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OFENSA À INTEGRIDADE FÍSICA
QUALIFICATIVAS
CULPA
Sumário
O que interessa provar no caso do crime de ofensa à integridade física qualificada (tal como ocorre no crime de homicídio qualificado) é a existência de “especial censurabilidade ou perversidade”. O que agrava o crime, no caso em apreço, de ofensa à integridade física, tal como no crime de homicídio, é o facto do grau de culpa do agente ser maior, mais intenso, apto a gerar na sociedade uma maior rejeição ou repúdio. É ao nível da culpa do agente que há de operar-se a análise da qualificação, ou não, do crime base. Não basta dizer que existe uma ou mesmo várias alíneas do nº 2 do art.º 132º do Código Penal preenchidas para automaticamente se concluir pela qualificação do crime – quer de homicídio, quer de ofensa à integridade física – sendo mister aliar ao preenchimento dessas circunstâncias a verificação de uma maior censurabilidade no comportamento do arguido. O que interessa apurar é se os factos dados por provados são suficientes para se poder fazer um juízo de censura tal que se constate que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade quando atingiu o agente da GNR, não bastando o simples facto o arguido ter atingido um agente policial, no exercício das suas funções, nem que o tenha feito por meio particularmente perigoso.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. No âmbito de processo comum que corre termos pelo Juiz 2 do Juízo Local Criminal de Cascais, da Comarca de Lisboa Oeste, sob o nº 608/15.4GACSC, na sequência de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença em 22-10-2019, junta a fls. 254 e ss, com a refª 121823277, relativamente ao arguido AT_____ através da qual o mesmo foi absolvido e condenado nos seguintes termos:
“IV- DISPOSITIVO Pelo exposto, ao abrigo das disposições legais citadas, o Tribunal decide: A. Absolver o arguido AT_____ do crime de ofensa à integridade qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, n.º 1, alínea a) com referência aos artigos 143.º, n.º 1 e 132.º, n.º 2, alínea h) e 1), todos do Código Penal, de que vem acusado e, procedendo à respetiva convolação, declarar extinto o procedimento criminal pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. nos termos do artigo 143.º, n.º 1 do Código Penal, por falta de queixa; B. Condenar o arguido AT_____ pela prática, como autor material, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º n.º 2 ex vi n.º 1, do Código Penal, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão; C. Condenar o arguido AT_____ pela prática, como auto material, um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 212.º e 213.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, na pena de 4 meses de prisão; D. Proceder ao cúmulo jurídico das penas referidas em B. e C. e condenar o arguido na pena única de na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, substituída por 450 horas de trabalho a favor da comunidade, com uma periodicidade de pelo menos 5 horas por semana e no prazo máximo de 23 meses, nos termos do artigo 58.º, n.º 1 do Código Penal, as quais deverão ser prestadas pelo arguido na entidade beneficiária a ser indicada pela DGRSP; E. Condenar ainda o arguido em duas penas acessória de inibição de conduzir quaisquer veículos motorizados, pelo período de 5 meses e 4 meses, nos termos do artigo 69.º, n.º 1 alínea b) do Código Penal, respetivamente pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário e de crime de dano qualificado; F. Proceder ao cúmulo jurídico das penas referidas em E. e condenar o arguido na pena única de inibição de conduzir quaisquer veículos motorizados, pelo período de 7 meses, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal se violar essa proibição. G. Absolver o arguido pela prática da contra-ordenação prevista e sancionada pelo artigo 4.º, n.ºs 1 e 3 do Código da Estrada; H. Julgar procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público e condenar o demandado/arguido AT_____ a pagar ao Estado a quantia de €536,35, a título de danos patrimoniais, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde a presente decisão e até integral e efetivo pagamento. I. Condenar o arguido (i) nas custas do processo, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça, (artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa ao mesmo); e (ii) nas demais custas do processo nos termos do artigo 514.º do CPP; J. Sem custas quanto ao pedido de indemnização civil - artigo 4º, nº 1 al. n) RCP. K. Após trânsito, remeta boletim ao registo criminal (artigo 6.º da Lei n.º Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio) para efeitos de registo criminal. L. Após trânsito, remeta cópia da presente sentença a DGRSP para execução da pena substitutiva, devendo indicar qual a entidade beneficiária e data de início da prestação do TFC. Notifique. Lida, procede-se ao depósito da sentença (artigo 372.º, n.º 5 do CPP).”
II. Inconformado com a decisão proferida no tocante à absolvição do arguido da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, veio o Magistrado do MºPº junto da 1ª instância interpor o recurso junto a fls. 277 e ss, com entrada em 20-11-2019 (refª 15835183), através do qual oferece as seguintes conclusões:
“1. Por sentença transitada em julgado, proferida no âmbito do processo judicial n.º 645/15.4GACSC, que correu termos no Juízo Local Criminal de Cascais – Juiz 2, foi o arguido AT_____ absolvido da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a), por referência aos artigos 143.º, n.º 1 e 132.º, n.º 2, alíneas h) e l), todos do Código Penal, por convolação para o crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, verificada que foi a não apresentação de queixa;
2. Vinha o arguido acusado da prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a), por referência aos artigos 143.º, n.º 1 e 132.º, n.º 2, alíneas h) e l), todos do Código Penal;
3. O Juiz a quo deu como não provado o facto f): “Que o arguido quis molestar fisicamente o militar da GNR BP___, usando para o efeito um veículo automóvel, que sabia ser apto a causar lesões particularmente graves naquele o que conseguiu.”
4. Qualificando o dolo do arguido na referida acção como eventual, procedendo à desqualificação do crime de ofensa à integridade física, por entender que não se encontram verificadas as exigências de especial censurabilidade ou perversidade.
5. Ainda que assim decidisse relativamente ao dolo, deveria o Juiz a quo ter dado como provado que o arguido tinha conhecimento que o veículo automóvel que conduzia é um objecto particularmente perigoso para efeitos de eventuais ofensas à integridade físicas, e, eventualmente, considerado que, na manobra de marcha atrás realizada pelo arguido, este representou como possível a possibilidade de ofender a integridade física de um qualquer militar da GNR que se encontravam a sair do carro patrulha, e se conformou com isso;
6. Em sede de audiência de julgamento o arguido decidiu remeter-se ao silêncio;
7. As testemunhas BP____, JP______ e AC____, militares da GNR, apresentaram “depoimentos concordantes entre si, sérios, espontâneos e objectivos, sem procurarem salvaguardar a sua posição, e que por isso mereceram toda a credibilidade – descreveram em uníssono, os factos dados como provados de forma genuína e espontânea, referindo (…) a dinâmica dos factos aquando o mesmo bateu no muro e depois na viatura da GNR.”;
8. É facto notório que dirigir um veículo automóvel contra uma pessoa trata-se de uma conduta perigosa para a vida ou integridade física da mesma;
9. Pelo que deveria o Juiz a quo ter dado como provado o facto de que o arguido utilizou um veículo automóvel na sua acção, bem sabendo que tal objecto é um meio perigoso, passível de criar no potencial ofendido danos físicos graves.
10. O Tribunal a quo afirmou que “claramente se encontram preenchido o elemento objectivo do tipo de ilícito de ofensa à integridade física, na pessoa de BP______, porquanto na tentativa de fuga, ao embater o arguido com a parte traseira do seu veiculo no veículo da GNR, ficou o militar da GNR com a perna direita entalada entre a porta lateral direita da frente e a estrutura do veículo – factos 12 e 13.”
11. E, relativamente ao elemento subjectivo, “(…) o mesmo encontra-se igualmente preenchido muito embora na modalidade de dolo eventual”.
12. Mas, relativamente à qualificação do crime, refere que “não obstante estarem objectivamente preenchidos dois factores de indiciação – veículo é um meio perigoso e militar é agente da força pública em funções – não se encontra preenchido o pressuposto de que depende a qualificação.”;
13. No caso em apreço, deu-se provado que: “11. Nesse momento, os militares da GNR imobilizaram o carro patrulha atrás do veículo do arguido, e com vista a abordar o arguido, começaram a sair do veículo; 12. Ao aperceber-se disso, e com vista a continuar a fuga, o iniciou uma manobra de marcha-atrás, embatendo com a parte traseira do seu veículo na parte dianteira lateral direita do veículo da GNR, que se encontrava aberta. 13. Nesse momento o militar BP_____. encontrava-se a sair do veículo da GNR, tendo ficado com a perna direita entalada entre a porta lateral direita da frente e a estrutura do veículo, o que lhe causou dores; 23. Ao embater com o seu veículo no veículo da GNR para fugir do local, o que representou e quis, o arguido admitiu como possível que, nessas circunstâncias estivessem ainda militares da GNR dentro daquela viatura, e bem assim que o corpo dos mesmos pudesse ser atingido com o embate dos veículos, confrontando-se com essa possibilidade.”.
14. Ainda que tenha agido com dolo eventual relativamente ao crime de ofensa à integridade física do militar da GNR, o arguido sabia que na retaguarda do seu veículo se encontravam mais do que um militar da GNR que seguiam em sua perseguição, e já se encontravam a sair do veículo para proceder à sua detenção;
15. Mais sabia que, naquela situação, colocando o seu veículo automóvel em marcha atrás, poderia, eventualmente, atingir com o seu veículo automóvel qualquer um dos militares que lá se encontravam;
16. Sabendo ainda que o veículo automóvel no qual se encontrava é um meio particularmente perigoso, passível de criar lesões graves em se dirigido contra seres humanos desprotegidos;
17. Não desconhecia também o arguido, que os militares da GNR que se encontravam há largos minutos em sua perseguição, eram agentes da força pública.
18. De resto, conforme entendimento perfilhado no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 11.11.2014 (Proc. n.º 331/12.7JALRA.E1), do qual resulta que “Admitindo-se que a posição a assumir estará dependente da qualificativa aplicável ao caso concreto, o caso das alíneas i) [Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso] e j) [agir com … reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas] do n. 2 do artigo 132º do Código Penal apresentam um obstáculo conceptual que poderá impedir, em concreto, a qualificação através do dolo eventual. Mas no caso em apreciação, onde a qualificação se opera pelas alíneas g) [Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime] e h) [Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum], não se vê que a tese seja defensável.”
19. Pelo que a mera questão referente à qualificação do dolo do arguido no crime de ofensa à integridade física ser eventual, não impede que se qualifique a sua actuação como produzida em circunstâncias reveladoras de especial censurabilidade ou perversidade, conforme se exige no n.º 1 do artigo 132.º, do Código Penal;
20. Devendo a sentença recorrida ser substituída por uma em que o arguido seja condenado pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a), por referência aos artigos 143.º, n.º 1 e 132.º, n.º 2, alíneas h) e l), todos do Código Penal;
Nestes termos, e nos demais de direito, deverá o presente recurso merecer provimento, e, consequentemente, a decisão recorrida revogada e substituída por outra que, alterando a matéria de facto provada, condene o arguido AT_____ pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelo artigo 145.º, n.º 1, alínea a), por referência aos artigos 143.º, n.º 1 e 132.º, n.º 2, alíneas h) e l), todos do Código Penal.
No entanto, V. Exas. certamente farão a habitual JUSTIÇA.”
III. Igualmente inconformado com a sentença condenatória, mas no tocante à fixação de uma sanção acessória de inibição de conduzir por 7 meses, veio o arguido interpor recurso em 21-11-2019, com a refª 15849210, junto a fls. 285 e ss, através do qual veio oferecer as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso surge na sequência da decisão proferida pelo tribunal de 1.ª Instância que condenou o arguido como autor material pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347, n.º 2 ex vi n.º 1 do Código Penal na pena de um ano e dois meses de prisão, pela prática de um crime de dano qualificado, previsto e punido pelo artigo 212 e 213 n.º 1 alínea c) do Código Penal, na pena de quatro meses de prisão, sendo que em cúmulo jurídico lhe foi aplicada a pena única de um ano e três meses de prisão, substituída por 450 horas de trabalho a favor da comunidade, com uma periodicidade de pelo menos 5 horas por semana e no prazo máximo de 23 meses.
2. Mais foi condenado o arguido a uma pena única de inibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de sete meses.
3. Foi ainda o arguido recorrente condenado a pagar a quantia global de €536,35 a título de indemnização pelos danos patrimoniais.
4. O presente recurso versará exclusivamente quanto à pena de inibição de conduzir pelo período de sete meses.
5. O recorrente aceita e concorda com a pena que lhe foi aplicada, depois de cúmulo jurídico, de um ano e três meses de prisão, substituída por 450 horas de trabalho a favor da comunidade, com uma periodicidade de pelo menos 5 horas por semana e no prazo máximo de 23 meses.
6. Todavia não concorda com a pena acessória de inibição de conduzir quaisquer veículos motorizados pelo período de sete meses, uma vez que, a ter que cumprir efectivamente esta pena acessória estará impossibilitado de cumprir as 450 horas de trabalho a favor da comunidade a que foi condenado.
7. Resulta dos factos provados que o recorrente está desempregado e sobrevive a fazer biscates na área da mecânica.
8. Mais resultou provado que a sua companheira aufere o salário mínimo nacional e que juntos têm uma filha com quatro anos.
9. A ter que cumprir efectivamente a pena acessória de inibição de conduzir, o recorrente estará impedido de ir fazer os biscates na área da mecânica, uma vez que se desloca a casa dos clientes.
10. É também o recorrente que leva e vai buscar a sua companheira ao trabalho, uma vez que esta não tem carta de condução.
11. No local onde o recorrente mora não existem transportes públicos à hora em que a companheira inicia o seu horário de trabalho.
12. De igual forma, durante o dia apenas há autocarro às 08h00 e depois de regresso às 19h00, o que impossibilita o recorrente ou a sua esposa de ir buscar a sua filha á escola.
13. Estando o recorrente inibido de conduzir, também não conseguirá cumprir as horas de trabalho a favor da comunidade a que foi condenado uma vez que não terá meio nem forma de se deslocar para o local que for escolhido.
14. Tais factos resultarão melhor esclarecidos no relatório social a elaborar pelos serviços de inserção social.
15. crê-se que a pena aplicada de 450 horas de trabalho a favor da comunidade é suficiente para salvaguardar as exigências de prevenção geral e especial.
16. Na determinação de medida concreta da pena, deverá o julgador ter por norte e linhas de força, as seguintes matrizes: A culpa do agente, referenciada no facto, que impõe uma retribuição justa e equilibrada. Exigências decorrentes do fim preventivo especial ligadas à reinserção integral do agente. Exigências decorrentes do fim preventivo geral ligadas à contenção da criminalidade e à defesa dos valores socialmente dominantes e comunitariamente instituídos. - cfr. artigo 71º, do Código Penal.
17. Segundo o artigo 40º, a aplicação das penas tem como finalidades a prevenção geral positiva (“protecção dos bens jurídicos”) e a prevenção especial (“reintegração do agente na sociedade”
18. como decorrência de um princípio de congruência entre a ordem de valores constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos tutelados pelo direito penal, só as finalidades relativas, não as absolutas, de prevenção (geral e especial) podem justificar a intervenção do direito penal, conferindo fundamento e sentido às penas.
19. A pena tem como finalidade o reforço da consciência jurídica da comunidade e um reforço do seu sentimento de segurança face às violações da lei por alguns dos seus elementos.
20. Mantém-se, através da pena, o crédito social que merecem as normas violadas, normas essas que mantêm em pleno a sua eficácia e se encontram em plena vigência apesar do desrespeito às mesmas.
21. Considerando os factos aplicados ao arguido, na estrita medida em que o foram, afigura-se-nos, a pena aplica de prestação de trabalho a favor da comunidade em 450 horas é justa e equitativa, sendo a pena acessória de inibição de conduzir excessiva e desproporcional face às necessidades de prevenção.
22. O dolo do arguido é diminuto e não existe reiteração na prática de ilícitos criminais
23. O recorrente fica suficientemente advertido e intimidado com a condenação à prestação de trabalho a favor da comunidade, sendo excessiva a aplicação de uma pena acessória.
24. O comportamento do arguido, posterior aos factos, é exemplar e constituiu um bom augúrio relativamente à sua efectiva reinserção na sociedade.
25. perante os factos provados e todo o exposto, é nosso entendimento que ao recorrente não deve ser aplicada uma pena acessória de inibição de conduzir.
26. A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
27. O seu limite máximo fixar-se-á, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.
28. O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos
29. a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primacial da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
30. Quer dizer, as exigências de prevenção fixam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função delimitadora do máximo da pena. Entre tais limites actuam, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.
31. Por tudo o supra exposto, e sem necessidade de mais considerações, deve a sentença proferida ser revogada na parte em que condena o recorrente na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de sete meses, mantendo-se tudo o demais, devendo a sentença recorrida ser revogada nesta parte, atendendo a que as penas aplicadas violam o disposto nos artigos 40º, 69º, 70º e 71º, todos do Código Penal.
Nestes termos e nos melhores de Direito que Vexas. doutamente suprirão, deve a sentença proferida ser revogada na parte em que condena o recorrente na pena acessória de inibição de conduzir pelo período de sete meses, mantendo-se tudo o demais
No entanto, farão V. Exas. a habitual e costumada justiça.”
IV. Ambos os recursos foram admitidos por despacho de 25-11-2019, constante a fls. 291 (refª 122426472), que lhes fixou efeito suspensivo.
V. O arguido não respondeu ao recurso interposto pelo MºPº mas este veio responder ao recurso interposto pelo arguido nos termos que constam de fls. 294 e ss, através de contra-alegações juntas em 17-12-2019 (refª16017764), onde oferece as seguintes conclusões:
“1. Por sentença judicial proferida nos presentes autos, foi o recorrente condenado, em cúmulo jurídico, na pena única de 1 ano e 3 meses de prisão, substituída por 450 horas de trabalho a favor da comunidade, pela prática de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e um crime de dano qualificado, p. e p. pelos artigos 347.º, n.º 2, ex vi n.º 1, e 212.º e 213.º, n.º 1, alínea c), todos do Código Penal;
2. Foi também o arguido condenado na pena acessória, em cúmulo jurídico, de 7 meses de inibição de condução de veículos motorizados.
3. Vem agora o arguido recorrer da douta sentença, porquanto entende que a medida da pena acessória de inibição de condução de veículos motorizados se mostra exagerada, e que, a efectivar-se, tal perturbará o arguido no cumprimento da pena de substituição de 450 horas de trabalho a favor da comunidade à qual foi condenado;
4. Em sede de determinação do quantum da pena acessória, o Tribunal a quo, correctamente, considerou: a inserção profissional e familiar do arguido; o facto do mesmo ter agido com dolo relativamente a ambos os crimes; os seus três antecedentes criminais (ainda que de diferente natureza, se reportam todos a crimes praticados com utilização de veículo automóvel); a extensão do dano; e o grau de ilicitude elevado, atendendo ao modo intenso de execução dos factos (a fuga e perseguição do arguido) e à persistência e vigor com que o arguido praticou os factos integradores dos crimes em apreço;
5. Fazendo-o através de uma correcta aplicação dos preceitos normativos constantes dos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do Código Penal;
6. Termos em que a decisão recorrida perfila-se como correcta e ajustada no que concerne à matéria de facto dada como provada e circunstancialismos do caso concreto, sendo o quantum das penas parcelares e cúmulo jurídico operado, além de legal e correcto, ajustado e proporcional, tendo sido devidamente ponderados os fins e limites das penas referentes ao binómio culpa/ilicitude dos factos e princípios de prevenção geral e especial ressocializadora.
7. Termos em que, a decisão ora recorrida mostra-se como a única solução juridicamente válida e adequada ao caso sub judice, devendo ser mantida.
Nestes termos, e nos demais de direito, não deverá o recurso interposto merecer provimento, confirmando-se a douta decisão recorrida.”
VI. Foi aberta vista nos termos do disposto no art.º 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido, em 10-07-2020, com a refª 15901998, o parecer de fls. 304 e ss, através do qual pugna pela procedência do recurso interposto pelo MºPº e pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.
VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.
VIII: Analisando e decidindo.
O objecto do recurso e, portanto, da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos art.ºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no art.º 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]
Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º, por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.
Tendo sido interposto dois recursos, um pelo MºPº e outro pelo arguido, há que definir previamente o objecto de cada recurso.
Assim, e no que tange ao recurso interposto pelo MºPº, entende este recorrente que:
- o tribunal a quo deveria ter dado como provado o facto de que o arguido utilizou um veículo automóvel na sua acção, bem sabendo que tal objecto é um meio perigoso, passível de criar no potencial ofendido danos físicos graves;
- o facto do arguido poder ter agido com dolo eventual não significa que o crime de ofensa à integridade física não possa ser qualificada, e que se verifica essa qualificação, devendo o arguido ser condenado em conformidade.
Está, assim, em causa no que tange ao recurso interposto pelo MºPº saber:
a) se houve erro de julgamento quanto à fixação da matéria de facto;
b) se o arguido deveria ter sido condenado também pelo crime de ofensa à integridade física qualificada.
Quanto ao recurso do arguido este apenas impugna a sanção acessória de inibição de conduzir pelo que o objecto do seu recurso restringe-se à fixação desta sanção e os seus requisitos.
Antes de entrarmos na análise de cada recurso, vejamos, primeiro, os factos que foram dados por provados e por não provados em sede de 1ª instância, bem como a respectiva motivação dessa matéria de facto e ainda a fundamentação jurídica.
Assim:
Na sequência do julgamento realizado em 1ª instância, foram dados como provados e como não provados os seguintes factos: “II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO A) FACTOS PROVADOS Discutida a causa, e com relevância para a mesma, resultaram provados os seguintes factos: A) Da acusação: 1. No dia 10 de Junho de 2015, pelas 02H35, o arguido AT____ conduzia o veículo ligeiro de passageiros, marca BMW, modelo 316 1, de cor vermelha e com a matrícula -, na Rua -, em Alcabideche, em direção ao posto de abastecimento de combustíveis da Cepsa, sito na Avenida da República, em Alcabideche. 2. Quando chegou ao aludido posto de abastecimento de combustíveis, o arguido entrou na bomba que se encontrava fechada, por estar no período noturno, pelo acesso da Rua - mas logo saiu da mesma, pelo referido acesso, e atravessou a Avenida da República em sentido contrário ao legalmente estabelecido, após o que transpôs a linha longitudinal contínua existente naquela artéria e entrou na bomba, do lado oposto, que se encontrava em funcionamento. 3. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido, ao aperceber-se da presença dos Militares da GNR de Alcabideche, BP______, JP______ e AC____, que ali se encontravam no exercício das suas funções, devidamente uniformizados e em veículo automóvel devidamente caracterizado com as cores e insígnias da GNR, travou bruscamente o veículo BMW onde seguia e efetuou de imediato manobras, imprimindo velocidade e saindo da bomba pela entrada em sentido proibido novamente em direção à Avenida da República. 4. Porém, quando o veículo do arguido se encontrava a efetuar a manobra de inversão de marcha, o Militar da GNR JP______ colocou-se no meio da faixa de rodagem, na Avenida da República, e ordenou ao arguido que imobilizasse o veículo. 5. O arguido, apesar de ter compreendido perfeitamente tal ordem, não obedeceu à mesma e, ao invés de parar, avançou e acelerou a fundo o veículo que conduzia em direção ao corpo do Militar da GNR JP______, fazendo menção de o atropelar. 6. Nesse momento, o Militar da GNR JP_______, por recear pela sua própria vida, retirou a arma do coldre e efetuou um disparo de advertência para o ar, o que fez com que o arguido mudasse bruscamente a direção do veículo, transpondo novamente a linha longitudinal contínua existente na Avenida da República e, entrando outra vez na bomba que se encontrava encerrada, prosseguiu a marcha em direção à Rua -. 7. Os Militares da GNR iniciaram de imediato uma perseguição ao veículo conduzido peio arguido, entre a Rua - e a Estrada da Quinta de Manique, percurso durante o qual ordenaram, por diversas vezes, ao arguido que encostasse o veículo à berma, o que fizeram através da utilização do megafone e dos sinais luminosos da viatura policial. 8. De seguida, o arguido continuou a conduzir o BMW até à "Pastelaria Doce Dom", sita na Rua de São Francisco, na Adroana, local onde imobilizou o veículo que conduzia e deixou sair um indivíduo, que o acompanhava. 9. Ato contínuo, o arguido reiniciou a marcha do veículo BMW, imprimindo velocidade e prosseguiu em direção a Manique, circulando pela Rua, pela Rua de, pela Rua, pela, pela Rua da Ponte e pela Rua, sempre seguido pela viatura da GNR que circulava com as sirenes e os sinais luminosos acionados. 10. Ao sair da Rua e entrar na Estrada___, no sentido de regresso a Alcabideche, o arguido perdeu o controlo do veículo e embateu com o mesmo num muro duma casa sita naquela artéria. 11. Nesse momento, os militares da GNR imobilizaram o carro patrulha atrás do veículo do arguido, e com vista a abordar o arguido, começaram a sair do veículo. 12. Ao aperceber-se disso, e com vista a continuar a fuga, o iniciou uma manobra de marcha-atrás, embatendo com a parte traseira do seu veículo na parte dianteira lateral direita do veículo da GNR, que se encontrava aberta 13. Nesse mesmo momento o militar BP_____ encontrava-se a sair do veículo da GNR, tendo ficado a perna direita entalada entre a porta lateral direita da frente e a estrutura do veículo, o que lhe causou dores. 14. O embate referido em 12., provocou estragos no guarda lamas, do resguardo da roda da frente e na pintura do veículo da GNR, pertencente a esta entidade, cujo arranjo custa o montante de €536,35 €, já com IVA. 15. Ato contínuo, o militar AC____ aproximou-se da porta do condutor do veículo do arguido, ao mesmo tempo que o militar JP______ efetuou um disparo na direção do pneu traseiro lateral direito do veículo onde seguia o arguido. 16. No entanto, o arguido retomou a marcha da viatura, embatendo novamente contra o muro, tendo o militar BP_____ se colocado junto da zona frontal direita do veículo do arguido. 17. Novamente o arguido embateu no veículo da GNR com vista a sair do local, momento em que o militar BP_____ efetuou um disparo na direção do motor do veículo do arguido. 18. Nesse momento, o arguido saiu do veículo que conduzia e foi de imediato detido. 19. Ao dirigir, do modo supra descrito, direcionando o seu veículo na direção do militar JP_______, cuja qualidade de militar da GNR conhecia, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de impedir que o mesmo o fiscalizasse, obstando assim a que praticasse atos relativos ao exercício das suas funções e pondo em causa a autoridade subjacente ao cumprimento das ordens que aquele lhe queria impor, tendo usado de violência para o efeito e sabendo que poderia causar-lhe lesões particularmente graves, o que apenas não ocorreu porque o arguido mudou a trajetória do seu veículo. 20. O arguido bem sabia que desta forma afetava, como o fez, a autoridade do Estado e a obediência que é devida às ordens emanadas das autoridades policiais, quando dadas no exercício das respetivas funções, como foi o caso. 21. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, querendo embater com o seu veículo no veículo da GNR, causando-lhe estragos, o que conseguiu, apesar de saber que o mesmo não lhe pertencia e que estava a agir contra a vontade do seu legítimo proprietário 22. Bem sabia o arguido que se tratava de viatura de uso exclusivo para o exercício das funções inerentes à GNR e que, por isso, era um bem consignado ao uso e utilidade públicos, pertencente ao Estado e afecto a serviço de organismo público. 23. Ao embater com o seu veículo no veículo da GNR para fugir do local, o que representou e quis, o arguido admitiu como possível que, nessas circunstâncias estivessem ainda militares da GNR dentro daquela viatura, e bem assim que o corpo dos mesmos pudesse ser atingido com o embate dos veículos, conformando-se com essa possibilidade. 24. Sabia o arguido que tais condutas eram e são proibidas por lei penal, ao que foi indiferente. B) Mais se provou: 25. O arguido regista os antecedentes criminais melhor descritos no certificado de registo criminal junto aos autos em 03.10.2019, e que aqui se dá por integralmente reproduzido. 26. O arguido encontra-se desempregado há cerca de 4 meses. 27. Faz biscates na área da mecânica auferindo cerca de €50,00/€60,00 por mês. 28. Vive com a companheira e o filho de ambos de 4 anos em casa arrendada pela qual pagam cerca de €300,00 de renda mensal. 29. A companheira do arguido aufere o SMN e mãe do arguido vive no seu agregado familiar contribuindo para as despesas da casa com cerca de €200,00 por mês. 30. Tem de habilitações literárias o 5.º ano. B) FACTOS NÃO PROVADOS Com interesse para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos: a. Que o arguido, apesar de ter compreendido perfeitamente os sinais de paragem, prosseguiu a marcha em direção à Estrada da Quinta de Manique, sendo que, quando se aproximou do cruzamento da Rua - com a Rua das Fisgas, apagou as luzes do veículo, para despistar os militares da GNR que o perseguiam, só não embatendo numa viatura que circulava na Rua -porque esta travou a tempo, conseguindo evitar o embate. b. Que o indivíduo referido em 8. fosse Luís Panças. c. Que nas circunstâncias referidas em 12., o arguido acelerou a fundo na direção ao militar BP______. d. Que nas circunstâncias referidas em 16., o militar BP_____ ordenou arguido que o imobilizasse e saísse da viatura. e. Que após, o arguido tenha retomado a marcha do veículo BMW, guinando-o para a direita em direção ao militar BP______, com o intuito de o atropelar. f. Que o arguido quis molestar fisicamente o militar da GNR BP______, usando para o efeito um veículo automóvel, que sabia ser apto a causar lesões particularmente graves naquele, o que conseguiu.”
A motivação dada para fixar os factos supra descritos é a seguinte (transcrição):
“C) MOTIVAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO A audiência de julgamento decorreu com o registo dos depoimentos e esclarecimentos nela prestados - no sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal. Tal circunstância, permitindo uma ulterior reprodução desses meios de prova e um efetivo controle do modo como o Tribunal formou a sua convicção, deve, também nesta fase do processo, revestir-se de utilidade e dispensar o relato detalhado dos depoimentos e esclarecimentos prestados. Posto isto, na formação da sua convicção o Tribunal tomou em consideração os meios de prova disponíveis, atendendo nos dados objetivos fornecidos pelos documentos dos autos e fazendo uma análise das declarações e depoimentos prestados. Toda a prova produzida foi apreciada segundo as regras da experiência comum e lógica do homem médio, suposto pelo ordenamento jurídico, fazendo o Tribunal, no uso da sua liberdade de apreciação, uma análise crítica dos seguintes meios de prova: - Nas declarações do arguido, só quanto às condições pessoais e económicas; - No depoimento das testemunhas BP______, JP______ e AC____ (militares da GNR). - Nos seguintes documentos com interesse para a causa: auto de notícia de fls. 2/6, relatório fotográfico de fls. 7/14, auto de apreensão de fls. 19 e termo de entrega a fls. 172, fotografias de fls. 101/102, participação de acidente de viação e fotografias de fls. 108 a 115, orçamento de fls. 122 e CRC junto aos autos em 03.10.2019; - Nas regras de experiência comum e critérios de normalidade, as quais permitem inferir a prova do elemento subjectivo. Consigna-se que o arguido exerceu o seu legítimo direito ao silêncio quanto aos factos que lhe são imputados, nos termos do disposto nos artigos 343.º, n.º 1 do CPP. Em concreto, o Tribunal formou a sua convicção quanto aos factos provados com base essencialmente nas declarações das testemunhas BP______, JP______ e AC____ (militares da GNR), o quais, em depoimentos concordantes entre si, sérios, espontâneos e objetivos, sem procurarem salvaguardar a sua posição, e que por isso mereceram toda a credibilidade — descreveram, em uníssono, os factos dados como provados de forma genuína e espontânea, referindo o motivo pelo qual mandaram parar o arguido, a forma pela qual a fizeram - que de resto obedece ao protocolo de segurança das operações de fiscalização de trânsito -, e bem assim descreveram igualmente a conduta do arguido ao longo de todo o percurso, e bem assim a dinâmica dos factos aquando o mesmo bateu no muro e depois na viatura da GNR. Igualmente confirmaram estas testemunhas o percurso constante do print do relatório fotográfico de fls. 7 a 14, feito pelas testemunhas logo após os factos. Foram depoimentos isentos, escorreitos, que de modo algum pareceram querer prejudicar o arguido, estando as testemunhas a uma distância que lhes permitia ter uma boa visibilidade e perceção de toda a factualidade que descreveram. Ademais, os factos referentes ao elemento subjectivo resultaram provados com recurso às regras de experiência comum, as quais permitem inferir, mediante os factos objectivos dados como provados, a intenção subjectiva do arguido ao praticar tais factos. O valor dos estragos na viatura resultou apurado com base no orçamento junto aos autos, o qual não foi posto em causa por qualquer outro meio de prova. Os antecedentes criminais do arguido, provaram-se com recurso aos GRC junto aos amos, e bem assim as suas condições pessoais provaram-se com base nas declarações do mesmo as quais, nesta parte, não levantaram reservas ao Tribunal.”
O respectivo enquadramento jurídico dos factos constante da sentença segue os seguintes termos (transcrição).
“III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO A) ENQUADRAMENTO JURÍDICO Tendo em conta a factualidade apurada que revela para a decisão da causa, importa fazer o seu enquadramento jurídico-penal. i) Do crime de resistência e coação Dispõe o referido artigo 347.º do Código Penal que: “1 -Quem empregar violência, incluindo ameaça grave ou ofensa à integridade física, contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique ato relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique ato relativo ao exercido das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão de uma, cinco anos. 2 - A mesma pena é aplicável a quem desobedecerão sinal de paragem e dirigir contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, veiculo, com ou sem motor que conduta em via pública ou equiparada, ou embarcação, que pilote em águas interiores fluviais ou marítimas, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal”. O bem jurídico protegido com tal crime é a autonomia intencional do Estado - concretizada através da ideia da liberdade de acção pública do funcionário, ou seja, o interesse da liberdade de actuação do Estado contra ataques que a impeçam OU dificultem (Neste sentido, o Acórdão da Relação de Évora de 18.05.2004. in www.dgsi.pt). Visa, assim, proteger-se o interesse do Estado em fazer respeitar a sua autoridade e, consequentemente, a liberdade funcional de actuação do seu funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança (Ac. do S.T.J. de 25.09.2002, in C.J., Acs. S.T.J., X, Tomo 3, pág. 182), evitando que ‘não-funcionários’ ponham entraves à livre execução das 'intenções’ estaduais, tornando-as ineficazes. Por outro lado, sendo o bem jurídico tutelado por esta norma a autonomia intencional do Estado, não está em causa qualquer bem jurídico de natureza pessoal (Neste sentido, Ac da Relação de Lisboa de 11.04.2007, processo 2983/2007-3, in www.dgsi.pt). A semelhança do tipo previsto no n,º 1, o tipo legal e apreço previsto no n.º 2 do referido normativo configura-se como um crime de execução vinculada na medida em que apenas a desobediência ao sinal de paragem conjugada com a direção de veiculo que conduza contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, - é suscetível de conduzir ao preenchimento do tipo. Do tipo objetivo do crime fazem assim parte quer o fim da ação — opor-se a que a autoridade pública exerça as suas funções ou constranger a que pratique ato relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres - quer o meio utilizado: a desobediência ao sinal de paragem conjugada com a direção de veículo que conduza contra agente da autoridade. No que respeita ao fim da ação, opor-se à prática de ato relativo ao exercício das funções, significa impedir, obstar à prática desse ato. Constranger à prática de ato relativo ao exercício de funções, mas contrário aos deveres do cargo, significa impor, compelir, obrigar ou coagir à prática de tal ato. Por seu turno, exige-se para a sua consumação que o agente desobedeça a sinal de paragem e direcione o veículo que conduz contra agente de autoridade, impedindo ou dificultando seriamente a sua capacidade de atuação. Refira-se, por último, que o crime de resistência e coação sobre funcionário é um crime necessariamente doloso — em qualquer das suas modalidades — e que, por conseguinte, pressupõe a consciência da anti-jurisdicidade da ação. No caso em apreço, e atenta a factualidade provada, não restam dúvidas que o arguido, com a sua conduta, preencheu os elementos do tipo de ilícito, porquanto desobedeceu ao sinal de paragem realizada pelo militar da GNR JP_______, devidamente uniformizado, dirigindo contra este a viatura que conduzia - factos 4 a 6. Pela sua conduta, o arguido tentou resistir à atuação do militar da GNR, aos quais incumbe de modo especial a manutenção da ordem, segurança e tranquilidade públicas, e bem assim fiscalizar o tráfego rodoviário, tendo a mesma, com a sua conduta, impedido a sua capacidade de atuação. Por outro lado, dos factos dados como provados, resulta claro que o arguido atuou o propósito de impedir que o referido militar exercesse as suas funções, o que a mesma representou e logrou conseguir, pelo que igualmente se encontra preenchido o tipo subjetivo de ilícito. Pelo exposto, e não se verificando causas de justificação ou de exclusão da culpa, conclui-se que a arguido praticou ainda, na forma consumada e em autoria material, um crime de resistência e coacção sobre funcionário, p. e p. pelo artigo 347.º, n.º 2 ex vi n.º 1 do Código Penal, impondo-se, assim, a sua condenação. ii) Do crime de ofensa à integridade física qualificada O arguido vem igualmente acusado de ter praticado, em autoria material, crime de ofensa á integridade qualificada, p. e p. pelo artigo 145º, n.º 1, alínea a) com referência aos artigos 143.º, n.º 1 e 132.º, n.º 2, alínea h) e 1), todos do Código Penal. Dispõe o artigo 143.º, n.º 1 que: “Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa” Por sua vez, estabelece o artigo 145.º que: “1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143. º; (..) 2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º2 do artigo 132.*’ Sendo um crime qualificado, a aplicação deste último preceito pressupõe que a conduta do agente seja subsumível ao crime base, no caso vertente ao tipo objectivo e subjectivo descrito pelo artigo 143º, n.º 1 e que lhe sejam ainda imputáveis circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade. O bem jurídico protegido é a integridade física da pessoa humana. Trata-se de um crime de resultado dano, isto é, de lesão do corpo ou saúde de outrem. Integra a realização do elemento objectivo do referido tipo penal tanto as ofensas no corpo como na saúde. Por ofensa no corpo entende-se “todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar físico de uma forma não insignificante”, enquanto que por ofensa à saúde é “toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima prejudicando-d\ ou seja, “pertence a este âmbito toda a produção ou aprofundamento de uma constituição patológica” {vide, neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, in Comentário Conimbricensc do Código Penal, Tomo II, Coimbra, 1999). Da análise do normativo decorre serem elementos objetivos do tipo em questão: (i) a verificação de ofensas no corpo ou na saúde; e (ii) o objeto da ação é o corpo humano de terceiro. No que concerne ao tipo subjetivo, o artigo 143.º prevê um tipo doloso, exigindo-se o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas, traduzindo-se este no conhecimento (elemento intelectual) dos elementos do tipo objetivo de ilícito, e vontade de realização do facto típico (elemento volitivo). Não obstante o exposto, o artigo 148.º prevê o preenchimento do tipo de ilícito de ofensa à integridade física na sua forma negligente. Para que a ofensa à integridade física seja qualificada é necessário ainda que as lesões levadas a cabo pelo agente revelem uma especial censurabilidade ou perversidade, remetendo-se para o artigo 132" do j Código Penal. Na verdade, o que releva e está pressuposto na qualificação é sempre a manifestação de um especial e acentuado «desvalor de atitude», que traduz e que se traduz na especial censurabilidade ou perversidade. Assim sendo, é necessário apurar no caso concreto se a conduta é objetivamente integrante no conceito referido nos artigos 145.º, n.º 2 e 132º do Código Penal, ou seja, se configura no caso concreto uma especial censurabilidade ou perversidade. O artigo 132.º, n.º 2 nas alíneas h) e 1) do Código Penal estabelece que é suscetível de revelar especial censurabilidade e perversidade a utilização de “meio particularmente perigoso” e “praticar o facto contra (...) agente de força pública (...) no exercício das suas funções ou por causa delas”. Ora, da factualidade considerada provada resulta claramente que se encontram preenchido o elemento objetivo do tipo de ilícito de ofensa à integridade física, na pessoa de BP______, porquanto na tentativa de fuga, ao embater o arguido com a parte traseira do seu veículo no veículo da GNR, ficou o militar da GNR com a perna direita entalada entre a porta lateral direita da frente e a estrutura do veículo - factos 12 e 13. No que respeita ao elemento subjetivo do tipo de ilícito, o mesmo encontra-se igualmente preenchido, muito embora na modalidade de dolo eventual. Com efeito, resultou igualmente provado que ao embater com o seu veículo no veículo da GNR para fugir do local, o arguido admitiu como possível que, nessas circunstâncias estivessem ainda militares da GNR dentro daquela viatura, e bem assim que o corpo dos mesmos pudesse ser atingido com o embate dos veículos, conformando-se com essa possibilidade. In casu, o dolo eventual reporta-se a um dos elementos do tipo objetivo de ilícito, nomeadamente a verificação da ofensa no corpo de outrem. Já no que respeita à qualificação, atenta a factualidade provada, entendemos que - não obstante estarem objetivamente preenchidos os dois fatores de indiciação - veículo é um meio perigoso e militar é agente da força pública em funções - não se encontra preenchido o pressuposto de que depende a qualificação. Com efeito, corroboramos o entendimento plasmado no Ac. S.T.J. de 12.6.2003 (proc. 03P1671, m www.dgsi.pt) segundo o qual se a agravação preconizada pelo artigo 132.º ex vi 145.º do CP pressupõe uma “forma superior de culpa” - isto é, uma culpa especialmente grave - dificilmente se compatibilizará um mero dolo eventual com uma culpa agravada. Neste sentido, “a concepção legal do dolo eventual incompatibiliza-se com as formas superiores de culpa” (também neste sentido, Margarida Silva Pereira, Textos, Direito Penal II, Os Homicídios, II, AAFDL, 1998). Assim, e estando perante uma ofensa praticada a título de dolo eventual, não resulta provado aquele plus de culpa relativamente à ofensa à integridade física simples. Não se verificando quaisquer circunstâncias que excluam a ilicitude ou a culpa do agente, o arguido praticou antes o crime de ofensa à integridade simples na pessoa de BP______, p. e p. pelo artigo 1-13.". n " 1 do Código Penal. Contudo, o procedimento criminal por este ilícito dependia do tempestivo exercício do direito de queixa, o que não se verificou (vide artigos 50.º ex vi 49.º do CPP e 115.º do CP), pelo que o direito de queixa quanto ao mesmo se extinguiu, não podendo tais factos ser objeto de condenação. iii) Do crime de dano qualificado Dispõe o artigo 212.º, n.º 1 do Código Penal que: “Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tomar não utilizável coisa alheia, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.” O bem jurídico protegido neste crime é a propriedade. Da análise do normativo decorre serem elementos objetivos do tipo: (i) o objeto da ação ser uma coisa alheia; (ii) a ação típica consistir em destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar, tornar não utilizável. Persiste, assim, no paradigma do dano, a referência necessária à corporeidade, no sentido de não haver dano se não se atingir de algum modo a integridade física da coisa, mesmo que seja apenas na sua forma exterior. A destruição é a forma mais intensiva e drástica de cometimento da infração. Determina a perda total da utilidade da coisa e implica, normalmente, o sacrifício da sua substância. A danificação abrange os atentados à substância ou à integridade física da coisa que não atinjam o limiar da destruição. Na desfiguração compreendem-se todos os atentados â integridade física que alteram a imagem exterior da coisa, querida pelo respetivo proprietário. Tornar não utilizável a coisa abrange as ações que reduzem a utilidade da coisa segundo a sua função. Por outro lado, e uma vez que o arguido vem acusado de ter praticado o crime de dano qualificado, nos termos do artigo 213.º, n.º 1 alínea c) do Código Penal, constitui circunstância agravante o dano de "coisa destinada ao uso e utilidade públicos ou a organismos ou serviços públicos”. No que concerne ao tipo subjetivo, este é composto pelo dolo, exigindo-se o dolo genérico, em qualquer uma das suas formas, traduzindo-se este no conhecimento (elemento intelectual) dos elementos do tipo objetivo de ilícito, e vontade de realização do facto típico (elemento volitivo). Reportando-nos ao caso dos autos, e tendo presente a factualidade provada, não restam dúvidas que se encontram preenchidos os elementos do tipo de ilícito em apreço, porquanto o arguido danificou o veículo da GNR, o qual se destina ao uso e utilidade pública. Não se verificando quaisquer circunstâncias que excluam a ilicitude ou a culpa do agente, o arguido cometeu, cometeu em autoria material e na forma consumada, um crime de dano qualificado, p. e p. pelo artigo 212.º e 213.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal. iv) Da contraordenação estradal Dispõe o artigo 4.º do Código da Estrada: “1 - O utente deve obedecer às ordens legítimas das autoridades com competência para regular e fiscalizar o trânsito, ou dos seus agentes, desde que devidamente identificados como tal 2 - Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600, se sanção mais grave não for aplicável por força de outra disposição legal, sem prejuízo do disposto no número seguinte. 3 - Quem desobedecer ao sinal regulamentar de paragem das autoridades referidas no n.º 1 é sancionado com coima de (euro) 500 a (euro) 2500, se sanção mais grave não for aplicável por força de outra disposição legal.” No que respeita à contra-ordenação prevista no normativo em referência, não há dúvida que a mesma foi praticada pelo arguido conforme supra já fundamentado. Contudo, a violação desta norma com a sua conduta é também uma das razões pelas quais o arguido irá ser condenado pela prática de um crime de resistência e coação. Estatui o artigo 20.º do RGCO que “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra- ordenação, será o agente sempre punido a título de crime, sem prejuízo da aplicação das sanções acessórias previstas para a contra-ordenação. Assim, e porque a conduta concretamente imputada ao arguido no que respeita a este tipo contra- ordenacional está contida no tipo objectivo do crime pelo qual irá ser condenado, não pode o mesmo ser condenado pela prática desta contra-ordenação que lhe é imputada - vide igualmente 134.º, n.º 1 CE.”
Por fim, a medida concreta da pena, bem como da sanção acessória foram fixados nos seguintes termos (transcrição): “B) ESCOLHA E DETERMINAÇÃO DA MEDIDA DA PENA i) Dosimetria da pena A escolha e determinação da medida da pena obedecem às disposições dos artigos 40.º, 70.º e 71.º, do Código Penal. O crime de crime de resistência e coacção sobre funcionário praticado pelo arguido é punível, em abstrato, com pena de prisão de um a cinco anos (artigo 347.º, n.º 2 ex vi n.º 1 do Código Penal). O crime de dano qualificado é punido com pena de prisão de um mês até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias - artigos 41.º, n.º 1 e 213.º, n.º 1 do Código Penal. De acordo com o disposto no artigo 70.º, do referido diploma legal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privada da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, isto é, a proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial). No entanto, sempre que na pena conjunta deva ser incluída uma pena de prisão a jurisprudência do S.T.J. (entre outros, Ac. do S.T.J. de 7.72.2016, proc.º 444/14.0PBEVR.S1, in www.dpsi.pt) “impõe-se, na medida do possível, não aplicar pena de multa a um ou mais dos demais crimes em concurso, por também aí se verificarem os inconvenientes geralmente atribuídos às chamadas “penas mistas” de prisão e multa” Assim, e no que respeita ao crime de dano qualificado, seguindo de perto a supra referida jurisprudência e tendo presente os antecedentes criminais do arguido que, embora de diferente natureza, reportam-se igualmente todos a crimes praticados na condução de veiculo, opta o Tribunal por uma pena de prisão. O artigo 40.º, do Código Penal, estabelece a protecção de bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade como finalidades da aplicação de uma pena. A medida da pena determina-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção no caso concreto (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal). Tendo em conta o disposto nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal, importa ponderar, no caso concreto: - a sua integração familiar e social; - ter agido com dolo direto relativamente a ambos os crimes; - os 3 antecedentes criminais que regista que, que, embora de diferente natureza, reportam-se igualmente todos a crimes praticados na condução de veículo; - a extensão do dano; - a ilicitude ser elevada atendendo, ao modo intenso de execução dos factos (a fuga e perseguição do arguido) e à persistência e vigor com que o arguido praticou os factos integradores daqueles crimes; Em face dos factores e das considerações descritos, entende-se ser adequada e suficiente a aplicação ao arguido de: - uma pena de 1 ano e 2 meses de prisão pelo crime de resistência e coação; e - uma pena de 4 meses de prisão pelo crime de dano qualificado. ii) Do Concurso De Crimes Conforme fundamentado supra, verifica-se uma situação de concurso real e efectivo entre os crimes praticados pela arguida porquanto a mesma, com as suas condutas, cometeu vários crimes — vide artigo 30.º, n.º 1 do CP. Nos termos do artigo 77.º, n.º 2 do CP, para determinação da pena única cumpre estabelecer, em primeiro lugar, a moldura abstracta correspondente ao concurso, sendo que o seu limite mínimo corresponde à pena parcelar mais elevada e o máximo à soma das penas concretamente aplicáveis. Nesta conformidade, no presente caso a moldura do concurso compreende-se entre 1 ano e 2 meses e 1 ano e 6 meses de prisão. Para aferir a pena única importa considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, especificamente a visão conjunta da gravidade de todos os factos praticados. In casu, observa-se uma conexão e estreita ligação entre os crimes em concurso, todos eles praticados na mesma ocasião, circunstância que não permite formular um juízo específico sobre a personalidade do arguido que ultrapasse a avaliação que se revelada pela própria natureza dos factos praticados, pelo que, entendemos que o ilícito global aqui presente, marcado essencialmente pelo crime de resistência e coacção sobre funcionário, não é revelador de uma tendência criminosa do arguido, correspondendo antes a uma atuação ocasional por ele procurada, sendo proporcional à gravidade do ilícito global a pena única de 1 ano e 3 meses de prisão. iii) Da substituição da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade Nos termos do artigo 58.º do Código Penal: “1 -Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos. o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição. (...) 3 - Para efeitos do disposto no n.º 1, cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas. 4 - O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável. 5- A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só pode ser aplicada com aceitação do condenado. 6 - O tribunal pode ainda aplicar ao condenado as regras de conduta previstas nos nºs 1 a 3 do artigo 52.º. sempre que o considerar adequado a promovera respectiva reintegração na sociedade.” Assim sendo, o Tribunal deverá optar pela prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que estejam reunidas condições externas de apoio social ao arguido e desde que este não revele falta de preparação da sua personalidade para o efeito e tal pena substitutiva se revele benéfica para o processo de socialização do condenado. In casu, consideramos que tais pressupostos estão reunidos, ao que acresce que o arguido deu o seu consentimento para a prestação de trabalho a favor da comunidade, tal como resulta da ata da audiência de julgamento, nos termos do disposto no artigo 58º, n.º 5 do Código Penal. Assim, tendo em conta o supra exposto e a circunstância desta pena de substituição implicar um “sacrifício” para o condenado, no sentido de o obrigar a reflectir e a ponderar as consequências da sua conduta, conclui-se que, para que se mostrem cumpridas as finalidades da punição, será ainda suficiente a ameaça do cumprimento de una pena de prisão, tendo em conta as circunstâncias acima descritas. Tendo em consideração que o arguido foi condenado em 1 ano e 3 meses (15 meses) de prisão, decide-se substituir a referida pena prisão a que o arguido foi condenado por 450 horas de prestação de trabalho a favor da comunidade, as quais deverão ser realizadas no local que for fixado pela DGRSP, com uma periodicidade de pelo menos 5 horas por semana e no prazo máximo de 23 meses. iv) Das penas acessórias de proibição de condução Os crimes pelos quais o arguido vai condenado são igualmente puníveis nos termos do artigo 69.", n.” I alínea b) do CP, segundo o qual é condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante. No que respeita à determinação da medida da pena acessória da proibição de conduzir veículos com motor, a mesma deve igualmente obedecer ao preceituado no artigo 71º do Código Penal. No entanto, a pena acessória visa tão só, prevenir a perigosidade do agente — enquanto que a pena principal tem em vista a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade - o que terá de se aferir, em concreto. Ora, atendendo aos factos provados e antecedentes criminais, entendemos que o nível de perigosidade enquanto condutor elevado. Face ao exposto e atendendo aos elementos considerados supra aquando da fixação da pena concreta, julga-se adequado condenar ao arguido: - pela prática do crime de resistência e coação numa pena acessória de 5 meses; e - pela prática do crime de dano qualificado numa pena acessória de 4 meses; Atento O AFJ n.º 2/2018 (publicado no Diário da República n.º 31/2018, Série I de 2018-02-13) segundo o qual “Em caso de concurso de crimes, as penas acessórias de proibição de conduzir veículos com motor, com previsão no n.º 1, alínea a), do artigo 69.º do Código Penal, estão sujeitas a cúmulo jurídico”, damos aqui por integralmente reproduzidas as considerações supra expostas sobre concurso de crimes, sendo que a moldura do concurso compreende-se entre 5 meses e 9 meses de inibição de condução, fixando-se uma pena acessória única de 7 meses de inibição de condução. iv) Da sanção acessória Não obstante o arguido não ser punida com a coima correspondente à contraordenação grave praticada e prevista no artigo 4.º do CE, atento o concurso de infrações — vide artigo 20.º RGCO e artigo 134.º, n.º 1 CE -, parece decorrer da lei que sanção acessória é sempre aplicável, sendo neste caso a sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 1 mês a 1 anos, nos termos dos artigos 138.º, n.º 1 e 147.º, n.º 1 e 2 do CE. Não obstante, pronunciou-se sobre esta matéria o Ac da Relação de Coimbra de 08.03.2017 (proc. 232/13.1 GBTCS.C1, dgsi.pt) segundo o qual “Perante um comportamento que, em simultâneo, configura contraordenação c um dos crimes previstos na al a) do artigo 69.º do CP, esgotando a prática do ilícito penal o significado, efeito, ou ilicitude da contraordenação, por forma a que possa entender-se que a consome, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base naquela norma, sob pena de violação do princípio ne bis in idemí’ In casu, a contraordenação prevista no artigo 145.º, n.º 1, al. f) do CE é totalmente consumida pelo crime praticado pelo arguido, pelo que concordando-se com a ratio subjacente a esta jurisprudência, entendemos não ser de aplicar a sanção acessória em apreço.”
Vejamos, agora, cada um dos recursos interpostos começando pelo recurso do MºPº.
Assim: I) Recurso interposto pelo MºPº:
a) Do erro de julgamento na fixação da matéria de facto:
Entende o MºPº “que deveria o Juiz a quo ter dado como provado que o arguido tinha conhecimento que o veículo automóvel que conduzia é um objecto particularmente perigoso para efeitos de eventuais ofensas à integridade físicas, e, eventualmente, considerado que, na manobra de marcha atrás realizada pelo arguido, este representou como possível a possibilidade de ofender a integridade física de um qualquer militar da GNR que se encontravam a sair do carro patrulha, e se conformou com isso” (5ª conclusão)e que “deveria o Juiz a quo ter dado como provado o facto de que o arguido utilizou um veículo automóvel na sua acção, bem sabendo que tal objecto é um meio perigoso, passível de criar no potencial ofendido danos físicos graves” (9ª conclusão).
Vejamos.
A impugnação da matéria de facto segue o disposto no art.º 412º nº3 do Código de Processo Penal que dispõe o seguinte: “3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.”
Tendo a prova sido gravada diz o nº 5 do citado art.º 412º do CPP que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”
Sendo que, nos termos do nº 6 do art.º 412º do CPP “no caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
No que se refere às declarações dos arguidos, aos depoimentos das testemunhas e à sua articulação com os documentos, vigora o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do artº 127º do CPP, que assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no art.º 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art.º 32º nº 8 da Constituição.
Assim, “O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida” (Prof. Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).
“Por outro lado diremos também que, dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise da gravação áudio onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.
Ou seja, a convicção do julgador só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”
Conforme se esclarece ainda no Acórdão desta mesma Relação de Lisboa (9ª secção) de 08-10-2015, proferida no proc.º nº 220/15.3PBAMD.L1-9, in dgsi.pt:
“III- O recurso em matéria de facto, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente à decisão sobre os concretos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgado, fazendo referência expressa às concretas passagens/excertos das declarações, que, no seu entendimento, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer;
IV- Não basta ao recorrente enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito (v.g. da prova produzida não resultam provados os factos do tipo legal ou não se provou o crime, pelo que deve ser absolvido), de tal modo que fosse o tribunal superior, oficiosamente a retirar conclusões sobre quais os factos e provas concretas que se ajustariam à sua pretensão final e dentro destas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir a prova gravada na íntegra, uma vez que o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal “ad quem”, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros relevantes (evidentes e óbvios) na apreciação e ou aquisição da prova produzida em sede de primeira instância.”
Por isso é que é absolutamente fundamental que no recurso interposto da matéria de facto, nos termos do art.º 412º nº 3 do CPP, o recorrente identifique os concretos factos cuja alteração pretende e as concretas provas que impunham a requerida alteração, não cabendo a este Tribunal de recurso refazer o julgamento, ouvir toda a prova e voltar a decidir.
Ora, no caso em apreço, o Digno Recorrente indica qual o facto que entende dever ter sido dado como provado mas não explica porque motivo assim deveria ser, ou seja, não indica na prova ouvida que partes dos depoimentos do senhores agentes da GNR é que impunham decisão diversa quanto à matéria de facto.
O Digno Recorrente limita-se a afirmar que é um facto notório “que dirigir um veículo automóvel contra uma pessoa trata-se de uma conduta perigosa para a vida ou integridade física da mesma” (8ª conclusão) mas o facto que interessaria provar para preenchimento do tipo legal quanto ao elemento subjectivo era a vontade do agente em querer atingir o agente da GNR com o seu carro (facto alegado pelo MºPº na sua acusação) e não um facto abstracto referente à natureza do objecto utilizado para provocar a lesão.
Ou seja, o que o MºPº acusa o arguido de fazer, na respectiva acusação, é de querer deliberadamente atingir o agente da GNR com a sua viatura, bem sabendo da elevada perigosidade para a saúde e integridade física da vítima.
Mas isto é diferente do que simplesmente referir que o arguido sabia, porque tinha de o saber por ser um facto notório, que a condução de um veículo automóvel contra uma pessoa é um acto perigoso.
O Tribunal a quo ao ter dado como provado, no facto vertido em 23 que “Ao embater com o seu veículo no veículo da GNR para fugir do local, o que representou e quis, o arguido admitiu como possível que, nessas circunstâncias estivessem ainda militares da GNR dentro daquela viatura, e bem assim que o corpo dos mesmos pudesse ser atingido com o embate dos veículos, conformando-se com essa possibilidade” exclui a possibilidade de considerar que o arguido agisse com dolo directo querendo atingir directamente o agente da GNR.
Assim, se o Digno Recorrente entendia que o arguido agiu com a vontade de atingir a vítima directamente, pois que entende que o arguido sabe que conduzir um carro contra uma pessoa, ademais, um agente policial pode traduzir um acto de especial censura, deveria ter identificado e explicado, no seu recurso, a respectiva prova produzida nesse sentido (sendo que só foram ouvidos os agentes da GNR), nomeadamente que trechos específicos dos depoimentos das testemunhas teriam de levar a conclusão diversa daquela seguida pelo Tribunal a quo.
No fundo o que o MºPª pretende é que se separe ou se cinde os factos plasmados na acusação e objecto de julgamento em partes mais pequenas entendendo que se uma parte não pode proceder pelo menos a outra deve, quando isso retira ao sentido do facto na sua plenitude.
Não está em causa saber se o arguido sabia que conduzir um veículo automóvel contra uma pessoa é um acto particularmente perigoso, enquanto facto isolado, mas se sabendo disso, se queria mesmo atingir um agente da GNR com o seu carro.
É esse o facto que interessa.
Aliás, a nosso ver o MºPº incorre em erro, na sua 5ª conclusão, quando diz que o Tribunal a quo deveria ter “eventualmente, considerado que, na manobra de marcha atrás realizada pelo arguido, este representou como possível a possibilidade de ofender a integridade física de um qualquer militar da GNR que se encontravam a sair do carro patrulha, e se conformou com isso” quando é precisamente isso que o Tribunal a quo determina no facto vertido em 23 – “Ao embater com o seu veículo no veículo da GNR para fugir do local, o que representou e quis, o arguido admitiu como possível que, nessas circunstâncias estivessem ainda militares da GNR dentro daquela viatura, e bem assim que o corpo dos mesmos pudesse ser atingido com o embate dos veículos, conformando-se com essa possibilidade.”
Não logrando o Digno Recorrente explicar porque motivo a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento deveria levar à fixação do facto que entende dever ter sido dado por provado, e aceitando que o Tribunal a quo até poderia considerar a existência de dolo eventual, tem o recurso que improceder nesta parte.
b) Da eventual condenação do arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada:
Entende o MºPº que o facto do Tribunal a quo ter considerado, quanto ao tipo legal em causa (ofensa à integridade física), que haveria apenas dolo eventual, que esse entendimento não é incompatível com a qualificação do crime, devendo o arguido ter sido condenado, a par dos outros crimes, pelo crime de ofensa à integridade física qualificada porquanto se verifica que o mesmo utilizou um meio particularmente perigoso e actuou contra agente da força púbica no exercício das suas funções.
Vejamos.
O crime de ofensa à integridade física (simples) vem prevista no art.º 143º do Código Penal e tem a seguinte redacção: “1 - Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa. 2 - O procedimento criminal depende de queixa, salvo quando a ofensa seja cometida contra agentes das forças e serviços de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas. 3 - O tribunal pode dispensar de pena quando: a) Tiver havido lesões recíprocas e se não tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”
O crime em apreço passa a ser qualificado nos termos do art.º 145º do Código Penal que dispõe o seguinte:
“1 - Se as ofensas à integridade física forem produzidas em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade do agente, este é punido: a) Com pena de prisão até quatro anos no caso do artigo 143.º; b) Com pena de prisão de 1 a 5 anos no caso do n.º 2 do artigo 144.º-A; c) Com pena de prisão de 3 a 12 anos no caso do artigo 144.º e do n.º 1 do artigo 144.º-A. 2 - São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade do agente, entre outras, as circunstâncias previstas no n.º 2 do artigo 132.º” – sublinhado nosso
Sendo que o art.º 132º do Código Penal, subordinado à epígrafe “homicídio qualificado” diz o seguinte:
“1 - Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de doze a vinte e cinco anos. 2 - É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente: a) Ser descendente ou ascendente, adoptado ou adoptante, da vítima; b) Praticar o facto contra cônjuge, ex-cônjuge, pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação, ou contra progenitor de descendente comum em 1.º grau; c) Praticar o facto contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez; d) Empregar tortura ou acto de crueldade para aumentar o sofrimento da vítima; e) Ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil; f) Ser determinado por ódio racial, religioso, político ou gerado pela cor, origem étnica ou nacional, pelo sexo, pela orientação sexual ou pela identidade de género da vítima; g) Ter em vista preparar, facilitar, executar ou encobrir um outro crime, facilitar a fuga ou assegurar a impunidade do agente de um crime; h) Praticar o facto juntamente com, pelo menos, mais duas pessoas ou utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum; i) Utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso; j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas; l) Praticar o facto contra membro de órgão de soberania, do Conselho de Estado, Representante da República, magistrado, membro de órgão do governo próprio das regiões autónomas, Provedor de Justiça, membro de órgão das autarquias locais ou de serviço ou organismo que exerça autoridade pública, comandante de força pública, jurado, testemunha, advogado, solicitador, agente de execução, administrador judicial, todos os que exerçam funções no âmbito de procedimentos de resolução extrajudicial de conflitos, agente das forças ou serviços de segurança, funcionário público, civil ou militar, agente de força pública ou cidadão encarregado de serviço público, docente, examinador ou membro de comunidade escolar, ministro de culto religioso, jornalista, ou juiz ou árbitro desportivo sob a jurisdição das federações desportivas, no exercício das suas funções ou por causa delas; m) Ser funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade.”
Ora, o recurso interposto pelo Digno Recorrente assenta na ideia de que o dolo eventual é compatível com a qualificação do crime, ao contrário do entendimento perfilhado na sentença pelo Tribunal a quo.
A nosso ver a questão está colocada de forma incorrecta porquanto, o que interessa provar no caso do crime de ofensa á integridade física qualificada (tal como ocorre no crime de homicídio qualificado) é a existência de “especial censurabilidade ou perversidade”.
Ou seja, mais importante do que referir que o dolo eventual é compatível com a qualificação do crime é afirmar que, no caso em concreto verifica-se, pela matéria de facto dada por provada, que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade quando atingiu o agente da GNR.
Isto porquanto, o que agrava o crime, no caso em apreço, de ofensa à integridade física, tal como no crime de homicídio, é o facto do grau de culpa do agente ser maior, mais intensa, apta a gerar na sociedade uma maior rejeição ou repúdio.
É ao nível da culpa do agente que há-de operar-se a análise da qualificação, ou não, do crime base.
Assim, e como se refere no Acórdão do STJ de 23-02-2012 (proc.º nº 123/11.0JAAVR.S1 in dgsi.pt): “O tipo qualificado do crime de homicídio previsto no art.º 132.º do CP traduz um especial tipo de culpa, exigindo ao mesmo tempo a concorrência de, pelo menos, uma das circunstâncias identificadas com os exemplos-padrão constantes das várias alíneas do n.º 2, ou de uma circunstância estruturalmente análoga, e a comprovação de que dessa ou dessas circunstâncias resulta uma maior censurabilidade ou perversidade do agente.” – sublinhado nosso
Ou ainda, nos termos do Acórdão do STJ de 18-01-2012 (proc.º nº 306/10.0JAPRT.S1 in dgsi.pt): “A qualificação do homicídio tem como fundamento a culpa agravada que o agente revela com a sua actuação, sendo um tipo de culpa. Indubitavelmente que o apelo a exemplos padrão, como exemplificadores de uma intensidade qualitativa da culpa, reflecte uma técnica de tipos abertos que apenas pode ser compreendida dentro dos limites por alguma forma propostos pelo princípio da legalidade. Assim, o julgador deverá subsumir à qualificação do artigo em causa apenas as condutas que, embora não abrangidas pelo perfil especificado, normativamente correspondem à estrutura de sentido e ao conteúdo de desvalor de cada exemplo padrão. O que determina a agravação é sempre um acentuado desvalor da atitude do agente, quer o mesmo se exprima numa maior intensidade do desvalor da acção, quer numa motivação especialmente desprezível.”
Ou seja, não basta dizer que existe uma ou mesmo várias alíneas do nº 2 do art.º 132º do Código Penal preenchidas para automaticamente se concluir pela qualificação do crime – quer de homicídio, quer de ofensa à integridade física – sendo mister aliar ao preenchimento dessas circunstâncias a verificação de uma maior censurabilidade no comportamento do arguido.
Assim, no plano dos princípios, até poderá ser possível o arguido ter agido com dolo eventual e verificar-se, à mesma, a qualificação do crime se, por exemplo, num homicídio em que o agente pretende atingir directamente a pessoa A com uma arma de fogo de longo alcance, se constata que o agente agiu com frieza e total desprezo pela pessoa B (vítima involuntária) que se atravessou no seu caminho e que acabou por ser atingida com a actuação do agente que, não a querendo atingir directamente, também não se preocupou que a pudesse atingir numa atitude de “o fim justifica os meios”.
Ora, no caso em apreço, o que interessa apurar é se os factos dados por provados são suficientes para se poder fazer um juízo de censura tal que se constate que o arguido agiu com especial censurabilidade ou perversidade quando atingiu o agente da GNR, não bastando o simples facto o arguido ter atingido um agente policial, no exercício das suas funções, nem que o tenha feito por meio particularmente perigoso.
E da cuidada análise dos factos provados não conseguimos encontrar na actuação do arguido uma especial censurabilidade no seu comportamento quando o mesmo fere a perna do agente da GNR ao fazer marcha atrás com a sua viatura.
É certo que o arguido estava a conduzir um carro ao tempo e sabia que, quem poderia eventualmente atingir com a sua manobra, era um agente policial no exercício das suas funções.
Mas o contexto em que o arguido age não permite concluir, pelo menos com a segurança necessária, que o mesmo agisse com uma culpa agravada ou especialmente censurável.
Repare-se que o arguido perde controle da sua viatura indo embater num murro (facto vertido em 10) e depois, apercebendo-se que a GNR tinha imobilizado a sua viatura atrás da dele, numa tentativa de fuga (que até é um instinto natural no ser humano oriundo da programação cerebral da espécie em fase de sobrevivência perante predadores o chamado “fight or flight”) acaba por atingir inadvertidamente a perna do agente da GNR quando enceta a marcha atrás e acaba por embater na viatura policial parada atrás da sua.
Aqui não há uma especial censura que se possa fazer ao comportamento desesperado do arguido que já vinha fugindo à polícia há algum tempo antes do acontecimento em causa.
Como não há lugar a uma agravação em virtude do resultado final da actuação do arguido porquanto, e felizmente, o agente da GNR apenas sentiu dores não tendo ficado com lesões na perna atingida.
São estes factos, e não a situação de ter havido dolo eventual por parte do arguido, que leva a que não se possa considerar o crime de ofensa à integridade física, que vitimou o agente da GNR, qualificada nos seus contornos por faltar a verificação de uma culpa agravada por parte do arguido, ou seja, por faltar uma especial censurabilidade em virtude de actuação perversa ou altamente reprovável.
Não sendo o crime em causa apto a ser qualificado, e não tendo havido queixa conforme se refere na sentença sob escrutínio, dúvidas não podem restar de que o arguido teria de ser absolvido do crime imputado na acusação, pelo que improcede, também nesta parte, o recurso do Digno Recorrente.
II) Do recurso do arguido:
Insurge-se o arguido/recorrente apenas no tocante à sanção acessória que lhe foi aplicada, em cúmulo, por entender que tal sanção vai impedi-lo de cumprir as 450 horas de trabalho a favor da comunidade que acabou por lhe ser aplicada em virtude das condenações sofridas pelos crimes de resistência e coacção sobre funcionário e dano.
Alega ainda o arguido/recorrente que sem poder conduzir irá ficar impossibilitado de fazer os biscates laborais que faz e ainda de levar e buscar a mulher ao trabalho sendo que, a mesma não tem carta de condução e não há transportes públicos nos horários necessários para cumprir o horário laboral da mulher, nem o horário escolar da filha.
Vejamos o que diz o quadro legal aplicável ao caso sub iudice.
O art.º 69º do CP, subordinado à epígrafe "proibição de conduzir veículos com motor" diz o seguinte: "1. É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: a) Por crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291º e 292º. b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante; ou c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para detecção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo. 2. A proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão e pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria. 3. No prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, o condenado entrega na secretaria do tribunal, ou em qualquer posto policial, que remete àquela, o título de condução, se o mesmo não se encontrar já apreendido no processo. 4. A secretaria do tribunal comunica a proibição de conduzir à Direcção-Geral de Viação no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da sentença, bem como participa ao Ministério Público as situações de incumprimento do disposto no número anterior. 5. Tratando-se de título de condução emitido em país estrangeiro com valor internacional, a apreensão pode ser substituída por anotação naquele título, pela Direcção-Geral de Viação, da proibição decretada. Se não for viável a anotação, a secretaria, por intermédio da Direcção-Geral de Viação, comunica a decisão ao organismo competente do país que tiver emitido o título. 6. Não conta para o prazo de proibição o tempo em que o agente estiver privado da liberdade por força de medida de coacção processual, pena ou medida de segurança. 7. Cessa a disposto no nº 1 quando, pelo mesmo facto, tiver lugar a aplicação de cassação ou de interdição da concessão do título de condução nos termos do artigo 101º."
O art.º 40º do Código Penal (CP), cuja epígrafe é "finalidades das penas e das medidas de segurança" dispõe o seguinte: "1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. 3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente."
O art.º 70º do CP, cuja epígrafe é "critério de escolha da pena" dispõe o seguinte: "Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."
E o art.º 71º CP, subordinado à epígrafe "determinação da medida da pena" diz o seguinte: "1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. 2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de criem, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena. 3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena."
Em termos doutrinais, ensina-se nos Figueiredo Dias[2]que "as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução da medida da pena."
Ora, no caso em apreço o que se discute é o acerto de uma sanção acessoriamente aplicada ao arguido a par da pena principal que lhe foi aplicada em primeira mão.
Na esteira de Figueiredo Dias as "penas acessórias são aquelas que só podem ser pronunciadas na sentença condenatória conjuntamente com uma pena principal. Distinguem-se assim - ao menos de um ponto de vista puramente teórico - dos chamados efeitos das penas[3], onde se trata de consequências, necessárias ou pendentes de apreciação judicial, determinadas pela aplicação de uma pena, principal ou acessória; efeitos que, deste modo, podendo embora possuir «carácter penal», não assumem a natureza de verdadeiras penas por lhes faltar o sentido, a justificação, as finalidades e os limites próprios daquelas."
No entanto, é jurisprudência assente[4] que, às penas acessórias, como no caso da sanção acessória de proibição de conduzir, são aplicáveis directamente o disposto nos art.ºs 40º e 71º do Código Penal, pelo que há que tomar em consideração, na fixação do tempo pelo qual o arguido deve ficar proibido de conduzir, os critérios referentes à tutela dos bens jurídicos, e eventual ressocialização do arguido e ainda a medida da culpa.
Aliás refere Figueiredo Dias a propósito da necessidade de se conformar as penas acessórias aos ditames contidos nos art.ºs 40º e 71º do CPC, e especificamente a sanção acessória de proibição de conduzir que "uma tal pena deveria ter como pressuposto formal a condenação do agente numa pena principal por crime cometido no exercício da condução, ou com utilização de veículo, ou cuja execução tivesse sido por este facilitada de forma relevante; e por pressuposto material a circunstância de, consideradas as circunstâncias do facto e da personalidade do agente, o exercício da condução se revelar especialmente censurável. (...). Se como se acentuou, pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se (e pedir-se) um efeito de prevenção geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo porque só pode funcionar dentro do limite da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente ou leviano."[5]
Ora, no caso em apreço, os factos que o arguido alega e que oferece para justificar a anulação da sanção acessória em que fora condenado não têm qualquer relevância porquanto a finalidade da sanção acessória não se apaga com eventuais problemas de ordem organizacional do agregado do arguido, não sendo oponível nem a falta de transportes, nem o facto a mulher não ter carta de condução.
E quanto à alegada impossibilidade de cumprir o trabalho a favor da comunidade o arguido não sabe ainda qual a tarefa, nem entidade que vai assegurar essa pena, podendo tratar-se de uma actividade próximo de casa ou em que a entidade destaque transporte para recolher o arguido.
Aliás o arguido deveria ter pensado na mulher e filha quando decidiu andar a fugir à GNR às 2.35 da manhã de um dia feriado.
Por outro lado, os antecedentes criminais do arguido, plasmados a fls. 233 e ss, revelam que este já foi condenado por três crimes de condução sem habilitação legal.
Agora que tem carta de condução decide andar a conduzir às 2:35 da manhã em constante fuga à GNR, tendo danificado o carro dos senhores agentes bem como ferido um deles.
Tivesse o arguido pensado na necessidade de ter a sua carta de condução para assegurar todas as tarefas que alega estarem a seu cargo (conduzir a mulher ao trabalho bem como levar e recolher a filha à escola) e talvez o mesmo não teria sido condenado em Tribunal numa sanção acessória de inibição de conduzir.
Ora, o arguido, à parte a alegada ajuda que tem de prestar à mulher e filha no respectivo transporte das mesmas, não impugna os fundamentos constantes da sentença subjacentes à fixação da sanção acessória.
E parece esquecer que tem antecedentes criminais, tendo já sido condenado por três crimes rodoviários no seu passado.
Por fim, o arguido/recorrente parece não ter entendido que a aplicação de uma sanção acessória de inibição de conduzir é obrigatória, a par da aplicação de uma pena, e não uma opção na disponibilidade do tribunal aplicar ou não.
Em resumo e porque nos parece que o sumário constante do Acórdão desta mesma Relação de 13-07-2016, do Relator Rui Gonçalves, contém o essencial para este tema em discussão e resume de forma clara o pensamento subjacente à temática aqui deixamos esse sumário que enquadra muito bem o caso dos presentes autos: “VII — O exercício da condução automóvel, como actividade perigosa que é, exige o acatamento e observância de um conjunto de regras, algumas das quais, para além de meras finalidades de ordenamento do trânsito automóvel e da circulação rodoviária, visam garantir a segurança da vida, da integridade física e do património do condutor e de terceiros utentes das vias de circulação rodoviária. Entre estas avultam as normas relativas ao exercício da condução sob o efeito do álcool. VIII — O exercício da condução automóvel não constitui um direito fundamental, com foros de garantia constitucional. IX — Trata-se de uma actividade permitida apenas aos cidadãos que revelem ter as condições necessárias para o seu exercício, legalmente habilitados para o efeito e, à semelhança de muitas outras actividades de acesso condicionado, sujeita ao cumprimento de regras, postulando estas a fiscalização do seu cumprimento pelo Estado. XI — A Segurança Rodoviária, que reúne dados da PSP e da GNR, adianta que, em Portugal, em média, registou-se uma vítima mortal e seis feridos graves por dia em 2015.
XV — Na concretização da medida concreta que deve ser estabelecida num determinado caso concreto, face à ampla moldura da pena, o Tribunal deve seguir o critério normativo fixado no Código Penal para a determinação concreta da pena a que se alude no art.º 71.º do mesmo Corpo de Leis. XVI — Não existe qualquer possibilidade de arbítrio na fixação do quantitativo da pena acessória, mas sim um verdadeiro critério normativo que tem que presidir à determinação concreta da medida da pena acessória. XVII — Ao juiz é conferida uma larga margem de discricionariedade para, em concreto, fixar tal pena acessória segundo as circunstâncias concretas do caso submetido à sua apreciação, entre estas, inequivocamente, se contando as conexionadas com o grau de culpa do agente. XVIII — E daí a possibilidade de adequar a medida concreta consoante esteja em causa um grau de culpa menos acentuado, como é o caso da negligência, ou um grau de culpa de maior gravidade, como se passará com os casos de dolo. XIX — Na nossa Lei Fundamental inexiste qualquer normativo que aponte ou imponha que as penas acessórias tenham de ter correspondência com as penas principais.
XX — Não se prescindindo da culpa na apreciação dos critérios que servem de base à fixação da pena (porque é uma verdadeira pena, embora acessória), são razões de prevenção geral de intimidação que estão em causa, fundamentalmente, na ratio daquela pena acessória. XXI — Na ponderação concreta da pena, tendo em atenção os critérios do referido art.º 71.º do Código Penal, cumpre determinar a medida da sanção tendo como limite e suporte axiológico a culpa do agente e em função das exigências da prevenção de futuros crimes, sem esquecer que a finalidade última da intervenção penal é a reinserção social do delinquente, sendo ao que nos parece incompatível com o Estado de direito democrático a finalidade retributiva. XXII — No paradigma que encorpa o programa político-criminal vigente, marcado, como decorre do art.º 40.º do Código Penal, pelo binómio culpa — prevenção, cumpre achar primeiro uma moldura de prevenção geral positiva, determinada em função da necessidade de tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada. XXIII — Fixada esta, correspondendo nos seus limites inferior e superior à proteção óptima e proteção mínima do bem jurídico afectado, deve o julgador encontrar a medida concreta da pena em conjugação com as exigências de prevenção especial de socialização do agente, sem ultrapassar a medida da culpa. XXV — Cumpre nesta sede ter presente a tendencial proporcionalidade e / ou aproximação do rigor sancionatório postulado pelas diferentes naturezas, dignidades e gravidades das infracções, criminal, por um lado e contraordenacional, por outro [uma contraordenação muito grave é sancionada ex vi do art.º 146.º, n.º 1 alínea j) e art.º 147.º n.ºs 1 e 2, ambos do Código da Estrada com inibição de conduzir com duração mínima de dois meses e máxima de dois anos). XXVI — As sanções penais devem causar incómodo e ser encaradas como um sacrifício, sob pena de se apresentarem inócuas e irrelevantes. XXVII — Não estando o arguido/recorrente perante qualquer perda do direito de conduzir, mas apenas perante uma limitação do exercício da condução, não poderá considerar-se que a liberdade de exercer labor esteja postergada. O núcleo desse direito mostra-se agasalhado. XXVIII — Razões de índole laboral não podem conceder ao arguido o direito a uma especial clemência. Antes lhe impõe o dever (de cidadania) de especial cuidado de conduzir abstinente e sóbrio, nomeadamente no intento de prevenir o aumento do risco de estropiar ou de tirar a vida ao seu semelhante já decorrente da circulação rodoviária como bem patenteiam os elementos estatísticos neste aresto referidos."
De tudo quanto se vem referindo dúvidas não podem restar de que a sanção acessória de proibição de conduzir aplicada ao arguido, a par das outras penas, entretanto substituídas por trabalho a favor da comunidade se mostra conforme com a lei, com a culpa do arguido e com a necessidade de prevenir os perigos resultantes da uma condução totalmente irreflectida, nada havendo a censurar na sentença recorrida quanto a este aspecto, pelo que deve o recurso interposto pelo arguido improceder.
DECISÃO:
Em face do exposto, julga-se negar provimento a ambos os recursos, quer o interposto pelo MºPº, quer o interposto pelo arguido, confirmando-se a decisão de 1ª instância.
Custas a cargo do arguido recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC's (art.ºs 513º nº 1 CPP e 8º e 9º do Regulamento das Custas Processuais conjugando este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).
Lisboa, 30 de Setembro de 2020.
Florbela Sebastião e Silva
Alfredo Costa
_______________________________________________________ [1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art.º 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art.º 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.ºs 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”. [2]In Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, p. 227 e ss. [3] "Tanto os efeitos das penas, como os efeitos dos crimes, como a própria concepção tradicional das penas acessórias encontram-se historicamente ligados à «infâmia» da legislação medieval e às suas penas da honra; ligados deste modo, a incapacidades, inabilitações ou restrições de outra e diversa natureza que, surgindo como consequências jurídicas da condenação por um certo crime ou numa certa pena, atingiam o delinquente, em regra necessariamente, após o cumprimento da pena principal. Por meio destas «sanções adicionais» ou «complementares» se pensava conseguir uma eficaz intimidação da generalidade das pessoas, afastando-as da prática de crimes." Figueiredo Dias,ob. cit. pp. 94 e 95 [4] Veja-se a título meramente exemplificativo os Acórdãos da Relação de Coimbra de 18-03-2015 e de 14-01-2015. [5] Ob. cit., p. 165.