LIQUIDAÇÃO DA PENA DE PRISÃO
DESCONTO
DIAS E HORAS
Sumário


I - Face ao disposto no art. 80.º, n.º 1, do Código Penal, na liquidação da pena de prisão não podem ser descontados dias de detenção sofridos pelo arguido em processos cuja condenação tenha ocorrido antes da prática dos factos daquele em que se opera a liquidação.
II - Fazer depender de algo tão aleatório como a circunstância de, na medição convencional do tempo, o arguido ter passado a meia noite detido, para com isso o favorecer - descontando dois dias de detenção em vez de um -, em detrimento de outro que, até detido por mais tempo, o fosse dentro do mesmo dia de calendário, constituiria uma clara violação do princípio da igualdade do art. 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.

Texto Integral


Neste processo n.º 422/20.0GAPTL-B.G1, acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I - RELATÓRIO

No processo comum singular n.º 422/20...., a correr termos no Juízo Local Criminal ..., comarca ..., em que é arguido AA, foi proferido despacho (na parte relevante para este recurso) a reformular a liquidação da pena única de 1 ano e 8 meses de prisão aplicada ao arguido, tendo em conta os descontos de dias de detenção sofridos noutros processos.

Inconformado com essa decisão, da mesma recorreu o MP, terminando a motivação do recurso com as seguintes conclusões (transcrição):

«1.º O presente recurso tem como objeto o douto Despacho proferido nos presentes autos, sob a referência ...24, por via do qual não homologou a Liquidação de Pena efetuada pela promoção de 21.03.2023 com a referência ...46.
2.° Mal andou o Tribunal a quo ao assim decidir, o que fez em violação dos artigos 80°, n.° 1 do Código Penal, 477°, n.°s 2 e 4 e 479°, n.° 1, als. a e c) do Código de Processo Penal.
3.° Nos termos do artigo 80.° do Código Penal, “[a] detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas”.
4° Assim, apenas são descontáveis as privações da liberdade impostas à ordem de outros quando a decisão dos mesmos seja posterior aos factos pelos quais nos presentes autos foi condenado.
5.° Nos presentes autos foi o arguido AA condenado por factos de 24.12.2020 e 16.06.2021, pelo que, nos termos do artigo 80°, n.° 1, do Código Penal, são descontáveis nos presentes autos todos os períodos de privação da liberdade impostos em processos cuja decisão seja posterior àquelas datas.
6.° Em decorrência, concorda-se que o período de detenção sofrido no processo n.° 23/22.... (cuja sentença foi proferida em 22.11.2022) seja aqui descontado, concretamente, 1 (um) dia de detenção, ao qual não se atendeu na promoção de liquidação de pena porquanto havia sido remetida informação em sentido de que tal período havia sido descontado noutro processo (mas que, em rigor, não o foi).
7.° Já não assim quanto aos processos n.°s 103/19.... e 684/20...., com decisões proferidas, respectivamente em 29.11.2019 e 03.11.2020.
8.º Donde, não podem os períodos de detenção ali sofridos, sendo 1 (um) em cada um dos processos, no total de 2 (dois) dias, ser aqui tidos em consideração.
9º Ademais, o período de detenção anterior sofrido pelo condenado, deve ser contado em horas e não em dias, para efeitos de desconto no cumprimento da pena que posteriormente lhe foi aplicada.
10° Tanto assim que a propósito da detenção o legislador expressou-se sempre em horas e não em dias, como sucede com os artigos 141.°, n.º 1, 254.º, n.° 1, 382.º, n.º 3, e 385.º, nº 2, todos do Código de Processo Penal.
11º E, nos mesmos termos, também o artigo 479.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal refere que a prisão fixada em dias “é contada considerando-se cada dia um período de 24 horas”, sem prejuízo do momento em que se dá a libertação (artigo 24.º da Lei nº 115/2009, de 12 de outubro).
12º A contagem da detenção que não por períodos de 24 (vinte e quatro) horas, mas atendendo apenas ao critério dos dias de calendário em relação à data de início e de fim, atribuindo referência à meia-noite/zero horas, gera desigualdades materiais e manifestas injustiças (assim, vide, por todos o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 16.02.2022 relatado pela Exm.ª Juiz Desembargadora Margarida Ramos de Almeida, no processo n.º 478/19.9PBSXL-A.L1-3).
13.°Tal como sucede, nessa interpretação, no caso em que um arguido detido entre as 23h59m de um dia e as 00h01m do dia imediato, comportaria 2 (dois) dias de detenção, para efeitos de desconto, porquanto ocorrido o início e o tempo em dias (de calendário) distintos, por apenas 2 (dois) minutos de detenção, para efeitos de desconto e um outro arguido [ou o mesmo noutro processo] seja detido às 00h01m e libertado às 23h59m num total de 23h58m veria, em apenas 1 (um) dia de detenção para efeitos de desconto.
14.º Em face do exposto, o Despacho recorrido não explana, de Direito, de forma convincente qualquer motivo atendível para que a contagem do período de detenção, para efeitos de desconto, seja aquele a que chegou.
15.º Tanto assim que o artigo 479°, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal estabeleceu, taxativamente, que a prisão fixada em dias é contada considerando-se cada dia um período de vinte e quatro horas.»
Pugna o recorrente pela revogação do despacho recorrido «e, em sua substituição ser proferido Despacho a reformular a liquidação da Pena de prisão, desconsiderando os períodos de detenção sofridos nos processos nºs 103/19.... e 684/20.... e considerando apenas 1 (um) dia pela detenção sofrida no processo nº 43/21.... descontando-se apenas:
- 1 (um) dia de detenção à ordem do processo nº 298/22....;
- 1 (um) dia de detenção à ordem do processo nº 358/21....;
- 1 (um) dia de detenção à ordem do processo nº 23/22....;
- 1 (um) dia de detenção à ordem do processo nº 43/21....;
17.° Num total de 4 (quatro) dias de desconto em detrimento dos descontados 7(sete) dias.
18.º E, assim, fixando-se, tal liquidação nos termos seguintes:
- Início do cumprimento da pena: 16.01.2023;
- Metade do cumprimento da pena: 12.11.2023;
- Dois terços do cumprimento da pena: 22.02.2024;
- Termo do cumprimento da pena: 12.09.2024;
- Data em que o condenado atingirá o limite mínimo de execução da pena suscetível de ser apreciada a licença de saída jurisdicional – nos termos do artigo 79.º, nº 2 al a) da Lei nº 115/2009 de 12.10, (Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade) – e/ou a liberdade condicional – nos termos do artigo 61º, nºs 2 e 3, do Código Penal - sem prejuízo de todos os demais pressupostos, decorridos, no mínimo, 6 (seis) meses do início do seu cumprimento: 12.07.2023.
19.° Com o que se fará, como sempre, a tão acostumada JUSTIÇA.»
O recurso foi admitido.
Não houve resposta.
Nesta Relação, a Exm.ª Procuradora-Geral Adjunta acompanha a motivação do recurso, entendendo que não podem ser descontados os períodos de detenção sofridos pelo arguido nos processos nºs. 103/19.... e 684/20...., por aplicação do art. 80.º do Código Penal, e que, no que respeita ao período de detenção sofrido pelo arguido no processo n.º 43/21...., a contabilização deve ser feita conforme é defendido pelo recorrente.
Cumprido o contraditório e colhidos os vistos, realizou-se a conferência.

II – FUNDAMENTAÇÃO

A. Delimitação do objecto do recurso

Nos termos do art. 412.º do Código de Processo Penal, e face às conclusões do recurso, são duas as questões a resolver:

a) Se, na liquidação da pena do arguido, devem ser descontados os períodos de detenção que sofreu nos processos nºs. 103/19.... e 684/20....;
b) Se, nessa liquidação, o período de detenção sofrido pelo arguido no processo n.º 43/21.... deve ser contabilizado em dias ou em horas.

B. Apreciação do recurso

É o seguinte o teor do despacho recorrido (na parte relevante para o recurso):
AA foi condenado, por sentença de 03/12/2021, transitada em julgado a 19/12/2022, na pena única, em cúmulo jurídico, de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.
Foi efectuada liquidação, conforme promoção de 18 de Janeiro de 2023, homologada por despacho de 19 de Janeiro de 2023.
Atentas as informações entretanto recebidas quanto aos períodos de detenção sofridos pelo arguido à ordem de outros processos, impõe-se reformular a liquidação.
Conforme a promoção de liquidação de 21 de Março de 2023, o Ministério Público propôs o desconto de um total de três dias de detenção.
Entende-se, porém, que, para além dos dias ali considerados, deverão ser descontados ainda:
- um dia de detenção sofrida no âmbito do processo n.º 23/22....;
Conforme se deixou consignado no despacho de 27 de Março de 2023, a informação prestada a 14 de Março de 2023 enferma de lapso, porquanto o dia de detenção descontado no processo n.º 43/19.... foi o sofrido naqueles mesmos autos e não o dia de detenção sofrido à ordem do processo n.º 23/22..... Tendo a sentença do processo n.º 23/22.... sido proferida em data (22/11/2022) posterior à data dos factos (24/12/2020 e 16/06/2021) pelos quais foi o arguido condenado nos presentes autos releva para efeitos de desconto.
- um dia de detenção sofrida no âmbito do processo n.º 103/19....;
- um dia de detenção sofrida no âmbito do processo n.º 684/20....;
Conforme se deixou consignado no despacho de 27 de Março de 2023, seguindo o entendimento plasmado na promoção de 20 de Fevereiro de 2023 a respeito da interpretação a conferir ao artigo 80.º do Código Penal, e de molde a não prejudicar o arguido quanto aos períodos a considerar, uma vez que não foram descontados no processo n.º 43/19...., deverão ser descontados agora nos presentes autos também os dias de detenção que o arguido sofreu à ordem dos processos n.º 103/19.... e 684/20.... (sob pena de não mais poderem ser descontados).
- um segundo dia pela detenção sofrida no âmbito do processo n.º 43/21.... (descontando-se dois dias em vez de apenas um).
Com efeito, resulta do auto de notícia por detenção do processo n.º 43/21...., que o arguido foi detido pelas 23h45m do dia 29/05/2021 e libertado às 00h45m do dia 30/05/2021.
Pese embora se reconheça a pertinência da argumentação expendida no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08/09/2021, a que se faz referência na promoção de 21 de Março de 2023, designadamente quanto à eventual injustiça relativa entre arguidos que estejam detidos por período de tempo igual, mas inferior a 24 horas, compreendendo dois dias distintos de calendário ou apenas um, entende-se como mais consentânea com o direito constitucional à liberdade decorrente do artigo 27.º da C.R.P. a interpretação segundo a qual, sendo a unidade de tempo mais pequena prevista para a contagem da prisão o dia, correspondente a um período de 24 horas (das 00 horas às 24 horas), tendo a detenção perdurado por dois dias diversos haverá que proceder ao desconto de dois dias, e não de apenas um.
Com efeito, o artigo 80. ° do Código Penal não especifica a duração da detenção a considerar, e, o artigo 479.° do Código do Processo Penal respeita ao tempo de prisão e não ao tempo da detenção. A interpretação mais favorável ao arguido é a de que, caso a detenção ultrapasse o dia de calendário, ainda que não indo além do período de 24 horas, deverão ser descontados dois dias de detenção (entendimento seguido nos Acórdãos do Tribunal da Relação do Porto datados de 18/10/2006 e 02/12/2009, do Tribunal da Relação de Coimbra de 19/12/2018 e do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/09/2018, todos disponíveis in www.dgsi.pt).

*
Pelo exposto, determino que sejam descontados os seguintes períodos, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 80.º do Código Penal:
- Processo n.º 298/22.... dia de detenção;
- Processo n.º 358/21.... dia de detenção;
- Processo n.º 23/22.... dia de detenção;
- Processo n.º 43/21.... dias de detenção;
- Processo n.º 103/19.... dia de detenção;
- Processo n.º 684/20.... dia de detenção.
Posto que o arguido se encontra preso à ordem dos presentes autos desde 16 de Janeiro de 2023, havendo 7 dias a descontar para efeitos do artigo 80.º, n.º 1 do Código Penal, nos termos e para os efeitos dos artigos 477.º e 479.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, reformula-se a liquidação previamente efectuada, nos seguintes termos:
- Início do cumprimento da pena: 16/01/2023;
- Metade do cumprimento da pena: 09/11/2023;
- Dois terços do cumprimento da pena: 19/02/2024;
- Termo do cumprimento da pena: 09/09/2024.

1. Relativamente ao desconto, em pena de prisão, de períodos de detenção sofridos pelo arguido noutros processos, rege o art. 80.º, n.º 1, do Código Penal: “A detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão, ainda que tenham sido aplicadas em processo diferente daquele em que vier a ser condenado, quando o facto por que for condenado tenha sido praticado anteriormente à decisão final do processo no âmbito do qual as medidas foram aplicadas.
O espírito da lei é, naturalmente, que o arguido não resulte prejudicado, acabando por ficar privado de liberdade durante mais tempo do que aquele em que veio a ser condenado.
Porém, há um requisito objectivo para que tal aconteça: a data da prática do facto do processo em que se procede ao desconto (no caso, o dos autos principais onde foi feita a liquidação da pena) tem de ser anterior à data da decisão final do (ou dos) processos em que o arguido sofreu os períodos de detenção.
Vejamos se é isso que sucede no caso concreto[1]:
- os factos que determinaram a condenação do arguido na pena de 1 ano e 8 meses de prisão, nos autos principais, datam de 24 de Dezembro de 2020 e de 16 de Junho de 2021 (conforme sentença de 3 de Dezembro de 2021);
- a decisão final do processo n.º 103/19.... é de 29 de Novembro de 2019;
- a decisão final do processo n.º 684/20.... é de 3 de Novembro de 2020.
Aliás, as condenações do arguido nestes dois últimos processos constam já da sentença dos autos principais como integrando o “passado criminal do arguido”.
Ou seja, verifica-se exactamente a situação contrária à prevista na parte final do art. 80.º, n.º 1: os factos do processo em que o Tribunal recorrido procedeu aos descontos foram praticados posteriormente às decisões finais dos dois processos (n.º 103/19.... e n.º 684/20....).
Assim, é a própria redacção daquele artigo a impedir que se proceda ao desconto dos períodos de detenção sofridos nestes dois processos; e compreende-se que essa seja a solução legal, porquanto, de outra forma, estar-se-ia a premiar um arguido que, apesar das suas condenações anteriores, voltou a delinquir e, apesar disso, ainda beneficiaria de descontos na pena. É, portanto, irrelevante, como se invoca no despacho recorrido, que o arguido não mais possa beneficiar desses dois dias de desconto, só porque deveriam ter sido atendidos noutro processo e não o foram. Certo é que, nos autos principais, não estão preenchidos os requisitos legais para proceder ao desconto.
Deve, por isso, proceder o recurso interposto pelo Ministério Público nesta parte (7.º e 8.º pontos das conclusões, já que o 6.º vai no mesmo sentido do despacho recorrido), não devendo ser contabilizados como descontos na pena os períodos de detenção sofridos pelo arguido nos processos nºs. 103/19.... e 684/20.....

2. Resta apreciar se, na mesma liquidação, o período de detenção sofrido pelo arguido no processo n.º 43/21.... – cujo desconto não foi posto em causa pelo recorrente – deve ser contabilizado em dias ou em horas.
A primeira informação que chegou ao processo principal, a 20 de Março de 2020, dava conta de que o arguido tinha sofrido dois dias de detenção, em 29 e 30 de Maio de 2021 (ref.ª ...47 dos autos principais).
Porém, na parte inicial da promoção do Ministério Público em que se procedeu à liquidação da pena (ref.ª ...46 dos mesmos autos), consta: “da compulsa informática daquele processo n.º 43/21...., resulta do auto de notícia por detenção do mesmo que o arguido fora detido pelas 23h45m do dia 29.05.2021 tendo sido libertado às 00h45m do dia 30.05.2021 (…)”. O mesmo consta do despacho recorrido.
Ou seja, não estão em causa nem o dia nem a hora a que o arguido foi detido e libertado, mas apenas se o período que decorreu entre os dois momentos deve ser contabilizado, para efeitos de desconto na pena, como um dia – entendimento do recorrente – ou como dois dias de detenção – raciocínio seguido no despacho da Mm.ª Juiz a quo.
Lendo o art. 80.º, n.º 2, do Código Penal (porque o n.º 1 não refere expressamente qualquer unidade de tempo), constata-se que a referência é feita a dias, não a horas: “Se for aplicada pena de multa, a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação são descontadas à razão de 1 dia de privação da liberdade por, pelo menos, 1 dia de multa.
Já o art. 479.º do Código de Processo Penal (relativo à contagem do tempo de prisão), estabelece no seu n.º 1, c): “A prisão fixada em dias é contada considerando-se cada dia um período de vinte e quatro horas” (o resto do número resulta prejudicado pela revogação do art. 481.º do mesmo Código).
Não há dúvida de que o arguido esteve sob detenção, naquele processo n.º 43/21...., durante uma hora, o que, a ocorrer em qualquer outro momento das 24 horas sem implicar mudança de calendário, daria inequivocamente lugar ao desconto de um dia na liquidação da pena de prisão, nos termos do citado art. 80.º, n.º 1.
Portanto, a questão é: altera de alguma forma a situação do arguido – dando lugar a dois dias de detenção em vez de um – a circunstância de ele ter ficado privado de liberdade num dia e ter cessado tal situação no dia seguinte, ainda que só tenha decorrido uma hora entre os dois momentos?
Quer nas alegações de recurso quer no despacho recorrido vem citada jurisprudência dos Tribunais da Relação em abono de cada entendimento.
Quedando-nos pelo Tribunal da Relação de Lisboa (onde uma pesquisa na base de dados da DGSI[2] demonstra ter sido aquele onde mais vezes esta questão foi apreciada), no acórdão de 11 de Setembro de 2018[3], citado no despacho recorrido, estava em causa a situação de uma arguida que foi detida às 22.08h de um dia, assim permanecendo até às 20.48h do dia seguinte. Aí se defende: “Como a unidade de tempo mais pequena prevista para a contagem da prisão é o dia, correspondente a um período de 24 horas (das 00 horas às 24 horas), tendo a supra mencionada arguida sido detida e libertada em dias diversos (dois), há que proceder ao desconto de dois dias, pois só assim, também a nosso ver, se interpretará devidamente a sobredita norma [o art. 479.º do Código de Processo Penal] e o direito constitucional à liberdade decorrente do Art.º 27º da C.R.P..
Já o acórdão da mesma Relação invocado pelo Ministério Público nas alegações de recurso[4] vai no sentido oposto, embora também parta da relevância do dia como unidade de tempo. Primeiro, esclarece: “Se a detenção se tiver prolongado por algumas horas, não chegando a atingir a marca das 24 horas, então terá de se considerar que essas horas suplementares se terão de integrar na mais pequena unidade temporal legalmente contemplada; isto é, que terão de se considerar como um dia de desconto”; mas depois acrescenta que “nada na lei aponta ou determina que as 00.00 horas de um dia tenham qualquer relevo ou efeito para o fim de apuramento dos dias de detenção. O que importa são o número de horas, a sua soma aritmética (que até pode resultar de períodos de detenção de algumas horas, em vários dias alternados…) e não a questão de saber se as mesmas decorreram na passagem horária da meia-noite”.
Aí se cita uma eloquente passagem de um acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de Março de 2018[5]: “Caso o arguido tenha sido detido por um período inferior a 24 horas em dois dias diversos, seguidos ou não, para efeitos de desconto na pena em que foi condenado, tal período de detenção corresponde a um dia”.
No sentido do entendimento defendido pelo recorrente, vai ainda, entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 21 de Setembro de 2011[6], caso em que o período de detenção em causa era ainda mais curto (9 minutos), tendo começado às 23h54m de um dia e terminado às 00h03m do dia seguinte. Aí se compara – o mesmo se podendo fazer com o caso destes autos – a injustiça relativa que constituiria descontar a esse arguido o período de dois dias de detenção, enquanto não se teria dúvidas em descontar apenas um se o mesmo arguido tivesse estado sob detenção nas restantes horas do dia (ou seja, entre as 00h03m e as 23h54m do mesmo dia). Perante os imperativos de justiça material que estão subjacentes ao art. 80.º do Código Penal, “parece afrontar esta mesma ideia o facto de alguém beneficiar de dois dias de desconto na prisão a cumprir quando o período de tempo de detenção que sofreu não foi além de nove minutos. E seguramente afronta a ideia de justiça relativa perante o exemplo, baseado no inverso quanto à hora de detenção e de libertação [apontado no mesmo acórdão]”.
Ou seja, e salvo o devido respeito por opinião contrária, aplicar no caso dos autos o desconto de dois dias de detenção constituiria uma clara violação do princípio da igualdade do art. 13.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. Fazer depender de algo tão aleatório como a circunstância de, na medição convencional do tempo, o arguido ter passado a meia noite detido, para com isso o favorecer em detrimento de outro que, detido por mais tempo, o fosse dentro do mesmo dia de calendário, criaria uma situação insustentável até do ponto de vista constitucional, além dos valores de justiça relativa acima mencionados no acórdão citado.
Entende-se, por isso, assistir razão ao recorrente, também quanto aos pontos 9.º a 16.º das conclusões, o que também nesta parte deve conduzir à revogação do despacho recorrido.

III - DISPOSITIVO

Face ao exposto, acordam os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o despacho recorrido, na parte em que incluiu nos descontos da pena os dias de detenção sofridos pelo arguido AA nos processos nºs. 103/19.... e 684/20...., e na parte em que considerou dois dias de desconto na pena pela detenção do mesmo arguido no processo n.º 43/21...., em vez de um dia, determinando-se a reformulação da liquidação da pena em conformidade com o ora decidido.
Sem custas.
Guimarães, 19 de Setembro de 2023
(Processado em computador e revisto pela relatora)

Cristina Xavier da Fonseca
Anabela Varizo Martins
Paulo Almeida Cunha


[1] Estes, como os demais elementos do processo principal, constam da ref.ª 4114112 deste apenso de recurso.
[2] www.dgsi.pt.
[3] Processo n.º 114/15.2PATVD-A.L.1.5
[4] Conclusão 12.ª.
[5] No processo n.º 53/16.0GDTVD.L.1-9.
[6] No processo n.º 317/08.6PDBRR-A.L1-3.