ELEMENTO VOLITIVO DO DOLO
OMISSÃO
ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA
REJEIÇÃO
ARQUIVAMENTO DOS AUTOS
REMESSA DOS AUTOS AO MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário

Contendo a acusação a descrição dos factos integradores do elementos objetivos do tipo legal de crime, dos que concernem ao elemento cognitivo do dolo do tipo (no segmento: o arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes da supra referida substância) e do dolo da culpa (onde se inclui a consciência da ilicitude, enquanto conhecimento de que a detenção ou cedência a qualquer título do produto estupefaciente eram proibidas e punidas por lei penal), mas dela não constando facto algum referente ao elemento volitivo do dolo do tipo, quer dizer, quanto à vontade livre de realização das condutas objetivas. Isto é, que o arguido tivesse agido voluntariamente e livre no seu processo de decisão., impõe-se a conclusão de que a factualidade descrita na acusação pública formulada nos autos não preenche a totalidade dos elementos do tipo penal do crime de tráfico de menor gravidade, pelo que se mostra correta a sua rejeição nos termos explanados na decisão revidenda.
Determinado o arquivamento dos autos, cumpre dizer, não ficará a ação penal por se exercer, pois parece inexistir obstáculo a que o Ministério Público instaure novo processo e assim avance com a perseguição penal contra o arguido pelos mesmos factos, mas requerendo ao respetivo processo na 1ª instância a extração de certidão (o que se mostra defeso determinar em sede deste recurso, por não ser questão suscitada perante aquele tribunal e, nessa medida, ser nova) e deduza acusação onde se narrem, então, como se impõe, todos os factos integradores dos elementos objetivos e subjetivos (mormente os nos presentes autos omissos) do tipo legal de crime imputado, como se decidiu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 246/2017..

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

No Tribunal Judicial da Comarca de …– Juízo Local Criminal de … – Juiz …, Proc. nº 42/21.2GBFAR, foi proferido despacho, aos 06/02/2023, que rejeitou por manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nºs 1, 2, alínea a) e 3, alínea d), do CPP, a acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA em que lhe é imputada a prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C anexa ao referido diploma.

2. Inconformado com o teor do referido despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, para o que formulou as seguintes conclusões (transcrição):

I- Apesar de, por lapso, não constar da acusação a fórmula tabelar normalmente utilizada para descrever os elementos subjectivos do crime, mais concretamente o elemento volitivo do dolo, entendemos que, da forma como a acusação se encontra redigida, esse elemento, de cariz conclusivo, se extrai da restante descrição factual, sendo manifestamente excessivo dizer-se que os factos que dela constam não constituem crime.

II- Em nosso entendimento, da descrição factual da acusação extrai-se claramente o elemento volitivo do dolo.

III- Parece-nos manifestamente impossível e incompatível com a aludida descrição a inexistência de tal elemento, resultando a sua afirmação da aplicação das regras de experiência comum (como aliás deve suceder).

IV- Resulta das referidas regras da experiência comum que não é possível deter estupefacientes destinado à venda a terceiros, sem o querer!

V- As expressões, que constam da acusação têm ínsita uma manifestação de vontade do arguido, suficiente, quanto a nós, para se poder considerar verificado o elemento volitivo do dolo.

VI- A forma de actuação imputada ao arguido na acusação só poderia ter ocorrido livre e deliberadamente, pelo que, em nosso entendimento, não deveria a acusação ter sido rejeitada.

VII- Julgamos ser evidente para qualquer homem medianamente informado que os factos descritos na acusação rejeitada constituem a prática de um crime.

VIII- Parece-nos intolerável à luz do primado da justiça material (versus justiça formal), considerar que a referida factualidade não constituiu qualquer crime.

IX- De que servem extensas notas de rodapé demonstrativas de elevados conhecimentos jurídicos, quando a justiça material é postergada e substituída pelo triunfo das fórmulas?

X- Não nos podemos esquecer que a justiça é administrada em nome do povo, e o povo, que nada sabe de tratados jurídicos ou arestos famosos, sabe muito bem que vender droga é crime e jamais irá compreender que um processo seja arquivado apenas porque num “papel” qualquer de um processo faltaram duas palavras interpretativas da vontade do agente.

XI- Aceitarmos isto pacificamente é elevar a justiça formal a um patamar insuportável para a comunidade em nome da qual actuamos.

XII- A acusação deduzida, embora imperfeita, preenche os citados requisitos, deixando simultaneamente imaculados todas as garantias de defesa do arguido, na medida em que o crime que a narração dos factos pretende imputar ao arguido se evencia de forma de forma límpida e cristalina.

XIII- Quanto a nós, a provar-se a totalidade da factualidade descrita na acusação o arguido terá de ser condenado pela prática do crime de que foi acusado, ninguém entenderia solução diversa!

XIV- Porém, mesmo que assim não se entendesse e se considerasse que a fórmula em falta é essencial para o recebimento da acusação, o que, como acima dissemos, nos aparece manifestamente excessivo e contrário à previsão do artigo 311.º, do C. P. Penal, estamos em crer que a solução encontrada (de arquivar o processo) viola igualmente o princípio da prevalência da justiça material.

XV- Deixar de punir a conduta imputada ao arguido, conforme se encontra descrita na acusação, determinando o arquivamento de processo apenas pela falta de uma fórmula interpretativa de uma vontade e de cariz conclusivo é igualmente intolerável à luz do sentido de justiça que, no âmbito do direito penal e processual penal, sempre se deve sobrepor a qualquer fórmula.

XVI- Admitir pacificamente tal desfecho perante a realidade constante da acusação deduzida nos autos, violaria frontalmente, quanto a nós, a finalidade primeira do processo penal, ou seja, a descoberta da verdade e a realização da justiça material.

XVII-Assim, mesmo considerando a dita fórmula essencial, sempre teria de ser assegurada a possibilidade de suprir tal falta através da dedução de nova acusação, determinado para o efeito a remessa do processo ao MP ou certidão de todo o processado, juntamente com os objetos apreendidos.

XVIII-Pelo exposto, ao rejeitar a acusação formulada nos presentes autos, violou o Tribunal “a quo” o disposto no art. 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), do Código de Processo Penal e 25.º, n.º 1, al. a), da lei 15/93, de 22 de Janeiro.

XIX-Mesmo que assim não se entenda, ao determinar ao arquivamento do processo, violou o Tribunal “a quo” o disposto no artigo 25.º, n.º 1, al. a), da lei 15/93, de 22 de Janeiro

Termos em que, deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido, substituindo-o por outro que receba a acusação deduzida nos presentes autos.

Mesmo que assim não se entenda, deverá ser proferido despacho que determine a remessa dos autos ou de certidão integral do processo ao MP, juntamente com os objectos apreendidos, a fim de suprir os elementos em falta;

3. O recurso foi admitido por despacho de 12/05/2023, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. Foi apresentada resposta à motivação de recurso pelo arguido, em que pugna pela manutenção da decisão revidenda.

5. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417º, nº 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.

7. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Se deveria a acusação pública deduzida nos autos ser rejeitada por manifestamente infundada.

Em caso afirmativo e subsidiariamente, se deveria ser determinada a remessa dos autos ao Ministério Público ou de certidão integral do processo a fim de suprir os elementos em falta.

2. Elementos relevantes para a apreciação deste recurso

2.1 Aos 31/10/2022, o Ministério Público proferiu libelo acusatório contra o arguido AA, imputando-lhe factos, em seu entender, integradores da prática, em autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C anexa ao mesmo.

2.2 Em 06/02/2023, foi proferida a seguinte decisão objecto do recurso (transcrição):

O Tribunal é competente.

Registe e autue como processo comum singular.

Determina o artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do Código de Processo Penal (doravante CPP) que, quando não tenha havido fase de instrução (como é o caso destes autos), o juiz deve rejeitar a acusação «se a considerar manifestamente infundada».

Dispõe o n.º 3 do artigo 311.º do CPP que: «(…) a acusação considera-se manifestamente infundada:

a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou

d) Se os factos não constituírem crime.».

In casu, afigura-se-nos que é esta última situação a que se verifica.

Com efeito, atentando devidamente na factualidade descrita na acusação, a mesma é omissa quanto ao elemento subjetivo do tipo de crime pelo qual vem o arguido acusado (crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 25.º, alínea a), do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-C anexa ao referido diploma), ainda que impute ao mesmo a consciência da ilicitude dos factos que lhe vêm imputados, pois é descrito na peça acusatória que «o arguido conhecia natureza e as características estupefacientes da supra referida substância, bem sabendo que a sua detenção ou cedência a qualquer título eram proibidas e punidas por lei penal». É certo que tal alegação factual (ou outra de idêntico teor) é essencial para que se verifique o preenchimento do elemento subjetivo do tipo e, consequentemente, a responsabilização do arguido (1). Ainda assim, igualmente certo é que caberia descrever factualmente o elemento subjetivo do tipo, imputando-se desse modo ao arguido a prática dos factos descritos mediante a forma de dolo ou de negligência, no sentido de que este, com a sua conduta, quisesse, por exemplo, ceder ou deter o produto estupefaciente. Sucede, porém, que a acusação é absolutamente omissa a este respeito.

Carecendo a acusação de tais alegações factuais, é a mesma manifestamente infundada, pois que nunca levaria à condenação do arguido, isto é, mesmo admitindo que a descrição factual que consta da acusação permitiria preencher o elemento objetivo do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, ainda assim, a acusação estava fadada ao insucesso, pois soçobrava por falta de descrição de factos que permitissem preencher o elemento subjetivo do tipo na sua plenitude, sendo ainda de sublinhar que tal omissão fáctica não é passível de suprimento em sede de julgamento (2)

Pelo exposto e ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a) e n.º 3, alínea d), do CPP, rejeita-se a acusação deduzida pelo MINISTÉRIO PÚBLICO contra o arguido AA por manifestamente infundada e, consequentemente, determina-se que, após trânsito do presente despacho, se proceda ao oportuno arquivamento dos autos.

Declara-se extintas todas as medidas de coação aplicadas ao arguido nestes autos (artigos 214.º, n.º 1, al. c) e 311.º, n.º 2, al. a), ambos do CPP).

Oportunamente nos pronunciaremos sobre o estupefaciente apreendido.

Sem custas por delas estar isento o MINISTÉRIO PÚBLICO.

Notifique.

-------------------------

1 A esse respeito, vide o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.06.2017, onde se pode ler, além do mais, que «A alegação de que a arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal não é inócua e desnecessária, não passando de um protocolo ou fórmula pré-determinada acolhida pela prática judiciária, sem qualquer valor funcional. Ao contrário, a alegação da consciência da ilicitude, seja com a utilização daquela fórmula ou através de descrição mais objetiva desse facto da vida interior, corresponde necessidade de descrever um dos elementos do tipo subjetivo, traduzido no dolo da culpa, o qual (…) constitui uma categoria autónoma, relativamente ao dolo do tipo». Sobre este tema e no mesmo sentido, vide os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 30.12.2015 e 11.09.2018, do Tribunal da Relação de Guimarães de 06.11.2017 e 06.02.2017 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 09.05.2012, 13.09.2017 e 07.03.2018, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

2 Desde logo conforme o decidido pelo Pleno das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, no acórdão n.º 1/2015, de 20.11.2014, publicado no DR-1ª Série, n.º 18, de 27.01.2015, que fixou a seguinte jurisprudência: «A falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no artigo 358.º do CPP».

Apreciemos.

Sustenta o recorrente Ministério Público que os factos narrados na acusação deduzida integram os elementos subjectivos, concretamente os integradores do elemento volitivo do dolo (bem como os objectivos) do tipo criminal de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25º, alínea a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22/01, imputado ao arguido, ao contrário do que se afirma no despacho recorrido.

Estabelece-se no artigo 311º, nº 2, do CPP, que “se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:

a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;

b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284º e do n.º 4 do artigo 285º, respectivamente”.

E, a acusação considera-se manifestamente infundada, nos termos do nº 3, do mesmo artigo:

“a) Quando não contenha a identificação do arguido;

b) Quando não contenha a narração dos factos;

c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam;

d) Se os factos não constituírem crime”.

O tribunal a quo rejeitou a acusação pública, considerando-a manifestamente infundada, nos termos do artigo 311º, nºs 2, alínea a) e nº 3, alínea d), do CPP, porquanto caberia descrever factualmente o elemento subjetivo do tipo, imputando-se desse modo ao arguido a prática dos factos descritos mediante a forma de dolo ou de negligência, no sentido de que este, com a sua conduta, quisesse, por exemplo, ceder ou deter o produto estupefaciente. Sucede, porém, que a acusação é absolutamente omissa a este respeito.

Pois bem.

Estabelece-se no referido artigo 25º: “Se, nos casos dos artigos 21º e 22º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI (…);”

Já no artigo 21º - tipo base - se consagra (entre o mais que para o caso não releva):

“1 - Quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III é punido (…)”.

O tipo de crime de tráfico de estupefacientes apenas admite a forma dolosa da sua prática (de acordo como o disposto no artigo 13º, do Código Penal, “só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência”), sendo admissíveis as suas diversas modalidades, como definidas no artigo 14º, do mesmo Código.

Tem-se sedimentado na doutrina penalista o entendimento do dolo do tipo de ilícito como composto pelo conhecimento (momento intelectual ou cognitivo) e vontade (momento volitivo) de realização do facto, o que plasmado está no referenciado artigo 14º, de onde, para que o dolo do tipo esteja presente necessário se torna, desde logo, que o agente conheça, saiba, represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo objectivo de ilícito (isto é, o conhecimento dos elementos materiais constitutivos do mesmo).

Com efeito, é necessário que ao actuar, o agente conheça “tudo quanto é necessário a uma correcta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que concretamente se liga à acção intentada, para o seu carácter de ilícito”, porquanto só quando os elementos do facto estão presentes na consciência psicológica do agente se poderá vir a afirmar que ele se decidiu pela prática do ilícito – assim, Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, pág. 351 - exigindo-se ainda que a prática do facto seja presidida por uma vontade dirigida à sua realização.

Daí que, como se refere no Ac. da Relação de Coimbra de 13/09/2017, Proc. nº 146/16.3 PCCBR.C1, disponível em www.dgsi.pt, “a acusação tem de descrever os elementos em que se analisa o dolo, ou seja: o conhecimento (ou representação ou, ainda, consciência em sentido psicológico) de todas as circunstâncias do facto, de todos os elementos descritivos e normativos do tipo objectivo do ilícito; a intenção de realizar o facto, se se tratar de dolo directo, ou a previsão do resultado danoso ou da criação de perigo (nos crimes desta natureza) como consequência necessária da sua conduta (tratando-se de dolo necessário), ou ainda a previsão desse resultado ou da criação desse perigo como consequência possível da mesma conduta, conformando-se o agente com a realização do evento (se se tratar de dolo eventual)”.

E, no Ac. do STJ nº 1/2015, de 20/11/2014, DR nº 18, I Série, de 27/01/2015, fixou-se a seguinte jurisprudência: “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão de todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP”.

No mesmo se podendo ler, que “a acusação, enquanto delimitadora do objecto do processo, tem de conter os aspectos que configuram os elementos subjectivos do crime, nomeadamente os que caracterizam o dolo, quer o dolo do tipo, quer o dolo do tipo de culpa no sentido acima referido, englobando a consciência ética ou consciência dos valores e a atitude do agente de indiferença pelos valores tutelados pela lei criminal, ou seja: a determinação livre do agente pela prática do facto, podendo ele agir de modo diverso; o conhecimento ou representação, de todas as circunstâncias do facto, tanto as de carácter descritivo, como as de cariz normativo e a vontade ou intenção de realizar a conduta típica, apesar de conhecer todas aquelas circunstâncias, ou, na falta de intenção, a representação do evento como consequência necessária (dolo necessário) ou a representação desse evento como possível, conformando-se o agente com a sua produção (dolo eventual), actuando, assim, conscientemente contra o direito.”

Acrescentando-se ainda: “conexionada com o problema anterior, coloca-se finalmente a questão de saber se a falta, na acusação, de todos ou alguns dos elementos caracterizadores do tipo subjectivo do ilícito, mais propriamente, do dolo (englobando o dolo da culpa, no sentido atrás referido), pode ser integrada no julgamento por recurso ao mecanismo previsto no art. 358.º do CPP.

Tal equivalerá a considerar essa integração como consubstanciando uma alteração não substancial dos factos.

11.1. Já vimos que esses elementos têm de constar obrigatoriamente da acusação, implicando a sua falta a nulidade do libelo (art. 283.º, n.º 3, alínea b) do CPP)” (…) a exigida narração dos factos é a de todos os factos constitutivos do tipo legal de crime, sejam eles pertencentes ao tipo objetivo do ilícito, sejam ao tipo subjetivo e ainda, naturalmente, na sequência do que temos vindo a expor, os elementos referentes ao tipo de culpa. A factualidade relevante, como factualidade típica, portadora de um sentido de ilicitude específico, só tem essa dimensão quando abarque a totalidade dos seus elementos constitutivos. Não existem puros factos não valorados, como vimos, a propósito, nomeadamente, das teorias do objeto do processo, e a valoração especifica que aqui se reclama, consonante com um tipo de ilícito, só se alcança com a imputação do facto ao agente, fazendo apelo à representação do facto típico, na totalidade das suas circunstâncias, à sua liberdade de decisão, como pressuposto de toda a culpa, e, envolvendo a consciência ética ou dos valores, à posição que tomou, do ponto de vista da sua determinação pelo facto. Sem isso, não está definida a conduta típica, ilícita e culposa” – fim de citação.

Ora, essencialmente, narra-se na acusação pública:

Que os panfletos de haxixe que o arguido tinha na sua posse aos 01/10/2021 os destinava à venda a terceiros.

Tinha consigo a quantia de 267,72 euros em notas e moedas do BCE, proveniente de anteriores transações.

Durante os meses de Novembro e Dezembro de 2021, o arguido vendeu, por duas vezes, à testemunha BB aprox. 0,20 grs. de cannabis pelo preço unitário de € 10.

O arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes da supra referida substância, bem sabendo que a sua detenção ou cedência a qualquer título eram proibidas e punidas por lei penal.

Do exposto, resulta que a acusação contém a descrição dos factos integradores do elementos objectivos do tipo legal de crime, dos que concernem ao elemento cognitivo do dolo do tipo (no segmento: o arguido conhecia a natureza e as características estupefacientes da supra referida substância) e do dolo da culpa (onde se inclui a consciência da ilicitude, enquanto conhecimento de que a detenção ou cedência a qualquer título do produto estupefaciente eram proibidas e punidas por lei penal), mas dela não consta facto algum referente ao elemento volitivo do dolo do tipo, quer dizer, quanto à vontade livre de realização das condutas objetivas. Isto é, que o arguido tivesse agido voluntariamente e livre no seu processo de decisão.

De onde, se impõe a conclusão de que a factualidade descrita na acusação pública formulada nos autos não preenche a totalidade dos elementos do tipo penal do crime de tráfico de menor gravidade, pelo que se mostra correcta a sua rejeição nos termos explanados na decisão revidenda.

Cumpre, pois, negar provimento ao recurso neste segmento.

Mas, na decisão recorrida determinou-se também o arquivamento dos autos, contra o que o recorrente se insurge, impetrando que se determine a remessa dos mesmos ou certidão integral do processo ao Ministério público, a fim de suprir os elementos em falta.

Vejamos.

A propósito diz-se no Ac. da Relação de Lisboa de 30/01/2007, Proc. nº 10221/2006-5, consultável em www.dgsi.pt, que “perante a estrutura acusatória do nosso processo penal, constitucionalmente imposta (art. 32.º, n.º 5, da CRP), o tribunal – leia-se o juiz -, na sua natural postura de isenção, objectividade e imparcialidade, cujos poderes de cognição estão rigorosamente limitados ao objecto do processo, previamente definido pelo conteúdo da acusação, não pode nem deve dirigir recomendações ou convites para aperfeiçoamento, muito menos ordenar, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação, como não o pode fazer relativamente aos demais sujeitos processuais – assistente ou arguido. Ou seja, perante uma acusação deduzida contra certo arguido e por determinados factos, integrantes de um dado tipo legal, o juiz de julgamento tem de limitar-se a conhecer daquela concreta acusação que foi formulada, aceitando-a ou não a aceitando, condenando ou absolvendo, consoante a fase processual. Não tem uma terceira alternativa, a de sugerir ou ordenar a rectificação ou aperfeiçoamento da acusação, voltando os autos ao anterior momento do encerramento do inquérito.”

Entendimento subscrito pelo Ac. da Relação do Porto de 27/06/2012, Proc. nº 581/10.0GDSTS.P1, a ler no mesmo sítio, de acordo com o qual “se não tivesse sido requerida a instrução, a circunstância de os factos descritos na acusação não constituírem crime levaria à rejeição desta, nos termos do artigo 312º, nº 2, a), e 313º, nº 3, d), do mesmo Código (com o consequente arquivamento dos autos). E se, mesmo assim, a acusação não tivesse sido rejeitada e viesse a ser realizado julgamento, essa situação levaria à absolvição do arguido (com o consequente arquivamento dos autos).”

Aduzindo-se ainda no mesmo aresto que “em nenhuma destas situações se prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processo, em vez do seu arquivamento. Tal possibilidade de modo algum se harmonizaria com o espírito do sistema processual penal, assente nalguma forma de proteção das expetativas do arguido em face de uma acusação determinada e não sujeita a correções ou reformulações”.

Ou seja, os autos, vindos do Ministério Público, deram entrada em juízo e foram distribuídos ao juiz competente para o julgamento, sendo que este, quando se pronunciou, fê-lo já num processo judicial e não em sede de inquérito. Verificando-se que esse processo judicial não pode prosseguir, deverá ser arquivado no tribunal, porquanto já não é um inquérito – cfr. Ac. da Relação de Évora de 22/06/2021, Proc. nº 1207/18.0PBFAR.E1, também em www.dgsi.pt.

E, com efeito, a actividade processual obedece a uma organização predefinida, em que se encontram delimitadas e reguladas as várias fases da marcha do processo. Assim, no que concerne ao processo comum distingue-se nitidamente a fase de inquérito, ordenada no Título II do Livro VI do Código de Processo Penal da fase do julgamento contemplada no Livro VII do mesmo Código – onde se inserem, precisamente, as normas do artigo 311º, o que leva a concluir que o legislador entendeu estarem estas já inseridas nesta fase - para além de fases processuais eventuais, sendo estabelecida uma sequência lógica e cronológica dos actos processuais.

Face a tal ordenação sequencial de actos, encerrado o inquérito mediante acusação, nos termos do artigo 283º, do CPP e transitado o processo para a fase de julgamento, embora não se desconheça a posição jurisprudencial divergente (vertida, mormente, nos Acs. da Relação de Évora de 10/04/2018, Proc. nº 1559/16.6GBABF.E1; da Relação de Coimbra de 13/01/2021, Proc. nº 99/19.6GASAT.C1 e da Relação de Guimarães de 08/03/2021, Proc. nº 96/16.3T9MGD.G1, todos disponíveis no mencionado sítio), entendemos que não comporta o regime processual penal vigente a possibilidade de o mesmo processo retroceder à fase de inquérito na sequência de rejeição da acusação por virtude de os factos não constituírem crime – cfr., também, o Ac. da Relação de Guimarães de 19/06/2017, Proc. nº 175/13.9TACBC.G1, disponível no sítio referenciado,

Aliás, esta solução de retrocesso à fase de inquérito não se apresenta como admissível tendo em conta que o Ac. do STJ nº 7/2005, de 12/05/2005, in DR nº 212, I Série A, de 04/11/2005, fixou jurisprudência nos seguintes termos: “não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”, entendimento que também abrange a narração deficiente ou insuficiente, como se sustenta no Ac. do STJ de 12/06/2014, Proc. nº 7/14.0YGLSB.S1, que pode ser lido em www.dgsi.pt - cfr. também os Acs. do Tribunal Constitucional nº 636/2011 e nº 175/2013, disponíveis no seu sítio - e vero é que a remessa dos autos ao Ministério Público para esse efeito se configura como um verdadeiro convite ao aperfeiçoamento da acusação, sendo perfeitamente aplicáveis ao caso em apreço os seus fundamentos.

Assim, não merece crítica o tribunal recorrido ao determinar o arquivamento dos autos.

E, cumpre dizer, não ficará a ação penal por se exercer, pois parece inexistir obstáculo a que o Ministério Público instaure novo processo e assim avance com a perseguição penal contra o arguido pelos mesmos factos, mas requerendo ao respetivo processo na 1ª instância a extracção de certidão (o que se mostra defeso determinar em sede deste recurso, por não ser questão suscitada perante aquele tribunal e, nessa medida, ser nova) e deduza acusação onde se narrem, então, como se impõe, todos os factos integradores dos elementos objectivos e subjectivos (mormente os nos presentes autos omissos) do tipo legal de crime imputado, como se decidiu no Ac. do Tribunal Constitucional nº 246/2017, que pode ser lido no sítio respectivo.

Destarte, cumpre negar na íntegra provimento ao recurso.

III - DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Évora em negar provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e confirmar a decisão recorrida.

Sem tributação.

Évora, 26 de Setembro de 2023

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

________________________________________

(Artur Vargues)

_______________________________________

(António Condesso – com voto de vencido, como junto)

_______________________________________

(Maria Clara Figueiredo)

Voto de vencido

Concordo com o acórdão no tocante à primeira questão apreciada (Se deveria a acusação pública deduzida nos autos ser rejeitada por manifestamente infundada), votando em consonância a respectiva improcedência.

Já o mesmo não sucede no tocante à segunda questão (arquivamento dos autos que, inclusivamente, contêm estupefaciente apreendido a que não é dado destino), entendendo que o processo deveria ser devolvido ao MP, acompanhado do estupefaciente apreendido.

De facto, com o maior respeito pela opinião que fez vencimento, entendo que não está aqui em causa qualquer situação de recomendação ou convite ao aperfeiçoamento, nem muito menos qualquer ordem, ao MP, para que este reformule, rectifique, complemente, altere ou deduza acusação.

Nem tão pouco se verifica qualquer paralelo com a situação do RAI do assistente mas antes com a rejeição de acusação particular, situação em que decidimos no Ac. TRE de 12-1-2021 (pr. 482/19.7T9FAR.E1, rel. Nuno Garcia) que “A rejeição da acusação particular por ser manifestamente infundada nos termos do artº 311º, nºs 2, al. a) e 3, al. b), do C.P.P., por se ter entendido não estar descrito de forma completa o elemento subjectivo do crime imputado ao arguido, não tem como consequência necessária o arquivamento dos autos.

Nesse caso deve ser concedida ao assistente a possibilidade de apresentar nova acusação em que supra a deficiência apontada, devolvendo os autos ao MP”.

Ademais, quando se rejeita uma acusação numa situação como a presente não se verifica qualquer situação de retrocesso à fase de inquérito, uma vez que o processo nunca chega sequer a entrar na fase de julgamento (o juiz de julgamento jamais manda autuar como processo comum uma acusação que vai rejeitar e, se o fizer, tal constitui um manifesto absurdo, tal qual ocorreu in casu). Trata-se, pura e simplesmente, da devolução daquele inquérito (que não reúne condições para ingressar na fase de julgamento) ao seu legítimo titular para os fins que lhe aprouverem.

O que, além do mais, resolve problemas como o verificado no presente processo. Que fazer ao estupefaciente apreendido?

Guardá-lo num saquinho e aguardar ansiosamente que o MP venha pedir a “certidão” do arquivado que inclua tal decisão, também de cariz marcadamente burocrático, para então a devolver, ou, quiçá, determinar então igualmente a passagem de uma certidão relativamente ao material apreendido?!

Sobre o assunto temos expressado a nossa opinião ao longo dos anos, em múltiplos acórdãos e decisões sumárias.

Assim, por exemplo, escrevemos na decisão sumária de 29/5/2020, proferida no Pr. 387/17.6 GBSLV.E1:

“Pugna o recurso, como segunda questão subsidiária, pela devolução do processo ao MP.

Nesta sede tem razão o MP recorrente, cumprindo para o efeito, tão somente, chamar à liça a jurisprudência que perfilhamos no Ac. TRE de 10-4-2018, pr. 1559/16.6GBABF.E1.

“1- O despacho que rejeita a acusação por manifesta improcedência somente forma caso julgado formal (artigo 620º, n. 1 do CPC), na medida em que não conhece do mérito da causa e apenas tem força obrigatória no processo e nos precisos termos em que foi lavrado.

Isto é, não existe caso julgado material.

2- Daqui decorre, naturalmente, que nada obsta à reformulação da acusação, desde que o seu conteúdo material seja alterado com a inclusão dos factos pertinentes que conduziram à sua rejeição. Essa reformulação da acusação não constitui nem violação de caso julgado – formal ou material – nem violação do princípio ne bis in idem.

3- Não é admissível considerar que uma decisão que rejeitou uma acusação (logo, que não permitiu sequer que o processo chegasse à fase de julgamento) corresponde a um julgamento por um crime, arremedo interpretativo que a clareza do artigo 29º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa («Ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime») não permite.

4- Resta saber que fazer ao processo, questão onde se surpreendem duas posições jurisprudenciais que, em regra, coincidem com as anteriormente referidas quanto à existência de caso julgado e violação do princípio ne bis in idem. Assim: a) - Há quem defenda que só se forma caso julgado formal e que não ocorre violação do princípio ne bis in idem e sustente, consequentemente, que o processo não deve ser arquivado e deve ser devolvido ao Ministério Público para os fins que tiver por convenientes; b) – Há uma segunda posição que defende que a rejeição da acusação implica, se repetida, violação de caso julgado e violação do princípio ne bis in idem e entende que o arquivamento dos autos é a consequência lógica a impor-se.

5- Esta segunda posição olvida uma simples questão processual de índole prática: o processo é um inquérito e não perdeu a sua qualidade de inquérito. E o domus do inquérito é o Ministério Público, não é o juiz de julgamento, nem o juiz de instrução. Quando o juiz de julgamento recebe uma acusação manda “registar e autuar” o processo de inquérito como processo seguindo a forma adequada para julgamento, comum ou especial. É a consequência lógica processual do recebimento de uma acusação.

6- Porém, se rejeita a acusação o juiz não manda registar e autuar o processo de inquérito como processo comum ou especial. E bem! Se o fizesse estaria a praticar uma nulidade. E se a acusação foi rejeitada por uma questão procedimental a realidade nua e crua é que o Ministério Público não pôs fim ao processo de inquérito. E nessa fase o Ministério Público volta a ser confrontado com a necessidade de tomar posição, apenas limitado pelos factos indiciados e pelo caso julgado formal amoldado pelo despacho judicial de rejeição da acusação”.

Em vista do exposto, não devia nesta sede ter sido determinada a autuação do processo como comum, nem muito menos ter sido determinado o arquivamento dos autos, antes se exigindo a respectiva devolução do inquérito ao respectivo titular, o MP.

António Condesso