra para informar (…) // Relativamente á situação do Sr. BB e do Sr. AA, a Associação tem conhecimento que a habitação da Rua ..., n.º 94, R/C Direito, ..., que era habitada pelo Sr. BB, encontra-se de forma ilegal a ser ocupada por AA. Tal ocupação foi efetuada sem qualquer autorização da Associação, proprietária do imóvel, e sem autorização do Sr. BB, que entregou a casa no dia 16 de Maio de 2015, livre de pessoas e bens e sem qualquer agregado familiar a ele associado. Pelo que, estando o Sr. AA a ocupar o imóvel da Rua ..., n.º 94, R/C Direito, ... sem qualquer autorização, foi deliberado intentar açäo de reivindicação de posse, de forma a desocupar o imóvel. (…)
O Sr. DD pede desculpa pela insistência, mas gostaria que fosse discutida e votada a proposta que ele entregou na sessão anterior na Mesa da Assembleia e o Presidente da Mesa leu a proposta do Sr. DD. O sócio EE pede a palavra para dizer que como é um sócio que está a propor a Admissão do Sr. AA a proposta é valida para ser discutida e votada. O EE explica ainda diferença entre pedido de Admissão e pedido de Readmissão. (…)
De seguida o Presidente da Mesa volta a ler a proposta do Sr. DD para a admissão do Sr. AA, esta proposta foi a votação, e foi recusada com 43 votos contra e 19 abstenções, estavam presentes 74 sócios.
FACTOS NÃO PROVADOS
Todos os restantes factos descritos nos articulados, bem como os aventados na instrução da causa, distintos dos considerados provados – discriminados entre os “factos provados” ou considerados na “motivação” (aqui quanto aos instrumentais) –, resultaram não provados.
Resultaram, assim, não provados os seguintes factos:
23 – BB fez a entrega referida no ponto 20 – factos provados – estando a fração livre de pessoas e de todos os seus bens.
24 – Em resultado da ocupação da fração pelo réu a autora deixou de auferir um lucro de € 500,00 mensais.
25 – O réu descende de BB.
26 – O réu cuidou de BB na velhice deste.
27 – Sem prejuízo do referido no ponto 17 – factos provados –, o réu fez vida em comum com BB, partilhando os custos de alimentação, saúde e demais bens essenciais.
• Nulidade do acórdão por omissão de pronúncia.
Estriba a recorrente a invocada nulidade por omissão de pronúncia no facto de a Relação não se ter pronunciado sobre a requerida alteração da matéria de facto.
O acórdão recorrido justificou assim o não conhecimento da requerida modificação de facto:
«O princípio de que o juiz deve examinar toda a matéria de facto alegada pelas partes, analisando todos os pedidos formulados, está sujeito a uma restrição, e a restrição reporta-se às matérias e aos pedidos que forem juridicamente irrelevantes. Estando em causa factos irrelevantes, não faz qualquer sentido ponderar sequer a sua inserção na matéria de facto provada» [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de fevereiro de 2020, proc. n.º 4821/16.4T8LSB.L1.S2, disponível em www.dgsi.jstjpt/].
Esta é a orientação jurisprudencial absolutamente pacífica dos nossos tribunais superiores, fundada na proibição da prática de actos inúteis [artigo 130º do Código de Processo Civil] – cfr, por todos, o decidido pelo STJ nos seus acórdãos de 14 de Março de 2019, processo nº 8765/16.1T8LSB.L1.S2, de 28 de janeiro de 2020, processo nº 287/11.3TYVNG-G.P1.S1, de 14 de Janeiro de 2020, processo nº 154/17.7T8VRL.G1.S2, de 13 de Julho de 2017, processo nº 442/15.7T8PVZ.P1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.jstjpt/.».
A jurisprudência tem considerado e de forma que se nos afigura pacífica que a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior CPC], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorrectamente julgados. Mas este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se poder concluir que, afinal, existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efectivo objectivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante»1.
Logo, por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto «quando o(s) facto(s) concreto(s) objecto da impugnação for insusceptível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente», convertendo-a numa «pura actividade gratuita ou diletante»2.
Assim também, v.g., o Ac. do STJ, de 09.02.20213, onde se lê que «nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto por se tratar de ato inútil».
Como é bom de ver, a matéria de facto que o Recorrente pretendia fosse alterada tem a ver com a alegada residência ou coabitação do réu com o falecido Sr. BB (associado da Autora e a quem esta atribuiu o direito de utilização da fracção), bem assim, para além do mais, a alegada prestação de cuidado a este na sua velhice.
Ora, trespassa de toda a fundamentação jurídica do acórdão recorrido que o mesmo entendeu que o direito à ocupação da fracção implicaria ou pressupunha que o Recorrente fosse beneficiário da qualidade de associado da autora. Não o sendo (qualidade, diga-se, que nem, sequer, se arroga ter) – e não se integrando a situação em qualquer das hipóteses previstas no regulamento interno da Autora em que a atribuição do uso da fracção é automática/imediata (casos de sobrevivência ao cônjuge sobrevivo ou unido de facto) –, entendeu o acórdão que tal direito de utilização não lhe assistia, pois para tal necessário seria que tal direito lhe fosse conferido em assembleia geral dos associados da Autora, o que não ocorreu, como o próprio recorrente reconhece.
Ora bem: se razão assistir ao acórdão ao sustentar que a atribuição do direito à ocupação da fracção por banda do Réu/Recorrente implica que o mesmo seja associado da autora, então, é claro, não tem qualquer utilidade apreciar da matéria de facto questionada pela Recorrente na apelação, pois o seu deferimento em nada beliscaria o mérito da demanda; ao invés, se se considerar que não assiste razão à Relação, ao exigir a referida qualidade de associado do réu, então, sim, já terá utilidade a (re)apreciação da matéria de facto.
Assim, na perspectiva ou na solução de direito seguida no acórdão, não ocorre a arguida nulidade. O acórdão não se pronunciou sobre a matéria de facto porque, face à solução jurídica que teve por mais correcta, não viu qualquer utilidade naquela pronúncia.
Importa, então, saber se, face aos Estatutos e Regulamento Interno da Autora, assiste ou não ao recorrente o direito à utilização da fracção, dado que assente está que a assembleia geral da Autora não emitiu decisão a conferir-lhe esse direito de uso e habitação – tendo, até, como se verá, deliberado rejeitar liminarmente a proposta do réu para seu associado.
Atento o estatuído no Regulamento Interno da Autora, cremos assistir razão ao acórdão recorrido.
Efectivamente, parece resultar claro desse Regulamento da Autora que o mesmo faz uma diferenciação entre as situações em que a atribuição do direito de uso e habitação é automática – ou imediata, na linguagem do Regulamento – e as demais situações.
A atribuição imediata ocorre (apenas) nos casos de cônjuge sobrevivo e de companheiro(a) em união de facto sobrevivo. Nestas duas situações, a direcção por delegação de poderes, limita-se a promover a elaboração do documento (contrato) correspondente, ali previsto (anexo 2 do regulamento).
Nos casos em que ao falecido sobrevivam descendentes ou ascendentes que com ele vivessem há pelo menos um ano – e, até admitimos nós, outras pessoas que com ele vivessem durante pelo menos esse período à data do falecimento do titular do direito de uso e habitação (pois não almejamos razões para diferente tratamento) e pretendam continuar a habitar esse espaço – , a nova atribuição já não é imediata ou automática, antes, como diz o artº 60º, nº5 do referido regulamento, deverá ser efectuada em assembleia geral convocada para o efeito, sob proposta da direcção utilizando os critérios definidos no artº 62º (destaque nosso).
Ou seja:
Primeiro, fora daquelas duas situações excepcionais, não se vê como fugir à exigência do regulamento de que a atribuição do uso da habitação tem de passar pela assembleia geral, proibindo expressamente o nº 9 daquele artº 60º que tenha lugar essa ocupação definitiva de qualquer habitação sem a prévia atribuição desse direito de uso e habitação. O que, insiste-se, é da exclusiva competência da assembleia geral (ut nº 8 do artº 60º do regulamento interno).
Segundo, sempre acresce que fora das situações excepcionais referidas (nºs 3 e 4 do artº 60º do regulamento – cônjuge sobrevivo ou unido de facto), a qualidade de associado é sempre um pressuposto para a atribuição desse direito de uso e habitação. Como não pode deixar de ser, atenta a natureza da Autora e a sua finalidade.
O que, diga-se, ressalta claro, v.g., do disposto no nº 1 do art. 56º (que se refere expressamente ao direito de uso e habitação a conceder aos associados), nºs 1 e 2 do artº 59º e al. a) do artº 62º do seu regulamento interno.
O que, diga-se, está em sintonia com o estatuído no Código Civil, no capítulo respeitante às Associações (arts. 167º a 184º). Veja-se, v.g., o artº 167º ao dizer que o próprio acto da associação especificará os bens ou serviços com que os associados concorrem, acrescentando o nº 2 que os estatutos podem especificar ainda os direitos e obrigações dos associados, as condições da sua admissão, saída e exclusão (destaque nosso).
Ou seja, as Associações funcionam em prol dos associados, sendo esta qualidade um pressuposto para a sujeição de alguém aos direitos e obrigações que emergem dos respectivos estatutos ou regulamentos – in casu, naturalmente, o direito a ver-lhe atribuído o direito de uso e habitação.
Percute-se que nem sequer os descendentes ou ascendentes que vivessem com o associado falecido há pelo menos um ano beneficiam desse direito automático, antes, mesmo eles, caem no “bolo” geral: a nova atribuição deverá ser efectuada em assembleia geral convocada para o efeito. E, claro, tal atribuição da habitação não pode passar por cima da (prévia) qualidade de associado, pois a Autora é uma associação que visa prestar serviços aos seus moradores, proporcionar-lhes habitação, obviamente aos que nela estejam inscritos, como…seus associados.
Uma coisa é certa: o réu, para além de não ser associado da Autora, com ela nada contratou, pelo que, não tendo a Autora assumido qualquer obrigação de lhe proporcionar o gozo da fracção por morte do BB, nenhuma obrigação tem perante ele.
Acresce que – como refere a sentença – o direito constituído a favor de terceiro não é um direito de ocupar a fração não juridicamente autónoma; é o direito a uma deliberação da assembleia geral da autora com esse conteúdo. Ou seja, in casu, o réu, ainda que fosse um terceiro beneficiário da promessa (que não é – pois não se vislumbra a existência de qualquer promessa da Autora no sentido da ocupação da fracção pelo Réu), nunca teria um direito potestativo à ocupação. Pode até fazer-se o paralelismo com o contrato-promessa: o promissário adquire o direito à emissão da declaração negocial prometida, e não ao objecto mediato do contrato prometido. Enquanto a assembleia geral não deliberar, o terceiro não tem nenhum direito de ocupar definitivamente a fração (art. 60.º, n.º 9, do RIAMBV).
E, como provado está e já supra ficou referido, a Assembleia Geral da Autora até já deliberou (em 9 de Outubro de 2015) rejeitar a proposta “para admissão do Sr. AA”, conforme consta da acta nº 175, junta aos autos – ali se referindo que o Réu ocupa de forma ilegal a habitação que era ocupada pelo falecido Sr. BB, pois tal ocupação foi efectuada sem autorização da Associação, proprietária do imóvel, e sem autorização do Sr. BB…, que entregou a casa em 16 de Maio de 2015.
Atente-se, por outro lado, que se se prescindisse da qualidade de associado do convivente há mais de um ano com o associado aquando da sua morte, não teria qualquer sentido a norma do artº 62º, al. a) dos estatutos da autora, ao prever, como primeiro critério de atribuição do direito de habitação, precisamente, o tempo de associado da autora que o candidato apresenta.
Assim sendo, cremos que razão assiste ao acórdão recorrido, quando remata:
« Logo, não possuindo o réu a qualidade de associado da autora, é obvio não lhe assistir qualquer direito à atribuição do direito à habitação de que era titular o falecido BB.
Deveria o réu ter requerido admissão como associado da autora [nº 1 do artigo 19º do Código Cooperativo], em caso de indeferimento impugnando tal decisão para a assembleia geral dos associados [nº 3 e 4 do artigo 19º do Código Cooperativo], e, eventualmente, mantendo-se a decisão de não admissão e sendo esta nula [não apenas anulável], enquanto terceiro directamente lesado pela manutenção da decisão de não admissão, impugnando judicialmente a deliberação da assembleia [por exemplo, com fundamento na violação do princípio constitucional de não discriminação em razão do sexo, raça, orientação religiosa ou sexual, etc (artigo 13º da Constituição da República Portuguesa)].
Na sequência, a obter ganho de causa quanto à sua admissão como associado da autora, pretendendo o réu ver-lhe atribuído o direito à habitação do rés-do-chão direito do prédio sito na rua rua ..., nº 94, da união de freguesias ... e ..., concelho do Porto, e constatando a inércia da administração da autora em dar cumprimento ao estabelecido no nº 8 do artigo 60º dos estatutos da autora, caberia ao réu, aí já associado, isoladamente tomar a iniciativa da convocação de assembleia geral com tal finalidade [nº 3 do artigo 173º do Código Civil] e, não sendo acolhida a sua pretensão, impugnar a deliberação tomada (aí, enquanto associado, assistir-lhe-ia o direito à impugnação independentemente de ocorrer simples violação das regras estatutárias, geradora de mera anulabilidade).
Escusado será dizê-lo, o réu nem sequer invocou ter tomado qualquer destas iniciativas.
A acrescer, da assembleia geral da Associação dos Moradores do Bairro de Vilar que teve lugar a 18 de Setembro de 2015, a que corresponde a acta nº 173 da [junta aos autos por requerimento da autora de 01 de Julho de 2016, referência nº ......96], constatamos que o aqui réu requereu directamente à assembleia geral dos associados da autora a sua readmissão como sócio, pedido que não foi admitido, antes sendo deliberada a sua expulsão da casa que integra o objecto do presente litígio.
E nem sequer há notícia que esta decisão da assembleia geral da autora tenha sido por qualquer forma impugnada.
Concluindo, mostra-se inviabilizado o reconhecimento a favor do réu de qualquer direito sobre o imóvel que ocupa, ainda que durante 1 ano tenha convivido com o falecido BB.»4.
Assim sendo – como nos afigura dever ser – , é claro que bem andou a Relação em não apreciar a impugnação da matéria de facto, pois seria perfeitamente inútil, já que em nada alteraria a decisão de direito.
Donde nenhuma censura merecer o acórdão recorrido.
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.
Custas da revista a cargo do Recorrente.
Lisboa, 28 de Setembro de 2023
Fernando Baptista de Oliveira (Juiz Conselheiro Relator)
Isabel Salgado (Juíza Conselheira 1º adjunto)
Maria da Graça Trigo (Juíza Conselheira 2º Adjunto)
______
1. Ac. da RC, de 24.04.2012, António Beça Pereira, Processo n.º 219/10.6T2VGS.C1 - destaque nosso.
2. Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo n.º 1024/12.0T2AVR.C1.
3. Maria João Vaz Tomé, Processo n.º 26069/18.3T8PRT.P1.S1.
4. O destaque é nosso.