I - No caso, há que considerar, não só, a persistência no ânimo homicida que o arguido ora recorrente colocou nos seus actos com indiferença pelo resultado, manifestada no modo de atingir as suas vítimas, com intuito de lhes tirar a vida, não resultando dos autos qualquer violação perante a matéria de facto dada como provada e respectivo enquadramento jurídico.
II - As penas abstractas aplicáveis são as previstas nos citados arts. 152.º, n.º 1, al. b) e n.º 2 e 132.º, n.º 1 e 2, 22.º, n.os 1 e 2, e 23.º, agravado pelo art. 86.º, n.os 3 e 4, do RJAM, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23-02.
III - As circunstâncias atenuantes apontadas pelo ora recorrente foram as relacionadas com a sua personalidade e quanto ao seu comportamento posterior aos factos. Porém, tais factos não são reveladores de que o mesmo tenha um comportamento ético de acordo com a vivência em família e em sociedade, pois, os factos provados quanto às palavras e acções dirigidas aos seus familiares, denotam um grau baixo de autocensura e de pouco reconhecimento dos valores sociais de respeito e consideração pela vida pessoal e familiar de quem lhe estava mais próximo.
IV - O facto de ter utilizado uma faca de cozinha revela a determinação do arguido ora recorrente em causar a morte aos Assistentes (sua ex-mulher e seu filho) bem sabendo e, querendo, que isso viesse a acontecer, golpeando-os com tal instrumento e atingindo-os com manifesto desprezo pelo bem jurídico protegido (a vida humana).
V - Ao proceder como descrito na matéria de facto, verifica-se que o arguido não teve em consideração o bem jurídico protegido na incriminação do crime de violência doméstica (a dignidade das pessoas que integram um núcleo familiar, no sentido de verem garantida a sua integridade física e moral), que o mesmo foi desenvolvendo ao longo do tempo em que viveu com a sua ex-mulher e filho.
VI - Por isso, as exigências de prevenção geral e especial, no caso, exigem uma atenção particular porquanto é elevado o grau de censurabilidade do seu comportamento e são muito elevadas as exigências de reafirmação de que esses comportamentos não são socialmente aceitáveis.
Processo: 1689/21.2PBBRR.S1
5ª Secção Criminal
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I – RELATÓRIO
1. AA (AA) interpôs o presente recurso penal do acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., doravante Tribunal de 1ª Instância, de 03/04/2023, que o julgou, em tribunal colectivo, decidindo:
“a) Absolver o arguido AA da forma agravada do crime de violência doméstica, prevista no artigo 152.º, n.º 3, alíneas a), do Código Penal que lhe vinha imputada;
b) Absolver o arguido AA das formas qualificadas dos crimes de homicídio, na forma tentada, previstas no artigo 132.º, n.º 2, alíneas e) e j) do Código Penal que lhe vinham imputadas;
c) Absolver o arguido AA do crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.º, 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal que lhe vinha imputado;
d) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
e) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 7 (sete) anos de prisão;
f) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;
g)Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão;
*
h) Condenar o arguido AA nas penas acessórias de proibição de contactar por qualquer meio com a ofendida BB e de proibição de uso e porte de armas pelo período de 5 (cinco) anos, nos termos do artigo 152.º, n.º 4 e 5, do Código Penal;
i) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pela assistente BB e, em consequência, condenar o arguido:
- Ao pagamento do montante de 696,64 € (seiscentos e noventa e seis euros e sessenta e quatro cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescido de juros moratórios, desde a notificação do pedido até integral pagamento;
- Ao pagamento do montante de 55.000 € (cinquenta e cinco mil euros) a título de danos não patrimoniais que lhe foram causados, acrescido de juros de mora, contados a partir da presente decisão, até integral pagamento;
- Ao pagamento de uma indemnização a liquidar em execução de sentença,
correspondente às sequelas do foro psicológico que a assistente ainda venha a apresentar e a que se aludem os pontos 63), (v) e 65) dos factos provados, nos termos do artigo 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil;
j) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente CC e, em consequência, condenar o arguido ao pagamento do montante de 60.000 € (sessenta mil euros) a título de danos não patrimoniais que lhe foram causados, acrescido de juros de mora, contados a partir da presente decisão, até integral pagamento;
k) Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar U..., E.P.E., e, em consequência, condenar o arguido a pagar àquele a quantia de 372,07 € (trezentos e setenta e dois euros e sete cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, desde a notificação da dedução do pedido, até efetivo e integral pagamento;
l) Julgar procedente, por provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo Centro Hospitalar B..., E.P.E., e, em consequência, condenar o arguido a pagar àquele a quantia de 3.243,78 € (três mil duzentos e quarenta e três euros e setenta e oito cêntimos), acrescida de juros à taxa legal, desde a notificação da dedução do pedido, até efetivo e integral pagamento;
m) Declarar perdida a favor do Estado a faca apreendida (cfr. fls. 11), nos termos do artigo 109.º, n.º 1 e 2 do Código Penal e, ao abrigo do disposto no artigo 78.º da Lei n.º 5/2006, de 23/2, determinar que a mesma seja entregue à Polícia de Segurança Pública, que providenciará quanto ao seu destino final;
n) Condenar ainda o arguido no pagamento da taxa de justiça, que se fixa em 3 UC’s, nos termos dos artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal e do artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26/02 e da Tabela III anexa ao mesmo diploma legal
o) Condenar o arguido/demandado nas custas dos pedidos cíveis deduzidos pelo Centro Hospitalar U..., E.P.E. e pelo Centro Hospitalar B..., E.P.E.;”. – negrito no original.
2. BB e CC, constituíram-se assistentes nos autos e formularam pedidos de indemnização civil, por danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes dos factos ilícitos imputados ao arguido, que consistiram nos momentos de dor, angústia e ansiedade que ela e o seu filho viveram na sequência das agressões sofridas.
Também, o Centro Hospitalar U..., E.P.E. e o Centro Hospitalar B..., E.P.E., deduziram pedidos de indemnização civil contra o arguido pelos tratamentos hospitalares prestados aos assistentes.
3. O Recorrente cingiu o objecto do presente recurso à parte do acórdão recorrido “(…) quanto à medida da pena…”, e apresentou alegações, com as conclusões seguintes:
“1 – O arguido foi assim condenando pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão; de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 7 (sete) anos de prisão; de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão;
2 - Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão.
3 - É com esta moldura penal que o Recorrente não pode concordar nem se conformar!
4 - Entende o Recorrente que as penas em que foi condenado, deveria ter sido mais harmoniosa e proporcional ao caso em apreço;
5 - Salvo o devido respeito, entende o Recorrente que o Tribunal a quo não teve em consideração e em consequência violou os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto no art. 71º do CP.
6 - Na determinação concreta da pena deve o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do Recorrente e contra ele, designadamente o modo e execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao Recorrente (grau de ilicitude do facto);a intensidade do dolo; os fins ou motivos que determinaram o cometimento do crime e os sentimentos manifestados; as condições pessoais e económicas do agente; a conduta anterior e posterior ao facto e ainda a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
7 – Quando ao grau de ilicitude, o “tribunal a quo” considerou ser um grau de ilicitude mediana, facto que não é posto em causa pelo Recorrente, contudo, é de salientar, o facto deste, na altura da prática do crime, se encontrar num momento de grande instabilidade emocional, caracterizado pelo medo de que a Assistente o “deixasse” e que a relação de ambos terminasse, o que conduziu a um auto controle diminuído.
8 - Quanto ao modo de execução dos crimes perpetrados pelo Recorrente, tratou-se de uma situação ocasionada pela exaltação do momento vivido, fruto do desespero.
9 - Aquando do exame pericial do recorrente relata ao psiquiatra a forma como se sentiu e que ficou transcrito no relatório e dado como provado “vi a minha ex-mulher a sair da casa onde nós morávamos, e vi-a a beijar outra pessoa, essa imagem não me saía da cabeça (…) ela foi para casa com o nosso filho e eu estava descontrolado, foi um choque (…)” - itálico e negrito nosso.
10 - E foi neste estado mental que o recorrente se encontrava à data em que os factos foram praticados.
11 - No que respeita à intensidade do dolo, é nítido que houve naquele momento, uma exaltação pelo ato que foi ocasionado e impulsionado pelo estado desespero e pânico em que se encontrava o Recorrente, apresentando uma diminuição do seu auto controle à data da prática dos factos, como ele próprio transmitiu ao Tribunal “estava cego” e consequentemente, em nosso entender uma diminuição de intensidade do dolo.
12 -Quanto aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, verificou-se o Recorrente apresentava uma grande fragilidade emocional, e um estado psicológico depressivo, provocado pelo percurso de vida condicionado pela problemática do abandono, que revelava uma “Perturbação de Personalidade de tipo Borderline e Perturbação de Adaptação, com humor ansioso e deprimido.” – exame pericial
13 - O estado mental que o recorrente sentia e vivia repetidamente no seu cérebro era: “vi a minha ex-mulher a sair da casa onde nós morávamos, e vi-a a beijar outra pessoa, essa imagem não me saía da cabeça (…)”
14 - A isto acresce a existência de “um padrão de comportamento pautado por impulsividade, baixa tolerância à frustração, sensibilidade exacerbada à rejeição e abandono, baixa capacidade de regulação emocional, com relações interpessoais polarizadas (“amor-ódio”), e com recurso a mecanismos desadequados de relação interpessoal (manipulação, chantagem emocional, ameaça). – exame pericial
15 - Quando o recorrente atinge o seu filho CC, estava completamente fora de controle, fora de si e naqueles segundos, minutos, não conseguiu percecionar de que era o seu filho quem ali estava.
16 - No âmbito do exame pericial realizado ao arguido, foi considerado que o recorrente tinha uma Perturbação de Personalidade de tipo Borderline e Perturbação de Adaptação, com humor ansioso e deprimido.
17 - O transtorno de personalidade borderline é caracterizado por um padrão generalizado de instabilidade e hipersensibilidade nos relacionamentos interpessoais, instabilidade na autoimagem, flutuações extremas de humor e impulsividade.
18 - “Pacientes com transtorno de personalidade borderline não toleram estar sozinhos;fazem esforços frenéticos para evitar o abandono e geram crises” – in Manual MSD, versão para profissionais de Saúde – in www.msdmanuals.com
19 - “Pacientes com esse transtorno têm dificuldade de controlar sua raiva e muitas vezes se tornam inadequados e intensamente irritados. As alterações de humor (p. ex., disforia intensa, irritabilidade, ansiedade) costumam durar apenas algumas horas e raramente duram mais do que alguns dias; elas podem refletir a extrema sensibilidade às tensões interpessoais.” - in www.msdmanuals.com
20 - Efetivamente, o recorrente não conseguiu controlar o seu desespero, a sua raiva e que conduziu à pratica dos factos.
21 – A Perturbação de Adaptação ou transtornos de adaptação englobam sintomas emocionais e/ou comportamentais extremamente angustiantes e debilitantes causados por um fator stressante identificável - in www.msdmanuals.com
22 - Se é certo que não podemos afirmar que o recorrente é inimputável ou que a perturbação de personalidade de que padece altere a capacidade de avaliação e discernimento entre lícito ou ilícito, também não devemos nem podemos deixar de aceitar que o recorrente padece de um transtorno de personalidade, que têm dificuldade em controlar a raiva, que estava perante o abandono, que tanto temia; que não queria estar sozinho, estava verdadeiramente perturbado, fragilizado emocionalmente, “sem chão”, e neste enquadramento perdeu totalmente controlo dos seus atos.
23 - O arguido não tem antecedentes criminais;
24 - Quanto à Conduta posterior à prática dos factos e pese embora se encontre em reclusão, o Recorrente, em abstracto, identifica o bem jurídico em causa e os prejuízos causados a terceiros e a si próprio, tendo manifestado grande constrangimento pelo sofrimento causado aos assistentes, que sentem a sua reclusão como penalizadora.
25 - Acresce na sua conduta, que afirmou ter noção das consequências e implicações dos comportamentos tendo solicitado, desde a sua entrada no estabelecimento prisional, apoio psicológico.
26 - E, até à presente data mantém tal acompanhamento.
27 - O recorrente sempre colaborou com as autoridades judiciais, nomeadamente facultando o acesso ao seu ADN e confessando os factos de que vinha acusado.
28 - O Tribunal A Quo deveria ter tido em consideração a influência da pena sobre arguido, e a ressocialização e recuperação do agente, dispõe o art. 40 º n.º 1 e 2 do CP, que a aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, bem como, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
29 – O recorrente mostrou arrependimento pelos atos praticados e penitenciando-se, pelo seu comportamento;
30 – O recorrente mostrou uma postura humilde durante toda a audiência de discussão e julgamento;
31 – Desta forma, é entendimento do aqui Recorrente que se encontram reunidos fatores importantes para que o Tribunal possa aplicar, uma pena mais harmoniosa, de acordo com a sua realidade, tendo em conta todas as circunstâncias supra evidenciadas as possibilidades de reinserção e reintegração social do Recorrente.
32 – Assim, o Tribunal a quo ao fixar as penas parcelares e posteriormente a pena única, no modesto entender do Recorrente, fê-lo sem ter em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial que se verificam no caso sub judice, ultrapassando em larga medida a culpa deste no que concerne aos factos praticados.
33 - O Tribunal a quo deveria ter tido em consideração a influência da pena sobre arguido, e a ressocialização e recuperação do agente, dispõe o art. 40 º n.º 1 e 2 do CP,que a aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, bem como, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
34 - Nessa medida e apenas no que se refere ao quantum da pena aplicada ao Recorrente, houve, salvo o devido respeito, violação do disposto nos art.s 40º n.º 1 e 2 e 71º todos do CP.
35 – Assim, deverá o Tribunal condenar o RECORRENTE:
a) como autor material, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, seja mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima explanadas, tendo em consideração o disposto no art. 71º do CP que se deve situar na pena de 2 (dois) anos e 4 (meses) de prisão.
b) como autor material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, seja mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima explanadas, tendo em consideração o disposto no art. 71º do CP que se deve situar numa de pena de 4 (quatro) anos, relativamente à Assistente
c) como autor material de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, seja mais harmoniosa, proporcional e justa face às circunstâncias acima explanadas, tendo em consideração o disposto no art. 71º do CP que se deve situar numa pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, relativamente ao Assistente CC.
Termos em que,
Deve ser dado provimento ao presente Recurso, e ser revogado o acórdão que condenou o arguido por um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), n.º 2, alínea a), n.º 4 e n.º 5 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 7 (sete) anos de prisão; de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do Código Penal, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão; na pena única de 11 anos e 6 meses de prisão, por a pena aplicada se afigurar desproporcional à finalidade da punição e por conseguinte ser aplicada ao Recorrente penas parcelares mais harmoniosas e após efetivação do cúmulo jurídico, aplicar uma pena mais harmoniosa, proporcional e justa.
Assim farão V. Ex.ª s, como sempre,
JUSTIÇA!”.
3. O Ministério Público (MP) emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, louvando-se nos argumentos aduzidos pelo MP junto do Tribunal de 1ª instância na sua resposta ao recurso do arguido ora recorrente, considerando que “(…) o acórdão recorrido não merece qualquer censura e as penas aplicadas ao arguido devem ser integralmente confirmadas.”, dizendo:
“(…), como refere o Ministério Público, “ao longo do recurso, pese embora demonstrando a sua insatisfação com as penas parcelares e a pena única que lhe foi aplicada, o arguido não identifica qualquer concreta violação por parte do Tribunal dos dispositivos legais que regem a determinação da medida da pena, nomeadamente através da indicação de quaisquer circunstâncias que, devendo ter sido consideradas pelo Tribunal nesse exercício, não o tivessem sido. Com efeito, aquilo que se verifica é que todas as circunstâncias que o arguido identifica na sua motivação foram objecto de ponderação e valoração por parte do Tribunal, de uma forma isenta e objectiva.”
(…), ao contrário do que o arguido e ora Recorrente quer fazer querer, os factos que lhe são imputados, que foram dados como provados e que o mesmo não contesta, não ocorreram num momento de desorientação, fruto de algo imprevisível.
Com efeito, foi dado como provado que a relação entre ele a assistente terminou em 2018, tendo-se mantido, apenas e como muitas vezes ocorre, a coabitação, por razões de interesse recíproco, mas que nada tinham a ver com uma relação afetiva entre ambos;
Na verdade, da matéria dada como provada resulta, de forma exuberante e com impressionante clareza, que essa relação afetiva deixou de existir desde essa data e o que a passou a existir foi uma muito censurável atitude de posse do arguido para com a ex-companheira (o facto dado como provado no ponto 14 é, a esse propósito muito esclarecedor…).
Por outro lado, os comportamentos imputados do arguido ocorreram de forma reiterada, insistente, e ao longo de anos!
Com efeito, tais factos iniciaram-se em 2006 ou 2007, quando o filho do arguido tinha cerca de 2 anos de idade e este ameaçou a sua companheira com uma faca de cozinha e lhe passou a dizer que “se não fosse dele não era de mais ninguém” (factos dados como provados nos pontos 8 a 10).
Aliás, a matéria de facto dada como provada está recheada de múltiplos episódios que, desde então, se foram repetindo, e que infelizmente se reputam dignos de um filme de terror…
Por fim e não querendo maçar muito Vossas Excelências, repare-se que, também no dia 10 de outubro de 2021, quando o arguido tentou matar a ex-companheira e o filho, o seu comportamento pode e deve ser classificado da mesma forma.
Com efeito, não se tratou de um gesto inopinado, isolado e que se esgotou em breves segundos, mas sim de uma atitude premeditada, persistente, obstinada, que não se deteve perante a fraca oposição e resistência da ex-companheira (que várias vezes foi golpeada nos braços e nas mãos quando se tentava proteger) e que se desenvolveu através de sucessivos golpes que lhe atingiram diversas partes do corpo desta e do filho de ambos (a este quando procurava fugir e se encontrava de costas para o agressor…), e que só não lograram por termo à vida dos ofendidos devido a circunstâncias completamente alheias ao arguido (factos dados como provados nos pontos 30 a 37)
Face ao acima exposto e tendo em conta as molduras abstratas dos crimes dados como provados, não se vê como poderia o Tribunal a quo aplicar penas mais brandas.”.
4. O ora recorrente foi notificado, para se pronunciar, conforme art.º 417.º, n.º 2 do CPP, nada tendo dito, sendo certo que a Assistente BB respondido estar de acordo com o parecer do MP.
5. Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTOS
1. De facto
No que importa ter presente quanto ao objecto do presente recurso é o que o acórdão do Tribunal de 1ª Instância, de 03/04/2023, fixou na matéria de facto dada como provada, relativamente à condenação do ora recorrente pelos crimes de violência doméstica p. e p. pelos art.ºs 152.º, n.º 1, al. b), n.º 2, al. a), n.º 4 e n.º 5 e de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131º, 132º, n.º 2 al. i) e j) e 23º, todos do Código Penal (CP), na pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão.
A única questão a resolver é a de saber se no referido aresto se efectuou justa, adequada e proporcional aplicação da medida concreta das penas previstas para os crimes de violência doméstica e de homicídio qualificado, na forma tentada, cometidos pelo ora recorrente, tendo em consideração a factualidade provada.
E, é a seguinte matéria de facto provada e fixada:
“1.1) Matéria de facto provada
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos, com relevância para a decisão de mérito:
1) O arguido AA e a assistente BB, coabitaram durante 18 (dezoito) anos, residindo na Rua ..., B... até ao dia 10/10/2021.
2) Durante o período de vida em comum o arguido e a assistente viveram como marido e mulher até data não concretamente apurada mas, pelo menos a partir do ano de 2018, a assistente anunciou ao arguido o fim da relação amorosa entre eles, concordando ambos em continuar a coabitar na mesma residência.
3) Em data não concretamente apurada mas situada entre os meses de janeiro e março de 2021, a assistente anunciou ao arguido a sua intenção de se separar definitivamente e terminar o relacionamento bem como a sua vontade em deixarem de coabitar.
4) Apesar disso, o arguido e a assistente continuaram a coabitar na mesma residência até ao dia 10/10/2021.
5) Da relação entre o arguido e a assistente nasceu, em .../.../2004, o assistente CC.
6) Com a família residia também o filho da assistente, DD.
7) A partir de determinada altura, situada no ano de 2006 ou 2007, o arguido começou a demonstrar ciúmes da assistente, controlando as roupas que vestia, as suas amizades e com quem falava.
8) Em data não apurada do ano de 2006 ou 2007, quando o filho de ambos tinha dois anos e a uma sexta-feira, a assistente foi jantar com umas colegas de trabalho e chegou a casa pelas 1:00 horas.
9) No dia seguinte, sábado de manhã, quando a assistente acordou, viu o arguido sentado no sofá, segurando uma faca de cozinha, alegando que na noite anterior ela tinha estado com outro homem.
10) A partir dessa altura o arguido começou a dizer à assistente que ela tinha amantes, começou a dirigir-lhe a expressão “puta” e a dizer-lhe que se ela não fosse dele, não era de mais ninguém.
11) O arguido começou ainda a telefonar para o trabalho da assistente diversas vezes ao dia sem motivo, só para saber se ela estava no local de trabalho, desligando quando ouvia a voz da assistente.
12) Começou também a perseguir a assistente, entrando no mesmo barco em que a mesma se fazia transportar e escondendo-se de forma a não ser visto.
13) Em datas não concretamente apuradas, mas no período de vivência em comum, no interior da casa da família, o arguido tentou cortar-se com uma faca e perante a assistente, tentou enforcar-se, tendo sido dissuadido pela mesma.
14) Em datas não concretamente apuradas, mas entre os anos de 2015 e 2017, quando o assistente CC tinha cerca de 11 (onze) ou 12 (doze) anos de idade, pelo menos por duas vezes, no interior da casa da família e no quarto do casal, o arguido tentou, através da força física, forçar a assistente a manter relações sexuais contra a sua vontade, tendo-a despido numa dessas ocasiões, com recurso à força, o que apenas não logrou face à resistência e oposição expressa pela assistente.
15) Em data não concretamente apurada, mas entre os anos de 2017 e 2018, quando o assistente CC tinha cerca de 13 (treze) anos de idade, no interior da residência e perante o seu filho, no decurso de uma discussão, o arguido empurrou a assistente com força contra uma janela e colocou-lhe a mão aberta no pescoço.
16) A partir de data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o ano de 2018, quando a assistente lhe disse para se separarem, o arguido começou a dizer à assistente que não saia de casa, voltando a afirmar que se a encontrasse com outro homem o matava, que não a conseguia ver com ninguém.
17) O arguido dizia ainda à assistente que se matava e que ela nunca mais conseguiria dormir com os remorsos.
18) A partir de data não concretamente apurada, mas pelo menos, no ano de 2019, a assistente começou a dormir na sala e, posteriormente, no mesmo ano, começou a dormir no quarto do seu filho, o assistente CC.
19) A partir de data não concretamente apurada, mas pelo menos a partir do ano de 2019 e quando o filho da assistente DD não pernoitava em casa, a assistente e o ofendido CC, por temerem o arguido, encostavam móveis à porta do quarto de forma a protegerem-se do mesmo e a impedirem que ele ali entrasse durante a noite e madrugada.
20) Nessas ocasiões, o arguido permanecia muitas vezes acordado e junto à porta do quarto onde pernoitavam os assistentes.
21) Em data não concretamente apurada a assistente iniciou uma relação amorosa com um colega de trabalho.
22) Em agosto de 2021, o arguido e a assistente trocaram mensagens no telemóvel, tendo o arguido referido que a assistente tinha amantes e se vestia como se fosse uma prostituta, o que deu origem a uma discussão com o filho da assistente DD e com a assistente, no decurso da qual o arguido começou a falar em tom de voz alto, tendo sido chamada a intervenção de agentes policiais à residência, mas não tendo sido apresentada queixa por nenhum dos intervenientes.
23) No dia 06/10/2021, cerca das 19:30 horas, o arguido viu a assistente e o seu namorado perto da residência comum, o que não o agradou.
24) Nessa ocasião, o arguido dirigiu-se à assistente e disse-lhe em tom de voz alto e com foros de veracidade que a matava e que matava o seu namorado.
25) Como consequência necessária e direta a assistente sentiu medo e receio pela sua vida e pela sua saúde, bem como pela vida do seu namorado.
26) Receando o comportamento do arguido, nessa noite a assistente pernoitou juntamente com o seu filho CC na residência da mãe.
27) No dia 09/10/2021, quando a assistente se encontrava a jantar, o arguido pediu para falar consigo e, pedindo-lhe desculpa pelo que tinha feito no passado, pediu-lhe que reatassem o relacionamento.
28) A assistente negou reatar o relacionamento, o que levou o arguido a refugiar-se no quarto a chorar.
29) No dia 10/10/2021, a assistente enviou uma mensagem escrita ao arguido dizendo-lhe que a relação de ambos já tinha terminado e que não fazia intenção de voltar para o mesmo.
30) No mesmo dia, cerca das 16:50 horas, quando regressou do trabalho, o arguido muniu-se de uma faca de cozinha com 34,5 cm de comprimento, sendo 19,5 cm de lâmina e, empunhando-a, dirigiu-se à assistente BB que se encontrava sentada no sofá da sala acompanhada do assistente CC.
31) Nesse momento, o arguido ergueu a faca e desferiu um golpe de cima para baixo na direção do peito de BB, momento em que esta se inclinou para trás e colocou os braços à frente do peito de forma a proteger-se, acabando por ser atingida no braço esquerdo.
32) Ato contínuo, BB, permanecendo sentada no sofá, logrou afastar ligeiramente o arguido de si, empurrando-o com o pé.
33) Porém, o arguido aproximou-se novamente de BB e, continuando a empunhar a faca, voltou a desferir-lhe golpes em direção à zona do peito, apenas não logrando atingi-la nessa zona do corpo porque a assistente voltou a colocar os braços e as mãos à frente do peito, acabando por ser atingida pela faca nessas partes do corpo.
34) Enquanto se defendia do arguido pela forma descrita, a assistente logrou desferir um pontapé no arguido fazendo com que este se desequilibrasse e caísse no chão.
35) A assistente BB aproveitou esse momento para se levantar e se aproximar do seu filho CC, que permanecia sentado no sofá sem qualquer reação, puxando-o para fora da sala, em direção à porta de saída da habitação.
36) No momento em que a assistente, com as mãos ensanguentadas, tentava abrir a porta de casa para fugir juntamente com o seu filho, que estava a seu lado, o arguido, que entretanto se levantara do chão, abeirou-se do assistente CC pela retaguarda e desferiu-lhe golpes com a faca, espetando-lha por três vezes na parte superior das costas, na zona onde se alojam os pulmões e um golpe na face interna do joelho do assistente.
37) Nesse momento, BB conseguiu finalmente abrir a porta da habitação e sair da mesma com CC, dirigindo-se ambos para o apartamento de EE, irmã da assistente, que ficava do lado oposto do mesmo andar daquele prédio, a qual lhes providenciou refúgio até serem, momentos depois, assistidos pelo INEM e, dali transportados para o Hospital ..., onde CC teve de ser reanimado.
38) Como consequência da conduta do arguido a assistente BB foi transportada ao serviço de urgência do Hospital ..., tendo sido transferida no próprio dia para o Hospital ... em ....
39) A assistente BB sofreu, como consequência direta e necessária da conduta do arguido:
- Duas feridas nos locais atingidos, que implicaram suturas concretamente na face posterior do 1/3 inferior do braço esquerdo, aproximadamente semi-lunar de concavidade superior e interna com cerca de 8 cm e na face anterior do 1/3 superior do antebraço esquerdo, obliqua de cima para baixo e de fora para dentro com 2 cm.
- Equimose de cor esverdeada, na face posterior do 1/3 do braço esquerdo, que media 5cmx8cm, duas equimoses de cor roxa esverdeada, na face antero externa do 1/3 superior do antebraço esquerdo, que media 1cmx0,5cm e 0,3cmx1cm, e equimose de cor roxa esverdeada na face posterior do 1/3 superior do antebraço esquerdo, que media 6cmx2cm;
- Feridas no 4.º e 5.º dedo da mão direita, face volar, sendo a do 4.º dedo em “D1 e de F3” e a do 5.º dedo, ao nível da articulação interfalângica distal, as quais evoluíram para cicatriz de ferida linear na face palmar da ultima falange do 4º dedo da mão direita em forma de L de abertura inferior e interna, com 3,5 cm; cicatriz linear de cor avermelhada, na face palmar da ultima falange do 5º dedo da mão direita, oblíqua de cima para baixo e de dentro para fora, com 1 cm; cicatriz linear, em forma aproximada de semicírculo de abertura superior e posterior na face lateral interna da 1ª falange do 5º dedo da mão direita, com 1,3cm.
- Limitações dos movimentos de flexão dos 3º, 4º e 5º dedos da mão direita, mais acentuada nos 4º e 5º dedos e dores associadas ao efetuar movimentos.
40) Tais lesões sofridas como consequência direta e necessária da atuação do arguido determinaram para a assistente BB um período 493 (quatrocentos e noventa e três) dias de incapacidade (défice funcional temporário total e parcial), sendo 203 (duzentos e três) dias com repercussão na atividade profissional.
*
41) Também como consequência da conduta do arguido, o ofendido CC foi transportado ao serviço de urgência do Hospital ... onde ficou internado.
42) O assistente CC sofreu, como consequência da conduta do arguido três feridas torácicas posteriores superiores, uma escapular esquerda externa, outra mais mediana, profunda com trajeto pelo menos até às apófises espinhosas das primeiras dorsais e outra escapular direita com trajeto de cerca de 10 cm, com coágulos e hemorragia importante, bem como fratura do 3.º arco costal posterior direito e perfuração do tórax com derrame pulmonar (hemotórax à direita), com libertação de ar e hemorragia.
43) Tais lesões evoluíram subsequentemente para duas cicatrizes lineares no hemitórax esquerdo, uma obliqua de cima para baixo e de dentro para fora com a extremidade interna a 2cm da linha média, com 4 cm, outra inferior a nível da omoplata, ligeiramente obliqua de cima para baixo e de dentro para fora, com a extremidade interna a 13cm da linha média, com 1,5cm e outra no hemitórax direito, ligeiramente oblíqua de cima para baixo e de fora para dentro, com a extremidade interna a 5cm da linha média, que mede 3,5cm.
44) Tais lesões, sofridas como consequência direta e necessária da atuação do arguido determinaram para o assistente CC um período 454 (quatrocentos e cinquenta e quatro) dias de incapacidade (défice funcional temporário total e parcial), todos com repercussão na atividade escolar.
45) Ao agir da forma descrita, o arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de maltratar corporal e psicologicamente a assistente, com quem viveu em condições análogas às dos cônjuges e mãe do seu filho menor, não se coibindo de o fazer na presença do filho menor e na residência de ambos, fazendo-a temer pela sua vida e saúde, levando-a a suportar agressões físicas e psicológicas, provocando-lhe um estado permanente de medo e inquietação, perturbando a sua paz e o seu sossego e profundo receio pela sua segurança e integridade física.
46) Sabia o arguido que as suas descritas condutas, porque levadas a cabo no interior da residência da família, local onde a assistente se deveria sentir protegida, e na presença do filho menor, eram especialmente gravosas.
47) Ao desferir golpes com uma faca na direção do peito da assistente, sua ex-companheira, o arguido atuou com o propósito de lhe tirar a vida, utilizando para o efeito uma faca de cozinha cujas características bem conhecia e sabia ser o meio adequado a produzir tal resultado e quis com a mesma atingir zonas corporais daquela que sabia serem aptas a causar-lhe a morte, o que apenas não logrou conseguir por motivos alheios à sua vontade, designadamente porque a assistente colocou os braços à frente do peito, assim protegendo aquela zona do corpo.
48) Sabia o arguido que é no tórax que se alojam os órgãos vitais, concretamente, o coração, local ao qual direcionou a faca e desferiu os golpes.
49) O arguido agiu motivado por ciúmes e sentimento de posse.
50) Ao desferir golpes nas costas de CC, seu filho, o arguido quis tirar-lhe a vida, utilizando para o efeito uma faca, cujas características bem conhecia e sabia ser o meio adequado a produzir tal resultado e quis com a mesma atingir zonas corporais daquele que sabia serem aptas a causar-lhe a morte, pois ali se alojam órgãos vitais, designadamente os pulmões, o que apenas não logrou conseguir por motivos alheios à sua vontade, nomeadamente porque CC logrou, com a ajuda da assistente, sua mãe, fugir do alcance do arguido, evitando ser novamente atingido e subsequentemente, veio a receber assistência médica atempada.
51) O arguido sabia, em todas as suas atuações, que as suas condutas eram proibidas porque punidas por lei.
52) O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e conscientemente.
(…)
Das condições pessoais do arguido
87) O arguido é o filho mais novo de uma fratria de dois irmãos e desenvolveu-se num cotexto socio familiar disfuncional e marcado por um progenitor rígido, maltratante e viciado em jogo.
88) A mãe abandonou o lar quando o arguido tinha cinco anos, por maus tratos, deixando os filhos a cargo da figura materna.
89) Este veio a constituir uma nova família pouco tempo depois, da qual nasceu outra filha.
90) Foi descrito como uma pessoa intolerante, com fraca vinculação ou preocupação com o bem estar da família e dado que despendia o que auferia nos casinos, a família vivia com dificuldades para assegurar a sua manutenção básica.
91) Aos oito anos foi diagnosticada ao arguido uma doença inflamatória da coluna vertebral que implicou um internamento e o abandono da escola, pelas limitações associadas à mesma.
92) Nesta fase, o pai terá sido igualmente suspenso do trabalho e, para angariar dinheiro para o jogo, agredia o arguido para o obrigar a mendigar na rua e obter os rendimentos necessários para manter o seu hábito aditivo.
93) Uma tia que procurava ajudar e acompanhar os menores acabou por participar a situação às entidades competentes e o arguido e a irmã foram confiados judicialmente a colégios.
94) O arguido foi integrado no Colégio ... com cerca de 9 anos, onde estudou e permaneceu até aos 18 anos, embora com fraco investimento nos estudos.
95) Completou o 6.º ano de escolaridade e fez um curso de formação em encadernação.
96) Nos períodos que passava em casa continuava a ser maltratado pelo pai e colocado a mendigar, facto que motivou uma participação ao colégio.
97) Aos 18 anos saiu do colégio para um lar de rapazes, onde foi canalizado para um curso de formação profissional, em tapetes de arraiolos.
98) Durante os anos em que permaneceu afeto à instituição e ao curso de formação namorou uma jovem, com a qual estabeleceu uma relação afetiva e veio a ter uma filha, atualmente com 23 anos, embora nunca tenha vivido em comum com a mesma.
99) Em 2000 deixou a instituição para se reintegrar temporariamente na morada de família.
100) Arranjou trabalho num hotel, começou a contribuir para uma pensão para a filha e a ter mais proximidade com esta e o vencimento auferido permitiu-lhe autonomizar-se da família e arrendar um quarto.
101) Foi no contexto de trabalho que conheceu a assistente, que veio a engravidar em 2003, começando nesse ano a viver em comum com a mesma.
102) A nível laboral fez um percurso estável e investido na área da restauração, trabalhando como copeiro e ajudante de cozinha, quer em hotéis, até 2005, e entre 2005 e 2018 no restaurante “G...”.
103) Revelou-se sempre uma pessoa trabalhadora, responsável, séria e organizada, nos empregos onde permaneceu.
104) Em 2018 e devido a doença, pancreatite, interrompeu o trabalho durante dois anos, o qual retomou em 2020, como copeiro, encontrando-se a trabalhar no Hotel ... quando foi preso.
105) No âmbito relacional foi descrito como uma pessoa tendencialmente solitária e pouco motivada a convívios sociais, passando maioritariamente o tempo a trabalhar ou em casa, onde se ocupava igualmente com tarefas caseiras.
106) Num período mais recente com a doença incapacitante do pai passou a visitá-lo nas folgas e a prestar-lhe cuidados bem como a apoiar a irmã e madrasta, ambas com problemas de saúde.
107) Relativamente à companheira, o arguido posiciona-se de forma autocritica e culpabilizante relativamente a algumas das atitudes tomadas, nomeadamente as que deram origem ao presente processo e descreve de forma geral a relação com a companheira como conflituosa, marcada por divergências e diversas roturas que posteriormente eram ultrapassadas, mantendo o casal a vivencia em comum até aos acontecimentos que motivaram a sua prisão preventiva.
108) Na origem destes conflitos, de acordo com o arguido, encontravam-se questões afetivas, assentes em ciúmes, inseguranças e desconfianças do arguido relativamente à companheira, mas igualmente económicas, já que o arguido habitualmente entregava a totalidade do vencimento à companheira, até ter verificado que a mesma não cumpria com alguns dos compromissos financeiros do agregado.
109) A avaliação do arguido permite apontar para uma pessoa emocionalmente frágil, sensível, dependente de terceiros e que procura tendencialmente manter aquilo que conquistou.
110) Muito marcado por um passado de violência familiar em que aprendeu a adotar uma postura subserviente como mecanismo de defesa, parece ter-se acomodado à nova realidade familiar com a companheira e filhos, embora manifestando dificuldades em aceitar e em lidar de forma ajustada com as questões que foram surgindo na vivência do casal, ao longo dos anos.
111) Relativamente ao filho, o arguido assume igualmente uma postura de culpabilização pela pouca atenção prestada ao mesmo, sobretudo na fase da adolescência deste, por estar habitualmente ocupado no trabalho ou a jogar na internet, nos tempos livres, sendo referido pelas fontes dificuldades de relacionamento e entendimento entre ambos e da parte do filho, alguma agressividade verbal relativamente ao arguido.
112) Preso preventivamente no EP... desde 11/10/2021, o arguido tem demonstrado capacidade para aderir aos normativos institucionais sem dificuldades e por manifestar desejo em ocupar-se e, apesar de se encontrar em prisão preventiva, foi colocado a trabalhar no refeitório desde fevereiro de 2022.
113) Solicitou igualmente apoio psicológico e tem vindo a beneficiar de consultas regulares nesse âmbito, as quais o tem ajudado a ultrapassar algumas questões pessoais.
114) Faz paralelamente terapêutica psiquiátrica, mais dirigida à ansiedade e depressão.
115) Não voltou a ter contactos com a vítima ou o filho desde os acontecimentos que motivaram a sua atual situação jurídico-penal e tem, presentemente, visitas limitadas a uma das irmãs, a qual se constituiu como o seu principal suporte externo.
116) Perspetiva ser transferido para outro EP, onde possa a vir a ter melhores oportunidades laborais e/ou formativas que lhe permitam adquirir novas competências de trabalho que o ajudem a ingressar novamente em meio laboral.
117) A personalidade do arguido é pautada por hipersensibilidade ao abandono, impulsividade e recurso a ameaça ou chantagem emocional como forma de concretizar objetivos, tais como evitar o abandono.
118) O arguido sofre, além disso, de perturbação de adaptação, que consiste em sintomatologia ansiosa e depressiva reativas à prática dos factos e prisão.
119) O arguido não regista antecedentes criminais.;”.
A matéria de facto assim fixada não padece de quaisquer vícios que este Supremo Tribunal pode conhecer tal como prevê o art.º 410.º, n.º 2, do CPP, nem estes foram arguidos, não se vislumbrando quaisquer nulidades e por isso está definitivamente fixada, pelo que, com base nela se passa a decidir a questão de direito que foi suscitada pelo ora recorrente.
2. De direito
2.1. O ora recorrente, AA, funda a sua pretensão de ver reduzida a medida concreta da pena que lhe foi aplicada, considerando que “(…)O Tribunal A Quo deveria ter tido em consideração a influência da pena sobre arguido, e a ressocialização e recuperação do agente, dispõe o art. 40 º n.º 1 e 2 do CP, que a aplicação de penas e medidas de segurança visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, bem como, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.…”, violando “(…) os normativos correspondentes à determinação da medida da pena nos termos do disposto no art. 71º do CP.”.
Considera o arguido que o tribunal recorrido não teve em consideração as circunstâncias concretas que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a seu favor e contra ele, designadamente: um grau de ilicitude mediano; o facto de, na altura da prática do crime se encontrar num momento de grande instabilidade emocional, caracterizado pelo medo de que a Assistente BB o “deixasse” e que a relação de ambos terminasse; o modo de execução dos crimes porquanto se tratou de uma situação ocasionada pela exaltação do momento vivido, fruto do desespero; o facto de à data da prática os factos, o Recorrente apresentar uma grande fragilidade emocional, e um estado psicológico depressivo, provocado pelo percurso de vida condicionado pela problemática do abandono; o meio em que o arguido viveu e cresceu, o seu percurso de vida traumatizado, pontuado pela precariedade, desestruturação e inconsistência dos modelos parentais, o abandono escolar precoce motivado por doença e o seu internamento institucional até aos 18 anos; o facto de não ter antecedentes criminais, o facto de ter confessado os mesmos e a postura de auto-censura e auto-crítica que revelou, bem como o facto de ter colaborado com as autoridades na descoberta da verdade.
O arguido AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, al. b, n.º 2, al. a), e n.ºs 4 e 5, do CP e, de dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos art.ºs 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, todos do CP, respectivamente, nas penas parcelares de: i) 3 (três) anos e 4 (quatro) meses de prisão, ii) 7 (sete) anos de prisão e iii) de 8 (oito) anos e 6 (seis) meses de prisão e, em cúmulo, na pena única de 11 (onze) anos e 6 (seis) meses de prisão.
Da conjugação dos art.ºs 132.º, n.º 1, e 73.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do CP, o crime de homicídio qualificado, na forma tentada, é punido com a pena de prisão abstracta fixada entre o limite máximo da pena (25 anos) reduzido “de um terço” e o limite mínimo da pena (12 anos) reduzido “a um quinto se for igual ou superior a três anos”.
Nos termos do art.º 71.º, do CP, a medida concreta da pena é determinada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção e, em especial, verificadas todas as circunstâncias, referidas expressamente no fundamento da sentença que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, designadamente: “a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.”.
Ou seja, a determinação da medida da pena é fixada dentro dos limites da moldura penal abstracta, em função da culpa do agente e de critérios de prevenção geral e especial, visando-se com a sua aplicação “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”, conforme art.º 40.º, n.º 1, do CP. A culpa funciona como limite da medida da pena (n.º 2, do art.º 40.º, do CP), tal como se disse no Ac. do STJ, de 30/10/1996, Proc. n.º 96P725, em www.dgsi.pt, “A culpa jurídico penal vem a traduzir-se num juízo de censura, que funciona, ao mesmo tempo, como um fundamento e limite inultrapassável da medida da pena (cfr. Figueiredo Dias, "Direito Penal Português - Das Consequências Jurídicas do Crime", página 215), princípio este agora expressamente afirmado no n. 2 do artigo 40 do Código Penal de 1995.
Com o recurso à prevenção geral, procurou dar-se satisfação à necessidade comunitária da punição do caso concreto, tendo-se em consideração, de igual modo a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.Com o recurso à prevenção especial, almeja-se responder às exigências de socialização do agente, com vista à sua integração na comunidade.”.
No mesmo sentido, veja-se o Ac. de 30/10/2014, Proc. n.º 32/13.9JDLSB.E1.S1, em www.dgsi.pt, “(…) a determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade da pessoa humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena dever-se-á ter em conta todas as circunstâncias que depuseram a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha sido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração).”.
Na aplicação concreta da pena atende-se ao grau de ilicitude colocado na comissão do ilícito, revelada no modo da sua execução, persistência de prosseguimento da acção e intensidade do propósito de concretizar o desígnio criminoso, circunstâncias estas apuradas em sede de audiência de julgamento.
2.2. No que à questão colocada concerne – o recorrente discorda da medida das penas parcelares aplicadas aos crimes de violência doméstica e aos dois crimes de homicídio qualificado na forma tentada, por que foi condenado, pretendendo a sua redução, respectivamente, para: 2 (dois) anos e 4 (meses) de prisão, 4 (quatro) anos de prisão e 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, com a consequente redução da pena conjunta e “(…) por conseguinte ser aplicada ao Recorrente penas parcelares mais harmoniosas e após efetivação do cúmulo jurídico, aplicar uma pena mais harmoniosa, proporcional e justa.” –, o Tribunal de 1ª Instância fundamentou o enquadramento jurídico-penal dos factos considerados provados, nos seguintes termos:
“Feita a caracterização geral do tipo-de-ilícito por que vem acusado o arguido, cumpre agora efetuar a operação lógica de subsunção dos factos aos elementos típicos.
No caso dos autos, resultou provado que o arguido, no dia 10/10/2021, se muniu de uma faca de cozinha com 34,5 cm de comprimento, sendo 19,5 cm de lâmina e, empunhando-a, dirigiu-se à assistente, que se encontrava sentada no sofá da sala acompanhada do filho de ambos, o ofendido CC.
O arguido ergueu a faca e desferiu um golpe de cima para baixo na direção do peito de BB, momento em que esta se inclinou para trás e colocou os braços à frente do peito de forma a proteger-se, acabando por ser atingida no braço esquerdo. De seguida, BB, permanecendo sentada no sofá, logrou afastar ligeiramente o arguido de si, empurrando-o com o pé, porém o arguido aproximou-se novamente dela e, continuando a empunhar a faca, voltou a desferir-lhe golpes em direção à zona do peito, apenas não logrando atingi-la nessa zona do corpo porque a assistente voltou a colocar os braços e as mãos à frente do peito, acabando por ser atingida pela faca nessas partes do corpo.
Entretanto, a assistente desferiu um pontapé no arguido fazendo com que este se desequilibrasse e caísse no chão e a assistente aproveitou esse momento para se levantar e se aproximar do seu filho CC, que permanecia sentado no sofá sem qualquer reação, puxando-o para fora da sala, em direção à porta de saída da habitação e no momento em que a assistente tentava abrir a porta de casa para fugir juntamente com o seu filho, que estava a seu lado, o arguido, que entretanto se levantara do chão, abeirou-se do seu filho CC pela retaguarda e desferiu-lhe golpes com a faca, espetando-lha por três vezes na parte superior das costas, na zona onde se alojam os pulmões e um golpe na face interna do seu joelho.
Nesse momento, BB conseguiu finalmente abrir a porta da habitação e sair da mesma com CC, dirigindo-se ambos para o apartamento que ficava do lado oposto do mesmo andar daquele prédio, a qual lhes providenciou refúgio até serem, momentos depois, assistidos pelo INEM e, dali transportados para o Hospital ..., onde CC teve de ser reanimado.
Assim, resultou provado que o arguido quis atingir com uma faca o corpo dos ofendidos em zonas vitais e dessa forma tirar-lhes a vida, o que apenas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade.
De referir, por último, que, tratando-se de uma tentativa de homicídio, a (in)existência de um perigo concreto para a vida, só por si, não releva para o afastamento da subsunção ao tipo matricial, pois na configuração da tentativa, mais concretamente na avaliação dos atos de execução em conjunto com o plano do agente, “o que releva não é um juízo ex post sobre as consequências concretas dos atos praticados, mas um juízo ex ante, sobre a potencialidade letal da ação desenvolvida”7.
Ora, no caso vertente, os factos objetivos dados como provados, em conjunto com a atuação do arguido, que exteriorizou a vontade de matar, ao desferir golpes em direção ao peito da ofendida (que a atingiram nos membro superiores) e três golpes na região dorsal do ofendido do ofendido com uma faca, pretendendo tirar-lhes a vida, permitem, num juízo ex ante, concluir sobre a potencialidade letal da ação pelo mesmo desenvolvida, uma vez que o mesmo direcionou a sua ação para zonas do corpo que alojam órgãos vitais, podendo, efetivamente, atingir esses órgãos e provocar-lhes a morte.
Por isso, independentemente de não ter ocorrido perigo para a vida dos ofendidos, terá de se concluir que o arguido praticou atos idóneos a produzir o resultado típico do crime de homicídio – morte – sendo tal conduta subsumível ao artigo 22.º, n.º 2, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal.
*
Já no tocante às circunstâncias qualificativas previstas nas alíneas e) e j) a que alude a acusação entende-se que nenhuma delas se pode ter por preenchida, atendendo a todo o circunstancialismo que resultou provado.
Desde logo no que respeita aos motivos subjacentes à atuação do arguido, resultou provado que este agiu na sequência de, dias antes (06/10/2021), ter observado a ofendida com o seu novo namorado, o que lhe provocou uma reação exacerbada naquele dia e nos dias seguintes, estando longe de poder reconduzir-se ao conceito de motivo fútil, já que, de acordo com o padrão do homem médio, considerado o contexto socio cultural em que o arguido se insere e toda a sucessão de factos que teve lugar, aquele acontecimento é apto a suscitar sentimentos de revolta que terão condicionado e provocado a atuação do arguido.
No que se refere à atuação com frieza de ânimo, entende-se que a materialidade ajuizada e dada como provada não permite a integração da conduta do arguido nesse conceito.
Na verdade, ainda que seja de supor que o arguido tenha reunido os meios necessários à concretização dos seus intentos, designadamente a faca que trazia consigo, certo é que nada indica que tenha atuado com reflexão acerca desse meio ou com persistência na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.
Em primeiro lugar, porquanto não resultaram demonstrados factos concretos que permitam a integração desses conceitos. Depois, tendo presentes as características da personalidade do arguido, em particular as apontadas “hipersensibilidade ao abandono” e “impulsividade” entende-se que, nesse quadro, a conduta do arguido não poderá ser entendida, de forma inequívoca, como um comportamento amadurecido e programado.
Todavia, no que se refere ao contexto a que se refere a agressão ao ofendido e assistente CC, entende-se que se verifica plenamente a circunstância qualificativa prevista na alínea a) do artigo 132.º, n.º 2 do Código Penal. Neste âmbito, é evidente que à atuação do arguido acresce um especial desvalor decorrente de ter negado ou ter-se mostrado indiferente à relação de parentesco com a vítima, ainda menor de idade à data dos factos, em circunstâncias em que o menor demonstrou encontrar-se particularmente indefeso em relação à atuação do arguido, permanecendo sem reação, numa atitude de total indefesa perante as suas investidas que acabaram por conduzir a que o atingisse, por três vezes, com uma faca nas costas e ainda na face interna do joelho. Neste contexto e tendo o arguido agido com perfeito conhecimento da relação familiar que o unia à vítima e das consequências devastadoras que uma tal ação implicava sobre a integridade física do mesmo, não temos dúvidas em considerar que se verifica a qualificativa em apreço e que lhe vem imputada na acusação.
Por seu turno, quanto aos factos que se referem à assistente BB igualmente entende o Tribunal que se deve considerar o comportamento do arguido especialmente desvalioso. Primeiramente, tal especial censurabilidade releva da circunstância da atuação do arguido se dirigir a atentar contra a vida de uma pessoa que com ele havia mantido uma relação análoga à dos cônjuges, durante cerca de dezoito anos, mãe do seu filho menor que com ele ainda coabitava, embora já tivessem cessado o relacionamento como marido e mulher. Por outro lado, o arguido agiu num quadro de possessividade e de ressentimento, motivado por ciúmes e sentimentos de posse, decorrentes precisamente da rutura conjugal. O arguido tinha inteiro conhecimento de que a assistente BB tinha mantido consigo um relacionamento análogo aos conjugues, sendo mãe do seu filho menor e que, por esses motivos, mantinha um vínculo de proteção e respeito em relação a esta, mesmo para além do final do relacionamento entre ambos, valores que, com o seu comportamento intencional violou de forma intensa e frontal.
Neste contexto, entende-se que a atuação do arguido é como especialmente censurável, sendo-lhe igualmente aplicável a qualificativa prevista no artigo 132.º, n.º 1 e 2,. alínea b), que lhe vem imputada na acusação.
Já quanto à agravação prevista no artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições, tendo resultado provado que, com o intuito de tirar a vida aos assistentes, o arguido recorreu ao uso de uma faca de cozinha com 34,5 cm de comprimento, sendo 19,5 cm de lâmina.
O referido objeto, considerando as suas dimensões deverá se qualificado como arma branca, atento o disposto no artigo 2.º, n.º 1, alínea m) do Regime Jurídico das Armas e Munições, sendo que se classifica como arma da classe A, nos termos da alínea ab) do artigo 3.º, n.º 2 do mesmo Regime Jurídico porque, apesar de se tratar de uma faca de cozinha, não se encontrava no local do seu normal emprego, nem a sua posse é justificável.
Assim sendo, uma vez que o arguido conhecia as características da arma que usou, a potencialidade de lesão e a aptidão para produzir a morte e que a usou para diminuir a capacidade de defesa dos assistentes e garantir maior eficácia no resultado, há que concluir que se mostram integralmente preenchidos os pressupostos da agravação do crime de homicídio, nos termos do artigo 86.º, n.º 3 do Regime Jurídico das Armas e sua Munições.”.
E, quanto à medida da pena fundamentou a sua decisão referindo que “O crime de violência doméstica agravado praticado pelo arguido e previsto no artigo 152.º, n.º 1 e 2 do Código Penal é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos.
Por sua vez cada um dos crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e alínea b), todos do Código Penal, agravados nos termos do 86.º, nºs 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02 são puníveis com pena de 3 anos 2 meses e 12 dias a 22 anos, 2 meses e 20 dias.
A determinação da medida concreta da pena exige, segundo o critério geral contido no artigo 71.º, n.º 1 do Código Penal, que se atenda à “culpa do agente” e às “exigências de prevenção”, sendo esta a matriz orientadora da apreciação a realizar.
O critério da prevenção corresponde a uma exigência de resposta à “necessidade comunitária da punição” e de “realização das finalidades da pena”, aplicadas ao caso concreto.
(…) As exigências de prevenção geral que são muito elevadas quer quanto ao crime de homicídio, que tutela o bem jurídico supremo que é a vida humana, quer quanto ao crime de violência doméstica.
Neste particular, importa assinalar que a tipificação penal da conduta correspondente atualmente ao crime de violência doméstica sofreu uma evolução que transparece uma reflexão sobre tais comportamentos e uma crescente perceção da repercussão social negativa dos mesmos, frequentemente assinalado pela jurisprudência.
Com efeito, trata-se de um tipo de criminalidade que assume um modo de execução específica, por ocorrer, em regra, no domicílio conjugal, preservado da observação alheia e no interior de um espaço fechado, o que confere um sentimento de impunidade, acrescendo a isso o generalizado pudor que terceiros têm em se imiscuir na vida privada de um casal.
A natureza particular da relação existente entre agente e o sujeito passivo do crime, caracterizada pelo domínio do primeiro, o que frequentemente conduzia a que na prática não fossem criminalizadas as condutas devido ao receio de represálias por parte da vítima, justificaram que o Estado abandonasse uma posição abstencionista, de não intervenção na esfera da privada da vida familiar, e que, após vivo debate doutrinal, se tenha consagrado a natureza do crime como crime público.
A legitimidade da intervenção jurídico-penal neste domínio fundamenta-se, pois, conforme já defendia Teresa Beleza, como “mal necessário para assegurar o equilíbrio entre as pessoas e os interesses envolvidos, para permitir a defesa dos bens jurídicos essenciais, por exemplo a integridade física dos membros da família.”
Ressalta, pois, das opções legislativas tomadas, a prevalência do direito à proteção da família e à realização pessoal dos seus membros, direito constitucionalmente consagrado (cfr. artigo 67.º da Constituição da República Portuguesa), cujo bem-estar, equilíbrio psicológico e estabilidade são gravemente contrariados por este tipo de comportamentos.
Em concreto, não poderá olvidar-se que o tipo legal em causa pretende dar tutela a situações acentuada violência e humilhação para a vítima, que atentam gravemente contra a sua dignidade pessoal, correspondendo ao exercício de um domínio pelo mais forte na relação conjugal, executado de forma subliminar, prática que urge afastar da comunidade, atentos os valores de igualdade que baseiam o quadro basilar de direitos consagrado na nossa Constituição.
Deverá ainda ter-se presente que as situações de violência doméstica continuam a ter uma expressão muito significativa na sociedade, ocasionando consequências devastadoras ao nível do equilíbrio da família e do harmonioso desenvolvimento dos filhos, para além de poderem conduzir a situações extremas de morte das vítimas.
Pelo exposto, conclui-se que as exigências de prevenção são, no plano geral, muito fortes, impondo-se o reforço, perante a comunidade, da validade das normas que punem tais condutas e protegem aqueles bens jurídicos fundamentais.
Considerando agora as circunstâncias enunciadas no n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal, cumpre salientar, no caso em apreço, que:
A ilicitude dos factos quanto ao crime de violência doméstica situa-se ao nível da mediania, considerando os factos concretos que a integram, não sendo de olvidar o prolongado lapso de tempo pelo qual perdurou o relacionamento abusivo do casal (com cerca de 18 anos de coabitação) e o mesmo se considerando quanto aos crimes de homicídio na forma tentada, atento o tipo de ilícito cometido pelo arguido, que é qualificado e agravado pelo uso de arma;
A intensidade do dolo, direto, agindo o arguido com vontade própria e intenção de maltratar e tirar a vida à assistente e ao seu filho ainda menor de idade;
As consequências ocasionadas pela conduta do arguido, foram consideráveis, para além de geradores de grande estado de nervosismo e receio, sem olvidar as dores físicas que inevitavelmente causou às vítimas;
No plano das condições pessoais do arguido, observa-se que o mesmo se desenvolveu num contexto familiar disruptivo, marcado pelo abandono da progenitora e pelos maus tratos do progenitor, seguida de institucionalização. A nível laboral fez um percurso estável e investido na área da restauração até 2018, que interrompeu, por vicissitudes várias e apenas retomou em 2020, com interrupções devido à crise pandémica. É tendencialmente uma pessoa solitária e pouco motivada para convívios sociais. O arguido parece ter sido orientado por várias tentativas de manter uma relação familiar vinculativa, sem sucesso, posicionando-se de forma autocritica relativamente aos seus comportamentos, apresentando-se como emocionalmente frágil. Tem uma personalidade com características de hipersensibilidade ao abandono, impulsividade e recurso a ameaça ou chantagem emocional como forma de concretizar objetivos, sofrendo de sintomatologia ansiosa e depressiva reativas à prática dos factos e prisão. No estabelecimento prisional onde se encontra aderiu ao cumprimento das regras institucionais, encontra-se ativo laboralmente e solicitou apoio psicológico, tendo vindo a beneficiar de consultas regulares nesse âmbito, fazendo ainda terapêutica psiquiátrica, dirigida à ansiedade e depressão;
O arguido expressou arrependimento quanto aos factos que praticou e penalizou-se quanto ao sofrimento que causou aos ofendidos, particularmente o seu filho;
O arguido não regista antecedentes criminais.
Ponderados os sobreditos vetores, julga-se adequado e equitativo, censurar penalmente o arguido com as penas concretas de:
- Três anos e quatro meses de prisão, pelo crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a) do Código Penal;
- Sete anos de prisão, pelo crime homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições (relativamente aos factos praticados em relação à assistente BB);
- Oito anos e seis meses de prisão, pelo crime homicídio qualificado, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, agravado nos termos do artigo 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições (relativamente aos factos praticados em relação ao assistente CC).
*
2.3) Da pena unitária
(…)
Ora, esta aplicação concreta, tem lugar na nossa lei, através do sistema do cúmulo jurídico, consagrado no artigo 77.º do Código Penal.
De acordo com este preceito legal, dever-se-á proceder à fixação das penas parcelares respeitantes a cada um dos crimes em concurso. Posteriormente, somam-se as penas parcelares e obtém-se o limite superior da moldura abstrata aplicável, dentro dos limites absolutos agora expressamente previstos no n.º 2. O limite mínimo é constituído pela mais grave das penas parcelares fixadas.
Encontrada desta forma a moldura abstrata, a pena única é determinada, nos termos da última parte do n.º 1, isto é, considerando “em conjunto, os factos e a personalidade do agente”, assim se respeitando o essencial da pena unitária.
Considerando os parâmetros a que alude o artigo 77.º, n.º 1 do Código Penal, entende-se que se deverá salientar, com relevância para a determinação da pena única que os factos em apreciação são muito graves e que o arguido revelou ter uma personalidade obsessiva, impulsiva e reativa, utilizando a violência como forma de atingir os seus objetivos, ainda que seja de ponderar o quadro ansioso e depressivo de que o mesmo padece e que o mesmo não apresenta outros contactos com o sistema de justiça.
Destarte, somadas as penas parcelares de prisão, temos que o limite máximo não poderá ultrapassar os vinte cinco anos de prisão, sendo o limite mínimo de oito anos e seis meses de prisão, pelo que, operando o cúmulo jurídico, nos termos do artigo 77.º do Código Penal e considerados em conjunto os factos e a personalidade do arguido, reputa-se ajustada a pena única de onze anos e seis meses de prisão.” – sublinhado nosso, negrito no original.
2.3. Adianta-se que, no aspecto questionado no presente recurso, nada há a apontar à decisão recorrida, porquanto se tem como demonstrado o grau de ilicitude na prática dos factos e da culpa com que agiu o ora recorrente.
No caso, tem de atender-se ao modo de execução do crime pelo arguido, com recurso a meio de elevada potencialidade letal, (factos provados 30 a 40, da matéria de facto), bem como à manifestação reiterada da sua intenção de retirar a vida aos seus familiares e o facto de persistir nesse seu ideário, (factos provados 7 a 26, da matéria de facto), e de não ter recuado nos seus intentos mesmo representando a possibilidade de poder vir a tirar a vida aos Assistentes (factos provados 45 a 52, da matéria de facto.
Efectivamente, o arguido ora recorrente muniu-se de uma faca de cozinha com 34,5 cm de comprimento, sendo 19,5 cm de lâmina, cuja potencialidade letal é reconhecida, características que o arguido não desconhecia, (factos provados 30, da matéria de facto), não se coibindo de a utilizar contra zonas vitais do corpo dos Assistentes, atingindo-os com vários golpes, de forma grave (factos provados 33 a 44, da matéria de facto) e mesmo vendo-os em fuga não desistindo dos seus intentos, repetindo os golpes, com particular relevo contra o Assistente CC, seu filho, encontrando-se este de costas (factos provados 33 e 42, da matéria de facto).
Com efeito, há que considerar, não só, a persistência no ânimo homicida que o arguido ora recorrente colocou nos seus actos com indiferença pelo resultado, manifestada naquele modo de atingir as suas vítimas, com intuito de lhes tirar a vida, não resultando dos autos qualquer violação perante a matéria de facto dada como provada e respectivo enquadramento jurídico.
Na realidade, o juízo ético-jurídico de censura que o seu comportamento suscita é o de considerar-se o seu comportamento, extremamente, censurável, porquanto, “Tais fins ou motivos, manifestados no facto, demonstram que o arguido não se deixou penetrar por contra-motivações éticas; pelo contrário, não olhou a meios para atingir os seus intentos. Em suma, com a sua conduta, o arguido revelou a mais completa indiferença ético-jurídica, sendo, como tal, muito acentuado o seu grau de culpa, bem como o juízo de censurabilidade.”, tal como salientado no aresto já citado, Ac. do STJ, de 30/10/1996.
E, ainda, no referenciado no Ac. do STJ de 19/07/2014, também se disse que, “(…) A culpa consiste no juízo de censura dirigido ao agente pelo facto deste ter actuado em desconformidade com a ordem jurídica quando podia, e devia, ter actuado em conformidade com esta, sendo uma desaprovação sobe a conduta do agente. O juízo de censura, ou desaprovação, é susceptível de se revelar maior ou menor sendo, por natureza, graduável e dependendo sempre das circunstâncias concretas em que o agente desenvolveu a sua conduta, traduzindo igualmente um juízo de exigibilidade determinado pela vinculação de cada um a conformar-se pela actuação de acordo com as regras estipuladas pela ordem jurídica superando as proibições impostas. Em suma, o agente actua culposamente quando realiza um facto ilícito podendo captar o efeito de chamada de atenção da norma na situação concreta em que desenvolveu a sua conduta e, possuindo uma capacidade suficiente de auto controlo, e poderia optar por uma alternativa de comportamento.”.
O tribunal recorrido fez uma leitura correcta do comportamento criminal do arguido, quanto ao modo de agir, intensidade do dolo e culpa na actuação. Para além da matéria de facto que deu como provada se manter inalterável, o tribunal a quo beneficiou dos princípios da oralidade e da imediação. E, sempre será ainda de referir que as atenuantes que constam dos factos provados foram tidas em conta pelo tribunal recorrido ao dosear a pena. Acresce, também, que se mantém a qualificação dos crimes imputados (que, aliás o recorrente não questionou), pelo que as penas abstractas aplicáveis são as previstas nos citados art.ºs 152.º n.º 1, al. b) e n.º 2 e 132º n.º 1 e 2, 22.º, n.ºs 1 e 2, e 23.º, agravado pelo art.º 86.º, n.ºs 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02.
2.4. De salientar que as circunstâncias atenuantes apontadas pelo ora recorrente foram as relacionadas com a sua personalidade alegando ser “(…) padece de um transtorno de personalidade, que tem dificuldade em controlar a raiva, que estava perante o abandono, que tanto temia; que não queria estar sozinho, estava verdadeiramente perturbado, fragilizado emocionalmente, “sem chão”, e neste enquadramento perdeu totalmente controlo dos seus atos.”; “(…) não tem antecedentes criminais.”; que quanto ao seu comportamento posterior aos factos, solicitou apoio psicológico, mostrou arrependimento e postura humilde durante o julgamento – conclusões 22, 23, 25, 29 e 30, das alegações de recurso.
Porém, tais factos não são reveladores de que o mesmo tenha um comportamento ético de acordo com a vivência em família e em sociedade, pois, os factos provados quanto às palavras e acções dirigidas aos seus familiares, em particular à Assistente BB (factos 10, 14, 16, 22, e 24, da matéria de facto), denotam um grau baixo de autocensura e de pouco reconhecimento dos valores sociais de respeito e consideração pela vida pessoal e familiar de quem lhe estava mais próximo.
O facto de ter utilizado uma faca de cozinha revela a determinação do arguido ora recorrente em causar a morte aos Assistentes (sua ex-mulher e seu filho) bem sabendo e, querendo, que isso viesse a acontecer, golpeando-os com tal instrumento e atingindo-os com manifesto desprezo pelo bem jurídico protegido (a vida humana). Acresce que ao proceder como descrito na matéria de facto, verifica-se que o arguido não teve em consideração o bem jurídico protegido na incriminação do crime de violência doméstica (a dignidade das pessoas que integram um núcleo familiar, no sentido de verem garantida a sua integridade física e moral), que o mesmo foi desenvolvendo ao longo do tempo em que viveu com a sua ex-mulher e filho. Por isso, as exigências de prevenção geral e especial, no caso, exigem uma atenção particular porquanto é elevado o grau de censurabilidade do seu comportamento e são muito elevadas as exigências de reafirmação de que esses comportamentos não são socialmente aceitáveis.
Acresce que o facto de padecer de um transtorno psicótico, reconhecido pelo próprio, imporia o seu tratamento visando não comprometer o seu futuro com a prática de actos violentos. E, ser pessoa pouco instruída e de modesta condição social não são qualificativos pessoais que atenuem especialmente a pena a aplicar, perante a necessidade de defesa comunitária deste tipo de comportamento criminal – quer pela violência associada ao seu modo de actuação, quer pela objectiva gravidade dos crimes cometidos com forte intenção (e persistência) em retirar a vida aos seus familiares –, o que se traduziu numa grande indiferença quanto ao resultado dos seus actos.
3. Deste modo, não merecem censura as penas parcelares e a pena única aplicadas ao ora recorrente quanto aos crimes pelos quais foi condenado – crimes de violência doméstica e de homicídio qualificado na forma tentada – na pena única de onze anos e seis meses de prisão –, pois, se encontra suportada em adequada fundamentação.
Em concreto, o seu comportamento é de molde a impor, justa, objectiva e proporcionalmente uma pena graduada nos limites da culpa com que o mesmo actuou, atenta à gravidade dos crimes de homicídio, ainda que sob a forma tentada – cujo bem jurídico é a protecção da vida humana –, e a necessidade de prevenção geral e especial perante este tipo de criminalidade que, no caso, ainda se mostra mais exigível, considerando que o mesmo teve origem em circunstâncias conexas com a violência doméstica vividas pelo agregado familiar do arguido e perpetuadas na sua conduta persecutória, injuriosa e vingativa, com tal alcance, que atentou contra as suas vidas de modo brutal e grave, sendo a sua conduta susceptível de causar alarme social.
As condições pessoais do arguido têm uma diminuta relevância, uma vez que todos os cidadãos estão obrigados a não cometerem crimes e o arguido, como bem se refere no acórdão da 1ª instância “(…), as características da arma que usou, a potencialidade de lesão e a aptidão para produzir a morte e que a usou para diminuir a capacidade de defesa dos assistentes e garantir maior eficácia no resultado (...) conclui-se que se mostram reunidos os elementos objetivos e subjetivos de dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, previstos e punidos pelos artigos 22.º, 23.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea a) e alínea b), todos do Código Penal, agravados nos termos do 86.º, nºs 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições, aprovado pela Lei n.º 5/2006, de 23/02,”.
Em suma, sopesadas todas as circunstâncias agravantes e atenuantes sobreleva, em muito, a das agravantes que se constituíram na prática de um crime de violência doméstica e de dois crimes de homicídio qualificado, na forma tentada, sendo que a actuação do recorrente não constituiu um mero acaso, mas integrou de forma directa e necessária a produção de um resultado que o mesmo previu como possível e aceitou o resultado consequente.
Nestas circunstâncias, uma pena graduada abaixo de metade do limite máximo da pena abstrata aplicada ao crime de homicídio, na forma tentada – art.ºs 132.º, n.º 1, 23.º e 73.º, n.º 1, als. a) e b), do CP –, de modo algum, se pode considerar excessiva, particularmente quanto à vítima seu filho. De igual modo, face à matéria provada, não se mostra excessiva a pena aplicada pelo crime de violência doméstica, quer por o comportamento do arguido se ter traduzido em actos reiterados prolongados no tempo de convivência familiar quer pelo desrespeito demonstrado com a sua conduta violenta e injuriosa para com a Assistente, sua ex-mulher.
Confirmando-se a decisão quanto às penas parcelares que são o objecto da discordância do recorrente, também não há razão para alterar o decidido quanto à pena conjunta, que se mostra estabelecida com observância do disposto no art.º 77.º, do Código Penal. Aliás, neste aspecto, a sentença não vem questionada senão como decorrência da pretensão de redução das penas parcelares pelos crimes de violência doméstica e homicídio.
III – DECISÃO
Termos em que, acordando, se decide:
a) Negar provimento ao recurso, confirmando-se a sentença recorrida.
b) Fixar em 6 UC a taxa de justiça devida pelo recorrente.
Lisboa, 06 de Julho de 2023 (processado e revisto pelo relator)
Leonor Furtado (Relatora)
José Eduardo Sapateiro (Adjunto)
Agostinho Torres (Adjunto)