VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VIOLAÇÃO
CONCURSO
Sumário

I. É, entendimento dominante, que o factor que serve de base para a distinção entre um concurso aparente de normas e um concurso real é o bem jurídico protegido por cada norma, sendo que, haveria uma relação de consunção sempre que o bem jurídico de uma das normas fosse alvo de protecção pela outra.
II. No caso em apreço, um dos crimes imputados ao arguido é o crime de violência doméstica, que revela uma construção jurídica complexa, na medida em que o bem jurídico tutelado é multifacetado, incorporando várias modalidades de protecção da vítima pois visa proteger a integridade e saúde, quer física, quer psíquica da vítima, a par de proteger a sua dignidade e integridade moral como ser humano.
III. Por isso, na tutela da violência doméstica integram-se outras tutelas que também estão previstas no código penal enquanto tutelas de bens jurídicos isolados, como ocorre no crime de ofensa à integridade física, no crime de ameaça, nos crimes sexuais etc.
IV. No plano dos princípios, todos aqueles crimes podem fazer parte do leque de comportamentos de que o agente se socorre para infligir maus-tratos à vítima, no contexto familiar, clássico da violência doméstica.
V. Assim, o crime de violência doméstica visa, acima de tudo, acautelar situações de vivência conjugal e/ou familiar que, pela sua continuidade no tempo, interacção próxima entre agente e vítima, assente muitas vezes em situações de grande intimidade física, ocorridas num contexto de reserva de vida privada, longe dos olhares das pessoas, e assente numa especial vulnerabilidade da vítima, fruto da sua dependência emocional e/ou económica no agressor, produza comportamentos violentos, reiterados e de difícil destrinça em termos de momentos concretos, levando a que os comportamentos do agressor possam ser agrupados numa “única” actuação criminógena que acaba por pôr em causa todo o suporte psíquico e físico da vítima.
 VI. Mas, se o crime de violência doméstica visa acautelar o que podemos chamar de um bem jurídico complexo ou multifacetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvos de tutela penal, há que compreender quando é que essa tutela global, ínsita no crime de violência doméstica, abrange de forma adequada todo o comportamento criminal do agente, numa tutela eficaz da vítima e quando há que punir, autonomamente, outros comportamentos do agente embora eventualmente perpetrados no mesmo contexto.
VII. Aqui reside o busílis da questão pois que, quando estão em causa crimes que aparentam maior gravidade em termos punitivos, a moldura penal prevista para o crime de violência doméstica não se afigura uma protecção adequada da vítima, nem prossegue os fins das penas.
VIII. É certo que, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 152º do CP, vem prevista uma cláusula de salvaguarda através da qual o legislador determinou que a punição do crime de violência doméstica é de 1 a 5 anos de prisão “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. Ou conforme anota PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “o crime de violência doméstica está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade expressa) com os crimes de ofensas corporais graves, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de 5 anos. Isto é, a punição destes crimes afasta a da violência doméstica”.[1]
IX. Mas, nesta situação o problema mantém-se porquanto, e embora se passa a aplicar ao agente a moldura penal mais elevada dos crimes que isoladamente possa ter perpetrado, o mesmo continua a ser punido por um único crime, passando o crime de violação, por exemplo, a absorver o crime de violência doméstica o que retira por completo a tutela deste crime que, como vimos, merece um enquadramento próprio.
X. Na prática absorver o crime de violação no crime de violência doméstica ou absorver o crime de violência doméstica no crime de violação, nunca permitirá a efectiva tutela de todos os bens jurídicos visados pelas respectivas incriminações penais.
XI. Tem sido jurisprudência constante do STJ[2] o entendimento de que o crime de violação, quando concretamente delimitado, e o crime de violação doméstica estão em situação de concurso efectivo.
XII. Ora, no caso em apreço, dúvidas não podem restar que os factos que permitem integrar a prática pelo arguido de um crime de violação separam-se, de forma até muito clara, dos restantes factos que dão origem à verificação do crime de violência doméstica.
XI. Estamos, assim, claramente perante dois crimes autónomos, quer em termos de resolução criminal, quer em termos de significado e sentido sociais de ilicitude, pelo que ao arguido deve ser imputada, a par da pratica de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do CP, um crime de violação p. e p. pelo art.º 164º nº 1 al. a) do Código Penal, em concurso real ou efectivo de crimes.
(Sumário elaborado pela relatora)
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[1] In “Comentário ao Código Penal”, p. 594.
[2] Cfr. Acórdãos de 10-11-2016 (proc.º nº 163/14.8GBSTC.S1), de 20-04-2017 (proc.º nº 2263/15.8JAPRT.P1.S1), de 07-02-2018 (proc.º nº 312/15.9POLSB.S1), de 27-06-2018 (proc.º nº 131/17.8JAPRT.S1), de 04-07-2018 (proc.º nº 274/16.5GAMCN.P1.S1) e de 21-11-2018 (proc.º nº 574/16.4PBAGH.S1).

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. A) No âmbito do processo comum singular que corre termos pelo Juízo Local Criminal da Ribeira Grande, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, após audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença em 22-06-2020, constante a fls. 178 e ss com a refª 49815193, relativamente ao arguido CR____ através do qual foi determinada a seguinte decisão (transcrição):
VII. DECISÃO:
Pelo exposto, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decido julgar a acusação pública parcialmente procedente e, em consequência:
1. Absolver o arguido CR___, como autor material de 1 (um) crime de Coacção Sexual Agravada p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal.
2. Condenar o arguido CR____ pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, atento o disposto no artigo 50.º, n.º 1 e 5 do Código Penal, mediante a sujeição do arguido a um regime de prova assente num plano individual de readaptação social a ser executado com vigilância e apoio da Direcção Geral de Reinserção Social, destinado a facilitar as condições de reintegração do arguido, nomeadamente com a imposição do cumprimento das directivas e frequência das entrevistas que vierem a ser designadas pela DGRS, com a submissão do arguido à frequência do programa CONTIGO, desenvolvido pela DGRS.
3. Condenar o arguido CR____ , na pena acessória de proibição de contacto com a vítima AS______, pelo período 1 (um) ano e 6 (seis) meses, com afastamento do arguido da residência da vítima e do seu local de trabalho (artigo 152º, nº4 do Código Penal), devendo os contactos a propósito das filhas menores serem efectuados através de outros familiares/terceiros.
4. Condenar o arguido CR____ nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC´s, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 513.º do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais.
B) Nos termos que acima se deixam expostos, o Tribunal decide arbitrar uma indemnização a AS______, nos termos do disposto no artigo 82.º A, do C.P.P. e, em consequência decide-se condenar o arguido CR____ a pagar a AS______, a título de danos não patrimoniais a quantia de 2.000,00€ (dois mil euros).
 
Notifique.
Após trânsito:
- remeta boletim ao Registo Criminal (DSIC): artigos 374, n.º 3, al. d), CPP;
- com cópia da presente sentença, solicite à D.G.R.S. o encetar das diligências necessárias à elaboração do regime de prova.
- comunique ao Organismo da Administração Pública responsável pela área da Cidadania e da Igualdade de Género, e à Direcção-Geral da Administração Interna, para efeitos de registo e tratamento de dados, nos termos do disposto no art.º 37º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.  
Proceda ao depósito da presente sentença na secretaria – artigos 372.º, n.º 5 e 373.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.”

II.  Inconformado com a decisão na parte em que veio absolver o arguido da prática de um crime de coacção sexual agravada, veio o MºPº interpor o recurso junto a fls. 188 e ss, com entrada em 26-06-2020 (refª 3702308), através do qual oferece as seguintes conclusões:
“1) Nos presentes autos, o tribunal decidiu absolver o arguido CR____, do crime de Coacção Sexual Agravada p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do Código Penal, condenando-o pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período.
2) Transcrevemos a seguir os factos dados como provados:
AS______ manteve um relacionamento amoroso com o arguido CR____ durante nove anos, entre datas não concretizadas do Verão de 2010 e de Novembro de 2019. (…)
Desde pelo menos 2018 e até 9 de Novembro de 2019 o arguido, diariamente, apodou a AS______ de “puta”, “cabra” e dizia-lhe que andava sexualmente envolvida com os outros homens. 
Cerca de uma vez por semana, nesse hiato, o arguido disse AS______ que se o deixasse e terminasse o relacionamento iria aparecer morta. 
Ainda no referido lapso de tempo, em dias alternados, o arguido atingiu a AS______ com socos nas costas, pontapés nas pernas e puxões de cabelos.
Desde Julho de 2019 até 9 de Novembro de 2019 o arguido, por 4 a 5 vezes disse à AS______ que queria ter relações sexuais consigo.  
Porquanto a AS______ se negou ter relações sexuais com CR____, o arguido despiu-a. 
Após, nessas ocasiões, o arguido colocou o seu corpo em cima do da AS______, penetrou-a na vagina com o pénis erecto e realizou movimentos de vai e vem dentro daquela até ejacular, sem que tenha usado preservativo.   
Durante as relações sexuais AS______ chorava e dizia ao arguido para parar, mas o arguido ignorava estes apelos e continuava a penetrá-la até ejacular. 
O arguido agiu com a intenção lograda causar sofrimento físico e psicológico a AS______, de a molestar fisicamente, de humilhar e ofender a honra e consideração daquela, de lhe causar medo e receio de ser agredida e mesmo morta e, assim, fazer com que aquela receie a sua presença, que fique indecisa quanto aos comportamentos a tomar em cada momento, que as suas manifestações espontâneas fiquem inibidas, fazendo-o no domicílio comum e na presença dos filhos menores, ao longo de cerca de quase 2 anos.  
O denunciado agiu sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
3) É desta parte da sentença que ora se recorre. Na motivação e fundamentação da decisão, escreveu a Mmª. Juíza:
O arguido vem acusado de ter praticado factos que, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, 1 (um) crime de Violência Doméstica Agravado p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte, 152.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a), 4 e 5 do CP, 1 (um) crime de Coacção Sexual Agravada p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do CP. O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação. Tal normativo penaliza a violência doméstica e/ou familiar, a qual consiste, segundo a definição apresentada pelo Conselho da Europa, no “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade”. (…) Trata-se, de um crime de execução não vinculada, podendo os maus tratos ser infligidos pelas mais variadas acções ou omissões. Por outro lado, o crime em causa é um crime específico, exigindo-se a verificação de determinadas qualidades pessoais do agente em relação ao ofendido (um vínculo de conjugalidade, ou quase-conjugabildade, com ou sem coabitação, a coabitação com pessoa particularmente indefesa, ou a existência de descendente comum em 1.º grau).(…)É esta posição de vulnerabilidade de certas condições individuais que, perante manifestações de prepotência física ou psíquica, pode redundar na “coisificação” de um ser humano, o que significa a eliminação ou limitação insuportável da respectiva dignidade humana, quando esta tem uma consagração constitucional [art.º 1.º, 24.º, n.º 1, 25.º, da C. Rep.] e é uma referência inabalável dos direitos humanos [5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 1.º, 3.º.
4) Entendeu, pois, o douto Tribunal a quo haver uma relação de concurso aparente entre o crime de violência doméstica agravado p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte, 152.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a), 4 e 5 do CP e o crime de coacção sexual p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do CP.
5) Todavia, não podemos perfilhar o entendimento do douto Tribunal a quo, pois, o crime de coacção sexual imputado ao arguido, não é passível de ser consumido pelo crime de violência doméstica, ainda que na sua forma agravada - neste sentido veja-se Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa. Este Autor, apesar de incluir nos crimes abarcados pelo crime de violência doméstica, crimes qualificados como os de ofensas corporais, de difamação ou injúria ou agravados como o de ameaça, deixa, expressamente, de fora o crime de coação.
6)  E tal exclusão é perceptível pelo seguinte: O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é a pessoa individual, da sua dignidade humana, por sua vez, no crime de coacção sexual o bem jurídico protegido é a liberdade e a autodeterminação sexual 7) A coação sexual é, por conseguinte, um crime de resultado e sendo o bem jurídico protegido a liberdade e a autodeterminação sexual, a consumação deste crime exige consequentemente que a pessoa objeto da ação de coação tenha efetivamente sido constrangida a praticar a ação, a omitir a ação ou a tolerar a ação, de acordo com a vontade do coator e contra a sua vontade numa relação de efetiva causalidade.
8) A especialidade referente à coação sexual têm como objetivo a adoção de um comportamento da vítima, que tem que acontecer, sendo a ação do agente apta a fazer dobrar a vontade de quem dela sofra, de uma forma particularmente grave. Tal resultado, ao contrário de todos os outros, é que não pode ser consumido pela violação de uma especial convivência ou relação afectiva posta em causa com a ação. Além desta “violação”, a coação sexual, encerra um plus que extravasa a esfera de proteção da norma do art.º 152.º, do CP.
9) Ora, resultando provado, que o arguido constrangeu de forma violenta a vítima a suportar a imposição da relação sexual, sempre contra a vontade da mesma, não podemos aceitar o entendimento expresso na sentença que concluiu haver uma relação de concurso aparente entre o crime de violência doméstica agravado p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.ºn.º 1, 26.º 1.ª parte, 152.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a), 4 e 5 do CP e o crime de coacção sexual p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do CP.
10) Na verdade, o arguido não agiu, in casu, apenas com o intuito de assustar, intimidar, vexar, ofender, humilhar, diminuir a pessoa da vítima. Agiu também com vontade concretizada de manter relações sexuais de cópula vaginal, contra a sua vontade, após a ter colocado em situação de não poder reagir, visando satisfazer os seus instintos libidinosos.
11)  A acrescer, houve uma vontade autónoma do arguido de constranger a suportar o ato sexual.
12)  Não podemos considerar incorporado este comportamento como um ataque, sob qualquer aspecto, à vivência “conjugal”, este comportamento do arguido destinou-se a outro fim, a desiderato distinto.
13) E nessa medida, teríamos, necessariamente, de considerar autónomo o crime de coação sexual, aqui relativamente ao de violência doméstica (neste sentido vide Ac. TRC, de 09-01-2017, disponível in www.dgsi.pt.). Deste modo, e considerando a forma como se encontram nos autos descritos os factos, bem como resultaram provados, inevitável se torna concluir que o arguido agiu com a única motivação de constranger, condicionando liberdade de ação e autodeterminação da então companheira, com o único intuito, concretizado de manter relações sexuais de cópula vaginal, contra a sua vontade, após a ter colocado em situação de não poder reagir, a ter de suportar a relação sexual, visando satisfazer os seus instintos libidinoso.
14) Este é um “pedaço de vida” completamente autónomo da conduta do arguido configuradora do crime de violência doméstica (neste sentido vide Ac. TRC, de 09-012017, disponível in www.dgsi.pt).
15) Tendo em conta o exposto, temos por líquido que terá que ser autonomizada esta sua conduta das demais e assim condenar o arguido pela prática de um crime de violência doméstica agravado, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2, do CP, em concurso real com um crime de coação sexual p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do CP.
16) A ter em conta a matéria de facto dada como provada, nos termos supra expostos, deve em consequência ser o arguido também condenado pela prática de um crime de coação sexual p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do CP.
17) Assim, considerando os critérios previstos no artigo 40.º do CP e os critérios do artigo 71.º do CP, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que se apuraram a favor e/ou contra o agente, como ao grau da ilicitude do facto, à gravidade das suas consequências, ao grau de violação dos deveres impostos, à intensidade do dolo, às condições pessoais do agente, à sua situação económica e à sua conduta anterior e posterior ao facto.
18) Não tendo o arguido antecedentes criminais e encontrando-se socialmente inserido, têm-se como ajustadas aos critérios previstos no artigo 71.º do CP, e adequadas e suficiente às finalidades da punição, as seguintes penas: 
A pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, aplicada pela sentença recorrida e que se aceita, pela prática do crime de crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal e a pena de (dois) anos e 4 (quatro) meses, pelo crime de coação sexual p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do CP.
19) Assim e em cúmulo, numa pena que se fixaria entre os 4 (quatro) anos e 10 (dez) os 2 (dois) anos e 6 (seis) meses, com os fundamentos supra referidos, entendemos que a pena de deveria fixar nos 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão suspensa na sua execução, nos moldes em que foi decidido nos presentes autos.
Nestes termos e nos melhores de direito que V.Exª. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado condenando-se o arguido CR____, pelo crime de crime de violência doméstica agravado, previsto e punível pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal e em concurso efetivo, com crime de coação sexual p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do CP.
Assim se fazendo a costumada Justiça.”
 
III. O recurso foi admitido por despacho de 28-07-2020 (refª 5001735), constante de fls. 197, tendo sido fixado efeito suspensivo.

IV. Respondeu o arguido através das contra-alegações constantes a fls.  198 e ss, juntas em 29-07-2020 (refª 3747001), pugnando pela improcedência do recurso, e manutenção da decisão recorrida.

V. Foi aberta vista nos termos do disposto no art.º 416º nº 1 do CPP, tendo a Exmª. Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta proferido, em 10-08-2020, o douto parecer constante de fls. 204 (refª 15969862), no qual pugna pela procedência do recurso, acompanhando as conclusões do MºPº da 1ª instância.

VI. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VII: Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos art.ºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no art.º 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]
Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º, por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

O Digno Recorrente entende que o Tribunal a quo não valorou de forma correcta certos factos tendentes a demonstrar a prática de um crime autónomo – o da coacção sexual – tendo concluído pela existência de um concurso aparente de crimes quando, na óptica do Recorrente, há um concurso real de crimes.

Está, assim, em causa, decidir neste arresto se existe um crime autónomo de coacção sexual, que deveria ser graduado de per si, levando a um concurso real de crimes, com a consequente alteração da medida concreta da penal (concursal) ou se a decisão recorrida se mostra conforme com o Direito aplicável.

Antes de entrarmos na análise concreta do objecto do presente recurso, e porque, adiantando, desde já, a nossa perspectiva, há que aferir da existência de um dos vícios constantes do art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal, de conhecimento oficioso, olhemos, primeiro a matéria de facto dada por provada e por não provada.

Assim, o Tribunal a quo deu como provados e não provados os seguintes factos (transcrição):

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
A) Matéria de Facto Provada:
Da audiência de discussão e julgamento resultaram provados os seguintes factos com relevo para a boa decisão da causa:
Da acusação pública:
1. AS______ manteve um relacionamento amoroso com o arguido CR____ durante nove anos, entre datas não concretizadas do Verão de 2010 e de Novembro de 2019.
2. Na constância desse relacionamento tiveram 3 filhos comuns: G_____   nascido em 12-12-2012, de 6 anos de idade, J____   nascida a 25-8-2014, de 5 anos de idade e R_____   nascida em 5-4-2016, de 3 anos de idade.
3. Durante todo esse período viveram como se de marido e mulher se tratassem e em 3 residências distintas: primeiramente na Rua  , entre 2010 e 2013, de seguida na Rua da Praia, n.º 21, na Ribeira Grande entre 2013 e 2017 e por fim, em residência sita na Travessa de Santa Luzia, n.º 6, na Ribeira Grande, desde 2017 até Novembro de 2019.
4. Desde pelo menos 2018 e até 9 de Novembro de 2019 o arguido, diariamente, apodou a AS______ de “puta”, “cabra” e dizia-lhe que andava sexualmente envolvida com os outros homens.
5. Cerca de uma vez por semana, nesse hiato, o arguido disse AS______ que se o deixasse e terminasse o relacionamento iria aparecer morta.
6. Ainda no referido lapso de tempo, em dias alternados, o arguido atingiu a AS______ com socos nas costas, pontapés nas pernas e puxões de cabelos.
7. Desde Julho de 2019 até 9 de Novembro de 2019 o arguido, por 4 a 5 vezes disse à AS______ que queria ter relações sexuais consigo.
8. Porquanto a AS______ se negou ter relações sexuais com CR____, o arguido despiu-a.
9. Após, nessas ocasiões, o arguido colocou o seu corpo em cima do da AS______, penetrou-a na vagina com o pénis erecto e realizou movimentos de vai e vem dentro daquela até ejacular, sem que tenha usado preservativo. 
10. Durante as relações sexuais AS______ chorava e dizia ao arguido para parar, mas o arguido ignorava estes apelos e continuava a penetrá-la até ejacular. 
11. No dia 25 de Agosto de 2019, data do aniversário da filha J____, o arguido espetou um canivete na coxa esquerda na AS______, causando-lhe dores.
12.  Em consequência do sucedido, AS______ necessitou de assistência médica no Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, onde foi suturada com 5 pontos, sem que, contudo, tenha apresentado queixa ou ido ao GML.
13. Em consequência do sucedido, a Ofendida necessitou de assistência médica no Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, onde foi suturada com 5 pontos, sem que, contudo, tenha apresentado queixa ou ido ao GML.
14. No dia 9-11-2019, AS______ saiu de casa e foi residir em Rabo de Peixe, na casa da sua avó, com os seus filhos.
15. A factualidade descrita ocorreu sempre na residência comum acima indicada e na presença dos filhos menores – estes apenas não assistiram às relações sexuais nos termos acima descritos.
16. O arguido não tem qualquer dependência do álcool ou de estupefacientes.
17. AS______ tem muito medo de ser agredida pelo Arguido e pretende que aquele seja impedido de se aproximar da sua residência.
18. O arguido agiu com a intenção lograda causar sofrimento físico e psicológico a AS______, de a molestar fisicamente, de humilhar e ofender a honra e consideração daquela, de lhe causar medo e receio de ser agredida e mesmo morta e, assim, fazer com que aquela receie a sua presença, que fique indecisa quanto aos comportamentos a tomar em cada momento, que as suas manifestações espontâneas fiquem inibidas, fazendo-o no domicílio comum e na presença dos filhos menores, ao longo de cerca de quase 2 anos.
19. O denunciado agiu sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou que:
Da situação pessoal, económica, profissional, familiar e antecedentes criminais do arguido:
20. O arguido não tem antecedentes criminais.
21. Oriundo de agregado familiar numeroso e carenciado, CR____ é o segundo na ordem de nascimento de seis irmãos. 
22. O arguido integrou o sistema de ensino em idade própria, abandonou os estudos sem que tenha conseguido concluir o 4ºano de escolaridade, o qual viria a completar em idade adulta após encaminhamento da Agência para a Qualificação e Emprego de Ponta Delgada.
23. Em termos profissionais, ainda que registe alguma experiência profissional no setor da construção civil, como pedreiro, nunca conseguiu consolidar esse percurso laboral, mantendo o desempenho ocasional dessa atividade, recebendo, ao dia, 30 euros – circunstâncias em que se encontrava à data dos factos.
24. Actualmente o arguido reside com no agregado de origem, no qual se encontra inserido até ao momento, coabitando com a progenitora, dois irmãos e uma sobrinha, todos adultos.  25. A mãe é doméstica, e os dois elementos da fratria laboralmente ativos.
 26. O arguido continua a beneficiar de Rendimento Social de Inserção, atualmente no valor aproximado de 100 euros, o qual é revertido para a economia doméstica, sendo algum do seu tempo ocupado com o seu irmão no setor agropecuário.
 27. Desde que se encontra separado, mantém o contacto regular com os filhos através do apoio prestado pelos familiares do arguido e colaboração prestada pela mãe dos menores.
28. Actualmente, o filho mais velho do casal, reside com o arguido.

B) Matéria de Facto Não provada:
Não se provaram quaisquer outros factos que não aqueles que acima foram referidos, nomeadamente:
a) Os factos descritos em 4) e seguintes iniciaram-se no ano de 2014.
b) O arguido apelidava AS______ de “nojenta”.
c) No Verão de 2019, em data não concretizada, o arguido espetou um canivete na coxa esquerda na AS______, causando-lhe dores, sem que aquela, contudo, tenha recebido assistência médica ou apresentado queixa.
d) Nas circunstâncias de tempo e lugar mencionadas em 8), o arguido puxou a roupa de AS______ com força e puxou-lhe os cabelos e disse-lhe que se não queria fazê-lo era porque deveria andar sexualmente envolvida com outros homens.
e) No dia 25 de Agosto de 2019, data do aniversário da filha J____, o arguida atirou a AS______ uns copos de vidro atingindo-a na zona da perna direita, cortando-a e causando-lhe sangramento.
f) Em consequência do sucedido, a Ofendida necessitou de assistência médica no Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, onde foi suturada com 5 pontos, sem que, contudo, tenha apresentado queixa ou ido ao GML.
g) No dia 9-11-2019, pelas 7h45, o arguido disse a AS______ na sequência de uma discussão que se esta saísse de casa iria ser morta.
h) Neste momento AS______ está a residir em Rabo de Peixe, na casa da sua avó, com os seus filhos.
i) AS______ receia que os seus filhos possam igualmente ser agredidos pelo arguido.
j) O arguido tem vindo a contactar AS______ pedindo-lhe para estar com os filhos e reatar o relacionamento.
k) O arguido é possuidor de um número indeterminado de facas, com lâmina de cerca de 30cm, que usa para a realização de trabalhos esporádicos remunerados em quintas. 
l) O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de manter relações sexuais de cópula vaginal com a AS______, contra a sua vontade, após colocá-la em situação de não poder reagir àquele, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela.”  - sublinhados nossos

Questão Prévia:
Do vício constante do art.º 410º nº 2 al. c) do Código de Processo Penal:

Dispõe o art.º 410º do Código de Processo Penal o seguinte:
 “1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;     
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”  

Conforme esclarecem Simas Santos e Leal Henriques[2] “Deve notar-se que a al. a) do nº 2 se refere à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.
Por sua vez a contradição a que se reporta a al. b) é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência.
Finalmente o erro notório na apreciação da prova a que alude a al. c) é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente. Esse erro existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, v.g., quando se dá por assente que o arguido está num determinado local a determinada hora e ao mesmo tempo se tem como provado que ele estava em local longínquo minutos depois; ou quando se dá por assente que o arguido disparou três tiros de pistola a 4 metros de uma mesa onde estavam sentadas várias pessoas, no interior de um café apinhado e se dá por provado que ele não previu a possibilidade de atingir mortalmente alguém.(…)
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ao as legis artis.
Não pode esquecer-se que, como se prescreve na 2ª parte do corpo do nº 2, os vícios apontados nas suas alíneas têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou com recurso às regras da experiência comum, não sendo permitida a consulta de outros elementos constantes do processo.”

Os vícios previstos no art.º 410º do CPP, sendo de conhecimento oficioso, são vícios que resultam da análise da sentença em si, sem recurso a outros elementos processuais, e são vícios patentes que sobressaem da sentença pela simples leitura desta.

Ou conforme se refere no recente Acórdão do STJ de 06-02-2019 (in stj.pt) tratam-se de vícios que “decorrem do texto da própria decisão”.

No caso em apreço, o Tribunal a quo deu por provados factos que estão em frontal oposição lógica com um facto que deu por não provado.

Vejamos.

O Tribunal a quo considerou provado que:

7. Desde Julho de 2019 até 9 de Novembro de 2019 o arguido, por 4 a 5 vezes disse à AS______ que queria ter relações sexuais consigo.
8. Porquanto a AS______ se negou ter relações sexuais com CR____, o arguido despiu-a.
9. Após, nessas ocasiões, o arguido colocou o seu corpo em cima do da AS______, penetrou-a na vagina com o pénis erecto e realizou movimentos de vai e vem dentro daquela até ejacular, sem que tenha usado preservativo. 
10. Durante as relações sexuais AS______ chorava e dizia ao arguido para parar, mas o arguido ignorava estes apelos e continuava a penetrá-la até ejacular. 

Mas depois considerou como não provado que:

l) O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de manter relações sexuais de cópula vaginal com a AS______, contra a sua vontade, após colocá-la em situação de não poder reagir àquele, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela.

Ora, é absolutamente ilógico, de acordo com as regras da experiência comum, que tendo o arguido, bem sabendo que a vítima se tinha negado a ter relações sexuais consigo, mesmo assim, contra a vontade da mesma, que durante o acto chora e diz para parar, insiste em despir e se colocar por cima da vítima, penetra na sua vagina com o seu pénis erecto e realiza movimentos de “vai e vem” até ejacular, não quisesse com tal comportamento satisfazer os seus instintos libidinosos.

Como ainda mais ilógico é afirmar que, face a esse quadro fáctico, o arguido não tivesse agido com o intuito de desrespeitar a liberdade e autodeterminação sexual da vítima e que não tivesse agido com o propósito concretizado de manter relações sexuais de cópula vaginal com a vítima, contra a vontade desta.

Poderia ter havido um segundo intuito de humilhar a vítima (o que não é raro nestes casos) mas a verdade é que o arguido sabia que a vítima não queria ter relações sexuais consigo, que mesmo assim forçou o seu corpo no da vítima que a penetrou com o seu pénis erecto e que efectuou movimentos aptos a levá-lo a ejacular-se.

Se isto não traduz uma vontade de satisfazer os seus desejos libidinosos, de querer manter relações sexuais de cópula vaginal, e se não traduz um acto contra a vontade de uma pessoa então, sinceramente, não sabemos o que o Tribunal a quo entenderia necessário para chegar a esta lógica e racional conclusão.

Salta, assim, à vista que a sentença em apreço padece de erro notório na apreciação da prova porquanto é dado como “não provado” um facto que nunca poderia ser considerado não provado em face da restante matéria de facto dada por provada.

Os factos em apreço inserem-se na livre apreciação do Tribunal, permitida pelo art.º 127º do CPP que assenta, por sua vez,  numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e das máximas da experiência, sendo que é patente a contradição na lógica interna entre os factos dado por provados em 7 a 10 e o facto dado por não provado sob a alínea l).

Pelo que, deve esta Relação proceder à correcção oficiosa da matéria de facto[3], devendo transitar da matéria de facto não provada a alínea l), com a redacção “O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de manter relações sexuais de cópula vaginal com a AS______, contra a sua vontade, após colocá-la em situação de não poder reagir àquele, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela” para a matéria de facto provada, passando tal facto a assumir o número 18-A.

Com esta correcção, vejamos agora o objecto do presente recurso, olhando primeiro a fundamentação oferecida pelo Tribunal a quo pelo enquadramento jurídico que fez (transcrição).

IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
O arguido vem acusado de ter praticado factos que, em autoria material, na forma consumada, e em concurso efectivo, 1 (um) crime de Violência Doméstica Agravado p. e p. pelos art.ºs 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte, 152.º n.º 1 al. b) e n.º 2 al. a), 4 e 5 do CP, 1 (um) crime de Coacção Sexual Agravada p. e p. pelos arts.º 13.º, 14.º n.º 1, 26.º 1.ª parte e 163.º n.ºs 1 e 2 do CP.
Estatui o artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2 do Código Penal que: “1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus-tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (…) b) a pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação; (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal (…) 2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”
Por sua vez, preceitua o artigo 163.º, n.º 1 e 2 do Código Penal que “1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até cinco anos. 2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.”
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica é complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e dignidade da pessoa humana, em contexto de coabitação.
Tal normativo penaliza a violência doméstica e/ou familiar, a qual consiste, segundo a definição apresentada pelo Conselho da Europa, no “acto ou omissão cometido no âmbito da família por um dos seus membros, que constitua atentado à vida, à integridade física ou psíquica ou à liberdade de um outro membro da mesma família ou que comprometa gravemente o desenvolvimento da sua personalidade”.
O bem jurídico protegido com a incriminação consiste na saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra tratos cruéis, degradantes ou desumanos, em suma, um bem jurídico complexo que abrange a tutela da saúde física, psíquica, sexual, emocional e moral.
Relativamente à factualidade típica, exige-se que sejam infligidos a outra pessoa maustratos físicos ou psíquicos. Trata-se, de um crime de execução não vinculada, podendo os maustratos ser infligidos pelas mais variadas acções ou omissões.
Por outro lado, o crime em causa é um crime específico, exigindo-se a verificação de determinadas qualidades pessoais do agente em relação ao ofendido (um vínculo de conjugalidade, ou quase-conjugabildade, com ou sem coabitação, a coabitação com pessoa particularmente indefesa, ou a existência de descendente comum em 1.º grau).
É esta posição de vulnerabilidade de certas condições individuais que, perante manifestações de prepotência física ou psíquica, pode redundar na “coisificação” de um ser humano, o que significa a eliminação ou limitação insuportável da respectiva dignidade humana, quando esta tem uma consagração constitucional [art.º 1.º, 24.º, n.º 1, 25.º, da C. Rep.] e é uma referência inabalável dos direitos humanos [5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º da CDFUE].
Trata-se, por isso, de “uma “tutela especial e reforçada” da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima” (vide Acórdão da Relação do Porto de 28.09.2011, disponível in www.dgsi.pt).
Assim, o que se pretende criminalmente proibir são aqueles maus-tratos conducentes à violação ostensiva da saúde física ou psíquica das pessoas que integram aquelas relações familiares ou análogas ou então de coabitação, podendo ainda abarcar a afectação da sua privacidade, seja ao nível da sua liberdade pessoal em geral ou da sua autodeterminação sexual em particular (vide, a título de exemplo os Acórdãos da Relação do Porto de 3.11.1999 e 26.05.2010 e da Relação de Coimbra de 6.7.2005, respectivamente na CJ V/223, III/216 e IV/41).
Nesta conformidade, podemos assentar e partindo do bem jurídico aqui tutelado que os maus tratos proibidos pelo crime de violência doméstica têm sempre subjacente um tratamento degradante ou humilhante de uma pessoa, de modo a eliminar ou a limitar claramente a sua condição humana, reduzindo-a praticamente à categoria de coisa.
No que ao elemento subjectivo concerne, trata-se de um crime doloso, dispensando a lei qualquer dolo específico, mas antes, contentando-se com os requisitos gerais do dolo, em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
Integram, ou não, os factos dados como provados, este tipo legal de crime?
Desde já adiantamos que, entendemos que sim, estando preenchidos quer os elementos objectivos quer subjectivos do crime em análise.
E o crime de coacção sexual agravada? Estão preenchidos os seus elementos objectivos e subjectivos?
Provou-se que desde Julho de 2019 até 9 de Novembro de 2019 o arguido, por 4 a 5 vezes disse à AS______ que queria ter relações sexuais consigo.
Porquanto a AS______ se negou ter relações sexuais com CR____, o arguido despiu-a. Após, nessas ocasiões, o arguido colocou o seu corpo em cima do da AS______, penetrou-a na vagina com o pénis erecto e realizou movimentos de vai e vem dentro daquela até ejacular, sem que tenha usado preservativo. Durante as relações sexuais AS______ chorava e dizia ao arguido para parar, mas o arguido ignorava estes apelos e continuava a penetrá-la até ejacular. 
No caso concreto, não se provou qualquer acto de violência, pelo que cai por terra desde logo qualquer agravação deste artigo. Assim, resta-nos ponderar se entre os crimes imputados ao arguido de violência doméstica e coação existe uma relação concurso efectivo ou de concurso aparente.
Na esteira do defendido por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, à Luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, página 405, entendemos que as ofensas sexuais previstas no artigo 152.º, n.º 1 do Código Penal incluem a coação sexual, pelo que existe uma situação de concurso aparente (consumpção), devendo o arguido ser punido apenas pela violência doméstica (e absolvido pelo crime de coacção sexual agravada).
Assim, e não se verificando qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, temos de concluir que estão preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de violência doméstica agravado, previsto e punido artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, do Código Penal, pelo qual vinha acusado.”

O Tribunal a quo perfilhou o entendimento de que o crime de violência doméstica e o crime de coacção sexual estariam numa situação de concurso aparente de crimes, onde este último é absorvido, ou consumido, por aquele, em vez de um concurso real de crimes que obrigaria a fixar uma pena para cada um dos tipos legais em causa, com a consequente determinação de uma pena única concursal.

Antes de entrarmos na análise de toda a problemática do concurso de crimes, subjacente ao objecto do presente recurso, há que, previamente, definir os crimes que estão em “concurso”, quer aparente ou efectivo, uma vez que se nos afigura haver uma qualificação jurídica errónea do crime de coacção sexual.

Vejamos.

O crime de coacção sexual está previsto no art.º 163º do Código Penal que diz o seguinte:
“1 - Quem, sozinho ou acompanhado por outrem, constranger outra pessoa a praticar ato sexual de relevo é punido com pena de prisão até cinco anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa a sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, acto sexual de relevo é punido com pena de prisão de um a oito anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática de ato sexual de relevo contra a vontade cognoscível da vítima.” – sublinhado nosso
           
O crime de violência doméstica encontra-se previsto no art.º 152º do Código Penal o qual dispõe o seguinte:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.”

Se esta Relação não tem qualquer dúvida de que os factos dados por provados sob os nºs 1 a 6, 11 a 13, 15, 18 e 19 permitem subsumir o respectivo comportamento do arguido no crime de violência doméstica, já o mesmo não podemos dizer acerca do crime de coacção sexual que consta da acusação e que foi considerada pelo Tribunal a quo, embora tivesse vindo, depois, a considerar tal crime consumido pelo crime de violência doméstica.

Isto porquanto, os factos dados por provados sob os nºs 7 a 10 não traduzem uma coacção sexual, tal como definido no art.º 163º do Código Penal, mas, antes, integram o crime previsto no art.º 164º do Código Penal, subordinado à epígrafe “violação” que diz o seguinte:

“1 - Quem constranger outra pessoa a:
a) Praticar consigo ou com outrem cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) Praticar atos de introdução vaginal, anal ou oral de partes do corpo ou objetos;
é punido com pena de prisão de um a seis anos.
2 - Quem, por meio de violência, ameaça grave, ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir, constranger outra pessoa:
a) A sofrer ou a praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou
b) A sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos;
é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, entende-se como constrangimento qualquer meio, não previsto no número anterior, empregue para a prática dos atos referidos nas respetivas alíneas a) e b) contra a vontade cognoscível da vítima.”
           
Os factos dados por provados sob os nºs 8 a 10 descrevem, de forma clara e sem margem para dúvida, uma cópula, uma penetração pelo arguido na vagina da vítima com o seu pénis erecto seguido de movimento “vai e vem” até ejaculação.

O arguido pura e simplesmente forçou a mulher a ter relações sexuais completas consigo.

Isto não é um acto sexual de relevo previsto no art.º 163º do CP que, no fundo, se subtrai ao crime de violação precisamente porque não há, nem cópula, nem coito (anal ou oral) nem introdução da vagina, ânus ou boca por objectos, mas, antes, é o acto sexual por excelência.

Por isso, não se entende, por um lado, porque motivo o MºPº acusou o arguido pela prática de crime de coacção sexual, dados os factos que plasmou na sua acusação e que foram dados por provados na sentença, nem porque motivo o Tribunal a quo entendeu que estaria em causa um crime de coacção sexual que, todavia, viria a integrar no crime de violência doméstica, através da figura do concurso aparente de consumpção.

Na realidade, o que está descrito nos factos é uma violação da vítima por parte do arguido.

Cabe, agora perguntar, se esta alteração jurídica implica uma alteração substancial dos factos.

A nosso ver a resposta tem de ser negativa porquanto não se imputaram ao arguido novos ou diferentes factos, sendo que os factos dos quais nos socorremos já todos constavam da acusação.

Apenas se procedeu a uma requalificação jurídica do crime em apreço, atentos os factos já constantes da acusação.

Ora, o disposto no nº 3 do art.º 358º do CPP é claro ao considerar uma simples alteração da qualificação jurídica dos factos uma alteração não substancial, devendo apenas ser assegurado o direito ao contraditório por parte do arguido, o que esta Relação garantiu ao mandar cumprir previamente o disposto no art.º 424º nº 3 do CPP, sendo que o arguido nenhuma oposição veio oferecer.

Pelo que, temos por certo que o arguido cometeu um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do CP e um crime de violação p. e p. pelo art.º 164º nº 1 al. a) do CP.

Delineados, que estão, os crimes praticados pelo arguido, vejamos então, olhando o quadro legal, doutrinal e jurisprudencial, se entre os mesmos ocorre um concurso efectivo, como entende o Digno Recorrente ou se, pelo contrário, existe apenas um concurso aparente, conforme foi entendimento do Tribunal a quo e, nesse caso, qual dos dois crimes consome o outro.

O concurso efectivo ou real de crimes vem previsto no art.º 30º nº 1 do Código Penal, subordinado à epígrafe “concurso de crimes e crime continuado” que diz o seguinte:

“1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.”

No entanto, a doutrina e jurisprudência portuguesas tem, ao longo dos anos, se debatido com a figura do concurso aparente de crimes que Eduardo Correia[4] explica da seguinte maneira:
“Muitas normas do direito criminal – como aliás as de outros ramos de direito – estão umas para com as outras em relação de hierarquia, no sentido precisamente de que a aplicação de algumas delas exclui, sob certas circunstâncias, a possibilidade de eficácia cumulativa de outras. De onde resulta que a pluralidade de tipos que se podem considerar preenchidos quando se toma isoladamente cada uma das respectivas disposições penais, vem do fim de contas em muitos casos, olhadas tais relações de mútua exclusão e subordinação, a revelar-se inexistente. Neste sentido se afirma que se estará então perante um concurso legal ou aparente de infracções.”

Essa relação de hierarquia ou dependência traduz-se em:
- especialidade: que se traduz “na relação que se estabelece entre dois ou mais preceitos, sempre que na «lex specialis» se contêm já todos os elementos duma «lex generalis», isto é, daquilo que chamamos um tipo fundamental de crime, e, ainda certos elementos especializadores.”[5]
- consunção: quando se verificam entre as normas legais uma relação de mais e de menos: “uns contêm-se já nos outros, de tal maneira, que uma norma consome já a protecção que a outra visa. Daí que, ainda com fundamento na regra «ne bis in idem», se tenha de concluir que «lex consumens derogat legi consumtae.»”[6]
- subsidiariedade: “neste grupo se englobariam não só as relações que entre certos preceitos se estabelecem pelo facto de uns condicionarem expressamente a sua eficácia ao facto de outros se não aplicarem (subsidiariedade expressa), mas também aquelas outras cuja eficácia se apoia numa certa relação lógica entre normas criminais (subsidiariedade tácita).”[7]

Em termos jurisprudenciais o tema da distinção entre o concurso real de infracções e o concurso aparente é recorrente, sendo que o Acórdão do STJ de 27-05-2010 (proc.º nº 474/09.4.L1.S1 in dgsi.pt) por ser particularmente claro sobre assunto merece aqui o seguinte destaque:

“I - A problemática relativa ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), das mais complexas na teoria geral do direito penal, tem no art.º 30.º do CP, a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
II - O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados. E efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico.
III - A indicação da lei acolhe, pois, as construções teoréticas e as categorias dogmáticas que, sucessivamente elaboradas, se acolhem nas noções de concurso real e concurso ideal.
IV - Há concurso real quando o agente pratica vários actos que preenchem autonomamente vários crimes ou várias vezes o mesmo crime (pluralidade de acções), e concurso ideal quando através de uma mesma acção se violam várias normas penais ou a mesma norma repetidas vezes (unidade de acção).
V - O critério teleológico que a lei acolhe no tratamento do concurso de crimes, condensado na referência a crimes «efectivamente cometidos», é adequado a delimitar os casos de concurso efectivo (pluralidade de crimes através de uma mesma acção ou de várias acções) das situações em que, não obstante a pluralidade de tipos de crime eventualmente preenchidos, não existe efectivo concurso de crimes (os casos de concurso aparente e de crime continuado).
VI - Ao lado das espécies de concurso próprio (ideal ou real) há, com efeito, casos em que as leis penais concorrem só na aparência, excluindo uma as outras.
VII - A ideia fundamental comum a este grupo de situações é a de que o conteúdo do injusto de uma acção pode determinar-se exaustivamente apenas por uma das leis penais que podem entrar em consideração – concurso impróprio, aparente ou unidade de lei.
VIII - A determinação dos casos de concurso aparente faz-se, de acordo com as definições maioritárias, segunda regras de especialidade, subsidiariedade ou consumpção.
IX - Há consumpção quando o conteúdo de injusto de uma acção típica abrange, incluindo-o, outro tipo de modo que, de um ponto de vista jurídico, expressa de forma exaustiva o desvalor (cf. H. H. Jescheck e Thomas Weigend, "Tratado de Derecho Penal", 5ª edição, pág. 788 e ss.).
X - A razão teleológica para determinar as normas efectivamente violadas ou os crimes efectivamente cometidos, só pode encontrar-se na referência a bens jurídicos que sejam efectivamente violados. O critério do bem jurídico como referente da natureza efectiva da violação plural é, pois, essencial.” – sublinhado nosso

É, entendimento dominante, que o factor que serve de base para a distinção entre um concurso aparente de normas e um concurso real é o bem jurídico protegido por cada norma, sendo que, haveria uma relação de consunção sempre que o bem jurídico de uma das normas fosse alvo de protecção pela outra.

No caso em apreço, um dos crimes imputados ao arguido é o crime de violência doméstica, que revela uma construção jurídica complexa, na medida em que o bem jurídico tutelado é multifacetado, incorporando várias modalidades de protecção da vítima pois visa proteger a integridade e saúde, quer física, quer psíquica da vítima, a par de proteger a sua dignidade e integridade moral como ser humano.

Por isso, na tutela da violência doméstica integram-se outras tutelas que também estão previstas no código penal enquanto tutelas de bens jurídicos isolados, como ocorre no crime de ofensa à integridade física, no crime de ameaça, nos crimes sexuais etc.

No plano dos princípios, todos aqueles crimes podem fazer parte do leque de comportamentos de que o agente se socorre para infligir maus-tratos à vítima, no contexto familiar, clássico da violência doméstica.

Assim, o crime de violência doméstica visa, acima de tudo, acautelar situações de vivência conjugal e/ou familiar que, pela sua continuidade no tempo[8], interacção próxima entre agente e vítima, assente muitas vezes em situações de grande intimidade física, ocorridas num contexto de reserva de vida privada, longe dos olhares das pessoas, e assente numa especial vulnerabilidade da vítima, fruto da sua dependência emocional e/ou económica no agressor, produza comportamentos violentos, reiterados e de difícil destrinça em termos de momentos concretos, levando a que os comportamentos do agressor possam ser agrupados numa “única” actuação criminógena que acaba por pôr em causa todo o suporte psíquico e físico da vítima.

Como se refere no Acórdão do STJ de 07-02-2018 (proc.º nº 312/15.9POLSB.S1 in www.dgsi.pt):
“O crime de violência doméstica é um caso paradigmático de neocriminalização fundamentada, revelando a preocupação do legislador em recorrer à via repressiva para erradicar tanto quanto possível esta forma de violência, muito disseminada na sociedade, onde ainda persistem resquícios de uma mentalidade patriarcal hoje completamente anacrónica, sendo embora certo que o fenómeno é transversal a toda a sociedade, e não específico de certos estratos sociais, que geralmente incide sobre as mulheres, e que até há pouco tempo não merecia uma censura social correspondente à sua danosidade e à sua reprovabilidade.
Este tipo de violência é com efeito de enorme gravidade: praticada geralmente na sombra do lar, sem testemunhas, dirigida contra pessoas indefesas, quer pela fragilidade física, quer pela idade (menoridade ou idade avançada), quer pela “hierarquia” de posições (no caso de o ofendido ser filho), quer pela relação de domínio psíquico que o agressor consegue, pela violência ou pela astúcia, estabelecer sobre a vítima, acabando na grande maioria das vezes por reduzi-la a um ser sem vontade própria, sem capacidade de afirmação pessoal, muito menos de reacção perante qualquer agressão, inclusivamente sem capacidade de denúncia junto das autoridades, ou mesmo de familiares ou confidentes, das violências sofridas.”
Mas, se o crime de violência doméstica visa acautelar o que podemos chamar de um bem jurídico complexo ou multifacetado, podendo nele ser integrado uma série de comportamentos que, isoladamente, também são alvos de tutela penal, há que compreender quando é que essa tutela global, ínsita no crime de violência doméstica, abrange de forma adequada todo o comportamento criminal do agente, numa tutela eficaz da vítima e quando há que punir, autonomamente, outros comportamentos do agente embora eventualmente perpetrados no mesmo contexto.

Aqui reside o busílis da questão pois que, quando estão em causa crimes que aparentam maior gravidade em termos punitivos, a moldura penal prevista para o crime de violência doméstica não se afigura uma protecção adequada da vítima, nem prossegue os fins das penas.

Vejamos.

No caso do crime de violência doméstica, a moldura penal é de 1 a 5 anos, ou de 2 a 5 anos, consoante estejamos perante o crime previsto no nº 1 ou no nº 2 do art.º 152º do Código Penal.

No caso de uma violação com violência, prevista no nº 2 do art.º 164º do Código Penal, a moldura penal é de 3 a 10 anos de prisão.

Se se considerássemos que o crime de violação era consumido pelo crime de violência doméstica, porque pode efectivamente integrar o quadro de humilhação, maus-tratos e subjugação da vítima, na figura de “ofensa sexual” prevista no respectivo tipo legal, então, claro se torna ver que a punição do agente apenas pelo art.º 152º do Código Penal fica muito aquém da tutela penal prevista para o crime de violação tomado isoladamente.
É certo que, nos termos do disposto no nº 1 do art.º 152º do CP, vem prevista uma cláusula de salvaguarda através da qual o legislador determinou que a punição do crime de violência doméstica é de 1 a 5 anos de prisão “se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”.

Ou conforme anota PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “o crime de violência doméstica está numa relação de concurso aparente (subsidiariedade expressa) com os crimes de ofensas corporais graves, contra a liberdade pessoal e contra a liberdade e autodeterminação sexual que sejam puníveis com pena mais grave do que prisão de 5 anos. Isto é, a punição destes crimes afasta a da violência doméstica”.[9]

Mas, nesta situação o problema mantém-se porquanto, e embora se passa a aplicar ao agente a moldura penal mais elevada dos crimes que isoladamente possa ter perpetrado, o mesmo continua a ser punido por um único crime, passando o crime de violação, por exemplo, a absorver o crime de violência doméstica o que retira por completo a tutela deste crime que, como vimos, merece um enquadramento próprio.

Na prática absorver o crime de violação no crime de violência doméstica ou absorver o crime de violência doméstica no crime de violação, nunca permitirá a efectiva tutela de todos os bens jurídicos visados pelas respectivas incriminações penais.

Conforme refere INÊS FERREIRA LEITE a propósito da «inadequação de uma perspectiva formal sobre a “relação de subsidiariedade” nas incriminações da violência doméstica ou dos maus tratos (art.ºs 152.º e 152.º-A do CP)[10]»:

“Em ambos os tipos se pode encontrar uma cláusula de subsidiariedade expressa, a partir da qual grande parte da doutrina retira a mera existência de concurso aparente entre qualquer um destes crimes e o crime de ofensa à integridade física, prevalecendo a violência doméstica ou os maus tratos se a ofensa for simples; já quando a ofensa seja grave ou qualificada, será este o tipo prevalecente (-). Dispensando-se qualquer verificação prévia de uma unidade normativo-social do facto e sabendo que a violência doméstica e os maus tratos incluem no seu âmbito típico a reiteração (-), por vezes até durante anos (-), das condutas aí descritas, verifica-se que, mesmo após anos de contínua violência física e psíquica, a prática isolada de um acto subsumível a um dos tipos em relação de subsidiariedade – art.ºs 131.º, 144.º, 158.º, n.º 2, 164.º, n.º 1, entre outros – bastaria para que o agente fosse punido apenas no âmbito do tipo prevalecente. O que conduziria a uma manifesta contradição axiológica, quer no que respeita à ratio da incriminação, quer quando se proceda a uma comparação entre este e outros casos de concurso (-)”.[11]  – sublinhado nosso

O que, para esta autora, resulta de uma criticável “concepção lógico-formal das relações entre tipos e de uma errónea compreensão sobre os bens jurídicos tutelados pelos crimes em questão”.[12]

Refere ainda esta autora que:
“para saber quando é que existe concurso aparente entre o crime de violência doméstica ou o crime de maus tratos e outras incriminações, é necessário saber, primeiro, quais os bens jurídicos efectivamente tutelados naqueles tipos e, seguidamente, que tipo de condutas podem aí incluir-se. Importa partir do tipo social dos crimes em causa para a delimitação típica do facto, quando confrontado com outros tipos de crime com aparentes pretensões concorrentes de regulação do caso da vida. Ora, o tipo social da violência doméstica, tal como o dos maus tratos, comporta uma imensa amplitude e diversidade de condutas, desde a simples ameaça ao homicídio (-). Porém, analisados os tipos legais, verifica-se que não foi intenção do legislador incluir nos respectivos âmbitos todas estas variações, dada a cláusula da subsidiariedade. Por outro lado, o bem jurídico tutelado não é, de forma isolada, a integridade física, a liberdade sexual ou a vida (-), mas antes uma dimensão complexa e de certa forma antecipatória (-) destas vertentes pessoais: a saúde.” – sublinhado nosso
(…) a relação entre os tipos dos art.ºs 152.º e 152.º-A do CP com outras incriminações depende, como sempre, de um juízo de unidade normativo-social. A prática mais ou menos constante e reiterada das condutas descritas nos respectivos tipos ao longo de dias, semanas, meses ou anos, desde que cada uma dessas condutas não permita a sua autonomização, dará origem a uma unicidade normativo-social, tipicamente imposta (-), pelo que o agente terá praticado um só crime, desde que esteja em causa uma só vítima. Esta unidade pode vir a cindir-se (…) no entanto, quando algum dos actos isolados permita a verificação do tipo social de um crime mais grave – ofensa à integridade física grave (-), violação (-), homicídio -, deverá ser punido em concurso efectivo com os crimes de violência doméstica ou maus tratos, sempre que, para além dos actos isolados, tenham ocorrido reiterados ataques à saúde da vítima (-). A subsidiariedade verifica-se apenas quando se trate de um acto isolado gravoso – por haver unidade normativo-social -, devendo, então, prevalecer o tipo com a moldura legal mais abrangente.”[13]

Tem sido jurisprudência constante do STJ[14] o entendimento de que o crime de violação, quando concretamente delimitado, e o crime de violação doméstica estão em situação de concurso efectivo.
           
A título meramente exemplificativo e porque o sumário do Ac. STJ de 21-11-2018 (proc.º nº 574/16.4PBAGH.S1 – in www.dgsi.pt) faz um excelente apanhado doutrinário e jurisprudencial, ademais tendo por base o crime de violação, tal como corre nos presentes autos, passamos a citá-lo conforme segue:

“I - O art.º 164.º, n.º 1, do CP descreve o crime de violação como um caso especial de coacção sexual, uma coacção sexual qualificada. O agente constrange a vítima (por meio de violência, ameaça grave ou depois de, para esse fim, a ter tornado inconsciente ou posto na impossibilidade de resistir), seja menor ou adulto, homem ou mulher, a sofrer ou praticar, consigo ou com outrem, cópula, coito anal ou coito oral; ou a sofrer introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos. Com o que se criminalizam condutas que atentam gravemente contra a liberdade da vontade do sujeito, através de coacção grave ou violência.
II - No caso presente, de acordo com a factualidade provada, a conduta do arguido integra os elementos objectivos [agarrou a ofendida, empurrou-a para cima da cama, deu-lhe duas pancadas nas pernas e agarrou-a pelo pescoço», tirou-lhe a roupa que envergava, colocou-se sobre o corpo da mesma, afastou-lhe as pernas com o uso da força física e penetrou-a na vagina com o pénis erecto, tendo continuado com a sua actuação apesar de a ofendida lhe ter pedido que a largasse] e subjectivos do tipo de ilícito que lhe vinha imputado, impondo-se a conclusão de que cometeu um crime de violação.
III - Sistematicamente integrado, no CP, no título dedicado aos crimes contra as pessoas e, especificamente, no capítulo dos crimes contra a integridade física, a teleologia do crime de violência doméstica assenta na protecção da pessoa individual e da sua dignidade humana, punindo aquelas condutas que lesam esta dignidade, quer na vertente física como psíquica.
IV - O n.º 1 do art.º 152.º do CP, com o segmento «se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal», consagra, de modo expresso, regra da subsidiariedade, significando, segundo alguns, que a punição por este crime apenas terá lugar quando ao crime geral a que corresponde a ofensa não seja aplicada uma pena mais grave.
V - Neste entendimento, se a punição do(s) crime(s) concorrente(s) for superior a 5 anos – pena mais elevada do que a máxima abstracta prevista para a violência doméstica – estaremos perante um concurso aparente de crimes, sendo a incriminação do art.º 152.º afastada em resultado da regra da subsidiariedade.
VI - Uma aplicação meramente formal e positivista da regra da subsidiariedade expressa no citado art.º 152.º, do CP poderá traduzir-se numa injustiça material de muitas decisões e num benefício para o infractor-arguido dificilmente tolerável.
VII - A prática mais ou menos constante e reiterada das condutas descritas no art.º 152.º, do CP desde que cada uma dessas condutas não permita a sua autonomização, dará origem a uma unicidade normativo-social, tipicamente imposta, pelo que o agente terá praticado um só crime, desde que esteja em causa uma só vítima.
VIII - Esta unidade pode vir a cindir-se, no entanto, quando algum dos actos isolados permita a verificação do tipo social de um crime mais grave – ofensa à integridade física grave, violação, homicídio -, devendo o agente ser punido em concurso efectivo com os crimes de violência doméstica.
IX - Na relação do crime de violência doméstica com outros de pena mais elevada, considera-se, pois, que a prática de crime mais grave é um factor de cisão da unicidade do crime, devendo concorrer, em concurso efectivo, o crime mais grave e a violência doméstica.
X - Como salienta MARIA PAULA RIBEIRO FARIA, «para afirmar a pluralidade criminosa é necessário que se deixe afirmar em relação ao agente mais do que um juízo de censura referida a uma pluralidade de processos resolutivos» . Segundo a mesma autora, há que «acrescentar à pluralidade de bens jurídicos violados uma pluralidade de processos volitivos merecedores de distintos juízos de censura», justificando-se a unidade ou pluralidade desses juízos de censura numa «valoração mais global que corresponde ao significado social do facto que inspira a própria formulação dos tipos legais de crime» - o sentido social da ilicitude material.
XI - No caso apreciado, a actuação do arguido na agressão sexual cometida se afasta do conjunto de agressões e outras ofensas praticadas sobre a ofendida, então sua companheira, tendo obedecido a uma autónoma resolução perfeitamente cindível das reiteradas resoluções presentes nos demais comportamentos. Tendo presente o perfil das ofensas reiteradamente cometidas sobre a ofendida, tem-se como evidente que a violação praticada em finais de 2014 não radica no mesmo processo volitivo presente naquelas ofensas.
XII - Constituindo igualmente uma evidência que os bens protegidos com as incriminações de violência doméstica e de violação, tendo pontos de contacto, não são coincidentes. O significado social e o sentido social da ilicitude material de uma e de outra das ditas incriminações são distintos, não obstante os pontos comuns que se podem aí observar.
XIII - O juízo de censura pela prática do crime de violação assume autonomia relativamente ao que deve ser formulado relativamente às ofensas unificadas na violência doméstica.
XIV - Tudo ponderado, considera-se que o crime de violação cometido pelo arguido assume autonomia relativamente aos restantes actos ofensivos, encontrando-se numa relação de concurso efectivo com o crime de violência doméstica.” – sublinhados nosso
           
Podemos, assim, concluir conforme o supra citado Acórdão do STJ de 21-11-2018:
“Note-se que o art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal, que inclui as ofensas sexuais no tipo objectivo e prescreve que a punição é a da violência doméstica se pena mais grave não couber por força de outra disposição legal, leva a que os factos caracterizadores do crime de violação que tenha ocorrido no contexto espácio-temporal em que decorreu a violência doméstica separam-se e dão origem à verificação do crime de violação.
Se após esta separação, como é o caso dos autos e supra referimos, restarem mais factos ou outros factos relativos à violência doméstica, eles continuarão a integrar o crime de violência doméstica, sendo a sua respectiva punição, em concurso real com a da violação.”

Ora, no caso em apreço, dúvidas não podem restar que os factos que permitem integrar a prática pelo arguido de um crime de violação separam-se, de forma até muito clara, dos restantes factos que dão origem à verificação do crime de violência doméstica.

Estamos, assim, claramente perante dois crimes autónomos, quer em termos de resolução criminal, quer em termos de significado e sentido sociais de ilicitude, pelo que ao arguido deve ser imputada a par da pratica de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152º nº 1 al. a) e nº 2 al. a) do CP um crime de violação p. e p. pelo art.º 164º nº 1 al. a) do Código Penal, em concurso real ou efectivo de crimes.

Este mesmo raciocínio e construção dogmática seriam aplicáveis mutatis mutandis se tivéssemos considerado estar em causa um crime de coacção sexual, tal como originariamente proposto pelo MP, pois que o que releva, na óptica jurisprudencial citada, seguida pela melhor doutrina, é a possibilidade de se autonomizar os crimes nos termos supra propostos, independentemente de estar em causa uma violação, uma coacção sexual, uma ameaça, um sequestro, etc.

Assim, e ainda que se aceitasse o enquadramento jurídico operado na sentença ora sob escrutínio quanto à natureza do crime sexual, dados os factos concretamente delineados, continuaria a ser possível imputar ao arguido, em concurso efectivo ou real, dois crimes, o da violência doméstica e o crime de índole sexual, na óptica do Tribunal a quo um crime de coacção sexual.

Dito isto, e porque não foi posta em causa a condenação parcelar do crime de violência doméstica, que temos, assim, de respeitar nos termos do disposto no art.º 409º do Código de Processo Penal, que proíbe a reformatio in pejus, há que fixar agora a pena a que o arguido deve ser sujeito pela prática do crime de violação e operar-se, posteriormente, o respectivo cúmulo nos termos do art.º 77º do Código Penal.
           
Assim, ao crime de violação imputável ao arguido vem prevista uma moldura penal de 1 a 6 anos de prisão.

A fixação da pena em concreto segue os critérios legais que passamos a citar:

O art.º 40º do Código Penal (CP), cuja epígrafe é "finalidades das penas e das medidas de segurança" dispõe o seguinte:
"1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente."
           
O art.º 70º do CP, cuja epígrafe é "critério de escolha da pena" dispõe o seguinte:
"Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."

E o art.º 71º CP, subordinado à epígrafe "determinação da medida da pena" diz o seguinte:
"1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de criem, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena."

Em termos doutrinais, ensina-se nos Figueiredo Dias[15] que "as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução da medida da pena."

Conforme se refere no Acórdão do STJ de 24-05-1995, proc.º nº 47386/3[16]:
"Toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, o que significa não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena, como seu limite máximo. A pena concreta deve ser fixada entre um limite mínimo, já adequado à culpa, e um limite máximo, ainda adequado à culpa, intervindo os outros fins das penas dentro desses limites. A medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, sendo a prevenção especial de socialização que a vai determinar, em último termo."

Ora, no caso em apreço, foram dados como provados, entre outras, as seguintes circunstâncias relativas ao arguido que, nos termos do citado art.º 71º do CP devem ser considerados:
“20. O arguido não tem antecedentes criminais.
21. Oriundo de agregado familiar numeroso e carenciado, CR____ é o segundo na ordem de nascimento de seis irmãos. 
22. O arguido integrou o sistema de ensino em idade própria, abandonou os estudos sem que tenha conseguido concluir o 4ºano de escolaridade, o qual viria a completar em idade adulta após encaminhamento da Agência para a Qualificação e Emprego de Ponta Delgada.
23. Em termos profissionais, ainda que registe alguma experiência profissional no setor da construção civil, como pedreiro, nunca conseguiu consolidar esse percurso laboral, mantendo o desempenho ocasional dessa atividade, recebendo, ao dia, 30 euros – circunstâncias em que se encontrava à data dos factos.
24. Actualmente o arguido reside com no agregado de origem, no qual se encontra inserido até ao momento, coabitando com a progenitora, dois irmãos e uma sobrinha, todos adultos.  25. A mãe é doméstica, e os dois elementos da fratria laboralmente ativos.
 26. O arguido continua a beneficiar de Rendimento Social de Inserção, atualmente no valor aproximado de 100 euros, o qual é revertido para a economia doméstica, sendo algum do seu tempo ocupado com o seu irmão no setor agropecuário.
 27. Desde que se encontra separado, mantém o contacto regular com os filhos através do apoio prestado pelos familiares do arguido e colaboração prestada pela mãe dos menores.
28. Actualmente, o filho mais velho do casal, reside com o arguido.”

Aliados a estes factos há que considerar ainda que:
- o dolo é directo;
- a ilicitude é mediana;
- as exigências de prevenção geral são particularmente elevadas;
- as exigências de prevenção especial serão menos elevadas dado tratar-se de actuação não repetida, que só terá acontecido no final de uma relação de 9 anos e sem que o arguido tenha antecedentes criminais neste tipo de crime.

O Digno Recorrente propõe, embora para o crime de coacção sexual, uma pena concreta de 2 anos e 4 meses.

Ou seja, propõe o MºPº uma pena que se situa abaixo da metade da moldura penal e relativamente próximo do limite mínimo.

Dados todos os factos de que dispomos afigura-se-nos que a proposta do Digno Recorrente é equilibrada e respeita os critérios legais de fixação da pena não se mostrando, de forma alguma, acima da culpa manifestada pelo arguido na prática do facto.

Pelo que se fixa uma pena de 2 anos e 4 meses pela prática pelo arguido de um crime de violação p. e p. pelo art.º 164º nº 1 al. a) do CP.

Consequentemente, há, agora, que operar o cúmulo jurídico pois que o sistema penal português consagra o princípio de pena única ou pena conjunta[17].
Assim, nos termos do disposto no art.º 77º do Código Penal, subordinado à epígrafe “regras da punição do concurso”:
“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”

Consequentemente, há, primeiro, que achar a moldura penal abstracta concursal para, depois, determinar a medida concreta da pena do cúmulo.

Estando em causa um crime de violência doméstica, cuja pena fora fixada em 2 anos e 6 meses, e um crime de violação, cuja pena fora por nós fixada em 2 anos e 4 meses, temos como moldura abstracta concursal 2 anos e 6 meses (a pena mais elevada) e 4 anos e 10 meses (a soma das duas penas), ou 30 meses e 58 meses, fixando-se a metade em 44 meses, ou 3 anos e 8 meses.

Propõe o Digno Recorrente que, em cúmulo, se fixe a pena única de 4 anos e 2 meses, ou seja, que se fixe uma pena única muito próximo do limite máximo da moldura concursal.

Na fixação da pena única ensina-nos o Sr. Juiz Conselheiro António Artur Rodrigues Costa[18]:
“A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável, a qual se constrói a partir das penas aplicadas aos diversos crimes, é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico, constante do art.º 77.º, n.º 1 do CP: a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.
À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detectar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente.
Do que se trata agora é de ver os factos em relação uns com os outros, de modo a detectar a possível conexão e o tipo de conexão que intercede entre eles (“conexão autoris causa”), tendo em vista a totalidade da actuação do arguido como unidade de sentido, que há-de possibilitar uma avaliação do ilícito global e a “culpa pelos factos em relação”, a que se refere CRISTINA LÍBANO MONTEIRO em anotação ao acórdão do STJ de 12/07/05[19].
Ou, como diz FIGUEIREDO DIAS: «Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.»[20]
Na avaliação desta personalidade unitária do agente, releva, sobretudo «a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma “carreira”) criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização.»[21]
Por conseguinte, a medida da pena do concurso de crimes tem de ser determinada em função desses factores específicos, que traduzem a um outro nível a culpa do agente e as necessidades de prevenção que o caso suscita.
E tem de ter uma fundamentação específica na qual se espelhem as razões por que, em atenção aos referidos factores (em particular a propensão ou não do agente para a prática de crimes ou de determinado tipo de crimes), se aplicou uma determinada pena conjunta.”

Ora, no caso em apreço, temos de considerar que o arguido não tem antecedentes criminais, que a sua actuação se limitou a um período de dois anos de uma união conjugal que durou 9 anos, que a violação perpetrada sobre a mulher não implicou violência, mas os actos integradores da violência doméstica foram diários e implicaram utilização de um canivete que obrigou a ofendida a ter tratamento hospitalar, o que revela uma personalidade perturbada mas não permite concluir-se por uma tendência ou carreira criminosa, sendo antes uma pluriocasionaldiade, na esteira do citado Sr. Juiz Conselheiro.

Por outro lado, embora as exigências de prevenção geral sejam elevadas, para ambos os crimes, as exigências especiais não se mostram tão agudas, pois que o arguido, conforme se refere na sentença ora sob escrutínio, mostrou algum arrependimento, e mostra-se socialmente inserido.

Tudo ponderado afigura-se-nos adequada uma pena única de 4 anos de prisão, devendo tal pena ficar suspensa na sua execução – porquanto não surge com este recurso qualquer elemento diferente ou adicional que permita colocar em crise o juízo de prognose favorável que o Tribunal a quo fez aquando da fixação da pena primitiva mostrando-se, assim, reunidos os requisitos legais previstos no art.º 50º do Código Penal – pelo período de 3 anos, sujeito ao regime de prova delineado pelo Tribunal a quo e mantendo-se a sanção acessória de proibição de contacto nos mesmos moldes que foram determinados na sentença.

Procede, assim, em parte e por diferente fundamento o presente recurso.

Decisão:
Em face do acima exposto concede-se provimento parcial ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência determina-se o seguinte:

A) Adita-se à matéria de facto provada, sob o nº 18-A o seguinte facto, que, consequentemente, é suprimido dos factos não provados:
18-A) O arguido agiu ainda com o propósito concretizado de manter relações sexuais de cópula vaginal com a AS______, contra a sua vontade, após colocá-la em situação de não poder reagir àquele, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela.”
B) Condena-se o arguido também como autor material de um crime de violação p. e p. pelo art.º 164º nº 1 al. a) do Código Penal numa pena de 2 anos e 4 meses, mantendo-se a sua condenação como autor de um crime de violência doméstica nos termos determinados na sentença recorrida.
C) Em cúmulo, fixa-se a pena única de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sujeito ao regime de prova determinado pelo Tribunal a quo e mantendo-se a sanção acessória de proibição de contacto com a vítima nos mesmos moldes que foram determinados na sentença recorrida.

Sem Tributação.

Lisboa, 21 de Outubro de 2020.
Florbela Santos A. L. S. Silva
Alfredo Costa
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[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art.º 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – artº. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc.º 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc.º 05P1577,] (art.ºs 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] In Código de Processo Penal Anotado, Vol. 2, Editora Rei dos Livros, p. 514 e 515.
[3] Uma vez que, nos termos do disposto no art.º 426º nº 1 do CPP, o vício em apreço não impede decisão sobre o objecto do recurso.
[4] In “Direito Criminal” Vol. II, Livraria Almedina, Coimbra 1993, p. 204.
[5] Eduardo Correia, ob. cit. p. 205
[6] Eduardo Correia, ob. cit. p. 205
[7] Eduardo Correia, ob. cit. p. 205. Quanto a esta categoria, Eduardo Correia vai buscar o entendimento propugnado por Honig, sendo que o rejeita por entender que não tem qualquer utilidade.

[8] Estamos aqui a falar na relação em si e não necessariamente na actuação criminosa.
[9] In “Comentário ao Código Penal”, p. 594.
[10] Mas que tem total aplicabilidade ao crime de violação.
[11] Citado no Ac. do STJ de 21-11-2018 (porc.º nº 574/16.4PBAGH.S1) e retirado da obra “Ne (Idem) Bis in Idem – Proibição de dupla punição e de duplo julgamento: contributos para a racionalidade do poder punitivo público”, volume II, AAFDL Editora, 2016, pp. 339-340.
[12] Idem, p. 341.
[13] Idem, p. 342 a 344.
[14] Cfr. Acórdãos de 10-11-2016 (proc.º nº 163/14.8GBSTC.S1), de 20-04-2017 (proc.º nº 2263/15.8JAPRT.P1.S1), de 07-02-2018 (proc.º nº 312/15.9POLSB.S1), de 27-06-2018 (proc.º nº 131/17.8JAPRT.S1), de 04-07-2018 (proc.º nº 274/16.5GAMCN.P1.S1) e de 21-11-2018 (proc.º nº 574/16.4PBAGH.S1).
[15] In Direito Penal Português: As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, p. 227 e ss.
[16] In anotação ao artº 71º do Código Penal anotado por Maia Gonçalves, p. 277.
[17] Que não se confunde com um sistema de pena unitária, cfr. refere o Sr. Juiz Conselheiro António Artur Rodrigues da Costa, num trabalho por si elaborado e que serviu de base a uma exposição oral no âmbito de uma acção de formação do CEJ que teve lugar na Faculdade de Direito do Porto em 4 de Março de 2011, intitulado “O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e Na Jurisprudência do STJ”: o sistema de pena única ou conjunta distingue-se do sistema de pena unitária porque:
“- É um sistema que não prescinde da determinação da medida concreta das penas parcelares, sendo a partir delas que se constrói a moldura penal do concurso;
- A medida da pena do concurso no caso concreto é determinada dentro da moldura penal abstracta, entre um mínimo e um máximo, com a mesma liberdade com que se determina a unicidade de pena - culpa e prevenção, relacionadas com a gravidade do ilícito global em conjugação com a personalidade unitária revelada pelo agente, e não por adição das penas parcelares (ou de uma dada porção ou fracção delas), só sendo de agravar a pena no caso de se concluir pela radicação da multiplicidade delituosa na personalidade daquele, em termos de constituir uma tendência ou carreira criminosa.    
Nisto se distingue do modelo de pena unitária, caracterizado por:
- Não relevância da autonomia dos crimes concorrentes
- A moldura do concurso não passa pela determinação das penas singulares.
- Tudo se passa como se fosse um crime único, referido a um determinado agente, pois o que interessa é a personalidade deste (direito penal do agente).”
[18] Ob.cit., p. 5 e 6.
[19] CRISTINA LÍBANO MONTEIRO, “A Pena “Unitária” Do Concurso De Crimes”, RPCC, Ano 16, n.º 1, p.162 e ss.)
[20] FIGUEIREDO DIAS, “As Consequências Jurídicas Do Crime”, Editorial de Notícias, p. 291.
[21] FIGUEIREDO DIAS, idem, ibidem.