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PROCESSO DISCIPLINAR
INVALIDADE
Sumário
I - O procedimento disciplinar pode ser declarado inválido se não tiver sido respeitado o princípio do contraditório (violação do direito de defesa), nos termos enunciados nos artigos 413, 414 e 418, n.2 do Código do Trabalho. II - O direito a consultar o processo (incluído na previsão do artigo 413 do Código do Trabalho) assenta na ideia de que a defesa do trabalhador é da maior relevância processual e, por isso, implica a possibilidade de consulta de todos os elementos em que se funda a nota de culpa. III - Deve assim ser declarado inválido, por não ter respeitado o princípio do contraditório, o processo disciplinar cuja nota de culpa se baseou em declarações verbais e depoimentos escritos de trabalhadores da empresa, cuja consulta não foi facultada ao arguido.
Texto Integral
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto:
I - B.........., nos autos identificada, instaurou, no TT da Maia, providência cautelar de suspensão de despedimento individual, nos termos do artigo 434.º do Código do Trabalho, contra
C.........., com sinal nos autos,
Pedindo que seja decretada a suspensão do despedimento de que foi objecto, com fundamento em vícios formais, como:
- O impedimento da consulta dos elementos do processo disciplinar, factos ou provas, que alicerçaram a nota de culpa e a decisão de despedimento;
- A recusa de realização de uma diligência probatória requerida - junção ao processo disciplinar da gravação das imagens da câmara de vigilância referentes ao dia 15 de Abril de 2004 -; e
- A falta de comunicação à associação sindical e à comissão de trabalhadores para emitirem o respectivo parecer;
E em vícios substanciais, como a não verificação da justa causa invocada para o despedimento, por não ter a Requerente praticado os factos que lhe são imputados.
Realizada a audiência final e fixada a matéria de facto indiciária, o Mmo Juiz da 1.ª instância proferiu decisão, decretando a suspensão do despedimento da Requerente, por invalidade do procedimento disciplinar.
A Requerida, inconformada com a decisão, interpôs o presente recurso de agravo, concluindo, em síntese, que as declarações escritas, produzidas por trabalhadores ao seu serviço e que serviram de fundamento à elaboração da nota de culpa, não se encontravam na sua posse no dia 23 de Abril de 2004, data em que a Requerente se deslocou à empresa para consultar o processo disciplinar; que a câmara de vigilância não se encontrava accionada no dia 15.04.2004 e que inexistem na empresa comissão de trabalhadores ou qualquer estrutura sindicalizada.
A Requerente contra-alegou, defendendo a manutenção do decidido.
O M.º Público emitiu Parecer, pronunciando-se pelo improvimento do agravo.
Corridos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
II - Os Factos
Na 1.ª instância foram fixados os seguintes factos indiciários:
1.º - A Requerente foi admitida ao serviço da Requerida, em 4 de Agosto de 1992, onde desempenhava as funções de escriturária de 3.ª.
2.º - Auferindo remuneração mensal não inferior a € 724,67.
3.º - Por carta datada de 15 de Abril de 2004, a Requerida comunicou à Autora que ia proceder à sua suspensão preventiva na sequência de factos ocorridos nesse dia, relacionados com o furto da carteira do Sr. D.........., seu superior hierárquico.
4.º - No dia 20 desse mês, a Requerida solicitou a presença da Requerente na sua sede, entregou-lhe a Nota de Culpa junta de fls. 10/17, e comunicou-lhe que era sua intenção proceder ao seu despedimento com justa causa.
5.º - A Requerente respondeu à nota de culpa nos termos da resposta de fls. 18/23 e as testemunhas por ela arroladas foram inquiridas em 10.05.
6.º - No dia 18 desse mês, e por meio de carta registada com aviso de recepção, a Requerida comunicou-lhe que tinha sido despedida com justa causa, anexando a decisão final, junta de fls. 26/35.
7.º - Em 23 de Abril, a Requerente deslocou-se às instalações da Requerida para consultar o processo disciplinar, e nesse momento o mesmo apenas continha a carta datada de 15 de Abril, que a informava da suspensão preventiva, e a carta de 20 Abril, a comunicar a intenção de despedimento acompanhada da nota de culpa.
8.º - A Requerente enviou à Requerida uma carta registada com aviso de recepção, junta de fls. 36, na qual lhe comunicava que “desconhecia as razões que tinha conduzido à sua suspensão preventiva, pois, do processo não constavam quaisquer elementos com base nos quais a Nota de Culpa tinha sido elaborada, nem sequer quaisquer depoimentos, nem das testemunhas que pretensamente viram a Requerente a furtar, nem do próprio ofendido D..........".
9.º - As testemunhas que a Requerente arrolou para sua defesa, todas colegas de trabalho, foram inquiridas no dia 10 de Maio, por instrutor nomeado para o efeito, constando os depoimentos prestados de fls. 31/37 do processo disciplinar.
10.º - Não foi atendida, nem para o efeito comunicada qualquer explicação à Requerente, a diligência probatória requerida na Resposta à Nota de Culpa, tendo em vista a reprodução das imagens da câmara de vigilância instalada no gabinete onde ocorreram os factos descritos na Nota de Culpa.
III - O Direito
Como resulta do disposto nos artigos 684.º, n.º 3 e 690.º, n.ºs 1 e 3, do CPC, aplicáveis por força do artigo 1.º, n.º 2, alínea a) e artigo 87.º do CPT, é pelas conclusões das alegações que se delimita o objecto do recurso.
E, no caso em apreço, importa saber se foi ou não violado o princípio do contraditório, consagrado nos artigos 413.º e 414.º do Código do Trabalho (CT).
Vejamos.
A Requerente alega que o processo disciplinar é nulo por violação do seu direito de defesa.
A invalidade do procedimento disciplinar é tratada, actualmente, no artigo 430.º, n.º 2 do CT, nos seguintes termos:
“O procedimento só pode ser declarado inválido se:
a) Faltar a comunicação da intenção de despedimento junta à nota de culpa ou não tiver esta sido elaborada nos termos previstos no artigo 411.º;
b) Não tiver sido respeitado o princípio do contraditório, nos termos enunciados nos artigos 413.º, 414.º e no n.º 2 do artigo 418.º;
c) A decisão de despedimento e os seus fundamentos não constarem de documento escrito, nos termos do artigo 415 ou do n.º 3 do artigo 418.º”.
No que à primeira invalidade respeita, se enviada a comunicação escrita, prevista no artigo 411.º, n.º 1, o procedimento disciplinar só será inválido se a nota de culpa não contiver a descrição circunstanciada (de modo, de tempo e de lugar) dos factos que são imputados ao trabalhador, isto é, se contiver apenas imputações vagas e genéricas ou juízos de valor que não possibilite ao trabalhador compreender o verdadeiro alcance da acusação.
No caso dos autos, a Requerida comunicou a intenção de despedimento e a nota de culpa concretiza (datas e local) os factos de que a requerente é acusada.
A terceira invalidade também não se verifica, dado que a decisão de despedimento está fundamentada na “Decisão Final” do processo disciplinar.
Quanto à segunda invalidade, a Requerente alega que se deslocou à sede da Requerida, no dia 23.04.2004 (no decurso do prazo dos 10 dias para responder à nota de culpa), para consultar o processo disciplinar e que constatou que o mesmo apenas continha a carta datada de 15 de Abril, a informá-la que ia ficar suspensa preventivamente e a carta de 20 de Abril, a comunicar-lhe a intenção de despedimento acompanhada da nota de culpa, não contendo qualquer elemento com base no qual a nota de culpa tinha sido elaborada.
E que não foi atendida a diligência probatória requerida na resposta à nota de culpa - a junção ao processo disciplinar da gravação das imagens da câmara de vigilância referentes ao dia 15 de Abril de 2004 - e que não foi feita a comunicação da nota de culpa à Comissão de Trabalhadores e à Associação Sindical.
Nos termos do artigo 413.º do CT, após ter sido notificado da nota de culpa, o trabalhador dispõe de 10 dias úteis para consultar o processo disciplinar e apresentar a sua resposta, deduzindo por escrito os elementos que considere relevantes para o esclarecimento dos factos e da sua participação nos mesmos, podendo juntar documentos e solicitar as diligências probatórias que se mostrem pertinentes para o esclarecimento da verdade.
O procedimento disciplinar laboral, apesar de instruído por uma das partes directamente interessadas (o empregador), deve respeitar o formalismo próprio, por sujeito ao princípio do contraditório.
O direito de defesa é um direito fundamental, constitucionalmente consagrado, que envolve não só o direito de consulta, como também a garantia de resposta à nota de culpa, deduzindo por escrito os elementos relevantes para o esclarecimento dos factos e da sua participação nos mesmos e indicando meios de prova pertinente para o esclarecimento da verdade.
A primeira questão com a qual o interprete se debate, nesta matéria, é a de saber qual o conteúdo da expressão “consultar o processo”, incluída no corpo do artigo 413.º do CT.
O direito a consultar o processo já estava consagrado no artigo 10.º, n.º 4 do DL n.º 64-A/89, de 27.02, revogado pela Lei n.º 99/2003, de 27.08, que aprovou o Código do Trabalho.
E era entendimento consensual que essa consulta, pelo trabalhador acusado, compreendia o acesso não só ao processo propriamente dito (e que nesta fase é constituído apenas pela nota de culpa, comunicação de intenção de despedimento e eventual comunicação de suspensão de funções), como também ao processo prévio de inquérito.
E a jurisprudência considerava que só havia verdadeira consulta se o processo disciplinar estivesse completo, incluindo os depoimentos escritos, pois, a simples falta de redução a escrito dos depoimentos das testemunhas determinava, só por si, a nulidade do processo disciplinar.
Continuando actual, este entender sobre a consulta do processo assenta na ideia da defesa do trabalhador ser um acto da maior relevância processual, que pode ter graves repercussões na manutenção do vínculo contratual, e, como tal, não se vêem razões para limitar ou impedir a consulta de todos os elementos em que se funda a nota de culpa.
A instauração do procedimento prévio de inquérito está prevista no artigo 412.º e tem a virtualidade de interromper os prazos a que se refere o n.º 4 do artigo 411.º, ou seja, os prazos para o exercício da acção disciplinar, previstos no artigo 372.º do CT.
Daqui a relevância do registo dos factos ou actos praticados no decurso do procedimento prévio de inquérito e do procedimento disciplinar propriamente dito, especialmente, os elementos de prova carreados para esses procedimentos.
A correcta tramitação processual desses procedimentos é realçada pelo Código do Trabalho, ao prever a reabertura do procedimento disciplinar, no decurso da acção de impugnação de despedimento, para a correcção de vícios formais inválidos (cfr. artigo 436.º, n.º 2).
No caso sub judice, é de considerar que o procedimento prévio de inquérito se iniciou com a comunicação à requerente da sua suspensão preventiva, justificada com a necessidade de averiguar determinados factos, sem a sua presença, que terão ocorrido no dia 15.04.2004, fundamentais para a posterior elaboração da nota de culpa (cfr. fls. 1 do processo disciplinar, apenso por linha).
Em sede de alegações de recurso (na audiência final não se pronunciou sobre o conteúdo do requerimento cautelar), a Requerida reconhece que procedeu a averiguações prévias - audição de trabalhadores da empresa - sobre os indícios factuais que chegaram ao seu conhecimento, mas que a nota de culpa foi elaborada com base em declarações verbais desses mesmos trabalhadores; que os depoimentos escritos de dois desses trabalhadores apenas foram redigidos nos dias 23 e 26 de Abril de 2004; que tais relatos em nada divergem das versões oralmente apresentadas e que no dia 23.04.2004 existiu uma “impossibilidade prática” de “consultar esses concretos elementos do processo”, por não se encontrarem na sua posse.
Ora, salvo o devido respeito, esta “impossibilidade prática” não é facilmente entendível, pois, a realização das diligências probatórias, incluindo as prévias, compete ao empregador ou a instrutor por ele nomeado (cfr. artigo 414.º, n.º 1 do CT). Dado que, neste caso, o instrutor do processo apenas foi nomeado no dia 27 de Abril de 2004 (cfr. fls. 14 do processo disciplinar), não é aceitável a justificação da Requerida, isto é, que “esses concretos elementos do processo” não se encontrassem na sua posse, no dia 23 de Abril de 2004.
Por outro lado, é da natureza dos procedimentos prévio de inquérito e disciplinar a formalização de todos os seus actos, como supra referido, mormente dos elementos probatórios que fundamentam a nota de culpa, precisamente, porque o exercício do contraditório assim o exige.
Como bem refere o Mmo Juiz de Direito na decisão recorrida, “… não podiam as provas existentes no processo ser ocultadas à requerente, sob pena de inteira inutilização do direito de consulta que lhe assistia. Com efeito, se o legislador conferiu ao trabalhador arguido em processo disciplinar o direito de consultar o processo, …, tal direito envolve necessariamente o conhecimento e exame das provas que contra ele hajam sido recolhidas em sustentação da acusação, para que em função desse exame possa exercer o seu direito de defesa. A posterior junção ao processo de tais provas só sanaria tal vício caso lhe fosse posteriormente comunicada com a concessão de novo prazo de consulta e resposta à nota de culpa, que aqui não aconteceu”.
Na verdade, tal vício poderia ter sido sanado se a Requerida, perante a recepção da carta da Requerente, datada de 23.04.2004, dando conta da falta, no processo disciplinar, dos depoimentos das testemunhas referenciadas na nota de culpa, a tivesse notificado da junção dos depoimentos passados a escrito, concedendo-lhe, se necessário, novo prazo para apresentar a sua resposta.
Esta inacção da Requerida é equiparável à recusa em facultar esses elementos, isto é, os depoimentos das testemunhas, os tais que serviram de sustentação para a acusação, constituindo, assim, violação grave do direito de defesa da Requerente.
Tal violação torna inválido o procedimento disciplinar e obriga a que a suspensão do despedimento seja decretada, por força do artigo 39.º, n.º 1 do Código de Processo do Trabalho.
Quanto à diligência requerida na resposta à nota de culpa - junção ao processo disciplinar da gravação das imagens da câmara de vigilância referentes ao dia 15 de Abril de 2004 - o Sr. Instrutor refere, em “Despacho” junto a fls. 31 do processo disciplinar, que, “Solicitada à arguente tal gravação, a mesma me informa que a referida câmara de vigilância não se encontrava activada naquela data, pelo que não possui qualquer registo de imagens relativo àquela data”.
A falta de notificação deste acto processual (o “Despacho”), não constitui, só por si, uma violação do direito de defesa da Requerente, por se tratar de mera irregularidade processual.
Resta referir, por último, que a falta de comunicação à associação sindical e à comissão de trabalhadores, prevista no artigo 414.º, n.º 3, não releva, pelo simples facto da requerente não ter demonstrado nos autos que seja representante sindical ou que na empresa esteja constituída uma comissão de trabalhadores.
IV - O Direito
Face ao exposto, decide-se negar provimento ao agravo e manter a decisão impugnada.
Custas a cargo da Recorrente.
Porto, 20 de Dezembro de 2004
Domingos José de Morais
António José Fernandes Isidoro
João Cipriano Silva