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TRABALHO SUPLEMENTAR
ALEGAÇÃO DE FACTOS ESSENCIAIS
“HORÁRIO CONCRETO DE TRABALHO”
Sumário
I – Numa acção em que o autor reclama créditos por trabalho suplementar em dia útil e em dia de descanso, trabalho nocturno, e não gozo de descanso compensatório, e ainda que tenha alegado os factos essenciais (o autor alegou quantas horas de trabalho suplementar e quantas horas de trabalho nocturno prestou em cada um dos dias), compete-lhe alegar “o horário concreto de trabalho” - ainda que se trate de horário atribuído através de “escalas de serviço” - e “as horas de início e do termo do período normal de trabalho diário, bem como dos respectivos intervalos”. II - No caso os factos complementares ou concretizadores mostram-se necessários à especificação e densificação da causa de pedir – prestação de trabalho suplementar em dia útil e em dia de descanso, de trabalho nocturno, e não gozo de descanso compensatório -, sendo, por isso, indispensáveis à procedência da acção, pelo que, tendo havido o respectivo convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, que o autor não aproveitou, a falta daqueles factos leva à improcedência da acção, com a consequente absolvição da ré do pedido, e não à absolvição da instância.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO
AA, com os demais sinais nos autos, intentou a presente acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra E..., LDA, também nos autos melhor identificada, pedindo a condenação desta a:
- Reconhecer que o Autor prestou o trabalho suplementar, noturno, em dia de descanso e em tempo de disponibilidade, como tal implícito nas escalas de serviço e discriminados nos registos tacógrafos e que a este título tem o crédito de 11.542,72€ (sem prejuízo de eventuais compensações decorrentes dos pagamentos a título de ajudas de custo nos meses relativamente aos quais o Autor não tem recibo);
- Reconhecer que tem o direito a ser pago pelo trabalho em horas suplementares, noturnas e em dias de descanso e feriado que tenha executado em novembro e dezembro de 2021, janeiro e fevereiro de 2022 e que venha a executar a partir daqui;
- Reconhecer que o Autor tem direito a receber a média mensal do acréscimo salarial decorrente deste trabalho, na retribuição relativa a férias e subsídio de férias, sendo a vencida e não paga no montante de 4.773,80€;
- Reconhecer que, por nunca lhe ter sido dado a gozar, o Autor tem o direito de, a título indemnizatório, receber as quantias correspondentes ao descanso compensatório vencido e não gozado, nem pago, no montante de 2.636,06€;
- No pagamento dos juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.
Alega para tanto, e em síntese, o autor:
Foi admitido ao serviço da ré em 01/03/2015, para exercer funções de motorista de veículos pesados de transporte público de passageiros e, desde então, sempre prestou trabalho suplementar, em dia útil e em dia de descanso semanal e feriado e também trabalho noturno, conforme resulta das escalas de serviço e dos registos tacográficos que junta aos autos.
Sucede que a ré não lhe deu a gozar o descanso compensatório a que tinha direito, nem lhe pagou os créditos pecuniários correspondentes ao trabalho prestado nos referidos termos.
Tendo-se realizado audiência de partes, malogrou-se, nessa sede, a conciliação.
A ré apresentou contestação, na qual, arguiu a prescrição dos créditos laborais invocados desde Março de 2015 até Maio (inclusive) de 2017, ao abrigo do disposto no art. 337.º, n.º 2 do CT. Mais, impugnou grande parte da matéria alegada pelo autor e deduziu pedido reconvencional (para compensação de créditos).
O autor apresentou resposta em que, no fundamental, pugna pela improcedência do pedido reconvencional.
Proferiu-se despacho a não admitir a reconvenção e a julgar improcedente a excepção de prescrição deduzida pela ré.
Foi posteriormente proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento da petição inicial, tendo nessa sequência o autor apresentado um requerimento anuindo, pretensamente, a esse convite e juntando em anexo novos documentos.
A ré pronunciou-se, defendendo que o requerimento em causa não colmata a insuficiência de alegação fáctica que havia sido assinalada pelo tribunal.
Prosseguindo os autos, veio a realizar-se a audiência final e, após, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
“Assim, e face a tudo o exposto, decide-se julgar a presente acção totalmente improcedente e, em consequência, absolver a Ré do pedido”
Inconformado com esta decisão, dela veio o autor interpor o presente recurso de apelação para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam mediante a formulação das seguintes conclusões e petitório (transcrição):
“1) Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou totalmente improcedente a acção declarativa de condenação emergente de contrato individual de trabalho instaurada pelo ora Recorrente.
2) Decorre da sentença posta em crise que o Recorrente não cumpriu o ónus de alegação dos factos essenciais na petição inicial que deu origem aos presentes autos.
3) Com efeito, lê-se na sentença que, “na falta de alegação fáctica, sem embargo do convite de aperfeiçoamento que foi endereçado, tanto o depoimento prestado pelas testemunhas como a prova documental revelam-se despiciendos”.
4) Porém, o Recorrente cumpriu o dever de alegar os factos essenciais que compõem a causa de pedir, tendo fornecido ao Tribunal todos os elementos necessários à prolação de uma decisão que versasse sobre o mérito da causa.
5) Antes de mais, contrariamente ao que é dito na sentença, o Autor não podia ter alegado que “o seu horário de trabalho é das X às Y horas, com intervalo de X horas para o almoço e/ou outro”, já que, conforme resulta do artigo 11º da petição inicial, dado como provado pelo Tribunal, o Autor cumpre as escalas de serviço que diariamente lhe são impostas pela Ré, cumprindo, portanto, um horário móvel.
6) Acresce que também o intervalo tem uma duração incerta, tendo uma duração que varia entre a 1 e as 3 horas.
7) O Autor pode, em tese, fornecer ao Tribunal a sua hora de entrada, a sua hora de saída e o seu período de intervalo tendo por referência um concreto dia de trabalho, ainda que, para fazê-lo, se debata com grandes dificuldades, uma vez que as escalas de serviço fornecidas pela Ré não só permitem saber qual é a duração do intervalo de cada motorista, como não permitem saber a que horas finda o último serviço.
8) Assim, para proceder ao cálculo do trabalho suplementar prestado, o Autor assumiu, com prejuízo para si, que cumpriu sempre um intervalo de 3 horas e alcançou a hora de saída através da consulta dos horários fixados pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes – I. P., que se encontram juntos aos presentes autos.
9) Ora, se é certo que, na petição inicial, o Autor se limitou a dizer quantas horas de trabalho suplementar e quantas horas de trabalho nocturno prestou em cada um dos dias compreendidos entre Março de 2015 e Outubro de 2021, remetendo para a análise das escalas de serviço e dos tacógrafos, não é menos verdade que, em sede de resposta ao despacho de convite ao aperfeiçoamento, forneceu ao Tribunal a quo todos os elementos necessários à prolação de uma decisão que versasse sobre o mérito da causa, nomeadamente, a hora de entrada, o período de intervalo, a hora de saída, o número de horas de trabalho prestadas em cada um dos dias, as horas de trabalho suplementar diurnas pagas com acréscimo de 50%, as horas de trabalho suplementar diurnas pagas com acréscimo de 75%, as horas de trabalho suplementar nocturno pagas com acréscimo de 50%, as horas de trabalho suplementar nocturno pagas com acréscimo de 75%, as horas de trabalho prestadas em dia de descanso semanal ou em feriado, tanto as prestadas dentro das 8 horas de trabalho diárias, como as suplementares diurnas e nocturnas, bem como a retribuição que, por força daquelas, o Autor devia ter recebido.
10) O Tribunal a quo afirma que, na sequência do convite ao aperfeiçoamento, o Autor apresentou “um requerimento contendo em anexo documentos”, mas, estranhamente, não nos diz que documentos são esses, que elementos contêm, nem justifica porque é que os desconsiderou em absoluto.
11) Ora, o Tribunal a quo podia e devia ter referido que o Recorrente lhe forneceu os elementos necessários à apreensão do teor das tabelas interpretativas das escalas de serviço, das quais constam os elementos que por si foram solicitados.
12) Com efeito, nos artigos 6º e 7º da resposta ao despacho de convite ao aperfeiçoamento, submetido aos presentes autos no dia 2 de Novembro de 2022, o ora Recorrente refere o seguinte: “Assim, a título meramente exemplificativo, tendo o dia 2 de Março de 2015 como referência, temos que o Autor iniciou o serviço às 6:45h, cumpriu um intervalo de 3 horas e terminou o serviço às 19h”; “Descontado o período de intervalo, verifica-se que o Autor prestou, nesse dia, um total de 9 horas e 15 minutos de trabalho, tendo prestado 15 minutos de trabalho nocturno (entre as 6:45h e as 7h), 1 hora de trabalho suplementar diurno paga com acréscimo de 50% (entre as 17:45h e as 18:45h) e 15 minutos de trabalho suplementar diurno pagos com acréscimo de 75% (entre as 18:45h e as 19h) – como, aliás, resulta do artigo 20% da Petição Inicial.”.
13) O Recorrente acrescentou, ainda, no artigo 8º do referido articulado, o seguinte: “Não obstante estar convencido de que os documentos ora juntos permitirão ao Tribunal aferir a justeza dos pedidos formulados na Petição Inicial, o Autor informa que a testemunha BB, motorista de profissão, se disponibiliza para prestar ao Tribunal – na presença dos mandatários das partes, se assim se entender – todos os esclarecimentos necessários a respeito dos mesmos.”.
14) Refira-se que a dita testemunha é, também, dirigente sindical de longa data, tendo por hábito auxiliar os juízos do trabalho em matérias como a que nos ocupa sempre que a isso é chamado.
15) O Tribunal, porém, entendeu não apreciar o mérito da causa, escudando-se na alegação de que o Autor, ora Recorrente, não integrou na petição inicial os factos que constituem a causa de pedir, mesmo sabendo que os elementos que solicitou ao Autor foram fornecidos em sede de resposta ao despacho de convite ao aperfeiçoamento.
16) E também por isso é particularmente incompreensível que o Tribunal tenha desbaratado, por completo, toda a prova testemunhal produzida, por determinação sua, em sede de Audiência de Discussão e Julgamento.
17) Ao decretar a total improcedência do pedido sem sequer se ter debruçado sobre a prova testemunhal produzida e sem confrontar os elementos fornecidos em sede de requerimento de aperfeiçoamento com os factos alegados na petição inicial, o Tribunal a quo demitiu-se, salvo melhor opinião, do dever de diligenciar pela descoberta da verdade e proferiu uma decisão destituída de sustentação.
18) Assim, salvo melhor e mais douta opinião, deve reconhecer-se que o Tribunal a quo dispunha das condições necessárias para pronunciar-se sobre o mérito da causa, o que devia ter feito conjugando os factos alegados na petição inicial com as tabelas interpretativas das escalas de serviço e demais documentos juntos com o requerimento de aperfeiçoamento submetido aos presentes autos no dia 2 de Novembro de 2022, decretando, em consequência, a total procedência dos pedidos formulados na petição inicial.
19) Argumenta, ainda, o douto Tribunal que, mesmo que os factos tivessem sido convenientemente alegados, o que, em seu entendimento, não sucedeu, “sempre se impunha a improcedência do pedido quanto ao trabalho suplementar prestado até 5 anos antes da entrada da petição inicial devido à falta de prova documental idónea – ou seja, entre Março de 2015 até 09/05/2017)”.
20) Reza a sentença posta em crise que, “no que concerne ao trabalho suplementar prestado até 5 anos antes da entrada da acção, prevê o artigo 337º, nº 2 do CT, que o crédito correspondente ao pagamento de trabalho suplementar, vencido há mais de 5 anos, só pode ser provado por documento idóneo”, que seria “um documento escrito, emanado da própria entidade empregadora e que, por si só, tenha força probatória bastante para demonstrar a existência dos factos constitutivos do crédito, sem necessidade de recurso a outros meios de prova, designadamente a prova testemunhal”.
21) Este segmento decisório é igualmente merecedor de reparo, desde logo porque nele não é feita qualquer referência aos créditos vencidos entre 10 de Maio de 2017 e Outubro de 2021.
22) Por outro lado, se as escalas de serviço, emitidas pela entidade empregadora, não têm força probatória bastante para, por si só, desacompanhadas de qualquer outra prova, demonstrarem a existência dos factos constitutivos dos créditos, porquanto deles não resulta a que horas findam os últimos serviços de cada dia, tal facto não é imputável ao Autor, que não deve ser prejudicado pelo descuido, para dizer o menos, da sua entidade empregadora.
23) Resulta do artigo 231º, nº 1 do Código do Trabalho que “o empregador deve ter um registo de trabalho suplementar em que, antes do início da prestação de trabalho suplementar e logo após o seu termo, são anotadas as horas em que cada uma das situações ocorre”, sendo certo que, nos termos do nº 4 do mesmo artigo, “do registo devem constar a indicação expressa do fundamento da prestação de trabalho suplementar e os períodos de descanso compensatório gozados pelo trabalhador”.
24) Ora, nos termos do nº 5 do supracitado artigo, “a violação do disposto nos números anteriores confere ao trabalhador, por cada dia em que tenha prestado actividade fora do horário de trabalho, o direito à retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar”.
25) Assim, ainda que se venha a considerar que os créditos que a 9 de Maio de 2022 se encontravam vencidos há mais de cinco anos não são susceptíveis de serem provados pelas escalas de serviço, por estas não serem suficientemente esclarecedoras, deve, ainda assim, reconhecer-se que a Ré, entidade empregadora, violou o disposto nos artigos 231º, nºs 1 e 4 do Código do Trabalho e que o Autor tem, por conseguinte, direito a receber, por cada um dos dias em que tenha prestado suplementar entre Março de 2015 e 9 de Maio de 2017, a retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar, cumprindo-se, assim, o disposto no artigo 231º, nº 5 do Código do Trabalho.
26) Se porventura se entender que os argumentos expostos supra são de desconsiderar e que o Tribunal a quo tem razão quanto à asserção de que os factos essenciais não se encontram alegados, hipótese que só por cautela de patrocínio se coloca, deve, ainda assim, reconhecer-se que a sentença padece de nulidade por ter absolvido a Ré do pedido e não da instância, como devia.
27) Com efeito, o Recorrente entende que a decisão enferma de nulidade, por força do disposto no artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil.
28) De acordo com o referido artigo, é nula a sentença “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
29) Ora, no caso vertente, é patente que os fundamentos expendidos na sentença estão em oposição com a decisão.
30) O Tribunal a quo alude à falta de cumprimento do ónus de alegação de factos essenciais, abstém-se de tomar posição sobre os factos vertidos nos artigos 13º a 107º, que não integra no núcleo de factos provados, nem no núcleo de factos não provados, dizendo, tão-somente, que “não se responde ao que vem alegado 20º a 96º e 98º a 107º da petição inicial dado que se trata de matéria conclusiva e/ou de direito”, para depois, inesperadamente, concluir, não pela absolvição da Ré da instância, que é consequência lógica da ineptidão da petição inicial, mas pela total improcedência do pedido.
31) Ao dizer que não se encontra cumprido o ónus de alegação dos factos essenciais, o que o Tribunal pretende significar, ainda que não o diga expressamente, é que a petição inicial é inepta, pois que, de acordo com o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto no âmbito do Processo nº 865/21.2T8AMT.P1, “gera o vício da ineptidão da petição inicial a falta de densificação ou concretização dos factos em que se possa ancorar a pretensão deduzida”.
32) E, nos termos do referido acórdão, “a falta de causa de pedir gera ineptidão da petição inicial e nulidade de todo o processo, excepção dilatória, de conhecimento oficioso a conduzir à absolvição do Réu da instância (al. a), do nº 2, do art. 186º, al. b), do nº 1, do art. 278º, nº 2, do art. 576º e al. b), do art. 577º, todos do CPC)”.
33) Assim, ao fazer corresponder à pretensa ineptidão da petição inicial a decisão de absolver a Ré do pedido, ao invés de absolvê-la da instância, o Tribunal a quo proferiu uma sentença que está em manifesta contradição com os argumentos por si expendidos, sendo, por isso, nula, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil.
TERMOS EM QUE:
Deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão ora posta em crise, a qual deverá ser substituída por outra que declare o seguinte:
1) Que o Tribunal a quo dispunha de todos os elementos para se pronunciar sobre o mérito da causa e para julgar o pedido formulado pelo Autor, ora Recorrente, totalmente procedente;
Ou,
2) Que, não sendo possível a prova dos créditos vencidos até 9 de Maio de 2017, por ausência de documento idóneo, seja a Ré condenada a pagar ao Autor, por cada dia compreendido nesse período em que tenha trabalhado fora do horário de trabalho, uma retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar, nos termos do artigo 231º, nº 5 do Código de Trabalho, reconhecendo-se, em todo o caso, a total procedência dos pedidos relativos a créditos vencidos desde 10 de Maio de 2017;
Ou, em último caso,
3) Que, entendendo que a petição inicial é inepta, por falta de alegação dos factos essenciais, deveria o Tribunal a quo, ao abrigo dos artigos 186º, nº 2, alínea a) e 278º, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil, ter absolvido a Ré da instância, e não do pedido, como veio a fazer, declarando-se, em consequência, que a sentença é nula por manifesta oposição entre os fundamentos e a decisão, nos termos do artigo 615º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Civil.”
A recorrida não apresentou contra-alegações.
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida, foram os autos remetidos a este Tribunal da Relação e pela Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta foi emitido parecer no sentido da improcedência do recurso.
Tal parecer não mereceu qualquer resposta.
Dado cumprimento ao disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 657.º do Código de Processo Civil foi o processo submetido à conferência para julgamento.
II OBJECTO DO RECURSO
Delimitado que é o âmbito do recurso pelas conclusões da recorrente, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso (artigos 608.º n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 3, todos do Código de Processo Civil, aplicável por força do disposto no artigo 87.º n.º 1 do CPT), enunciam-se então as questões que cumpre apreciar:
- Se o autor alegou os factos essenciais/forneceu todos os elementos necessários ao conhecimento do mérito da causa; - Se, relativamente ao período entre Março de 2015 e 09/5/2017, a ré sempre deveria ser condenada a pagar ao autor a retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar; - Nulidade da decisão – ao ter absolvido a ré do pedido, e não da instância -, nos termos do art. 615.º/1 c) do CPC: III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes para a decisão da causa são os que assim constam da decisão recorrida (pois que não houve recurso da matéria de facto nem se vislumbra fundamento para alterar oficiosamente a decisão proferida sobre essa matéria):
“A. FACTOS PROVADOS Com interesse para a decisão resultaram provados os seguintes factos:
1. A Ré é pessoa coletiva, exercendo com intuito lucrativo a atividade de transporte rodoviário de passageiros.
2. O Autor foi admitido ao serviço da Ré a 01 de março de 2015
3. A partir desta data, sempre sob as ordens, autoridade, direção e fiscalização da Ré, o Autor passou a exercer as funções de motorista de veículos pesados de transporte público de passageiros, afeto ao serviço público, competindo-lhe a condução do veículo que lhe é atribuído pela Ré, zelar pelo bom funcionamento e conservação da viatura e proceder à verificação direta dos níveis do óleo, água, combustível e pneus.
4. É também a Ré quem indica ao Autor o traçado rodoviário e os destinos a atingir, dentro dos horários e escalas por aquela pré-estabelecidos.
5. O Autor é associado e encontra-se representado pelo STRUP - Sindicato dos Transportes Rodoviários do Distrito ..., que por sua vez integra a FESTRU – Federação dos Sindicatos de Transportes Rodoviários e Urbanos.
6. As relações laborais entre Autor e Ré são reguladas pelas disposições do Contrato Coletivo de Trabalho (CCT) celebrado entre a ANTROP e o STRUP e respetiva revisão, publicadas nos Boletim de Trabalho e Emprego (BTE), 1ª série, nº 48 de 29/12/2015 e nº 35 de 22/9/2019.
7. Como contrapartida pelo exercício da sua atividade profissional, o Autor aufere o vencimento base mensal de 765,45€ ilíquidos (que inclui 2 diuturnidades e 5% do subsídio de Agente Único), acrescido do subsídio de Agente Único, à razão de 6,93€ por dia de trabalho Cfr. Doc. ..., cópia do recibo de vencimento de novembro de 2021, que se junta e se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
8. A Ré adjudica ao Autor o serviço de transporte público de passageiros, em carreiras, mas também serviços de expresso em território nacional e no estrangeiro.
9. Desde o início da relação laboral, o Autor sempre teve como lugar de início e termo do seu trabalho, ..., ..., estacionando o pesado de passageiros nas imediações da sua residência.
10. O Autor cumpre um horário laboral de 40 horas semanais, distribuídas por 5 dias, sendo o descanso semanal ao domingo e o descanso complementar ao sábado.
11. O Autor cumpre os serviços de carreiras ou de expresso que lhe forem impostos pela Ré em escalas de serviço diárias.
12. A evolução salarial do Autor foi a seguinte:
- De março a dezembro de 2015: remuneração base de 608,57€;
- De janeiro de 2016 a fevereiro de 2017: remuneração base de 630,00€;
- De março de 2017 a fevereiro de 2018: remuneração base de 635,42€;
- Em março e abril de 2018: remuneração base de 635,42€ + 14,00€ de diuturnidade = 649,42€;
- De maio de 2018 a maio de 2019: remuneração base de 645,00€ + 14,00€ de diuturnidades = 659,00€;
- De junho a dezembro de 2019: remuneração base e diuturnidade de 723,98€;
- De janeiro de 2020 a dezembro de 2021: remuneração base e diuturnidade de 750,23€.
B. FACTOS NÃO PROVADOS Com pertinência para a decisão, consideramos que inexistem factos não provados.
Não se responde ao que vem alegado nos artigos 20º a 96º e 98º a 107º da petição inicial dado que se trata de matéria conclusiva e/ou de direito.”
IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO
- Da alegação pelo autor dos factos essenciais/fornecimento de todos os elementos para conhecimento do mérito da causa:
Em primeiro lugar, e sem prejuízo da questão colocada pelo recorrente em último lugar (mas até atendendo à mesma), o Tribunal recorrido proferiu decisão de mérito.
Contendendo com a questão enunciada, na decisão recorrida discorreu-se nos termos seguintes:
“A presente acção busca o seu fundamento legal, de acordo com o alegado pelo A., na existência de créditos resultantes da relação laboral que existe entre ele e a R., consistentes, entre o mais, no não pagamento de trabalho suplementar, em dia de descanso semanal, feriado e trabalho nocturno.
Quanto ao direito substantivo regulador do trabalho suplementar, encontra-se este definido no artigo 226º do Código do Trabalho (doravante CT), resultando dessa norma que é trabalho suplementar o que é prestado fora do horário de trabalho, sendo que o descanso compensatório está regulado no artigo 229.º do mesmo diploma.
E nos termos do n.º 2 do artigo 268º do CT “É exigível o pagamento de trabalho suplementar cuja prestação tenha sido prévia e expressamente determinada, ou realizada de modo a não ser previsível a oposição do empregador.”
Por outro lado, é pacífico que, de acordo com as regras do ónus da prova previstas no n.º 1 do artigo 342.º do CC, é sobre o trabalhador que recai o ónus de alegar e provar a execução do trabalho suplementar.
(…)
Ora, no caso presente, apesar de a tal ter sido convidado, o autor não alegou, e consequentemente, não provou, as horas de início e do termo do período normal de trabalho diário, bem como dos respectivos intervalos. Nem sequer foi alegado o horário concreto de trabalho do autor, estando apenas provado que são 40 horas semanais, distribuídas por 5 dias.
Na verdade, a alegação vertida nos artigos 20º a 96º da petição inicial é perfeitamente conclusiva, isto é, corresponde ao desfecho que o tribunal devia atingir, ou não, face à prova produzida – p. exemplo: impunha-se que o autor tivesse alegado que o seu horário de trabalho é das X às Y horas, com intervalo de X horas para almoço e/ou outro e que ademais alegasse que no dia 2 de Março entrou ao serviço às X horas, terminou às X horas e gozou um intervalo de Y horas, para que perante isso o tribunal pudesse concluir que nesse dia o A. prestou 1 hora além do seu horário de trabalho e que, como tal, deve ser remunerada com acréscimo de X%.
Destarte, atento o ónus de alegação dos factos essenciais que impende sobre as partes (art. 5º do CPC ex vi art. 1º, nº 2 do CPT), está vedado ao tribunal “aditar” factos que não tenham sido alegados com base nos documentos juntos.
Assim, neste caso, o A. não alegou e, consequentemente, não provou quaisquer factos relativamente ao seu horário de trabalho e nem aos tempos concretos de prestação de trabalho.
Faltando a prova destes factos essenciais, não pode reconhecer-se ao A. o direito que este invoca de lhe ser pago trabalho suplementar – cf. acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 5/12/2011, proferido na apelação 1472/09.3TTBRG.P1; de 22/10/2012, proferido na apelação 487/09.6TTBCL.P1; ainda no mesmo sentido, acórdão do STJ de 17/1/2007, proferido no processo 06S2188. Impõe-se, pois, julgar a total improcedência do pedido.”
Adiantando-se já que parecendo-nos correcta a solução a que chegou o Tribunal a quo, não se concorda com a fundamentação quando aí se diz que o autor não alegou os factos essenciais.
O que sucede é que os factos essenciais foram alegados, mas em termos tais que não permitem ao Tribunal concluir pela sua verificação ou não.
Com efeito, dispõe o art. 5.º do CPC:
“Ónus de alegação das partes e poderes de cognição do tribunal
1 - Às partes cabe alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as exceções invocadas.
2 - Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:
a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;
b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;
c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.
3 - O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito.”
E estabelece o art. 552.º/1 d) do mesmo Código:
Requisitos da petição inicial
1 - Na petição, com que propõe a ação, deve o autor:
(…)
d) Expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à ação;
(…)”
Por outro lado, prescreve o artigo 72.º do CPT:
“Discussão e julgamento da matéria de facto
1 - Sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, se no decurso da produção da prova surgirem factos essenciais que, embora não articulados, o tribunal considere relevantes para a boa decisão da causa, deve o juiz, na medida do necessário para o apuramento da verdade material, ampliar os temas da prova enunciados no despacho mencionado no artigo 596.º do Código de Processo Civil ou, não o havendo, tomá-los em consideração na decisão, desde que sobre eles tenha incidido discussão.
2 - Se os temas da prova forem ampliados nos termos do número anterior, podem as partes indicar as respetivas provas, respeitando os limites estabelecidos para a prova testemunhal; as provas são requeridas imediatamente ou, em caso de reconhecida impossibilidade, no prazo de cinco dias.
(…)”
Os factos essenciais mais não são do que os factos individualizadores da causa de pedir.
Esses foram alegados – como, nas citadas normas do CPC, impõe a lei processual - no articulado inicial.
Como, aliás, concede o apelante, este alegou “quantas horas de trabalho suplementar e quantas horas de trabalho nocturno prestou em cada um dos dias compreendidos entre Março de 2015 e Outubro de 2021”, o que, na economia da acção, constitui a factualidade essencial, tendente a sustentar (e substanciar) o pedido formulado.
[sirva de ex. o alegado em 20.º da PI, que constitui o padrão dos subsequentes artigos, até ao 96.º:
“20º Assim, resulta das escalas de serviço e dos registos tacógrafos do Autor (que se juntam e dão como reproduzidos para todos os efeitos legais como Docs. ...2 a ...61), que no mês de março de 2015 prestou 1 hora a pagar com o acréscimo de 50% nos dias 2, 3, 4, 5, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 25, 26, 27, 30 e 31, prestou 1 hora e 15 minutos a pagar com o acréscimo de 75% nos dias 10, 11, 12, 13, 23, 30 e 31, 1 hora nos dias 24, 25, 26 e 27 e 15 minutos nos dias 2, 3, 4, 5, 6, 9, 16, 17, 18, 19 e 20, trabalhou 15 minutos noturnos nos dias 2, 3, 4, 5, 6, 9, 10, 11, 12, 13, 16, 17, 18, 19, 20, 23, 24, 25, 26, 27, 29 e 30, trabalhou 30 minutos noturnos suplementares nos dias 10, 11, 12, 13, 23, 30 e 31, trabalhou 8 horas em dia de descanso semanal ou feriado nos dias 8, 15 e 22 e 7 horas e 30 minutos no dia 28, trabalhou 30 minutos noturnos em dia de descanso semanal ou feriado, no dia 28, e trabalhou 45 minutos suplementares em dia de descanso semanal ou feriado nos dias 8, 15 e 22 e 2 horas e 15 minutos no dia 28, que correspondem a 426,24€;”]
O que o recorrente não alegou foram os factos concretizadores daqueles – “ou factos essenciais complementares ou concretizadores”, por oposição a “factos essenciais principais”[1] ou “factos essenciais nucleares”[2] -, cuja alegação era necessária para completar a causa de pedir.
Na verdade, “o horário concreto de trabalho” e “as horas de início e do termo do período normal de trabalho diário, bem como dos respectivos intervalos”, são factos complementares/concretizadores.
Só através destes factos será (eventualmente) possível chegar aqueloutros, os, na terminologia da lei, ditos essenciais, e que na jurisprudência já se apodaram de “essenciais principais” ou “essenciais nucleares”.
Como se nota na sentença recorrida, o que de útil (nesta matéria) está provado é apenas o período normal de trabalho semanal – 40 horas -, distribuídas por 5 dias, sendo o descanso semanal ao domingo e o descanso complementar ao sábado.
Ora, como resulta do disposto nos artigos 197.º e ss, e particularmente art. 200.º e art. 226.º/1, todos do CT, é essencial à demonstração de trabalho suplementar a alegação do horário de trabalho, com a indicação das horas de início e do termo do período normal de trabalho diário, os respectivos intervalos, e a indicação das horas de trabalho prestado fora dos horários de trabalho estabelecidos.
Sucede que o autor/recorrente foi expressamente convidado, mediante despacho de convite ao aperfeiçoamento[3], a proceder à falada concretização da matéria de facto.
Convite que o recorrente não aproveitou.
Efectivamente, embora tenha, na sequência do convite, apresentado requerimento em que supostamente corrigia as insuficiências da PI apontadas pelo Tribunal, na realidade não o fez.
Com efeito, limita-se nesse requerimento a dizer:
“AA, Autor nos autos à margem referenciados, tendo sido notificado para esclarecer o que consta das escalas de serviço juntas com a Petição Inicial, vem fazê-lo, nos termos e com os fundamentos seguintes: 1. De modo a cumprir a exigência de clarificação do conteúdo das escalas de serviço, o Autor anexará ao presente requerimento os documentos em que se baseou para reclamar as quantias constantes da Petição Inicial (docs. ... a ...0). 2. Tais documentos, saliente-se, foram elaborados pelo Autor e por um colega de profissão a partir da análise de cada uma das escalas de serviço em apreço e cumprem, salvo melhor opinião, o desiderato de esclarecer o douto Tribunal quanto ao teor das mesmas. 3. Dos referidos documentos constam, entre o demais, as horas de início e de termo dos serviços em causa, as horas de intervalo e as horas totais de trabalho, bem como o trabalho nocturno, o trabalho suplementar e o trabalho suplementar nocturno prestados e as retribuições que, por força destes, o Autor deveria ter recebido. 4. Na interpretação dos referidos documentos, deverá o douto Tribunal ter em conta que aos valores mencionados como devidos deverão ser descontados os valores recebidos pelo Autor a título de ajudas de custo – o que foi feito na Petição Inicial. 5. O Tribunal deverá, ainda, levar em consideração que a cada fracção de 0,25 correspondem 15 minutos. 6. Assim, a título meramente exemplificativo, tendo o dia 2 de Março de 2015 como referência, temos que o Autor iniciou o serviço às 06:45h, cumpriu um intervalo de 3 horas e terminou o serviço às 19h. 7. Descontado o período de intervalo, verifica-se que o Autor prestou, nesse dia, um total de 9 horas e 15 minutos de trabalho, tendo prestado 15 minutos de trabalho nocturno (entre as 6:45h e as 7h), 1 hora de trabalho suplementar diurno paga com acréscimo de 50% (entre as 17:45h e as 18:45h) e 15 minutos de trabalho suplementar diurno pagos com acréscimo de 75% (entre as 18:45h e as 19h) – como, aliás, resulta do artigo 20º da Petição Inicial. 8. Não obstante estar convencido de que os documentos ora juntos permitirão ao Tribunal aferir a justeza dos pedidos formulados na Petição Inicial, o Autor informa que a testemunha CC, motorista de profissão, se disponibiliza para prestar ao Tribunal – na presença dos mandatários das partes, se assim se entender - todos os esclarecimentos que eventualmente se afigurem necessários a respeito dos mesmos. 9. O Autor junta, ainda, os documentos emitidos pelo Instituto da Mobilidade e dos Transportes – I.P. dos quais constam os trajectos a cujo cumprimento se encontra obrigado enquanto trabalhador da Ré (docs. ...1 a ...6). Junta: 86 documentos.”
Pretende o recorrente que os factos concretizadores ou complementares estão alegados, pois resultam dos documentos juntos, quer acompanhando a petição inicial quer o requerimento acabado de referir.
Diz, efectivamente, que “o Tribunal a quo podia e devia ter referido que o Recorrente lhe forneceu os elementos necessários à apreensão do teor das tabelas interpretativas das escalas de serviço, das quais constam os elementos que por si foram solicitados”, devendo reconhecer-se assim “que o Tribunal a quo dispunha das condições necessárias para pronunciar-se sobre o mérito da causa, o que devia ter feito conjugando os factos alegados na petição inicial com as tabelas interpretativas das escalas de serviço e demais documentos juntos com o requerimento de aperfeiçoamento submetido aos presentes autos no dia 2 de Novembro de 2022”.
Com o respeito que nos merece esse entendimento, não o sufragamos.
Com efeito, os documentos são meios de prova – cf. art.s 423.º e ss do CPC.
Os factos devem ser alegados na competente peça processual.
Foi isso mesmo que o autor foi convidado a fazer.
Não se olvida que há quem defenda que, em certas circunstâncias, e v.g. quando estão em causa factos complementares, se pode considerar feita a respectiva alegação de facto através do próprio documento (mas o que, ainda assim, não é consensual).
Se esta orientação é já controvertida, afigura-se de afastar completamente numa situação como a configurada nos autos.
Não se trata de recorrer a um documento para suprir a falta de alegação de um ou outro facto concretizador que, não constando da peça em que deveria ter sido alegado, quiçá por mera distração ou porque só com o decorrer da acção se evidencia a sua relevância, consta, afinal, de um documento que instrui o processo.
No caso, estando em causa um longo período temporal – Março de 2015 a Outubro de 2021 – o autor absteve-se de, relativamente a todo esse período, alegar, em relação a cada um dos dias que indicou, os horários que lhe estavam concretamente atribuídos e os períodos em que efectivamente prestou trabalho (de que horas até que horas, e respectivos intervalos).
Nem sequer dos documentos juntos pelo autor resulta de forma evidente/clara os elementos de facto em falta, sendo, no mínimo, necessário concatenar uns com os outros, “Escala[s] de Serviço”, registos/discos de tacógrafo e documentos juntos pelo autor com o já mencionado requerimento de 02.11.2022, notando-se que nestes, nos que o autor junta para, segundo diz, clarificar o conteúdo das escalas de serviço, está omisso o horário de trabalho.
Refira-se que no art. 72.º/1 do CPT se estabelece que “se no decurso da produção da prova surgirem factos essenciais” mas (para além do que deva entender-se o que são factos essenciais para efeitos deste preceito, v.g. se apenas os ditos factos essenciais complementares ou concretizadores, pois que a redacção do preceito não se afigura clara[4]), tratando-se sempre de factos – os alegados pelo autor/recorrente - que carecem de concretização, o que poderia relevar sempre seria que estes – concretizadores/complementares -, tivessem resultado da discussão da causa, o que não foi sequer trazido à colação pelo recorrente (nem se vê que o pudesse ter sido com êxito, considerando que estamos em sede de recurso[5])
Não se compreende, ademais, o que o recorrente diz nas conclusões 5.º, 7.º e 8.º do recurso – em suma, não poder alegar o horário de trabalho, pois que cumpria um horário móvel - pois não se pode fazer outro raciocínio que não seja o de o autor ter, necessariamente, conhecimento dos factos cujo aditamento lhe foi solicitado pelo Tribunal a quo. Doutra forma, como poderia o autor, designadamente, chegar ao número de horas de trabalho suplementar e de trabalho nocturno que diz ter prestado e efectuar os cálculos subjacentes às quantias que liquida?
O horário era conforme escalas/móvel, mas existia, era-lhe fixado pela recorrida; em particular quanto à questão do intervalo, o que agora diz, no fundo, é que não era superior a três horas.
Como se diz no douto Parecer do Ministério Público junto aos autos, o recorrente “Refere que não podia ter alegado o seu horário de trabalho, pois que cumpria as escalas de serviço que diariamente lhe eram impostas pela Ré, cumprindo, portanto, um horário móvel e que as escalas de serviço fornecidas pela Ré não permitem saber qual a duração do intervalo de cada motorista e a hora a que termina o serviço.
Assim sendo, também não pode saber que trabalho suplementar realizou. Não pode dizer que em determinado dia prestou 1 hora a pagar com o acréscimo de 50% e 1 hora e 15 minutos a pagar com um acréscimo de 75%”.
Destarte, não assiste razão ao recorrente, não tendo efectivamente alegado os factos que agora quer ver dados como provados. - Se, relativamente ao período entre Março de 2015 e 09/5/2017, a ré sempre deveria ser condenada a pagar ao autor a retribuição correspondente a duas horas de trabalho suplementar:
Trata-se de questão que o apelante não suscitou oportunamente, perante o Tribunal de 1.ª instância, não tendo sido tratada na sentença.
Apresenta-se, pois, como uma «questão nova», de que este Tribunal não pode conhecer.
Como se sintetizou no sumário de recente acórdão do Tribunal da Relação do Porto, «Os recursos não visam criar e emitir decisões novas sobre questões novas (salvo se forem de conhecimento oficioso), mas impugnar, reapreciar e, eventualmente, modificar as decisões do tribunal recorrido, sobre os pontos questionados e “dentro dos mesmos pressupostos em que se encontrava o tribunal recorrido no momento em que a proferiu”.»[6]
Consigna-se apenas, pela sua pertinência, a posição expressa no Parecer do Ministério Público:
“Ora, dos autos nada consta, nada é referido, acerca do registo de trabalho suplementar.
Se bem analisamos os autos, o Autor nada alegou e nada requereu quanto a registo de trabalho suplementar, pelo que se desconhece.
O Autor nada alegou acerca dos registos do trabalho suplementar ou da sua falta por parte da Ré e nada requereu acerca dos mesmos, nomeadamente que a Ré os juntasse.
Pelo que nunca poderia o Tribunal conferir ao Autor o direito a que se refere o art. 231º nº 5 CT.” - Da nulidade da sentença – ao ter absolvido a ré do pedido, e não da instância -, nos termos do art. 615.º/1 c) do CPC:
O artigo 615.º CPC estabelece:
“Causas de nulidade da sentença
(…)
1 - É nula a sentença quando:
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
(…)”
A nulidade prevista na citada alínea c) ocorre quando a sentença enferma de vício lógico que a compromete, quando os seus fundamentos conduziriam necessariamente a uma decisão de sentido oposto ou, pelo menos, de sentido diferente, ou então a que falte, de forma inultrapassável, clareza e precisão à parte decisória.[7]
Ora, a este propósito alega o apelante que “O Tribunal a quo alude à falta de cumprimento do ónus de alegação de factos essenciais, abstém-se de tomar posição sobre os factos vertidos entre os artigos 13º a 107º, que não integra no núcleo de factos provados, nem no núcleo de factos não provados, dizendo, tão-somente, que “não se responde ao que vem alegado nos artigos 20º a 96º e 98º a 107º da petição inicial dado que se trata de matéria conclusiva e/ou de direito”, para depois, surpreendentemente, concluir, não pela absolvição da Ré da instância, que é consequência lógica da ineptidão da petição inicial, mas pela total improcedência do pedido. De acordo com o artigo 186º, nº 2, alínea a) do Código de Processo Civil, “diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir”. Ora, ao dizer que o Autor, na petição inicial, não cumpre o ónus de alegar factos essenciais, de tal modo que “tanto o depoimento prestado pelas testemunhas como aprova documental junta aos autos” se revelam “despiciendos”, sendo, ademais, “inútil a produção de qualquer tipo de prova na ausência de alegação dos factos sobre os quais esta há-de recair”, o que o Tribunal pretende significar, ainda que não o diga expressamente, é que a petição inicial é inepta.”
Já acima afirmamos que, atenta a causa de pedir e o pedido, o autor alegou os factos essenciais, o que vale por dizer que a petição inicial não é inepta.
Não há falta de causa de pedir sendo, antes, um caso manifesto de inconcludência.
Como de forma muito clara consta do sumário de Ac. do STJ de 26-03-2015, “2. A mera insuficiência na densificação ou concretização adequada de algum aspecto ou vertente dos factos essenciais em que se estriba a pretensão deduzida (implicando que a petição, caracterizando, em termos minimamente satisfatórios, o núcleo factual essencial integrador da causa petendi, omite a densificação, ao nível tido por adequado à fisionomia do litígio, de algum aspecto caracterizador ou concretizador de tal factualidade essencial) não gera o vício de ineptidão, apenas podendo implicar a improcedência, no plano do mérito, se o A. não tiver aproveitado as oportunidade de que beneficia para fazer adquirir processualmente os factos substantivamente relevantes, complementares ou concretizadores dos alegados, que originariamente não curou de densificar em termos bastantes.”[8]
No caso, os factos complementares ou concretizadores mostram-se necessários à especificação e densificação da causa de pedir – prestação de trabalho suplementar em dia útil e em dia de descanso, de trabalho nocturno, e não gozo de descanso compensatório -, sendo, por isso, indispensáveis à procedência da acção.
Assim, embora com fundamentos não inteiramente coincidentes com os expressos pelo Tribunal recorrido, o recurso não pode proceder. V - DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes que integram a Secção Social deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação e confirmar a decisão recorrida.
Custas da apelação a cargo do recorrente.
Notifique.
Guimarães, 28 de Setembro de 2023
Francisco Sousa Pereira (relator)
Vera Maria Sottomayor
Maria Leonor Chaves dos Santos Barroso
[1] Cf. Ac. de RP 22-10-2019, Proc. 3445/18.6T8VFR-A.P1, Vieira e Cunha, www.dgsi.pt [2] Cf. Ac. STJ de 30-11-2022, Proc. 23994/16.0T8LSB-F.L1.S1, António Barateiro Martins, www.dgsi.pt [3] O despacho tem, para o que ora interessa, o seguinte teor: “Melhor compulsados os autos, constata-se que no art.º 20º da p. i. o autor alega a prestação de trabalho suplementar por referência às escalas de serviço e os registos dos tacógrafos. Tal alegação é quanto a nós insuficiente por quanto impende sobre o autor efectuar a concretização fáctica do que resulta nos alegados documentos, isto é, tem o autor o ónus de alegar no seu articulado os factos concretos, não sendo suficiente a mera remissão para documentos, tanto mais que o tribunal carece de conhecimentos especializados que se exigem para a interpretação dos mesmos. Convida-se, assim, o autor a, no prazo de (10) dias, querendo, concretizar a matéria de facto alegada na petição inicial, entre o mais, especificando as horas de início, de termo e pausas de cada um dos serviços em causa.” [4] Conforme diz Miguel Teixeira de Sousa, “A clareza deste preceito deixa algo a desejar. Ao ressalvar o estabelecido no art. 5.º, n.º 2, CPC, o art. 72.º CPT coloca os "factos essenciais" nele referidos ao nível dos factos probatórios, complementares e concretizadores a que se refere aquele artigo do CPC. De outra forma não se compreende a ressalva, pois que só se ressalva um regime quando se está a regular de forma diferente algo de semelhante.
Pode imaginar-se, no entanto, que o legislador, através da redacção do art. 72.º CPT, teria procurado acrescentar algo ao disposto no art. 5.º, n.º 2, CPC. Para isso, teria sido necessário que tivesse sido ressalvado o n.º 1 (e não o n.º 2) do art. 5.º CPC.” MTS, Blogue do IPPC - https://blogippc.blogspot.com/ -, Publicação do dia 07.01.2021. [5] Cf. Ac. desta Relação Ac. RG de 16-02-2023, Proc. 3741/21.5T8MTS.G1, Maria Leonor Barroso:
“No processo laboral, a ampliação da matéria de facto resultante da consideração pelo juiz na sentença de factos essenciais, complementares ou concretizadores pressupõe o prévio cumprimento do contraditório, o qual tem de ser declarado e expresso. Devendo as próprias partes requer o aditamento ou o juiz oficiosamente dar-lhe conhecimento da possibilidade de ampliação, a fim delas se puderem pronunciar”; no mesmo sentido, Ac. RP 19-4-2021, Proc. 2907/16.4T8AGD-A.P1, Ac. RP de 03-10-2022, Proc. 2798/19.3T8VNG.P1, Rita Romeira, e Ac. RL de 30-05-2023, Proc. 84365/20.6YIPRT.L1-7, Luís Pires Sousa, todos in www.dgsi.pt. [6] cf. Ac. RP de 26-06-2023, Proc. 20081/21.2T8PRT.P1, Jerónimo Freitas, www.dgsi.pt; no mesmo sentido,e a título de exemplo o igualmente recente Ac. RC de 02-05-2023, Proc. 2903/20.7T8CBR.C1, Henrique Antunes, também in www.dgsi.p [7] Cf., também a título de ex., Ac. STJ de 30.5.2013, Proc. 660/1999.P1.S1, Álvaro Rodrigues, Ac. RG de 14.05.2015, Proc. 414/13.6TBVVD.G1, Manuel Bargado e Ac. RP 04.5.2022, Proc. 14614/21.1T8PRT.P1, João Ramos Lopes, todos in www.dgsi.pt [8] Ac. do STJ de 26-03-2015, Proc. 6500/07.4TBBRG.G2,S2, Lopes do Rego, www.dgsi.pt