SÓCIO GERENTE
TRABALHADOR SUBORDINADO
REMUNERAÇÃO DE GERÊNCIA
Sumário

Tendo um dos dois sócios gerentes de uma sociedade por quotas passado a ser remunerado como gerente quando começou a exercer uma atividade de gestão diária e receção em clínica da mesma sociedade, o seu direito à remuneração de gerência não caduca pelo simples facto de deixar de exercer aquelas funções.

Texto Integral


I. Relatório
Policlínica S…, Lda., ré nesta ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, em que é autora MF, notificada da sentença condenatória, proferida em 4 de setembro de 2022, e com ela não se conformando, interpôs o presente recurso.
A autora tinha intentado a ação contra a ré alegando, em síntese, ser sua sócia e gerente desde 11/11/1986, auferindo mensalmente a quantia bruta de 1.009,46 €, à qual acresce o subsídio de refeição no valor global mensal de 104,94 €, pelo exercício das funções inerentes ao cargo de gerente; desde agosto de 2018 que a ré nada paga à autora.
Termina pedindo que a ação seja julgada procedente por provada e, em consequência, a ré condenada a pagar à autora a quantia global de 27.396,50 € (vinte sete mil trezentos e noventa e seis euros e cinquenta cêntimos), referente às retribuições da gerente, já vencidas, acrescida dos juros de mora legais vencidos, e vincendos, até integral e efetivo pagamento, bem como a pagar à autora todas as retribuições da gerente que se vencerem, na pendência da presente ação, acrescida dos juros de mora legais vencidos, e vincendos, até integral e efetivo pagamento.
Contestando, a ré impugnou a ação, alegando que: até maio de 2019, a autora tinha um vencimento de 1.000,00 €  mensais e um subsídio de alimentação variável em função dos dias de trabalho; até ao final de maio de 2019, exercia as funções de assistente de consultório numa clínica da ré sita na …, gerindo as receitas geradas nessa clínica, recebendo os valores das consultas e controlando a caixa; a autora, mensalmente, retirava o valor do seu vencimento da caixa; no final de maio de 2019, a autora deixou de prestar qualquer atividade à ré e recusa-se a assumir os seus deveres de sócia, nomeadamente, recusou-se sempre a avalisar um empréstimo de que a ré necessitava para substituir uma conta caucionada de 40.000,00 € por um contrato de mútuo, como forma de reduzir custos da sociedade; desde essa data, a autora não praticou qualquer ato de gerência, nem presta qualquer serviço à sociedade.
Terminou, pugnando pela improcedência da ação e pedindo a condenação da autora como litigante de má fé.
Após audiência de julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Em face do exposto, decide-se:
A) Julgar improcedente a exceção de abuso de direito invocada pela Ré;
B) Condenar a Ré no pagamento à Autora da quantia de € 25.189,43 (vinte e cinco mil cento e oitenta e nove euros e quarenta e três cêntimos), sobre a qual incidirão os descontos legalmente previstos, nomeadamente Taxa Social Única e IRS, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos correspondentes, calculados desde 08/09/2020 até integral pagamento, à taxa legalmente aplicável às obrigações civis;
C) Nos termos do artigo 610.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, reconhecer à Autora, relativamente ao exercício de funções de gerência no mês de Setembro de 2020 e nos meses subsequentes, até redução ou extinção das referidas obrigações nos termos do artigo 255.º, n.º 2, do Código das Sociedades Comerciais, ou até que a Autora deixe de ser gerente da Ré, o direito ao recebimento da quantia de € 1.000,00 mensais a título de remuneração de gerência acrescida de € 114,40 também mensais a título de subsídio de alimentação, exigíveis após interpelação nos termos e para efeitos do artigo 806.º, n.º 1, do Código Civil.
D) Julgar improcedente, por não provado, o incidente de litigância de má fé deduzido pela Ré.»
A ré não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1 – Erro de julgamento da matéria de facto
Pela análise criteriosa da prova produzida em audiência de julgamento, mormente, declarações de parte da autora, do sócio gerente da ré e das testemunhas, o tribunal recorrido errou no julgamento da matéria de facto vertida nos pontos 6, 7 e 8 (…), devendo dar-se como provado:
Ponto 6
Aproximadamente no ano de 2000, em data que coincidiu com a abertura da clínica da …, a autora começou a ser remunerada pelas funções que passou a exercer nessa clínica.
Ponto 7
Desde essa data, e por acordo entre os sócios, a Autora passou a exercer funções na clínica da …, competindo-lhe, designadamente, receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos.
Ponto 8
Em 2018, o valor da remuneração da autora computava-se em €1.000,00 brutos, acrescidos de subsídio de refeição de valor mensal de €114,40.
2 – O ónus da prova de que a remuneração da autora era uma remuneração de gerência impendia sobre si, o que não logrou provar, nos termos do artigo 342.º do CC.
3 – O tribunal recorrido ao socorrer-se de uma presunção judicial para dar como provado que a remuneração da autora é uma remuneração de gerência, quando essa remuneração podia [ter], como teve, uma fonte diversa da função de gerente, violou o artigo 351.º do CC, primeiro porque a remuneração podia ter duas fontes factuais alternativas, segundo porque, a remuneração de gerência só pode ser provada através de ata consignativa da deliberação – artigo 63.º, n.º 1 do CSC.
4 – Ao ter dado como provado que a autora tinha uma remuneração de gerência, sem que se tenha provado que tenha havido qualquer assembleia dos sócios para deliberar essa remuneração, constitui uma nulidade, nos termos do artigo 56.º, n.º 1, do CSC, nulidade essa que é invocável a todo o tempo, nos termos do artigo 286.º do CC e que aqui se invoca.
5 - A autora não provou que exercia, de facto, a gerência da sociedade, tendo mesmo reconhecido que a gerência era exercida pelo gerente AB e reconheceu que só passou a ser remunerada pelo exercício de tarefas subordinadas na clínica da …, tais como receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos.
6 – O tribunal, ao dar como procedente e provada a presente ação, violou as normas conjugadas dos artigos 255.º, n.º 1, 255.º, n.º 1, 247.º, n.º 1, 54.º, n.º 1, 56.º, n.º 1 e 63.º, n.º 1, todos do Código das Sociedades Comerciais, pelo que deverão V. Exas revogar a sentença recorrida e substituí-la por acórdão pelo qual seja a Ré absolvida, com as legais consequências.
7 – Mas se V. Ex.as entenderem que deve ser mantida a sentença recorrida, nos termos do artigo 619.º, n.º 2, do C.P.C., requer-se que a sentença seja reduzida na sua extensão decisória quanto às prestações a que a Ré venha a ser condenada e que se fixe essa obrigação até à data em que a Autora atinja a idade da reforma.»
A autora contra-alegou, pronunciando-se pela confirmação da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, colocam-se as seguintes questões:
A matéria de facto foi mal decidida, justificando-se a sua alteração?
Em consequência (ou mesmo independentemente disso), a aplicação do direito aos factos determina a improcedência da ação?
II. Fundamentação de facto
A 1.ª instância considerou na sua decisão os seguintes factos que, porquanto explicado em III.1., se mantêm inalterados:
1) A Ré é uma sociedade por quotas registada na Conservatória do Registo Comercial de Almada, com o capital social de €50.000,00, dividido em duas quotas sociais iguais de €25.000,00 cada, pertencentes à Autora e a AB, respetivamente.
2) A Ré tem por objeto social a atividade de prestação de serviços médicos, dentários e de enfermagem e similares e análises clínicas.
3) A Autora e AB são sócios e gerentes da Ré desde a data da sua constituição, em 11/11/1986.
4) A Ré obriga-se com a assinatura de um gerente.
5) A Ré explora duas clínicas médicas, uma na C… e outra na S….
6) Aproximadamente no ano 2000, em data que coincidiu com a abertura da clínica da S…, ambos os sócios da Ré acordaram entre si em remunerar a gerência da Autora.
7) Desde essa data, e por acordo entre os sócios, a Autora passou a exercer funções na clínica da S…, competindo-lhe a gestão diária desta clínica, designadamente receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos.
8) Em 2018, o valor da remuneração mensal da Autora como gerente computava-se em €1.000,00 brutos, acrescidos de subsídio de refeição no valor mensal de €114,40.
9) No ano de 2018 a Autora recebeu da Ré o valor bruto de €5.424,07.
10) No ano de 2019 a Autora recebeu da Ré o valor bruto de €5.047,30.
11) A Autora e o sócio-gerente AB casaram no dia 9 de Outubro de 1976, tendo o casamento sido dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida pelo Juízo de Família e Menores de Almada – Juiz 1, no processo n.º …/…, transitada em julgado em 25/03/2020.
III. Apreciação do mérito do recurso
1. Impugnação da matéria de facto
O recorrente pode impugnar a decisão sobre a matéria de facto, caso em que deverá observar as regras contidas no artigo 640.º do CPC. Segundo elas, e sob pena de rejeição do respetivo recurso, o recorrente deve especificar: i) os pontos da matéria de facto de que discorda; ii) os meios probatórios que impõem decisão diversa da recorrida, incluindo, quando se trate de meios probatórios gravados, a indicação das exatas passagens da gravação em que se funda o recurso; iii) a decisão que, em seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Estas normas foram cumpridas pela ré, recorrente nos autos.
No seu recurso, a ré impugnou os factos assentes em 1.ª instância sob os n.ºs 6, 7 e 8, os quais, na sentença, apresentam a seguinte redação (as ênfases são acrescentadas):
6) Aproximadamente no ano 2000, em data que coincidiu com a abertura da clínica da S…, ambos os sócios da Ré acordaram entre si em remunerar a gerência da Autora.
7) Desde essa data, e por acordo entre os sócios, a Autora passou a exercer funções na clínica da S…, competindo-lhe a gestão diária desta clínica, designadamente receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos.
8) Em 2018, o valor da remuneração mensal da Autora como gerente computava-se em €1.000,00 brutos, acrescidos de subsídio de refeição no valor mensal de €114,40.
A ré solicita a sua substituição pelos seguintes:
6) Aproximadamente no ano de 2000, em data que coincidiu com a abertura da clínica da S…, a autora começou a ser remunerada pelas funções que passou a exercer nessa clínica.
7) Desde essa data, e por acordo entre os sócios, a Autora passou a exercer funções na clínica da S…, competindo-lhe, designadamente, receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos.
8) Em 2018, o valor da remuneração da autora computava-se em €1.000,00 brutos, acrescidos de subsídio de refeição de valor mensal de €114,40.
Em resumo, a ré deseja ver retirados os trechos dos quais possa resultar a ideia de que a autora exercia, de facto, funções de gerente, a saber: «ambos os sócios da Ré acordaram entre si em remunerar a gerência da Autora», «a gestão diária desta clínica» e «como gerente».
No que respeita à «gestão diária» afirma ser «matéria conclusiva». Diga-se, desde já, que se trata de uma expressão corrente, não jurídica, e cujo significado é dominado pelas pessoas em geral. A comunicação faz-se de expressões conclusivas de graus variados. Qualquer pessoa idealiza a gestão diária de uma clínica como englobando atos de aquisição ou encomenda de consumíveis de escritório, de limpeza, da prática clínica (mais uma vez expressões conclusivas, mas de grau inferior…); contactos (telefónicos, eletrónicos, pessoais, postais) com laboratórios e outros fornecedores, e com clientes; orientação de pessoal indiferenciado, se o houver; arrumação geral de materiais; receção e envio de correio e encomendas, incluindo materiais para laboratórios; abertura e fecho de caixa e da clínica, etc.
Justificou a ré, nas suas alegações de recurso, as razões para as solicitadas alterações a estes pontos de facto, nomeadamente, transcrevendo os depoimentos das testemunhas e das partes (autora e sócio gerente da ré) dos quais resulta que a autora, sendo gerente de direito e sócia com quota de 50%, tal como o outro sócio (cf. certidão comercial junta aos autos), nunca exerceu a gerência de facto, sendo as decisões de gestão da sociedade sempre tomadas pelo outro sócio e gerente, atualmente seu ex-marido.
Não apenas lidas as transcrições, mas ouvida toda a prova, ocorre-nos realçar:
A…, contabilista que faz a contabilidade da ré, afirmou que, desde 2000, sensivelmente, a autora começou a trabalhar na Clínica da S… e a receber retribuição. A testemunha emitia os recibos de vencimentos, mas não diligenciava pelos pagamentos. Estes eram efetuados pelos próprios sócios diretamente das caixas. Sempre tratou de tudo o que respeita à empresa com o sócio gerente AB. Em 2019 deixou de processar vencimento à autora por instruções do sócio gerente AB, que disse à testemunha que a autora tinha saído da clínica da S…. A autora era gerente desde o início, assim como o seu então marido AB, mas apenas começou a receber desde 2000, quando começou a trabalhar na clínica da S…
AB, irmão do sócio-gerente da ré, ex-cunhado da autora, colaborador da ré há trinta anos como rececionista na clínica da C… e encarregado da manutenção das duas clínicas, explicou que, quando a autora deixou a sua profissão (era professora), foi trabalhar para clínica da S… (receção de clientes e dos seus pagamentos, encaminhamento de análises). A gestão da sociedade sempre foi feita pelo gerente AB. A autora “apenas era gerente no papel”. O filho do, então, casal era médico na clínica da S….
A autora, MF, nas suas declarações, confirmou que, quando a clínica da S… abriu, passou a trabalhar na receção da clínica, cumprindo horário acordado com o outro sócio, contactava os laboratórios, agendava consultas, recebia os valores das mesmas, confirmava consultas, fazia algumas compras também para a clínica. Afirmou também dar assistência aos clínicos [sendo, pelo menos, um deles filho do casal].
Às perguntas dirigidas à tomada de decisões e à gestão, o mais que disse foi que «opinava». «ajudava», «essa parte mais concretamente era do meu marido na altura, portanto eu apenas opinava». Para explicar a sua atual situação face à ré, diz que a clínica da S… esteve fechada na pandemia e depois passou a abrir apenas quarta-feira à tarde, a abertura e fecho da porta passou a ser efetuada pelo ex-marido, e que não voltou a fazer o que ante fazia porque a clínica da S… não tem agenda nem colaboradores.
O sócio gerente da ré, AB, dentista, ex-marido da autora explicou que a autora estava na clínica da S… desde cerca de 2000, quando os filhos começaram a fazer medicina dentária na S…, e manteve-se até maio de 2019, altura em que decidiu abandonar a clínica. O vencimento foi pago até maio de 2019, mensalmente, através do dinheiro de caixa, como sempre a autora havia feito. Desde maio de 2019 que a autora não faz nada para a clínica da S….
Convencidos estamos de que a autora nunca exerceu, de facto, a gerência da sociedade, não era ela quem tomava as decisões de governo ou administração da mesma, nem quem a representava ou era tido como seu representante (artigo 252.º, a contrario sensu, do CSC). Tal convicção advém-nos das afirmações da própria, do seu ex-marido e das duas testemunhas, e de esse não exercício ser coerente e lógico tendo em conta que:
- a sociedade foi constituída em 1986 e a autora tinha a sua vida profissional como professora do ensino básico;
- a sociedade tem por objeto a prestação de serviços médicos, dentários e de enfermagem e similares e análises clínicas, e o ex-marido da autora, sócio gerente da ré, é dentista;
- trata-se de uma microempresa familiar, cujos únicos sócios são duas pessoas que, à data e até 2020, eram casadas entre elas; sociedade na qual trabalham (lato sensu) os membros da família: o ex-marido da autora, dentista, os dois filhos do casal, dentistas, um irmão do ex-marido da autora, manutenção e receção, e, em dado período, também a autora, na receção da clínica da S….
Não obstante, a autora é (e sempre foi) dona de metade da sociedade, com quota de 50%, e gerente, tendo os mesmos direitos e poderes que o outro gerente, nomeadamente, os de, a qualquer momento, se envolver na vida da sociedade e de tomar, de facto, as rédeas, em conjunto com o outro gerente, do governo da mesma sociedade.
Não se vê razão para alterar os factos como pretendido pela ré, uma vez que os trechos em causa não contendem com o que se passou:
- efetivamente, ambos os sócios da acordaram entre si, aquando da abertura da clínica da S…, em remunerar a gerência da autora, nem se percebe como é que isso poderia ter acontecido sem o acordo de ambos;
- a autora passou a fazer a gestão diária desta clínica, designadamente receber pagamentos e prestar assistência aos clínicos; e
- a autora era remunerada como gerente, nem de outro modo poderia ser, conforme se alcança dos recibos de vencimento, emitidos pelo contabilista de acordo com as instruções do outro gerente ex-marido da autora.
Ainda no âmbito da decisão da matéria de facto, afirma a ré que:
a) A autora não provou que auferisse uma «remuneração de gerência», como lhe incumbia, nos termos do artigo 342.º do CC; e,
b) O tribunal recorrido socorreu-se de uma presunção judicial para dar como provado que a remuneração da autora é uma remuneração de gerência, quando essa remuneração podia ter e teve uma fonte diversa da função de gerente (sugerindo a ré que a autora seria uma trabalhadora dependente), e porque a remuneração de gerência só pode ser provada através de ata consignativa da deliberação – artigo 63.º, n.º 1, do CSC.
A respeito do referido em a), não se percebe o que a ré pretende dizer, pois foi a própria ré que juntou aos autos os recibos de vencimento da autora dos quais consta «Categoria Sócio Gerente» e «Departamento Órgãos Sociais»; e a emissão dos recibos sempre foi feita pelo contabilista da ré, de acordo com instruções do gerente que, à data, era marido da autora.
Quanto ao referido em b), há que dizer que:
Em primeiro lugar, a prova de que se trata de uma remuneração de gerência advém dos recibos de remuneração conjugados com a certidão comercial, e não de mera presunção judicial.
Em segundo lugar, a autora, sendo gerente (como era), não podia ser (pelo menos nas circunstâncias do caso), e não era, trabalhadora dependente.
2. Sócio gerente e trabalhador dependente – possibilidade de cumulação?
Desenvolvendo o último aspeto, oferece-se-nos dizer que a cumulação simultânea, na mesma pessoa, das qualidades de gerente (em sentido jurídico estrito) de uma sociedade e de trabalhador (no mesmo sentido jurídico) é controversa. Os gerentes, tendo por funções administrar e representar a sociedade, agem por regra no âmbito de um contrato de mandato, e não de um contrato de trabalho (que pressupõe subordinação jurídica). Aparentemente, as duas posições são incompatíveis – como pode a mesma pessoa decidir os destinos da sociedade, dar as ordens nesse sentido e, concomitantemente, ter o dever de lhes obedecer, sob pena de procedimento disciplinar?  
Todavia, a resposta negativa pode não ser linear em determinadas circunstâncias.
Leia-se, antes de mais, o Ac. do STJ de 29/09/1999, no processo 98S364, Cons. José Mesquita, que enuncia o problema e resenha doutrina e jurisprudência à época. Extratam-se pela sua acuidade e relevância como estado da arte no final do passado século, os seguintes parágrafos:
«Antes do Código das Sociedades Comerciais - (Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro) - não havia disposição legal expressa sobre o problema, encontrando-se muito dividida a doutrina e a jurisprudência neste ponto.
Assim:
- RAUL VENTURA sustentava "a impossibilidade de um indivíduo funcionar simultaneamente como administrador e trabalhador..." - ut. "Teoria da Relação Jurídica de Trabalho", 1944, volume I, página 299 - adiantando-se que outra é a posição agora exposta a páginas 35 e seguintes do volume III do seu "Comentário ao Código das Sociedade Comerciais" - Sociedades por Quotas -.

- INOCÊNCIO GALVÃO TELES, entendia porém que "... em relação a um administrador pode acontecer e acontece por vezes achar-se investido em funções especiais de natureza executiva, como a de diretor de serviço, que exerce subordinadamente ao Concelho de Administração, com uma remuneração própria, distinta da do administrador, caso em que está também vinculado por contrato de trabalho. Dá-se então como que um desdobramento de papéis: o de administrador, que concorre para a formação do órgão da sociedade, inserindo-se na estrutura desta, e o de prestador de trabalho subordinado da empresa" - ut. Dir., 104, 1972, página 336.
- ABÍLIO NETO, considera também que - "... não constando do nosso direito positivo (...) a expressa proibição de o gerente ou administrador acumular o exercício das suas funções específicas com as de trabalhador subordinado (v.q. diretor de determinado departamento da empresa) nada obstará, em princípio, à reunião na mesma pessoa dessa dupla qualidade, mormente quando ao desempenho de uma e outra função esteja ligada a perceção de retribuições distintas e haja/uma qualquer subordinação ao órgão de gestão". - in "Direito do Trabalho" Separata B.M.J., 1979, página 167.
4. - O problema tem sido colocado aos tribunais com alguma frequência, encontrando-se a jurisprudência profundamente dividida.
Assim:
No sentido da incompatibilidade, podem ver-se:

- os acórdãos do S.T.A. de 18 de Julho de 1950 - 10 de Março de 1953 - 18 de Outubro de 1950 e 1 de Fevereiro de 1966, respetivamente em Col. Ofic. XII, 199 - XV, 134 - XXII, 956 e Ac. Dout., V, 499 - e os acórdãos do S.T.J. de 15 de Outubro de 1980 - 16 de Dezembro de 1983 - 8 de Outubro de 1990 - 25 de Fevereiro de 1993 e 17 de Fevereiro de 1994, respetivamente, em B.M.J. 300, 228 - 332, 418 - Ac. Dout., 360, 1417 - 378, 716 e Col. Jur. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 1994, I, 293.
- No sentido da compatibilidade, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 4 de Fevereiro de 1972 - 7 de Fevereiro de 1986 - 23 de Julho de 1982 - 8 de Janeiro de 1992 e 19 de Março de 1992, respetivamente, em B.M.J., 214, 210 - 354, 380 Ac. Dout. 252, 612, B.M.J., 413, 360 e 415, 421.
Desta enumeração, algo exaustiva, parece poder apenas concluir-se a uniformidade da jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo - Secção do Trabalho e Previdências -, Toda anterior a 1966, e um visível equilíbrio na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, mesmo depois da entrada em vigor do Código das Sociedades Comerciais, em 1 de Novembro de 1986.
5. - É que este Código contém um preceito específico para as sociedades anónimas, estatuindo no seu artigo 398:
"1. Durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade ou em sociedades que com esta estejam em relação de domínio ou de grupo, quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo, nem podem celebrar quaisquer desses contratos que visem uma prestação de serviço quando cessarem as funções de administrador.
2. Quando for designado administrador uma pessoa que, na sociedade ou em sociedades referidas no número anterior, exerça quaisquer das funções mencionadas no mesmo número, os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano (...)".
Anote-se que este n.º 2 foi julgado inconstitucional pelo acórdão do Tribunal Constitucional n. 1018/96, de 9 de Outubro de 1996 - no D.R., II, de 13 de Dezembro, processo 17305, por violação dos artigos 55, alínea d) e 57, n. 2, alínea a), ambos da Constituição da República, na parte em que considera extintos os contratos de trabalho subordinado ou autónomo.
Ficou, assim, intocada a suspensão dos contratos com mais de um ano, solução que, aliás, já era defendida anteriormente.
6. - Mas o Código não tem qualquer preceito que contemple o problema para os outros tipos de sociedades que regula, o que coloca logo o problema de saber se o preceito lhes deve ser aplicado analogicamente, como bem observa o Professor RAUL VENTURA, a folha 35 da obra citada.
E prossegue:
"Na prática portuguesa existem numerosas pequenas sociedades por quotas em que o sócio gerente exerce funções que não competem aos gerentes: exemplos típicos são o do gerente que vende ao balcão ou trabalha na oficina, ou "está encarregado de ordenhar as vacas" como no caso do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 1986, acima citado: um preceito legal, que proibisse tal prática seria ridiculamente ineficaz (...).
Como é elementar regra jurídica, para haver contrato de trabalho, é indispensável a verificação de todos os seus elementos típicos: o vínculo de subordinação do trabalhador, digo típicos: ora parece que nestes casos um faltaria sempre: o vínculo de subordinação do trabalhador, que não poderá estar subordinado a si mesmo, na veste de gerente.
Este é o argumento repetido nos acórdãos acima citados (...).
A referida doutrina, mesmo dentro dos seus pressupostos vai longe demais. Inegável é que o vínculo laboral, com a respetiva subordinação se estabelece entre a sociedade-pessoa jurídica e o trabalhador: os gerentes não são a entidade patronal, mas sim órgãos desta. Ora, uma sociedade por quotas pode ter mais do que um gerente, no caso da pluralidade de gerentes haverá quem, representando organicamente a sociedade, exprima as ordens, instruções, fiscalização características do lado ativo da subordinação de um gerente-trabalhador (...).
No entanto, no campo dos princípios, o obstáculo da subordinação não me parece intransponível (...).
Por outro lado, não pode alegar-se impossibilidade absoluta do exercício da autoridade patronal. Nas sociedades por quotas a assembleia pode alterar essa situação por duas maneiras; ou destituindo o gerente e elegendo outro (aliás, bastará eleger mais um) que despeça o trabalhador - conselho dos citados autores franceses; ou dando ao gerente-trabalhador instruções vinculativas (artigo 259 C.S.C.) - (...).
Admitida a cumulação das duas espécies de funções, passa-se a outra ordem de problemas, agora a prova da existência do contrato de trabalho subordinado (...).
Na falta de expressas declarações negociais, nomeadamente provadas por escrito, haverá que recorrer a todas as circunstâncias do caso. Assim, pode ser decisivo que o contrato de trabalho seja anterior à designação como gerente, pois não é de presumir que o trabalhador - que continua a prestar o mesmo trabalho - queira, por causa daquela designação, precedida normalmente da aquisição de uma quota na sociedade, perder a sua antiga qualidade".
A transcrição foi longa, porventura excessiva, mas afigurou-se útil e necessária para o tratamento de um problema tão controvertido na jurisprudência portuguesa e sobre o qual o próprio Professor RAUL VENTURA, em tempos muito recuados - 1944 - e muito longe ainda do Código das Sociedades Comerciais, teve posição algo diferente.
Parece, assim, dever concluir-se pela não aplicação analógica do disposto no artigo 398 do C.S.C. às sociedades por quotas, onde as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de gerente, melhor, de sócio gerente e de trabalhador subordinado
Vale a pena transcrever o sumário do mesmo acórdão (STJ de 29/09/1999, no processo 98S364, Cons. José Mesquita):
«I- Os sócios gerentes, constituindo os órgãos diretivos e representativos da sociedade, participam na formação da vontade social, agindo no âmbito de um contrato de mandato (ou de administração) e não de um contrato de trabalho subordinado.
II- Nas sociedades por quotas - ao invés do que sucede nas sociedades anónimas face ao artigo 398 do CSC - as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de sócio-gerente e de trabalhador subordinado.
III- No confronto da situação "sócio-gerente/trabalhador" (pelo menos nos casos de sociedades por quotas) são particularmente relevantes os aspetos respeitantes:
1. à anterioridade ou não do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio gerente;
2. à retribuição auferida, procurando surpreender alterações significativas ou dualidade de retribuições;
3. à natureza das funções concretamente exercidas, antes e depois da ascensão à gerência, designadamente em vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de catividade;
4. à composição da gerência, designadamente ao número de sócios gerente e às respetivas quotas;
5. à existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;
6. à dependência, hierárquica e funcional, dos sócios-gerentes que desempenhem tarefas não tipicamente de gerência, relativamente a outras catividade.»
Depois do citado Ac. do STJ de 29/09/1999, no processo 98S364, Cons. José Mesquita, muitos o citaram e seguiram a sua doutrina. Exemplificando:
Ac. do TRP de 21/01/2019, proc. 12602/16.9T8PRT.P1 (Rui Ataíde de Araújo):
« I - A qualidade de sócio gerente de uma sociedade por quotas não impede o reconhecimento da qualidade, também, de trabalhador, não vigorando aqui o impedimento estabelecido no art. 398º, n.º 1 do CSC para as sociedades anónimas.
II - Contudo, esse reconhecimento de um vínculo laboral depende sempre da demonstração de indícios relevantes de subordinação jurídica a outros gerentes ou a deliberações da gerência no seu todo, sendo o respetivo ónus de prova do autor.
III - O mero pagamento, pela sociedade, de um rendimento mensal não chega para se concluir, quer pela existência de um contrato de trabalho, quer pela existência de créditos por retribuições em atraso, subsídios de férias e/ou de Natal (posto que estas prestações são inerentes a um contrato daqueles)».
Ac. do TRG de 16/12/2021, proc. 1154/20.5T8BCL-A.G1 (Antero Veiga):
«- Ainda que se admita a possibilidade de exercício de gerência de sociedade mediante contrato de trabalho, tal sempre dependeria da prova da subordinação jurídica, com demonstração do circunstancialismo demonstrativo de tal subordinação, como os efetivos poderes sobre tal gerente, por parte da sociedade ou de outro gerente» (último § do sumário).
Ac. do TRG de 22/09/2022, proc. 2859/20.6T8BCL.G1 (Vera Sottomayor):
«I – Nas sociedades por quotas, como sucede no caso em apreço, podemos afirmar que da lei não resulta qualquer obstáculo à constituição de uma relação laboral entre a sociedade e um gerente, sendo certo que tal vínculo por impor a existência de subordinação jurídica, apenas se poderá formar se e na medida em que o trabalhador já tivesse um contrato de trabalho antes de ser nomeado gerente, continuando a desempenhar as mesmas funções e nos mesmos moldes; ou se e na medida em que seja contratado de entre não sócios e por outro ou outros gerentes designados no pacto social ou em assembleia de sócios.
II - É sobretudo em relação aos gerentes não sócios, ou aos trabalhadores que passem a sócios-gerentes que tem sido reconhecida a possibilidade de qualificar o seu vínculo como laboral. São assim restritas as hipóteses em que é configurável a possibilidade da mesma pessoa assumir a qualidade de trabalhador e gerente, sendo certo que a titularidade da gerência tanto pode exercer-se na posição de trabalhador subordinado (casos excecionais) como na posição de mandatário (o que sucede em regra), havendo assim que apurar os termos em que o contrato foi celebrado e é executado para lhe conferir a qualificação, ou de contrato de trabalho, ou de mandato.
III - Dos factos apurados não existe qualquer fundamento para reconhecer que na relação estabelecida entre as partes - a A., como pessoa singular, e a R., como pessoa coletiva -, se formou um vínculo laboral, já que não se provou que a autora exercesse as outras funções, que não a gerência, sob as ordens, direção e fiscalização do outro gerente ou da sociedade. Incumbindo o ónus da prova nesta matéria à autora é de concluir que não logrou provar a existência de um contrato de trabalho».
Ac. do TRP de 27/02/2023, proc. 2529/21.8T8MTS.P1 (Jerónimo Freitas):
« III - Não há lugar à aplicação analógica do disposto no artigo 398 do C.S.C. às sociedades por quotas.
IV - Resultando provado que o autor passou de facto, enquanto sócio gerente, a exercer em toda a plenitude funções tipicamente de gerência, tornou-se praticamente incompatível a manutenção, em coexistência, do contrato de trabalho subordinado que até então existia entre si e a Ré, levando à caducidade desse vínculo laboral, por confusão, nos termos do art.º 868.º».
Em resumo, embora na doutrina destes arestos se a afirme que é possível, em dadas circunstâncias, um gerente ser, simultaneamente, trabalhador subordinado, na prática serão circunstâncias improváveis que, aliás, não se verificavam nas situações apreciadas.
Escreveu também no mesmo sentido Luís Brito Correia, Os administradores de sociedades anónimas, Almedina, 1993, p. 575: «Aceitando-se, assim, que um sócio-gerente de uma sociedade comercial por quotas possa ser simultaneamente seu trabalhador a compatibilidade entre estas posições jurídicas fica dependente da prova da existência de uma relação de subordinação jurídica do sócio-gerente, pois o exercício da gerência pode ser de tal modo condicionado (designadamente por um sócio-gerente maioritário) que os poderes que são próprios da entidade patronal não sejam verdadeiramente partilhados».
Também na situação dos autos não foi feita prova de uma relação da subordinação jurídica da autora perante a ré, prova cujo ónus recaía sobre a última.
3. O direito às remunerações não pagas
Aqui chegados, inalterados os factos tal como considerados assentes em primeira instância, a apreciação de direito e consequente decisão devem manter-se.
Como dito na sentença do tribunal a quo, está em causa pedido de condenação da ré no pagamento à autora de remunerações não pagas, vencidas e vincendas, pelo exercício das funções de gerente na sociedade ré, a partir de 01/01/2018.
Em conformidade com o disposto no artigo 255.º, n.º 1 do Código das Sociedades Comerciais, salvo disposição do contrato de sociedade em contrário, o gerente tem direito a remuneração, a fixar pelos sócios.
Resulta da matéria provada que a autora e o ex-marido são sócios e gerentes da sociedade ré desde 11/11/1986; e que, a partir de 2000, por acordo entre ambos, a autora passou a auferir remuneração como gerente que, em 2018, ascendia a € 1.000,00 por mês, acrescida de subsídio de refeição no valor mensal de € 114,40.
Não foi apresentada uma deliberação escrita dos sócios a fixar a remuneração referida, mas não é controvertida a existência ou validade dessa deliberação (oral ou por comportamentos concludentes), o que, sem necessidade de mais considerações, leva a concluir pela verificação, nos termos do citado artigo 255.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais, do direito da Autora à remuneração pelas funções de gerente que exercia na sociedade Ré.
Comprovada a constituição do direito de crédito invocado pela autora, importa agora apurar se o mesmo se extinguiu.
Provou-se que a autora recebeu, por conta das remunerações e subsídios de alimentação fixados, os valores ilíquidos de € 5.424,07 e € 5.047,30, relativos respetivamente aos anos de 2018 e 2019. Ficou, assim, demonstrada a extinção parcial, pelo pagamento, das obrigações de pagamento estipuladas relativamente aos anos de 2018 e 2019.
A autora mantém-se inscrita no Registo Predial como gerente da ré, com a consequente manutenção dos deveres e responsabilidades inerentes, nomeadamente os previstos nos artigos 71.º a 79.º do Código das Sociedades Comerciais.
Nada, além dos referidos pagamentos parciais, se provou no sentido de excluir ou diminuir o direito da autora à remuneração (artigos 255.º, n.º 2, e/ou 257.º, do Código das Sociedades Comerciais, em ambos os casos a contrario sensu).
Sumariando, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:
Tendo um dos dois sócios gerentes de uma sociedade por quotas passado a ser remunerado como gerente quando começou a exercer uma atividade de gestão diária e receção em clínica da mesma sociedade, o seu direito à remuneração de gerência não caduca pelo simples facto de deixar de exercer aquelas funções.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo a sentença objeto de recurso nos seus precisos termos.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 28/09/2023
Higina Castelo
Inês Moura
António Moreira