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DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
ABUSO SEXUAL DE MENORES
Sumário
1. Os riscos de vitimização secundária e de distorção probatória adquirem maior acuidade no caso das vítimas menores de crimes sexuais. 2. No que concerne aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, a Reforma de 2007 veio impor, no n.º 2 do art. 271.º do Código de Processo Penal (CPP), a obrigatoriedade da inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. 3. Não obstante a necessidade de intervenção judicial na diligência contraditória de produção antecipada de prova em apreço, a direcção do inquérito cabe exclusivamente ao Ministério Público (art. 263.º, n.º 1, do CPP). 4. Por conseguinte, é o Ministério Público que decide as concretas diligências que visam investigar a existência do crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262.º, n.º 1). 5. Se o Ministério Público entende que a nova audição da (pretensa) ofendida menor de crime contra a autodeterminação sexual deverá ser feita em inquirição judicial para memória futura, restará ao Juiz de Instrução aferir tão-só da verificação dos requisitos previstos no art. 271.º, do CPP, sem incorrer em quaisquer juízos de oportunidade. 6. E estando em causa a inquirição de uma ofendida ainda menor no âmbito de processo por crime contra a respectiva autodeterminação sexual, tal inquirição judicial antecipada é obrigatória, sob pena de irregularidade (artigos 271.º, n.º 2, e 118.º, n.ºs 1 e 2 , do CPP). 7. A isso não obsta a circunstância de a vítima menor já ter sido inquirida pela Polícia Judiciária e “nada ter dito de relevante”, bem como o facto de a vítima não ter revelado na perícia psicológica, a que foi sujeita, “a experienciação de qualquer ato abusivo”.
Texto Integral
Acordam os juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães
I – RELATÓRIO
1. Decisão recorrida
Nos autos de inquérito que correm os seus termos no DIAP ... sob o n.º 2657/21...., na sequência de requerimento do Ministério Público apresentado junto do Juízo de Instrução Criminal ..., o Mmo. Juiz de Instrução indeferiu, por despacho de 16-03-2023, a tomada de declarações para memória futura à menor AA
2. Recurso
Inconformado com o referido despacho, o Ministério Público recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
(…) 1 – Requerida a tomada de declarações para memória futura a AA, nos termos do disposto no artigo 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, por esta contar com 7 anos, foi tal requerimento indeferido por despacho de Mmo. JIC. 2 – Salvo o devido respeito, o despacho viola o disposto no artigo 271.º, n.º 1 do Código de Processo Penal; 3 – Considerando estar em causa crimes contra a autodeterminação sexual, bem como atenta a idade da vítima menor de idade, uma interpretação correta do artigo 271.º, n.ºs 1 e 2 do Código de Processo Penal, determinaria o deferimento do requerido; 4 – Ademais, em face do texto do nº 2, do artigo 271º, do Código Penal, não cabe nos poderes do juiz de instrução, por a lei não lho permitir, se é adequado ou inadequado requerer a tomada de declarações para memória futura nestas situações, nem aferir dos requisitos que o legislador exige para as testemunhas na primeira parte do preceito; 5 - Termos em que, julgando-se procedente o presente recurso, se requer seja ordenada a tomada de declarações para memória futura a AA, assim se fazendo a inteira e Acostumada Justiça!
(…)”.
3. Resposta ao recurso
Após a admissão do referido recurso, o arguido não respondeu ao mesmo.
4. Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista à Digníssima Procuradora-Geral Adjunta, a qual emitiu parecer pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo arguido.
Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e não foi apresentada qualquer resposta.
Efectuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A) Objecto do recurso
Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim sendo, importa apreciar apenas a questão do indeferimento judicial da tomada de declarações para memória futura. B) Apreciação do recurso
1. Decisão recorrida
1.1. Nos autos principais de inquérito - do qual emergiu o presente recurso – é investigada a suspeita da prática de um crime de abuso sexual de criança agravado pelo arguido BB contra a sua filha menor AA, nascida em .../.../2015.
Mediante requerimento apresentado em 03.03.2023, o Ministério Público requereu ao Juiz de Instrução Criminal que fosse “designada data para tomada de declarações para memória futura à ofendida vítima AA, de acordo com o disposto no art. 271.º, n.º 1, do Código de Processo Penal”
1.2. Sobre este requerimento recaiu a decisão recorrida com o seguinte teor (transcrição):
“(…) Ao abrigo do disposto no artigo 271.º/1 do CPP, pretende o MP a tomada de declarações para memória futura à criança CC – nascida em .../.../2015 – relativamente a factos ocorridos no Natal de 2020, estando a menor desde Janeiro de 2021 a viver no Centro Social .... Dizendo que os factos sob investigação são suscetíveis de afirmar o cometimento pelo arguido (pai da criança) de um crime de abuso sexual de criança agravado, p. e p. pelo artigo 177.º/1 e 177.º/1-a) do Código Penal. Decidindo. A criança (na configuração do MP é vítima especialmente vulnerável – cfr., v.g. a Lei 130/2015, de 04/09) que foi ouvida na PJ em 28/10/2021 e, com relevância ao afirmado objecto do processo “crime contra a autodeterminação sexual de menor”, nada de relevante disse. Consta dos autos um relatório de perícia psicológica à criança do qual, entre o mais, resulta “…importa esclarecer que ao longo de toda a avaliação, AA não produziu qualquer relato espontâneo que indiciasse a experienciação de qualquer ato abusivo seja por parte do arguido...”, não tendo assim o técnico abordado a questão sobre o evento descrito nos autos “no sentido de prevenir a vitimação secundária…”. Mais nele se refere “…não nos é possível a formulação de um parecer a respeito da alegada experiência abusiva. Contudo, a inexistência de relatos de AA não significa linearmente que os alegados factos não aconteceram, mas que a investigação terá de ter em consideração outros prováveis meios de prova que não dependam da memória e relato da avaliada a esse respeito…”. Houve constituição de arguido sendo este no interrogatório confrontado com o seguinte: “…ter tido comportamentos menos próprios para com a sua filha AA …, nomeadamente dormir sozinho com a criança e dar banho a esta com a porta fechada”. Dispõe o artigo 271.º, não o n.º 1, mas o n.º 2 do CPP, que “No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.”. Sendo certo que o MP é o titular da acção penal e que não cabe ao juiz de instrução – neste momento – afirmar se existe ou não crime (o MP diz que sim, v.g. a fls. 154, tanto mais que validou a constituição de arguido), o certo é que a realização da diligência pretendida pelo MP, estando já nos autos o relatório final da PJ, tem potencialidade de se apresentar como factor vitimador da criança, como o próprio perito refere, pois ela (a criança) nada refere quanto a abusos, pelo que terá a investigação terá de ter em consideração outros prováveis meios de prova que não dependam da memória e relato da avaliada a esse respeito. Tenha-se presente que as declarações para memória futura (cfr. ainda artigo 24.º da já referida Lei 130/2015) têm uma finalidade: ser apreciado o depoimento em julgamento (daí que a omissão de acto obrigatório na fase de inquérito tenha de ser lida no pressuposto dele vir a acontecer, o que situações como a dos autos reclama ponderação acrescida e afirmação fundada dessa previsibilidade). Daí também que estando a investigação concluída por parte da PJ, nada referindo o MP quanto à previsibilidade do depoimento valer em previsível julgamento, nem quanto ao ganho de competências da criança para, agora, prestar depoimento diferente do que já prestou por duas vezes, a diligência pretendida é não só absolutamente inútil (logo proibida – artigos 4.º do CPP e 130.º do CPC) como potencialmente vitimadora da criança (logo em violação directa do comando constitucional do artigo 69.º/1 da CRP), ademais se ouvida sob sugestão (pois sempre que ouvida nada disse) de qualquer tipo de comportamento de natureza sexual de que tenha sido vítima (o que também não aconteceria nem se permitiria, diga-se). Face ao exposto, indefiro o requerido.
(…)”.
1.3. O recorrente pugna pela revogação deste despacho e pelo deferimento da pretensão de audição da vítima menor para memória futura.
Para tanto, alega, no essencial, que “não cabe nos poderes do juiz de instrução, por a lei não lho permitir, se é adequado ou inadequado requerer a tomada de declarações para memória futura”
2. Declarações para memória futura no caso de vítima de crime contra a autodeterminação sexual
2.1. A matéria das declarações para memória futura, enquanto acto antecipado de produção de prova na fase de inquérito, encontra-se regulada no art. 271.º do Código de Processo Penal, na redação introduzida pela Lei n.º 102/2019, cujos n.ºs 1 e 2, , versam o thema decidendum do presente recurso e se passam a transcrever:
Artigo 271.º (Declarações para memória futura)
1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
Concentremos a nossa atenção na inquirição antecipada de menor vítima de crime contra a autodeterminação sexual. 2.2. A revisão de 1998 aditou ao n.º 1 do art. 271.º do CPP as vítimas de crimes sexuais.
No domínio dos crimes sexuais, “o recurso a declarações para memória futura procura: i) evitar os danos psicológicos implicados na evocação sucessiva pelo declarante da sua dolorosa experiência e a sua exposição em julgamento público e, ii) fixar os elementos probatórios relevantes a partir do primeiro relato presumivelmente mais próximo e espontâneo, evitando o perigo de contaminação da prova” (Vide CRUZ BUCHO, “Declarações para memória futura (elementos de estudo)”, Guimarães, 2012, pp. 36-40, disponível em www.trg.pt).
No plano da vitimologia, dever-se-á entender que a prestação de declarações para memória futura constitui um direito da própria vítima, de se poupar à revitimização, o que explica a atribuição de legitimidade à vítima para a requerer esta antecipação de prova ao juiz de instrução (Vide Ac. TRE 09.03.2021, p. 88/2020, disponível em www.dgsi.pt).
Estes riscos de vitimização secundária e de distorção probatória adquirem maior acuidade no caso das vítimas menores de crimes sexuais.
Em conformidade, no que concerne aos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, a Reforma de 2007 veio impor, no n.º 2 do mesmo normativo, a obrigatoriedade da inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
Consequentemente, tratando-se de menores vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, não há sequer lugar à necessidade de justificação sumária da necessidade de antecipação da prova.
Neste caso, atendendo às características dos crimes em questão, à posição do declarante e às suas características pessoais, “a lei processual penal presume iuris et de iure a necessidade de antecipação da prova, tornando-a obrigatória” (Vide CRUZ BUCHO, ob. cit., p. 70; Ac. TRP 06.02.2019, p. 966/2014, disponível em www.dgsi.pt ).
3. O caso concreto
3.1. Aparentemente, o requerimento de produção antecipada de prova apresentado pelo Ministério Público preenche todos os requisitos previstos nas normas acima transcritas.
Na verdade, o dissídio verificado entre o Ministério Público e o Senhor Juiz de Instrução resulta, essencialmente, de uma avaliação negativa levada a cabo pelo segundo relativamente à utilidade da diligência probatória em apreço e da consequente prevenção da vitimização secundária da menor a inquirir.
O Senhor Juiz de Instrução analisou o inquérito e entende que a inquirição não se justifica, desde logo, porque a menor já foi ouvida pela Polícia Judiciária e “nada de relevante disse” sobre os factos.
Além disso, o Senhor Juiz de Instrução entende que a perícia psicológica realizada à menor – qualificada como uma inquirição a par da realizada pelo aludido órgão de polícia criminal – não revelou “a experienciação de qualquer ato abusivo” e até sugeriu que a investigação deveria prescindir do relato da menor a respeito do abuso para “prevenir a vitimização secundária”.
3.2. Compreendem-se a reserva e as cautelas levantadas pelo Senhor Juiz de Instrução, mas não se pode acompanhar a sua decisão.
Desde logo, importa não perder de vista que o presente processo se encontra na fase de inquérito.
Não obstante a necessidade de intervenção judicial na diligência contraditória de produção antecipada de prova em apreço, a direcção do inquérito cabe exclusivamente ao Ministério Público (art. 263.º, n.º 1, do CPP).
Por conseguinte, é o Ministério Público que decide as concretas diligências que visam investigar a existência do crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262.º, n.º 1).
Por outro lado, em matéria de declarações para memória futura a realizar na fase de inquérito por referência a crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução deve limitar-se a aferir o preenchimento dos requisitos previstos no art. 271.º, do CPP, e não pode colocar-se na contingência de deferir apenas as inquirições antecipadas que ele próprio entenda que devem ser levadas a cabo, como se estivesse numa fase processual por si dirigida, nomeadamente a apreciar um requerimento de abertura de instrução (Vide Ac. TRL 17.12.2014, p. 1160/2013; Ac. TRE 25.05.2021, p. 1859/2020; disponíveis em www.dgsi.pt). 3.3. Importa tecer mais alguns considerandos sobre os pressupostos em que assenta a decisão recorrida.
Diversamente do entendido pelo tribunal a quo, a perícia psicológica realizada nos autos não equivale a uma inquirição.
São actos probatórios distintos, nomeadamente com objecto, conteúdo e alcance distintos.
Consequentemente, a menor dos autos apenas foi formalmente inquirida uma única vez – e não duas vezes – no inquérito.
Por outro lado, o relatório final da Policia Judiciária não é minimamente vinculativo para o Ministério Público relativamente ao conteúdo do despacho final de encerramento do inquérito, isto é, não determina qualquer preclusão para efeito de continuação da investigação pelo Ministério Público.
Ao invés do sugerido no despacho recorrido, a realização das declarações para memória futura não pode ficar dependente da existência prévia de um auto de inquirição da vítima perante a Polícia Judiciária com prestação de depoimento confirmatório da veracidade das suspeitas.
Finalmente, dir-se-á que a impetrada inquirição antecipada em apreço constitui uma inquirição diversa e qualificada, desde logo porque presidida pelo juiz de instrução e sujeita a uma estrutura contraditória que conta com a participação do próprio Ministério Público, ao invés do que sucedeu na inquirição delegada e realizada na Polícia Judiciária. 3.4. Se o Ministério Público entende que a nova audição da (pretensa) ofendida menor de crime contra a autodeterminação sexual deverá ser feita em inquirição judicial para memória futura, restará ao Juiz de Instrução aferir tão-só da verificação dos requisitos previstos no art. 271.º, do CPP, sem incorrer em quaisquer juízos de oportunidade.
E estando em causa a inquirição de uma ofendida ainda menor no âmbito de processo por crime contra a respectiva autodeterminação sexual, tal inquirição judicial antecipada é obrigatória, sob pena de irregularidade (artigos 271.º, n.º 2, e 118.º, n.ºs 1 e 2 , do CPP).
É manifesto que a decisão recorridanão observou o disposto no art. 271.º, n.ºs 1 e 2, do CPP. 3.5. Aqui chegados, importa reconhecer razão ao recorrente e, consequentemente, impõe-se a revogação da decisão em apreço.
III – DECISÃO
Em função do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar totalmente procedente o presente recurso e, consequentemente, revogam o despacho recorrido que deve ser substituído por outro em que seja ordenada a tomada de declarações para memória futura nos termos requeridos.
Sem tributação.
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Guimarães, 19 de Setembro de 2023
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos signatários
(Paulo Almeida Cunha - Relator )
(Fátima Furtado)
(Paulo Alexandre da Costa Correia Serafim)