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ORGANIZAÇÃO TERRORISTA
COMPETÊNCIA TERRITORIAL
Sumário
- Se os crimes em apreciação têm conexão com várias áreas, por se desconhecer ou por existirem dúvidas acerca da localização do elemento relevante para a determinação da competência (atendendo ao modo como a alegada prática dos factos vem descrita na peça que delimita o objeto do processo) e, perante estas incertezas, a competência territorial para o julgamento no âmbito dos presentes autos pertence ao tribunal da área onde primeiro houve a notícia do crime o que ocorreu com a participação dos factos ao Ministério Público.
Texto Integral
Decisão
1.
1.1.
Em 21.04.2020, pelo Juiz 1 do Juízo Central Criminal de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi proferido despacho que declarou a Comarca de Lisboa (Juízo Central Criminal) incompetente, em razão do território, para apreciação dos factos objecto dos presentes autos, e competente o Juízo Central Criminal de Sintra.
1.2.
E, em 30.04.2020, pelo Juiz 4 do Juízo Central Criminal de Sintra do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, foi proferida decisão que, ao abrigo das normas legais citadas e do art.º 32.º, n.º 1 e n.º 2 al. b) do Código de Processo Penal, declarou o Juízo Central Criminal de Sintra territorialmente incompetente para o julgamento dos presentes autos, sendo competente, para o efeito, o Juízo Central Criminal de Lisboa, Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa.
1.3.
Foi suscitado o presente conflito negativo de competência pelo Juiz 4 do Juízo Central Criminal de Sintra, nos termos do disposto no art.º 35º. nº l do CPPenal.
Neste Tribunal, foi dado cumprimento ao art.º 36º, nº 1 CPP após o que foi emitido parecer pelo M.ºP.º no sentido de ser atribuída competência no sentido de ser atribuída competência ao Juízo Central Criminal de Lisboa, aderindo às razões invocadas no despacho de fls. 376 a 378.
2.
2.1.
A fundamentação do primeiro dos referidos despachos: “Os factos vertidos na acusação, para a qual remete o despacho de pronúncia - e que se consubstanciam, muito em súmula, na criação por parte dos arguidos, fruto de profundas convicções político-religiosas, marcadamente salafista-jihadista (de natureza violenta), de um grupo que se juntou a organizações internacionalmente reconhecidas (pela ONU e pela UE) como terroristas, designadamente o ISIL e ISIS, Brigada dos Emigrantes e depois o Estado Islâmico, autofinanciando-se através de esquemas fraudulentos e com recurso a documentos forjados, com o objectivo de glorificar e de aliciar, convencer e recrutar jovens a integrar as referidas organizações terroristas e por elas combaterem no conflito armado que se desenrolava no Médio Oriente -, terão sido praticados em diferentes países. Com efeito, do cotejo daquele despacho, resulta que os crimes indiciados terão sido praticados em Inglaterra (Londres), onde os arguidos, de nacionalidade portuguesa e aí emigrantes, se conheceram e radicalizaram, criando o referido grupo e um esquema destinado à obtenção fraudulenta de subsídios, em Portugal, para onde se deslocavam regularmente (residindo em casas de familiares, na zona de Massamá), recebendo os referidos subsídios, exercendo neste país funções de apoio a indivíduos recrutados para as aludidas organizações e praticando actos de exaltação e incentivo à actuação violenta das mesmas, na Tanzânia, onde, juntamente com outros indivíduos, frequentaram campos de treino de combate de grupos fundamentalistas islâmicos, e ainda na Síria, para onde acabaram por se deslocar (com as respectivas famílias) para aí combater (à excepção dos arguidos C. e R. Ainda de acordo com esse despacho, a factologia que sustenta a aludida imputação criminal terá tido o seu início em Londres, no final do ano de 2019, culminando no dia 16.06.2019, data em que foi efectuada uma busca domiciliária à fracção onde residiam, quando em Portugal, os arguidos E. , A. e R. , sita na Praceta... em Massamá, com a detenção deste último e apreensão de diversos bens/objectos/material relacionados com a descrita actividade de glorificação e de apoio e incentivo à adesão às referidas organizações terroristas, nomeadamente telemóveis, folhas manuscritas com referência a roupa militar, números de telemóvel, endereços, boarding pass, cartões da segurança social inglesa, CD's com discursos religiosos de interpretação do Corão, textos de cariz político-religioso de índole jihadista, com prelecções de clérigos radicais, nomeadamente de X. , comumente apontado como o responsável pelo renascimento da jihad no século XX, pen-drive pertencente ao arguido R. , na qual o mesmo gravou, entre outros conteúdos e documentos: "Os porcos Kerem ver preso" (documento escrito em computador, tratando-se da letra de uma música, com referências aos porcos, no sentido dos inimigos, os apóstatas, que se desviaram ou não são seguidores do Islão; "Jihad Atentado" (cartaz publicitário de uma produção cinematográfica fictícia, identificando como produtor da banda sonora do pretenso filme como sendo RF , alcunha de R. ; diversas notificações forjadas da polícia britânica (de decisões de não prosseguimento de processos-crime e cancelamentos de fianças) - cfr. fls. 9515 e segts.. Vejamos. Estabelece o artigo 19.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que "É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação". Por sua vez, dispõe o n.º 3, do mesmo preceito, que "Para conhecer de crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados, ou por um só acto susceptível de se prolongar no tempo, é competente o tribunal em cuja área se tiver praticado o último acto ou tiver cessado a consumação ". Por último, preceitua ainda o artigo 22.º, n.º 2, do diploma legal em apreço, que "Se o crime for cometido em parte no estrangeiro, é competente para dele conhecer o tribunal da área nacional onde tiver sido praticado o último acto relevante, nos lermos das disposições anteriores ". Revertendo ao caso em apreço, facilmente se verifica que os factos delitivos indiciariamente ocorridos no estrangeiro (em Inglaterra, na Tanzânia e na Síria) não são autonomizáveis, integrando-se, isso sim, numa conduta reiterada dos arguidos, praticada quer nesses países quer em Portugal, e que culminou, como vimos, com a apreensão dos mencionados bens/objectos/material descritos na acusação, no dia 16.06.2019, na residência utilizada pelos arguidos E. , A. e R. , quando se deslocavam ao território nacional, sita na Praceta ... em Massamá. Com efeito, tal como configurado pela acusação, os crimes imputados aos arguidos, em co-autoria, são crimes únicos, consubstanciados numa prática reiterada de actos, que se prolongaram no tempo e cuja execução terminou em Portugal. Assim, o local onde os factos foram cometidos (onde terminou a execução dos mesmos, no sentido da prática do último acto ou de cessação da consumação) foi o território português, sendo aqui aplicável o disposto no artigo 7.º, n.º 1, do Código Penal (preceito que nos diz que o local da prática de um facto é aquele onde o agente actuou ou aquele em que o resultado típico foi produzido). Saliente-se ainda que, se a execução dos referidos crimes acabou em Portugal (para além de outros actos aqui praticados), é evidente que os tribunais portugueses são competentes para conhecer dos mesmos, porquanto tais tribunais são competentes para apreciar e decidir sobre crimes que forem praticados em território nacional. Por isso, os tribunais portugueses são competentes para julgar todos os factos, mesmo aqueles que foram perpetrados pelos arguidos no estrangeiro (não sendo aqui aplicável o disposto no 5.º, do Código Penal, porquanto tal dispositivo legal prende-se com a competência internacional dos tribunais nacionais em matéria penal, ou seja, e dito de modo simplificado, respeitam a situações nas quais está em causa a defesa dos interesses nacionais e nas quais é ineficaz o princípio da territorialidade para salvaguardar tais interesses). Pois bem, tendo presente o acabado de referir, nomeadamente a circunstância dos crimes terem sido cometidos em parte no estrangeiro (e em parte em Portugal), parece-nos indubitável que o local onde foram praticados os últimos actos relevantes a eles respeitantes, nos termos constantes das disposições conjugadas dos citados artigos 22.º, n.º 2 e l9.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, foi na referida residência, utilizada pelos arguidos E. , A. e R. , quando se deslocavam ao território nacional, sita na Praceta ... em Massamá, e onde, tal como expressamente referido na acusação, foram encontrados diversos bens/objectos/material relacionados com a descrita actividade de apoio/adesão a organizações terroristas. Deste modo, em conformidade com o acabado de referir, o tribunal competente para o julgamento dos presentes autos é o que abrange a área do referido domicílio, nomeadamente o Tribunal de Comarca de Lisboa Oeste - Juízo Central Criminal de Sintra. Ora, sendo a incompetência territorial de conhecimento oficioso [e podendo ser conhecida até ao início da audiência de julgamento; cfr. artigo 32.º, n.ºs. 1 e 2, al. b), e 33.º, do Código de Processo Penal], resta agora declará-la, com a consequente remessa do processo para o tribunal competente, sendo que a isso não obsta a circunstância dos autos terem sido remetidos a este Tribunal pelo M.º Juiz de Instrução Criminal. Destarte, e tal como decidido (entre outros) pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão datado de 07.04.2016 (processo n.º 213/12.2TELSB.L1, disponível em www.dgsi.pt), estando a actuação do juiz de instrução limitada à fase da instrução, até à remessa do processo para julgamento, bem se compreende que o legislador tenha previsto, de forma autónoma e independente, a possibilidade de o juiz de julgamento declarar a sua própria incompetência, designadamente a territorial, nos termos definidos no citado artigo 32.º, do Código de Processo Penal. Tendo em conta que no termo da decisão instrutória, sendo esta de pronúncia, o juiz de instrução tem sempre de decidir a que tribunal irão os autos ser remetidos para julgamento, o entendimento de que tal decisão impediria o tribunal de julgamento de apreciar a questão da sua própria competência territorial traduziria uma verdadeira subordinação do juiz de julgamento ao juiz de instrução e deixaria sem qualquer campo de aplicação as disposições do mencionado artigo 32.º, sempre que o processo comportasse a fase de instrução (e houvesse decisão de pronúncia pelos factos constantes da acusação do Ministério Público), distinção que a norma não prevê e não tem qualquer cabimento. O entendimento de que a circunstância de o juiz de instrução se ter debruçado, na decisão instrutória, sobre a competência territorial do tribunal de julgamento acarretou o esgotamento do poder jurisdicional da primeira instância sobre a questão, pelo que não pode o juiz de julgamento sobre ela emitir pronúncia, não tem qualquer apoio na lei, indo frontalmente contra o preceituado no artigo 32.º, n.ºs l e 2, al. b), do Código de Processo Penal. Pelo exposto, ao abrigo das citadas disposições legais, declaro esta Comarca de Lisboa (Juízo Central Criminal) incompetente, em razão do território, para apreciação dos factos objecto dos presentes autos, e competente o Juízo Central Criminal de Sintra.”
2.2.
Já o despacho do Juízo Central Criminal de Sintra sustenta-se na seguinte argumentação: “No caso concreto, e em igualdade de circunstâncias, é inequívoco que o crime de Organizações Terroristas (adesão e apoio a organizações terroristas) e o crime de Financiamento ao Terrorismo constituem os crimes imputados na acusação pública que são puníveis com a pena mais grave, concretamente com pena de prisão de 8 a 15 anos. Se é certo que o crime de Organizações Terroristas (adesão e apoio a organizações terroristas), nos termos em que é descrito na peça acusatória, se mostra relacionado com diversas áreas de atuação (Inglaterra, Portugal, Tanzânia e Síria), suscitando sérias dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para a determinação da competência territorial, temos, porém, quanto ao crime de Financiamento ao Terrorismo, que o mesmo se consumou em Lisboa, ou seja, na área de jurisdição do Juízo Central Criminal de Lisboa, o que resulta de leitura atenta dos artigos 868.º a 932.º, concretamente, do art.º 931.º do libelo acusatório. Nessa medida, o tribunal territorialmente competente para proceder ao respetivo julgamento bem como dos demais crimes conexos (art.ºs 19.º, n.ºs 1 e 3 e 28.º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal), é o Juízo Central Criminal de Lisboa. O Mm. º Juiz de Instrução Criminal remeteu este processo para julgamento ao aludido Juízo Central Criminal de Lisboa (cf. fls. 10.497 verso, último parágrafo) e o ulterior despacho judicial de declaração de incompetência deste Tribunal ficou a dever-se seguramente a lapso, ou, pelo menos, a uma interpretação que, por ser inaceitável, não subscrevemos, conforme passaremos a demonstrar. Com efeito, foram os presentes autos remetidos a este Juízo Central Criminal de Sintra, para julgamento, na sequência da declaração de incompetência territorial, para o mesmo efeito, exarada pelo Exmo. Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Lisboa, a fls. 10.439 a 10.444 , com fundamento no disposto nas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2 e 19.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e na circunstância de, em seu entender, os últimos atos relevantes respeitantes aos crimes terem sido cometidos na área desta comarca, concretamente, na residência utilizada pelos arguidos E. , A. e R., quando se deslocavam ao território nacional, sita na Praceta... em Massamá. Para tanto, foi invocada, apenas e tão só, a circunstância de o último ato de recolha de prova no âmbito dos presentes autos ter ocorrido naquela morada. Ora, com o devido respeito pelo entendimento perfilhado, não podemos, contudo, concordar com o mesmo, resultando tal entendimento, salvo melhor opinião, de uma errada interpretação dos elementos constitutivos do tipo de crimes pelos quais se mostram pronunciados os arguidos. Com efeito, a circunstância a que alude os artigos 933." a 976.ü da acusação -apreensão na residência sita na Praceta ... em Massamá (área desta comarca), onde residiram, quando em Portugal, E. , A. e R. , de diversos bens/objetos/material alegadamente relacionados com a atividade de apoio/adesão a organizações terroristas - é absolutamente irrelevante, desde logo, para a consumação do crime (ou para a cessação da consumação), e consequentemente para a determinação da competência territorial, nos termos a que aludem as disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2 e 19.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, consubstanciando, tão-somente, um meio de obtenção de prova (ao invés daquilo que ocorreria se estivesse em causa uma apreensão de produto estupefaciente por referência à prática de um crime de tráfico de estupefacientes, cujo preenchimento se bastaria pela simples detenção, equivalendo à consumação do crime, caso em que haveria cabimento para o raciocínio trazido aos autos pelo Exmo. Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Lisboa). Nessa medida, a consideração de um meio de obtenção de prova para aferir do preenchimento das regras processuais relativas à competência territorial, quando é certo que dela não se retirou qualquer consequência relativa à execução de qualquer tipo de crime, passa, necessariamente, por uma '"subversão", razão pela qual não se subscreve nem se aceita a argumentação exarada pelo Exmo. Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Lisboa e consequente declaração de incompetência. Na verdade, e mesmo que não se subscreva o critério/entendimento por nós "supra" pugnado em 3., no sentido ser o crime de Financiamento ao Terrorismo o relevante para a aferição das regras da competência, e que o mesmo se consumou em Lisboa, ou seja, na área de jurisdição do Juízo Central Criminal de Lisboa, temos que, no limite, os factos em causa nos presentes autos sempre se enquadrariam, conforme remissão contida no art.º 22.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na previsão do art.º 21.º, nºs 1e 2 desse mesmo diploma. Assim, segundo este normativo (art.º 21.º): '"1. Se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para a determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime. 2. Se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime". Ora, quer porque os crimes em apreciação têm conexão com várias áreas, quer porque se desconhece, ou existem dúvidas, acerca da localização do elemento relevante para a determinação da competência (atendendo ao modo como a alegada prática dos factos vem descrita na peça que delimita o objeto do processo), incertezas não temos de que a competência territorial para o julgamento no âmbito dos presentes autos pertence ao tribunal da área onde primeiro houve a notícia do crime. Tendo a notícia do crime (participação dos factos ao Ministério Público) ocorrido no D.C.I.A.P., em Lisboa (cf. fls. 2 e 3, e fls. 14 a 17), cuja competência foi inequivocamente assumida por esse Departamento Central, conforme despacho de fls. 18 a 20, é territorialmente competente para o julgamento o Juízo Central Criminal de Lisboa, Tribunal Judicial de Lisboa, e não este Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Central Criminal de Sintra.”
3.
Na fase em que o processo se encontra, a aferição de qual o tribunal territorialmente competente para conhecer de um crime implica a determinação sobre o local em cuja área se tiver consumado esse crime e isso implica o que da acusação ou da pronúncia conste a respeito da narração dos factos respectivos incluindo, se possível, o lugar e o tempo da sua prática, como impõe o art.º 283º, nº 3 al. b) CPP.
A competência territorial afere-se exclusivamente pelos termos da acusação ou do despacho de pronúncia. A acusação ou a pronúncia delimitam o objecto do processo e contém os elementos que constituem os pressupostos para a determinação da competência.
Quando tal não aconteça, quando não seja claro no texto da pronúncia, qual o local da prática do crime, o sistema legal fornece critério alternativo para determinar a competência territorial.
A jurisprudência vem entendendo, de modo pacífico, que a acção penal se inicia no momento em que o facto criminoso chega ao conhecimento da autoridade judiciária com competência para exercer a acção penal, ou seja, o Ministério Público, por conhecimento próprio, por intermédio dos órgãos de polícia criminal ou mediante denúncia. O que quer dizer que o processo se inicia com a notícia do crime, nos termos do art.º 241º e ss.
Como está assente também na jurisprudência «notícia do crime é, hoc sensu, apenas e só o conhecimento que o Ministério Público adquire dos factos, pois que o procedimento criminal só se inicia com um acto do Ministério Público (art.ºs 48º e 53º, nº 2, al. a) do CPP e art.º 219º, nº 1 da Constituição)»[1].
A primeira apreciação a fazer no saneamento do processo é a da competência do tribunal para julgamento.
Mas tal definição terá de ser feita perante o teor da acusação e/ou da pronúncia.
Dos factos da acusação, tal como se mostram descritos, decorrerá a atribuição de competência a um juiz para realizar o julgamento, mostrando-se que, perante a situação descrita nos autos, a questão é complexa, por se reportar a actos que se prolongam no tempo.
A regra geral de competência territorial dita que seja competente o tribunal do local da consumação do crime nos termos do art.º 19º, n.º 1 e 3 CPP por, no caso, se tratar de crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados ou em caso de um só acto susceptível de se prolongar no tempo, pelo que o tribunal competente é aquele em que foi praticado o último acto ou em que tiver cessado a consumação.
Nos presentes autos foram pronunciados os arguidos referenciados na acusação, pelos factos constantes da acusação do Ministério Público (cfr. fis. de fls. 9361 a 9564), e que consubstanciam a prática pelos mesmos, em co-autoria material, de:
- Um crime de Organizações Terroristas (adesão e apoio a organizações terroristas), previsto e punido pelos artigos 1.º, 2.º, n.ºs. 1, als. a), b), c), d) e f), e 2, 3.º, n.ºs. 1 e 2, e 8.º, n.º 1, al. a), todos da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto, na redacção conferida pela Lei n.º 17/2011, de 3 de Maio;
- Um crime de Terrorismo Internacional (recrutamento para organizações terroristas), previsto e punido pelos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, ais. a), b), c), d) e f), 3.º, n.ºs. 1 e 2, 4.º, n.º 4, e 8.º, n.º 1, al. a), todos da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto, na redacção conferida pela Lei n.º 17/2011, de 3 de Maio;
- Um crime de Financiamento ao Terrorismo, previsto e punido pelos artigos 1.º, 2.º, n.º 1, ais. a), b), c), d) e f), 3.º, n.ºs. 1 e 2, 5.º-A, n.º 1, e 8.º, n.º 1, al. a), todos da Lei n.º 52/2003, de 22 de Agosto, na redacção conferida pela Lei n.º 17/2011, de 3 de Maio.
Tal como refere a Sra. Juíza do Juízo Central de Sintra, no caso concreto, “o crime de Organizações Terroristas (adesão e apoio a organizações terroristas) e o crime de Financiamento ao Terrorismo constituem os crimes imputados na acusação pública que são puníveis com a pena mais grave, concretamente com pena de prisão de 8 a 15 anos. Se é certo que o crime de Organizações Terroristas (adesão e apoio a organizações terroristas), nos termos em que é descrito na peça acusatória, se mostra relacionado com diversas áreas de atuação (Inglaterra, Portugal, Tanzânia e Síria), suscitando sérias dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para a determinação da competência territorial, temos, porém, quanto ao crime de Financiamento ao Terrorismo, que o mesmo se consumou em Lisboa, ou seja, na área de jurisdição do Juízo Central Criminal de Lisboa, o que resulta de leitura atenta dos artigos 868.º a 932.º, concretamente, do art.º 931.º do libelo acusatório. Nessa medida, o tribunal territorialmente competente para proceder ao respetivo julgamento bem como dos demais crimes conexos (art.ºs 19.º, n.ºs 1 e 3 e 28.º, nº 1, al. a) do Código de Processo Penal), é o Juízo Central Criminal de Lisboa.
Já decidimos anteriormente no conflito n.º 48/17.7SYLSB-A.L1 desta Secção que: “A regra geral de competência territorial dita que seja competente o tribunal do local da consumação do crime nos termos do art.º 19º, n.º 1 e 3 CPP por, no caso, se tratar de crime que se consuma por actos sucessivos ou reiterados ou em caso de um só acto susceptível de se prolongar no tempo, pelo que o tribunal competente é aquele em que foi praticado o último acto ou em que tiver cessado a consumação. No caso, e face à acusação e pronúncia, verifica-se que estamos perante a imputação aos arguidos, em co-autoria, de um crime de burla qualificada. No caso presente e, ao que à respectiva decisão interessa, para aferição da competência para julgamento, de acordo com os critérios dos art.ºs 19º CPP, há que referir que resulta da pronúncia que remete para a factualidade constante da acusação que os últimos factos da execução criminosa imputada aos arguidos foi a que resulta dos art.ºs 26º e 27º da peça acusatória e cujo local de ocorrência foi na comarca de Lisboa.. Assim, nos termos do disposto no art.º 19º, n.º 1 e 3 CPP, a competência para o julgamento pertence a Lisboa, já que o acto descrito em 6.6.2019 já não integra o iter criminis - que se mostra consumado com a actuação descrita nos referidos art.ºs 26º e 27º que narra factualidade determinante da cessação da actividade criminosa em causa - mas sim apenas descreve uma diligência probatória, com vista a recolha de prova referente ao crime cuja cessação se verificara já nas circunstâncias de espaço e de tempo descritos em 26º e 27º, pelo que nos termos dos citados art.ºs 19º, n.º 1 e 3 CPP será o Juízo Local Criminal de Lisboa, juiz 4, o competente para o julgamento.”
Também no presente caso e como salienta a Sra. Juíza de Sintra, foram os presentes autos remetidos a este Juízo Central Criminal de Sintra, para julgamento, na sequência da declaração de incompetência territorial, para o mesmo efeito, exarada pelo Exmo. Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Lisboa, a fls. 10.439 a 10.444 , com fundamento no disposto nas disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2 e 19.º, n.º 3 do Código de Processo Penal e na circunstância de, em seu entender, os últimos atos relevantes respeitantes aos crimes terem sido cometidos na área desta comarca, concretamente, na residência utilizada pelos arguidos E. , A. e R. , quando se deslocavam ao território nacional, sita na Praceta ... em Massamá.
Ou seja, a decisão do Juízo Central de Lisboa invoca a circunstância de o último acto de recolha de prova no âmbito dos presentes autos ter ocorrido naquela morada.
Porém, secundando a posição da decisão de Sintra, “ a circunstância a que alude os artigos 933.º a 976.º da acusação -apreensão na residência sita na Praceta ... em Massamá (área desta comarca), onde residiram, quando em Portugal, E. , A. e R. , de diversos bens/objetos/material alegadamente relacionados com a atividade de apoio/adesão a organizações terroristas - é absolutamente irrelevante, desde logo, para a consumação do crime (ou para a cessação da consumação), e consequentemente para a determinação da competência territorial, nos termos a que aludem as disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2 e 19.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, consubstanciando, tão-somente, um meio de obtenção de prova (ao invés daquilo que ocorreria se estivesse em causa uma apreensão de produto estupefaciente por referência à prática de um crime de tráfico de estupefacientes, cujo preenchimento se bastaria pela simples detenção, equivalendo à consumação do crime, caso em que haveria cabimento para o raciocínio trazido aos autos pelo Exmo. Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Lisboa). Nessa medida, a consideração de um meio de obtenção de prova para aferir do preenchimento das regras processuais relativas à competência territorial, quando é certo que dela não se retirou qualquer consequência relativa à execução de qualquer tipo de crime, passa, necessariamente, por uma '"subversão", razão pela qual não se subscreve nem se aceita a argumentação exarada pelo Exmo. Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Lisboa e consequente declaração de incompetência. Ora, com o devido respeito pelo entendimento perfilhado, não podemos, contudo, concordar com o mesmo, resultando tal entendimento, salvo melhor opinião, de uma errada interpretação dos elementos constitutivos do tipo de crimes pelos quais se mostram pronunciados os arguidos. Com efeito, a circunstância a que alude os artigos 933.º a 976.º da acusação -apreensão na residência sita na Praceta ... em Massamá (área desta comarca), onde residiram, quando em Portugal, E., A. e R. , de diversos bens/objetos/material alegadamente relacionados com a atividade de apoio/adesão a organizações terroristas - é absolutamente irrelevante, desde logo, para a consumação do crime (ou para a cessação da consumação), e consequentemente para a determinação da competência territorial, nos termos a que aludem as disposições conjugadas dos artigos 22.º, n.º 2 e 19.º, n.º 3 do Código de Processo Penal, consubstanciando, tão-somente, um meio de obtenção de prova (ao invés daquilo que ocorreria se estivesse em causa uma apreensão de produto estupefaciente por referência à prática de um crime de tráfico de estupefacientes, cujo preenchimento se bastaria pela simples detenção, equivalendo à consumação do crime, caso em que haveria cabimento para o raciocínio trazido aos autos pelo Exmo. Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Lisboa). Nessa medida, a consideração de um meio de obtenção de prova para aferir do preenchimento das regras processuais relativas à competência territorial, quando é certo que dela não se retirou qualquer consequência relativa à execução de qualquer tipo de crime, passa, necessariamente, por uma '"subversão", razão pela qual não se subscreve nem se aceita a argumentação exarada pelo Exmo. Sr. Juiz do Juízo Central Criminal de Lisboa e consequente declaração de incompetência.
Na verdade, e mesmo que não se subscreva o critério/entendimento por nós "supra" pugnado em 3., no sentido ser o crime de Financiamento ao Terrorismo o relevante para a aferição das regras da competência, e que o mesmo se consumou emLisboa, ouseja, na área de jurisdição do Juízo Central Criminal de Lisboa, temos que, no limite, os factos em causa nos presentes autos sempre se enquadrariam, conforme remissão contida no art.º 22.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, na previsão do art.º 2l.º, nºs 1 e 2 desse mesmo diploma.”
Segundo o disposto no art.º 21.º CPP: “1. Se o crime estiver relacionado com áreas diversas e houver dúvidas sobre aquela em que se localiza o elemento relevante para a determinação da competência territorial, é competente para dele conhecer o tribunal de qualquer das áreas, preferindo o daquela onde primeiro tiver havido notícia do crime. 2. Se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime".
Os crimes em apreciação têm conexão com várias áreas, por se desconhecer ou por existirem dúvidas acerca da localização do elemento relevante para a determinação da competência (atendendo ao modo como a alegada prática dos factos vem descrita na peça que delimita o objeto do processo).
Nesta medida e perante estas incertezas, a competência territorial para o julgamento no âmbito dos presentes autos pertence ao tribunal da área onde primeiro houve a notícia do crime o que ocorreu com a participação dos factos ao Ministério Público, no D.C.I.A.P., em Lisboa (cf. fls. 2 e 3, e fls. 14 a 17), cuja competência foi inequivocamente assumida por esse Departamento Central, conforme despacho de fls. 18 a 20, pelo que é territorialmente competente para o julgamento o Juízo Central Criminal de Lisboa, Tribunal Judicial de Lisboa.
4. – Pelo exposto, decide-se dirimir o presente conflito atribuindo a competência para julgamento ao juiz 1 do Juízo Central Criminal de Lisboa.
Sem tributação.
Cumpra-se o art.º 36º, nº 3 CPP.
Lisboa, 2 de Junho 2020
Filomena Gil
_______________________________________________________ [1] Decisão de 2011.01.05, do Sr. Conselheiro presidente da 3ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça no Conflito Negativo nº 176/06.3EAPRT-B.P1.S1 disponível em www.dgsi.pt.