ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS
REQUISITOS
CONTRATO-PROMESSA
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
MODIFICAÇÃO
BOA -FÉ
RISCO
RESPONSABILIDADE
TERCEIRO
Sumário


I - Constitui exceção a este princípio da força vinculativa dos contratos a possibilidade de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias.
II - Averiguar da possibilidade de resolver o contrato por alteração das circunstâncias traduz-se em apurar quando é que a pretensão ao cumprimento se revela radicalmente contrária à justiça material que é exigência fundamental da ordem jurídica.
III - O fulcro do art. 437.º, n.º 1, do CC, encontra-se nos “princípios da boa-fé”.
IV - A base do negócio na alteração das circunstâncias é bilateral: respeita simultaneamente aos dois contraentes.
V - Entendida objetivamente, a base do negócio encontra-se com a noção de riscos próprios do contrato mencionada no art. 437.º, n.º 1, in fine, do CC.
VI - As perturbações à livre acessibilidade à ICI, com o seu impacto no empreendimento turístico que pretendia construir no imóvel que prometeu comprar, consubstanciam um risco da promitente compradora, porque atingem apenas o seu plano de aproveitamento de uma prestação dos réus. A perturbação, por terceiro, do exercício de um direito real é como que um risco ou circunstância normal, inerente, designadamente, à posição de titular do direito de propriedade, que não justifica a intervenção do regime da alteração das circunstâncias e não fundamenta a resolução do contrato.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,


I - Relatório

1. AA e Mulher, BB, Réus na ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, que lhes foi movida por Figuravulsa-Unipessoal, Lda., interpuseram recurso da sentença proferida pelo Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., o qual julgou a ação parcialmente procedente e, consequentemente, declarou resolvido o contrato promessa celebrado entre as partes, por alteração das circunstâncias, condenando os Réus a devolver à Autora a quantia de 400.000,00 € (quatrocentos mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal civil devida para as obrigações civis, desde a citação até efetivo e integral pagamento.

2. A Autora formulou os seguintes pedidos:

- que o Tribunal declare a resolução do contrato-promessa com fundamento em incumprimento definitivo por parte dos Réus da prestação a que se obrigaram pelos motivos enunciados nos arts. 25.º a 57.º da Petição Inicial e, em consequência, condene os Réus a pagar à Autora a quantia de 800.000,00 € correspondente ao valor do dobro do sinal prestado, acrescida de juros de mora à taxa legal até efetivo e integral pagamento, nos termos conjugados dos arts. 442.º, n.º 2, 798.º, 799.º e 808.º, do CC, e da cláusula sétima do contrato-promessa;

ou, caso assim não se entenda,

- que o Tribunal declare a resolução do contrato-promessa com fundamento na impossibilidade, total ou parcial, da prestação dos Réus, designadamente no que se refere à qualidade dessa prestação (transmissão do imóvel com livre acesso à via pública) e, em consequência, condene estes a pagar à Autora a quantia de 800.000,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal até efetivo e integral pagamento, correspondente ao valor do dobro do sinal prestado, nos termos dos arts. 801.º, n.os 1 e 2, e/ou 802.º, n.º 1 e 424.º, n.º 4, do CC;

ou, caso assim não se entenda,

- que o Tribunal declare a resolução do contrato-promessa com fundamento na impossibilidade de cumprimento da prestação dos Réus, designadamente no que se refere à qualidade dessa prestação, por motivo não imputável a estes e, em consequência, condene os Réus a pagar à Autora a quantia de 400.000,00 €, acrescida de juros de mora à taxa legal até efetivo e integral pagamento, correspondente à prestação por esta efetuada, a título de enriquecimento sem causa nos termos conjugadas dos arts. 792.º ou 795.º e 479.º do CC;

ou ainda se também assim não se entendesse,

- que o Tribunal declare a resolução do contrato-promessa com fundamento em alteração anormal das circunstâncias em que a Autora fundou a sua decisão de contratar e, em consequência, condene os Réus condenados a pagar-lhe a quantia de 400.000,00 €, correspondente ao valor do sinal prestado, acrescida de juros de mora à taxa legal, até efetivo e integral pagamento, nos termos conjugados do disposto nos arts. 437.º, 439.º, 433.º e 289.º do CC.

3. Para fundamentar a sua pretensão de resolução do contrato-promessa, a Autora alegou, em síntese:

- que os Réus são os proprietários do prédio rústico denominado “...”, situado na ..., freguesia da União das Freguesias de ... e ..., concelho de ..., cujas confrontações são as seguintes: Norte, caminho de ferro; Sul, caminho público, Herdade da Lezíria e CC; Nascente, Herdade da Lezíria e Poente, DD;

- que a 28 de março de 2018, os Réus, na qualidade de promitentes vendedores, e a Autora, na qualidade de promitente compradora, celebraram um acordo escrito denominado “Contrato Promessa de Compra e Venda de Imóvel” – do imóvel mencionado supra -,€ sendo o preço acordado para a compra e venda de 800.000,00 €, e tendo a Autora, naquele momento, pago aos Réus a quantia de 140.000,00 € (cento e quarenta mil euros), a título de sinal;

- que a celebração do contrato prometido foi condicionada à prévia aferição por parte da Câmara Municipal de ...da viabilidade de realização pela promitente compradora da operação urbanística de construção no imóvel de um empreendimento de turismo em espaço rural, bem como à conclusão do Processo de Cadastro Geométrico com o n.º .../2009 para constituição de prédio rústico distinto a desanexar do artigo 24.º da Secção NN1;

- que a outorga da escritura pública de compra e venda teria lugar no prazo máximo de 2 (dois) meses a contar da data de notificação pela Câmara Municipal de ...do resultado do Pedido de Informação Prévia e da comunicação da conclusão do processo de cadastro, devendo ser marcada pela promitente vendedora e iniciando-se o prazo a partir da data da emissão verificada em último lugar;

- que em virtude do atraso na aprovação do pedido de informação prévia que se ficou a dever, essencialmente, às alterações então introduzidas na legislação de proteção contra incêndios decorrentes dos grandes fogos de 2017, as quais vieram determinar restrições à construção em espaço rural, incluindo uma faixa de não edificação até cinquenta metros da estrema dos terrenos, sendo as respetivas exceções analisadas por comissões municipais de defesa da floresta compostas por inúmeras entidades distintas (proteção civil, bombeiros, I..., E.../R..., A..., T..., In..., etc.,), a Autora acedeu ao pedido dos Réus de efetuar a favor destes um reforço de sinal no montante de 260.000,00 € (duzentos e sessenta mil euros), cujo pagamento veio a ser formalizado através de nova Adenda ao Contrato-Promessa, celebrada em julho de 2018;

- que, a 21 de dezembro de 2020, a Câmara Municipal de ... emitiu parecer técnico favorável sobre a viabilidade da realização da operação urbanística que a Autora pretendia realizar no imóvel, condicionado apenas à apresentação de elementos de natureza meramente formal. Naquela altura estavam verificadas as condições previstas para a realização da escritura prometida;

- que, todavia, o acesso do imóvel à via pública, mais concretamente à Estrada Nacional 1... (troço que liga ... a ...), é efetuado exclusivamente através do “caminho público” constante da descrição predial, situado a sul do mesmo e pelo menos desde o 2 de maio de 2019 que o proprietário do prédio denominado “...” colocou à saída do identificado “caminho”, no segmento que estabelece a ligação à Estrada Nacional A... - G..., um portão em ferro fechado por um cadeado e uma rede de arame de aço, em toda a sua largura, impedindo, dessa forma, o acesso ao imóvel através da via pública, quer a pé quer através de veículos ligeiros ou pesados; tal acesso, como era do conhecimento dos Réus, era uma condição essencial à realização do projeto da Autora de construir no imóvel um empreendimento de turismo em espaço rural, o qual depende, naturalmente, da existência incontestada do caminho de acesso público ao imóvel e da sua livre utilização por clientes, trabalhadores, fornecedores e demais utilizadores daquele empreendimento;

- que o Réu AA tranquilizou a Autora, informando-a de que iria, de imediato, tentar resolver a situação junto do proprietário do prédio confinante;

- que, considerando que a essa data ainda se encontrava a decorrer junto da Câmara Municipal de ... o processo de informação prévia relativo à viabilidade da operação urbanística pretendida pela Autora, bem como todo o trabalho efetuado e custos em que já tinha incorrido, a Autora informou o Réu AA de que aceitava aguardar que este resolvesse a questão do impedimento de acesso ao imóvel até à data da aprovação daquele pedido;

- que as tentativas de resolução extrajudicial do litígio promovidas pelos Réus junto do proprietário do prédio confinante resultaram goradas, assim como não surtiu efeito uma providência cautelar instaurada pelos Réus com a finalidade de declaração de aquisição por usucapião de um direito legal de passagem pelo referido caminho;

- que os Réus vieram então a instaurar contra os proprietários do prédio confinante uma ação de condenação, sob a forma de processo comum, onde peticionam, além do mais, que lhes seja reconhecido o direito legal de passagem pelo caminho em causa sobre o imóvel, adquirido por usucapião;

- que o processo de cadastro geométrico foi concluído a 3 de novembro de 2020 e, a 21 de dezembro de 2020, a Câmara Municipal de ... emitiu parecer técnico favorável sobre a viabilidade da realização da operação urbanística que a Autora pretendia realizar no imóvel, pelo que, nessa data, estavam verificadas as condições previstas no n.º 1 da Cláusula Quarta do contrato-promessa para o início da contagem do prazo de realização da escritura prometida, cuja marcação competia à Autora, promitente compradora; assim, a Autora marcou a escritura pública de compra e venda do imóvel para 1 de fevereiro de 2021, às 10h00, no Cartório Notarial de ... da Dra. EE, dando nota desse facto aos Réus, por carta registada de 14 de janeiro de 2021, advertindo-os, porém, de que a mesma apenas se poderia realizar caso, além do mais, fosse apresentada garantia inequívoca, incondicional e irrevogável de livre acesso do imóvel à via pública através do caminho a que se vem aludindo, designadamente servidão de passagem, adquirida por contrato, usucapião ou outra forma legal e exarada em documento autêntico que preencha todas as formalidades e requisitos legais necessários ao registo desse direito na CRP, sob a cominação de se considerar haver incumprimento definitivo do contrato-promessa da responsabilidade dos promitentes vendedores, com o direito da Autora de resolver o contrato e exigir a devolução em dobro do sinal e reforço de sinal já pagos;

- que os Réus compareceram no dia e local designados para a escritura, tendo apresentado uma mera declaração particular, subscrita pelos próprios, na qual declaram que que são titulares de um direito legal de passagem, adquirido por usucapião, que dá acesso ao imóvel, que tal caminho de acesso existe há mais de 100 anos, sendo utilizado por estes e por outros proprietários há mais de 30 anos sem oposição de quem quer que seja e que no referido caminho foi colocado de forma ilegal e ilegítima um portão junto à EN 1... pelo proprietário do prédio confinante, impedindo a sua utilização e o acesso ao imóvel e que, com vista à remoção de tal portão e reconhecimento judicial do seu alegado direito de passagem, haviam intentado a ação nº 533/20.2... do Juízo Central Cível – Juiz ..., facto que era do conhecimento da promitente compradora Figuravulsa-Unipessoal, Lda.;

- que, nestas condições, a Autora recusou celebrar o contrato definitivo, tendo posteriormente dirigido aos Réus uma carta em que lhes comunica que pelos motivos enunciados no certificado notarial e que deu por integralmente reproduzidos, considerava o contrato-promessa dos autos definitivamente incumprido por estes e, em consequência, solicitou-lhes a devolução em dobro do valor da totalidade do sinal recebido, no montante de € 800.000,00 (oitocentos mil euros), no prazo máximo de 8 (oito) dias, aos que os Réus responderam que nada impedia a realização da escritura de compra e venda.

4. Os Réus contestaram, sustentando que a ação que intentaram contra os proprietários que encerraram o caminho e que corria termos sob o n.º 533/20.0..., no Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., é causa prejudicial em relação à presente ação, requerendo a suspensão dos autos até que fosse proferida decisão na ação supra referida e, no mais, impugnaram, concluindo pela improcedência da ação.

5. O Tribunal indeferiu o pedido de suspensão da instância, realizou a audiência prévia, na qual proferiu despacho saneador, fixou o objeto do litígio e enunciou os temas de prova.

6. Após a realização da audiência final, o Tribunal de 1.ª Instância, a 23 de maio de 2022, proferiu sentença em que decidiu o seguinte:

Em face do exposto, vistas as já indicadas normas jurídicas e os princípios expostos o tribunal julga:

1. A ação parcialmente procedente por parcialmente provada, e em consequência declara-se resolvido o contrato promessa celebrado entre as partes, por alteração das circunstâncias, e condena-se os RR a pagar/devolver à A. a quantia de € 400.000,00, acrescida de juros de mora nos termos anteriormente referidos.

Custas a cargo dos RR – artigo 527º, nºs 1 e 2 do C.P.C..

Registe e notifique”.

7. Não conformados, os Réus AA e Mulher, BB interpuseram recurso de apelação.

8. Por seu turno, a Autora Figuravulsa-Unipessoal, Lda., apresentou contra-alegações.

9. Por acórdão de 9 de fevereiro de 2023, o Tribunal da Relação de Évora decidiu o seguinte:

Em face do exposto, acordam em julgar procedente a apelação e, em consequência, revogam a sentença recorrida na parte em que declarou a resolução do contrato por alteração das circunstâncias e condenou os recorrentes/réus a pagarem/devolverem à autora/recorrida a quantia de quatrocentos mil euros acrescida de juros de mora, à taxa legal civil devida para as obrigações civis, contabilizados desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.

As custas de parte na presente instância recursiva são da responsabilidade da recorrida (artigos. 607.º, n.º 6, 527.º, n.º 1 e 2, 529.º, 533.º ex vi artigo 663.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil).

Notifique.

10. Não conformada, a Autora Figuravulsa-Unipessoal, Lda., interpôs recurso de revista, formulando as seguintes Conclusões:

A. O douto Acórdão recorrido faz uma errada interpretação e valoração jurídica dos factos no que se refere ao alegado não preenchimento de todos os pressupostos previstos no artigo 437º, nº 1, do Código Civil (CC), em especial da existência de uma lesão/prejuízo na esfera jurídica da autora suscetível de causar um desequilíbrio particularmente grave nas prestações contratuais decorrente da alteração de circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar – alteração essa cuja verificação é, aliás, expressamente reconhecida na decisão sob recurso –, incorrendo, implícita e simultaneamente, em erro na interpretação e aplicação do direito.

B. Considerando os factos dados como provados nas instâncias e todo o circunstancialismo inerente à manifesta, profunda e imprevisível alteração das circunstâncias nas quais a Autora fundou a sua decisão de contratar, consubstanciada na impossibilidade superveniente de livre acesso ao imóvel objeto do contrato promessa dos autos, a qual, à luz dos princípios da boa-fé não estava coberta pelos riscos próprios do negócio – alteração essa cuja verificação foi expressamente admitida no Acórdão recorrido –, não pode deixar de se entender que a execução do referido contrato promessa e/ou a continuação da vinculação da Autora à celebração do mesmo são claramente desproporcionais e contrárias ao equilíbrio contratual, impondo-lhe uma desvantagem desproporcionada que claramente favorece os Réus, e, como tal, justifica plenamente a resolução do mencionado contrato e a consequente devolução à Autora do sinal prestado, conforme decidido pela 1ª Instância.

C. Tem sido entendimento unânime da nossa jurisprudência, em particular desse venerando Supremo Tribunal de Justiça, que a resolução do contrato por alteração das circunstâncias depende, em suma, da verificação dos seguintes requisitos: (i) que haja alteração relevante das circunstâncias em que as partes tenham fundado a sua decisão de contratar, ou seja, que essas circunstâncias se hajam modificado de forma anormal e que (ii) a exigência da obrigação à parte lesada afete gravemente os princípios da boa-fé contratual, não estando coberta pelos riscos do negócio.

D. Nos presentes autos, a Autora alegou como fundamento do pedido de resolução do contrato promessa o facto de se ter verificado uma alteração relevante e anormal das circunstâncias em que as partes fundamentaram a sua decisão de contratar, consubstanciada de forma manifesta nos factos provados nºs 10 a 39 e nos documentos para os quais nestes se remete, a qual, resumidamente, resulta da impossibilidade, superveniente à celebração do contrato promessa dos autos, de livre acesso através da via pública ao imóvel prometido comprar / vender, e (ii) que a exigência do cumprimento da obrigação à parte lesada – a autora – afeta gravemente os princípios da boa fé negocial, não estando coberta pelos riscos do negócio, e que, resumidamente, resulta da demora e incerteza associadas ao desfecho da ação judicial instaurada pelos Réus para definição do direito de passagem do imóvel, à depreciação do capital imobilizado pela Autora a título de sinal e à validade temporalmente limitada do PIP aprovado.

E. A alteração das circunstâncias que o douto Acórdão recorrido expressamente concluiu ter ocorrido, consubstanciada na impossibilidade, superveniente à celebração do contrato promessa e por tempo indeterminado, de livre acesso através da via pública ao imóvel prometido comprar/vender, é, por si só e conjugada com os factos provados nºs 8, 44 e 45, suscetível de provocar à Recorrente uma lesão que determina um grave desequilíbrio entre as prestações contratuais, o qual é de tal ordem que torna contrária à boa fé a exigência do cumprimento do contrato pela contraparte, os promitentes-vendedores, ora Recorridos.

F. A apreciação da lesão/prejuízo causados na esfera jurídica da Autora com a ocorrida alteração das circunstâncias terá de ser aferida face à exigência por parte dos Réus do cumprimento pela Autora do contrato promessa nos seus exatos termos e no momento em que tal ocorreu – isto é, na data marcada para a celebração da escritura pública prometida – e não face a uma hipotética manutenção da sua vinculação à promessa, sem que se conhecessem o prazo e as condições inerentes à mesma, já que tal apenas relevaria caso os Réus tivessem proposto à Autora a modificação do contrato nos termos do nº 2 do artigo 437º do Código Civil, o que estes nunca chegaram a fazer conforme resulta dos factos provados nºs 39, 40, 46 e 47 e da carta aí transcrita.

G. Daí que a questão fulcral a decidir nos presentes autos resida em aferir se, naquele momento específico – em que estava em causa o cumprimento do contrato prometido, com a outorga da escritura de compra e venda do imóvel – e perante as circunstâncias concretas em que se encontrava o imóvel – sem acessibilidade -, era exigível à Autora a celebração daquele contrato.

H. A Autora resolveu o contrato promessa dos autos em virtude de, na data da realização da escritura prometida, os Réus, ao contrário do que lhes foi expressamente solicitado pela Autora e do que lhes era contratualmente exigível, não estarem em condições de cumprir o contrato uma vez que o prédio objeto do mesmo se encontrava privado de uma qualidade essencial ao negócio – a sua livre acessibilidade através da via pública.

I. Falhando tal qualidade ao imóvel, é manifesto que não poderia ser exigível à Autora a celebração do contrato prometido, conforme proposto e exigido pelos Réus (cf. factos provados nºs 38, 39, 4º e 41).

J. Perante a legítima exigência por parte da Autora de que, para celebrar o contrato prometido através da realização da respetiva escritura pública, os Réus teriam de apresentar uma garantia inequívoca, incondicional e irrevogável de livre acesso do imóvel à via pública, nos termos melhor descritos no ponto 1 do facto provado nº 34, e exarada em documento autêntico que permitisse o registo desse direito de acesso na Conservatória do Registo Predial, estes, no ato da escritura, limitaram-se a apresentar uma mera declaração particular, subscrita pelos próprios, na qual declaravam que eram titulares de tal direito e que intentaram uma ação judicial com vista ao reconhecimento do mesmo (cf. facto provado nº 39).

K. Perante tal situação, e à luz da boa fé contratual e do equilíbrio das prestações de cada contraente, não era exigível à Autora celebrar, naquele momento e naquelas condições, o contrato/escritura, já que tal causaria à Autora uma grave lesão traduzida na circunstância de estar a adquirir, pelo significativo preço de 800.000,00€, do qual já havia pago metade, tendo de desembolsar, naquele ato, outros €400.000,00, um imóvel ao qual estava impedida de aceder e no qual pretendia implementar um projeto de empreendimento de turismo em espaço rural com um investimento previsto de cerca de quinze milhões de euros (cf. factos provados nºs 17, 31, 32 e 45).

L. O cumprimento do contrato causaria também um grave desequilíbrio nas prestações contratuais, já que, nesse caso, os Réus iriam receber as totalidade do preço contratado por um imóvel ao qual faltava uma característica essencial ao negócio – a sua livre acessibilidade -, ficando a Autora com um imóvel que não poderia destinar ao fim contratualmente estabelecido (ou mesmo a qualquer outro, já que estava impossibilitada de aceder ao mesmo…) e pelo qual pagaria uma avultada quantia.

M. Aquele desequilíbrio contratual seria de tal ordem que tornava contrária à boa fé a exigência por parte dos Réus do cumprimento do contrato.

N. Conforme foi decidido na 1º Instância, a aceitação da prestação nos moldes em que os réus a poderiam realizar, sem acessibilidade ao prédio e na incerteza se a mesma virá a ser decretada, quando e em que termos, implica uma excessiva gravosidade para a autora, que justifica a sua libertação, mais não seja em nome da boa fé, princípio de que decorrem limites de exigibilidade que se fundam na razoabilidade do esforço ou sacrifício imposto.

O. Na data da outorga da escritura pública – momento que deve ser tido em conta para a aferição dos pressupostos da alteração das circunstâncias – estavam preenchidos todos os requisitos de que a lei (artigo 437º, nº 1, do CC) faz depender a resolução do contrato com fundamento na alteração das circunstâncias, de acordo com o entendimento que tem vindo a ser perfilhado na jurisprudência.

P. A argumentação expendida no douto Acórdão recorrido em relação à perda apenas “temporária” de uma característica essencial do imóvel e de que os factos provados nºs 44 e 45 não revelam o impacto que a alteração das circunstâncias ocorrida teve na esfera jurídica da Autora carece, em absoluto, de fundamento jurídico, fazendo uma errada aplicação do instituto da alteração das circunstâncias aos factos provados.

Q. O preenchimento dos requisitos para a resolução do contrato com fundamento na alteração das circunstâncias deverá, no caso dos autos, ser aferido no momento em que a Autora é colocada perante a exigência de cumprimento da obrigação contratual – data da outorga da escritura pública prometida – e em face das circunstâncias concretas em que o prédio objeto do negócio se encontrava naquele preciso momento – isto é, desprovido da sua livre acessibilidade através da via pública, tendo perdido, portanto, uma característica essencial ao negócio.

R. Não podia ser exigível à Autora, naquele momento e naquelas condições, o cumprimento do contrato nos exatos termos pretendidos pelos Réus, os quais, conforme expressamente resulta do facto provado nº 39, entendiam que aquela ficaria devidamente salvaguardada com a apresentação de uma mera declaração particular destes na qual afirmavam, de forma unilateral, que eram titulares de um direito de passagem e que instauraram uma ação judicial com vista ao reconhecimento desse direito.

S. Perante o pedido da Autora no sentido da resolução do contrato, os Réus não se socorreram sequer da faculdade prevista no nº 2 do artigo 437º, declarando que aceitariam modificar o contrato segundo juízos de equidade, mas antes insistiram no cumprimento do contrato naquele momento e com o imóvel nas condições em que se encontrava.

T. É desprovida de sentido a afirmação constante do douto Acórdão recorrido de «os factos provados n.ºs 44 e 45 revelam são as razões pelas quais a autora decidiu não aceitar a prorrogação do prazo para a realização da escritura pública (sublinhado nosso), já que tal prorrogação não lhe foi proposta pelos Réus naquele momento.

U. Dos factos provados nºs 44 e 45 resulta claramente a lesão que para a Autora decorre da alteração das circunstâncias.

V. A pendência da ação judicial na qual se discute o direito de acesso dos Réus ao imóvel objeto da promessa através da via pública era, em si mesmo, suscetível de causar uma lesão à Autora face à inevitável incerteza quanto ao desfecho da mesma e à sua morosidade, causando uma manifesta desproteção dos seus interesses perante os efeitos dum possível ulterior reconhecimento judicial da inexistência do direito de passagem.

W. Tal lesão verificar-se-ia quer fosse cumprido o contrato quer a Autora optasse por uma eventual prorrogação do prazo do contrato, já que, neste último caso, e conforme resulta do facto provado nº 45, a demora e incerteza do desfecho daquela ação poderiam, naturalmente, afastar o interesse de potenciais investidores e obstar à obtenção e/ou contratação de financiamentos, designadamente por, à data dessa eventual contratação, já não estarem disponíveis os mesmos instrumentos e/ou as mesmas condições financeiras.

X. A consequência decorrente da perda de validade do PIP resulta expressamente da lei, mais concretamente do disposto no nº3 do artigo 17º do D.L. nº 555/99, de 16/12, Regime Jurídico da Urbanização e Edificação (RJUE), e das demais disposições constantes deste diploma.

Y. Face ao previsto no citado regime jurídico, após o decurso do prazo de validade de um PIP, o respetivo requerente terá de apresentar um novo pedido, suportar os respetivos custos – os quais também decorrem da lei – e sujeitar-se a um despacho de rejeição, já que as condições e restrições urbanísticas existentes à data do primeiro pedido podem vir a alterar-se.

Z. Os factos referidos em V e W são factos notórios, no sentido do nº1 do artigo 412º do CPC, que, como tal, não carecem de alegação ou de prova.

AA. No decurso do prazo para a apresentação das presentes alegações, a Autora foi notificada do despacho de arquivamento do PIP em virtude de não ter apresentado o competente processo de licenciamento dentro do prazo legal, conforme ofício que se junta como documento nº 1, nos termos do artigo 680º, nº 1, do CPC.

BB. As consequências em termos de lesão na esfera jurídica da Autora decorrentes do facto provado nº 45 devem entender-se como sendo de conhecimento geral e, portanto, como factos notórios que não carecem de alegação ou de prova.

CC. À semelhança do decidido na sentença da 1ª Instância, é manifesto que um investimento da natureza que a Autora se propunha realizar, no montante de cerca de 15 milhões de euros, não era compatível com a demora e incerteza associadas ao desfecho da ação judicial da qual dependia a definição da situação jurídica do imóvel, designadamente a sua livre acessibilidade.

DD. Verifica-se um prejuízo para a Autora decorrente de manter um capital significativo “empatado” e da incerteza de saber se, num futuro incerto, e mesmo num eventual cenário de desfecho favorável da citada ação judicial, se manteriam os mesmos incentivos financeiros para a realização da operação urbanística e se as entidades bancárias às quais iria parcialmente recorrer para o financiamento bancário também manteriam as mesmas condições ou sequer continuavam disponíveis para prestar tal financiamento.

EE. Encontram-se devidamente provados os prejuízos que para a Autora decorriam quer do cumprimento do contrato quer da potencial e temporalmente indefinida continuação da sua vinculação à celebração do mesmo, sendo qualquer dessas situações manifestamente desproporcional e contrária ao equilíbrio contratual, assumindo proporções tais que subvertiam a própria economia desse contrato, tornando-o lesivo para a Autora e afetando gravemente os princípios da boa fé.

FF. Mostram-se preenchidos todos os requisitos de que a lei faz depender a resolução do contrato por alteração das circunstâncias e, como tal, assiste à Recorrente o direito de receber dos Recorridos a quantia prestada a título de sinal, no montante de 400.000,00€ (quatrocentos mil euros), acrescida de juros de mora, pelo que, ao decidir em sentido contrário, a decisão recorrida violou o disposto no artigo 437º do CC, devendo, portanto, ser revogada e substituída por outra que julgue procedente o pedido subsidiário deduzido pela Autora sob o ponto (iv), tal como decidido pelo Tribunal de 1ª Instância.

Nestes termos e nos demais que V. Exas. doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o Acórdão recorrido e substituindo-o por outro que julgue procedente o pedido subsidiário deduzido pela Autora sob o ponto (iv) e, em consequência, declare resolvido o contrato promessa celebrado entre a Autora e os Réus, por alteração das circunstâncias, e condene estes a devolverem àquela a quantia de €400.000,00 (quatrocentos mil euros), prestada a título de sinal, acrescida de juros, assim se fazendo JUSTIÇA!

11. Por seu turno, os Réus AA e Mulher, BB apresentaram contra-alegações com a seguinte “síntese”:

A. O Acórdão ora recorrido veio ao encontro daquilo que sempre foi a tese sustentada pelos aqui Recorridos no âmbito do presente processo, desde a sua contestação à apelação por si interposta, pelo que o mesmo deverá ser integralmente mantido, por fazer a melhor e mais correta interpretação do Direito aplicável à situação sub judice;

Com efeito,

B. A aplicação do instituto da alteração de circunstâncias carece da verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: (i) alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar; (ii) anormalidade dessa alteração; (iii) que essa alteração provoque uma lesão para uma das partes e um desequilíbrio entre as prestações contratuais; (iv) que a lesão seja de tal ordem que se apresente contrária ao princípio da boa-fé a exigência do cumprimento das obrigações assumidas; (v) que essa alteração não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato; e (vi) que o lesado não esteja em mora no momento da verificação dos factos que consubstanciam a alteração de circunstâncias;

C. Na situação sub judice, ficou por demonstrar adequadamente que a alegada alteração das circunstâncias provocou à Recorrida uma lesão e um desequilíbrio nas prestações contratuais estipuladas e que essa lesão foi de tal ordem que se mostra contrária ao princípio da boa-fé, até porque os argumentos que são usados para esse efeito não existem na presente data (o direito de acesso dos Recorrentes está judicialmente reconhecido e o Pedido de Informação Prévia foi renovado);

Além disso,

D. O mecanismo da alteração das circunstâncias consubstancia uma faculdade, quando verificados os respetivos pressupostos, da parte lesada poder resolver ou modificar o contrato, não visando compensar ou evitar o prejuízo que a mesma possa eventualmente sofrer, da mesma forma que a alteração das circunstâncias não perde de vista a parte no contrato contra a qual a alteração das circunstâncias é apresentada, porque se tratará sempre de factos objetivos e que não dependem de uma conduta ou comportamento culposo de uma das partes;

E. Isto para dizer que, o Tribunal de 1.ª Instância nunca poderia determinar, pura e simplesmente, a devolução da quantia de 400.000,00€ pelos Recorrentes à Recorrida, por ser esse o valor do sinal/princípio de pagamento efetuado, ainda mais acrescido de juros de mora;

F. A sentença recorrida decidiu, erradamente, privilegiar o princípio da boa-fé sobre o princípio da estabilidade dos contratos, quando, na situação concreta, não há matéria factual suficiente e adequada para tanto;

Neste contexto,

O Acórdão recorrido corrigiu a sentença da 1.ª Instância e decidiu adequadamente e em conformidade com o Direito, devendo, por isso, ser mantido integralmente, negando-se provimento ao recurso de revista ora interposto pela Recorrida, por não estarem reunidos os pressupostos essenciais à aplicação do mecanismo da alteração das circunstâncias previsto no artigo 437.º, do Código Civil, como alega e pretende a Recorrida.

Porém, V.EXAS. FARÃO A TÃO COSTUMADA JUSTIÇA!”

II – Questões a decidir

Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, está em causa a questão de saber se estão ou não preenchidos os pressupostos do instituto da alteração das circunstâncias (art. 437.º do CC) e, em caso de resposta afirmativa, se se justifica a condenação dos Réus/Recorridos na devolução da totalidade do sinal recebido.

III - Fundamentação

A. De Facto

Foram dados como provados os seguintes factos:

1. Na Conservatória do Registo Predial de ..., freguesia de ..., encontra-se descrito sob o nº 2712 o prédio rústico denominado “...”, cujas confrontações são as seguintes: Norte, caminho de ferro; Sul, caminho público, Herdade da Lezíria e CC; Nascente, Herdade da Lezíria e Poente, DD, o qual está inscrito, atualmente, na matriz predial rústica sob o artigo 51º da secção 1NN1 (e anteriormente sob o artigo 24º da Secção NN1), cuja titularidade está averbada a favor dos Réus, pela ap. 3, de 01.02.1991.

2. Em 25 de Março de 2018, os réus, na qualidade de promitentes vendedores, e a autora, na qualidade de promitente compradora, celebraram por escrito particular que denominaram “CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA”, cuja cópia está junta a fls. 15 vº e ss., que aqui se dá por inteiramente reproduzido, onde além do mais consta:

“CONSIDERANDO QUE:

I. Os PROMITENTES VENDEDORES são proprietários e legítimos possuidores do prédio rústico em propriedade total, denominado ..., sito na ..., freguesia da União das Freguesias de ... e ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o número 2712, da freguesia de .... inscrito na respetiva matriz predial rústica sob o artigo nº 24, secção NN1 da União das Freguesias de ... e ..., composto por cultura arvense, oliveiras, sobreiros e pastagem, doravante designado por "PRÉDIO", (conforme certidão predial emitida pela referida Conservatória e caderneta predial rústica ou certidão emitida pelo Serviço de Finanças competente, documentos que, em conjunto, constituem o ANEXO I ao presente Contrato-Promessa e dele fazem parte integrante);

II. Os PROMITENTES VENDEDORES, promoveram em 14 de setembro de 2009, o Processo de Cadastro Geométrico, ao qual foi atribuído o nº .../2009. para constituição de prédio rústico distinto, a desanexar do artigo cadastral n." 24, Secção NN1, da freguesia de ... (extinta), encontrando-se o mesmo, atualmente, em apreciação junto da Direção Geral do Território;

III. Como forma de aferirem da viabilidade da realização de operação urbanística de construção no PRÉDIO e dos respetivos condicionamentos legais ou regulamentares previstos no Plano Diretor Municipal da Câmara Municipal de ... e, com a correspondente autorização dos PROMITENTES VENDEDORES, irá a PROMITENTE COMPRADORA, apresentar o projeto à presidência desta Câmara para aferir do seu interesse sobre o mesmo no quadro do desenvolvimento das infraestruturas e serviços do município, bem como, submeter Pedido de Informação Prévia junto desta edilidade, sendo a resposta positiva a ambas as diligências descritas, condição necessária para a concretização da promessa que ora se estabelece entre as partes;

IV. Sendo conferida a anuência pela Câmara Municipal de ... a ambas as diligências atrás descritas e, em especial, ao Pedido de Informação Prévia, a PROMITENTE COMPRADORA ou a pessoa singular ou coletiva que esta indique, terá interesse em comprar o PRÉDIO identificado no considerando I supra;

V. Os PROMITENTES VENDEDORES desde já, declaram aceitar e ora prestam o seu consentimento à eventual cessão de posição contratual prevista no considerando anterior, nos termos do artº 424º nº 1 do Código Civil:

Livremente e dentro dos principias da boa-fé, as Partes, para bom e integral cumprimento. celebram entre si o presente CONTRATO PROMESSA DE COMPRA E VENDA, a que mútua e reciprocamente se obrigam, com o objeto, termos e demais condições constantes dos considerandos que antecedem, tidos por vinculativos e nos termos das cláusulas seguintes, pelas quais se regerá:

CLAUSULA PRIMEIRA

(OBJETO)

Pela presente contrato, os PROMITENTES VENDEDORES prometem vender, devoluto de pessoas e bens e livre de quaisquer ónus ou encargos, à PROMITENTE COMPRADORA ou à pessoa singular ou coletiva que esta indique, que promete comprar-lhes, sujeita à condição prevista no considerando nº III, o prédio rústico identificado no considerando l. supra, no seu atual estado físico, ora declarando esta, ter conhecimento de todas as áreas que compõem o PRÉDIO objeto do presente contrato, assim como, do seu estado.

CLÁUSULA SEGUNDA

(PREÇO E MODO DE PAGAMENTO)

1. O preço global acordado para a compra e venda prometida no presente contrato é de 800.000,00 (oitocentos mil euros).

2. O preço global indicado no número um da presente cláusula será pago da seguinte forma:

a) A título de sinal, a PROMITENTE COMPRADORA entrega na presente data aos PROMITENTES VENDEDORES, a quantia de €140.000.00 (cento e quarenta mil euros), através de transferência bancária para o IBAN PT50 _______ou cheque bancário emitido à ordem destes últimos, que declaram ter recebido a mesma e aqui dão completa e integral quitação.

b) Na data da celebração da escritura pública de compra e venda, a PROMITENTE COMPRADORA entregará aos PROMITENTES VENDEDORES a quantia remanescente, no valor de €660.000,00 (Seiscentos e sessenta mil euros), a título de pagamento do preço. através de transferência bancária para o IBAN PT50 _______ou cheque bancário emitido à ordem destes últimos.

3. A tradição e consequente transferência da posse do prédio ocorrerá com a celebração da prometida escritura de compra e venda.

CLÁUSULA TERCEIRA

(DILIGÊNCIAS)

1. A PROMITENTE COMPRADORA apresentará, em reunião agendada para o dia 3 de Abril de 2018. as diretrizes do projeto que prevê instalar no prédio à Presidência da Câmara Municipal de ..., informando os PROMITENTES VENDEDORES da recetividade da edilidade ao mesmo.

2. Os PROMITENTES VENDEDORES declaram que diligenciarão no sentido de agilizar o Processo de Cadastro Geométrico mencionado no considerando II. supra, designadamente, diligenciando junto da Direção Geral do Território, entregando e assinando toda a documentação que lhe venha a ser solicitada para os identificados fins e, bem assim, liquidando e pagando todas as despesas e encargos resultantes da tramitação normal desse processo.

2. A PROMITENTE COMPRADORA e a entidade terceira que irão contratar para a preparação técnica e entrega do Pedido de Informação Prévia mencionado no considerando III. supra, irão diligenciar no sentido de agilizarem o procedimento, no prazo previsível de 2 meses, entregando, assinando e respondendo a tudo o que lhes venha a ser solicitado para os identificados fins, encontrando-se os PROMITENTES VENDEDORES cientes de que, tratando-se de serviço que pela sua especificidade técnica e de acordo com as regras da arte, será obrigatoriamente executado por entidade terceira, especializada e devidamente credenciada para o efeito, a PROMITENTE COMPRADORA não terá o controle absoluto nem poderá ser responsabilizada por eventuais atrasos decorrentes de atos ou omissões desta mesma entidade,

3. Os PROMITENTES VENDEDORES comprometem-se a informar a PROMITENTE COMPRADORA, por escrito, da conclusão do Processo de Cadastro Geométrico e bem assim a PROMITENTE COMPRADORA compromete-se a informar, pela mesma forma, os PROMITENTES VENDEDORES do parecer oferecido peja Câmara Municipal de ... em sede de Pedido de Informação Prévia.

4. Os PROMITENTES VENDEDORES obrigam-se ainda, caso os processos atrás mencionados sejam concluídos com sucesso, a nos termos do artº 1380º do Código Civil, notificar os proprietários dos prédios confinantes, para efeitos de eventual exercício do direito de preferência por parte destes.

CLÁUSULA QUARTA

(ESCRITURA PÚBLICA DE COMPRA E VENDA)

1. A prometida escritura publica de compra e venda será outorgada após a conclusão com sucesso das diligências da cláusula anterior, no prazo máximo de 2 (dois) meses, contados a partir da data da notificação do resultado do Pedido de Informação Prévia pela Câmara Municipal de ... e da comunicação da conclusão do processo do Cadastro (ou certidão do serviço de finanças), caso este indique a viabilidade do licenciamento pretendido para o PRÉDIO, e será marcada pela PROMITENTE COMPRADORA em Cartório Notarial, data e hora a indicar por esta aos PROMITENTES VENDEDORES, através de carta registada, com a antecedência mínima de 15 (quinze) dias em relação à data marcada, para a morada que as partes ora convencionam ser a constante da sua Identificação no preambulo do presente contrato.

2. A contagem do prazo previsto no número anterior, depende da obtenção cumulativa de ambos os documentos e iniciar-se-á a partir da data de emissão que ocorra em último lugar.

3. Em caso de impedimento por parte dos PROMITENTES VENDEDORES, deverão estes comunicar o facto à PROMITENTE COMPRADORA, com a maior brevidade possível, facultando-lhes pelo menos, duas datas alternativas, dentro dos 20 dias úteis subsequentes para remarcação da prometida escritura pública.

CLAUSULA QUINTA

(PRORROGAÇAO)

O prazo previsto para a outorga da prometida escritura de compra e venda poderá ser prorrogado uma única vez, por acordo entre as partes.

CLÁUSULA SEXTA

(DESPESAS E ENCARGOS)

1. Constituirão encargo exclusivo da PROMITENTE COMPRADORA todas as despesas inerentes à aquisição do PRÉDIO, objeto do presente contrato, designadamente, IMT, despesas notariais e registais.

2. Os PROMITENTES VENDEDORES desde já se comprometem a reunir e ou obter toda a documentação necessária à celebração da prometida escritura pública, quer sejam pessoais, quer digam respeito ao PRÉDIO, que entregarão à PROMITENTE COMPRADORA ou diretamente no Cartório Notarial designado, sendo ainda, os únicos responsáveis pelo pagamento de todos os encargos devidos pela obtenção ou disponibilização de tal documentação.

3. A PROMITENTE COMPRADORA compromete-se a entregar atempadamente junto do Cartório Notarial designado os comprovativos do pagamento do lMT e do IS (imposto selo), no dia anterior à data agendada para a realização da escritura pública.

5. Os PROMITENTES VENDEDORES reconhecem e ora declaram, para os devidos efeitos, serem responsáveis por todas as despesas decorrentes da propriedade do PRÉDIO que ocorram até à data de celebração da escritura pública, ainda que venham a ser liquidadas e o respetivo pagamento a ser exigido em data posterior a esta.

CLÁUSULA SÉTIMA

(INCUMPRIMENTO E CADUCIDADE)

1. O presente contrato promessa de compra e venda caducará nos seguintes casos:

I. Não recetividade, desinteresse ou reservas por parte da Câmara Municipal de ...aos termos do projeto que lhe será apresentado pela PROMITENTE COMPRADORA, quaisquer que sejam as motivações, económicas, políticas ou outras, que lhe estejam subjacentes;

II. Emissão de Informação Prévia negativa por parte da Câmara Municipal de ..., inviabilizando a realização das operações urbanísticas que a PROMITENTE COMPRADORA tem projetadas para o PRÉDIO;

III. Exercício do direito de preferência nos termos do artº 1380° do Código Civil, por algum dos proprietários dos prédios confinantes;

lV. Declaração por parte das autoridades competentes para a conclusão do processo de Cadastro Geométrico, da impossibilidade ou inviabilidade deste;

2. Caso ocorra a caducidade do presente contrato dos pontos I. e lI. do parágrafo anterior ou ainda do exercício do direito de preferência por parte de qualquer um dos proprietários do prédio confinante, deverão os PROMITENTES VENDEDORES devolver em singelo, a quantia entregue a título de sinal por parte da PROMITENTE COMPRADORA.

3. Caso não seja concluído o processo de Cadastro Geométrico ou seja declarada a sua inviabilidade ou impossibilidade, deverão os PROMITENTES VENDEDORES devolver em dobro, a quantia entregue a titulo de sinal por parte da PROMITENTE COMPRADORA.

4. Acordam, ainda, as Partes que se por qualquer outro motivo que não os expostos na presente cláusula, a escritura de compra e venda não se realize no prazo previsto, salvaguardada a possibilidade de prorrogação convencionada, por motivo imputável por dolo ou negligência, por ação ou omissão, dos PROMITENTES VENDEDORES, a PROMITENTE COMPRADORA reserva-se no direito de resolver o presente contrato e de exigir a restituição do sinal em dobro.

5. Caso os PROMITENTES VENDEDORES, salvaguardada a possibilidade de prorrogação convencionada, não confirmem a sua presença na escritura pública regularmente agendada, não comuniquem a sua impossibilidade de comparência da forma convencionada ou não facultem à PROMITENTE COMPRADORA a documentação em falta para a instrução da mesma, considera-se que há incumprimento definitivo por parte dos PROMITENTES VENDEDORES, assistindo à PROMITENTE COMPRADORA o direito a resolver o presente contrato e exigir a devolução do sinal em dobro.

6. Se os PROMITENTES COMPRADORES faltarem à escritura de forma injustificada, perderão o montante do sinal entregue até à data.

7. A entrega do Pedido de Informação Prévio previsto no considerando III. supra, de forma contrária às normas e disposições legalmente aplicáveis, será motivo para retenção do sinal por parte dos PROMITENTES VENDEDORES, quando esse procedimento resulte de ação ou omissão intencional, culposa e contrária às normas da boa fé por parte da PROMITENTE COMPRADORA, como forma de obter para si, ou para terceiro, comprovada vantagem indevida.

8. Encontra-se excecionada do número anterior a entrega contrária às normas e disposições legalmente aplicáveis, que resulte de mero lapso, diferença de interpretação, interpretação errada ou ainda as que resultem de atos ou omissões de terceiros contratados para o efeito pela PROMITENTE COMPRADORA uma vez que se trata de trabalho que pela sua especificidade técnica e de acordo com as regras da arte terá de ser executado por entidade especializada e devidamente licenciada para o efeito.

9. A faculdade prevista no ponto anterior da presente cláusula, não preclude a possibilidade de, em alternativa, as PARTES recorrerem à execução especifica prevista no artigo 830º do Código Civil…” .

3. Em 28 de março de 2018, Autora e Réus celebraram uma Adenda ao Contrato-Promessa, cuja cópia está junta a fls. 20 vº/21, através da qual alteraram a redação do nº 3 da Cláusula Sétima do Contrato-Promessa, nos seguintes termos:

“Caso não seja concluído o processo de Cadastro Geométrico ou seja declarada a sua inviabilidade ou impossibilidade, por motivo imputável a título de dolo ou negligência por parte dos PROMITENTES VENDEDORES, constituir-se-ão estes na obrigação de devolver em dobro, a quantia entregue a titulo de sinal por parte da PROMITENTE COMPRADORA, caso resulte de motivo que escape ao seu controlo ou à sua vontade, essa devolução será efetuada apenas em singelo".

4. Em julho de 2018, A. e RR celebraram um aditamento ao contrato promessa a que acima se aludiu, cuja cópia está junta a fls.126 e vº, que aqui se dá por inteiramente reproduzido, onde além do mais consta: “… 4. Não sendo possível, por motivo alheio ás partes, nomeadamente por limites impostos por legislação recente, assegurar as condições para a elaboração e aprovação do PIP no ritmo inicialmente planeado, ora decidem estas, como forma de reafirmar a sua vontade negocial, proceder a um reforço de sinal no montante de €260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros), a ser paga nesta data pela promitente compradora aos promitentes vendedores, importância da qual estes aqui oferecem a competente e legal quitação…”.

5. A adenda acima referida foi acordada entre Autora e Réus e deveu-se ao atraso da Autora na apresentação do Pedido de Informação Prévia junto da Câmara Municipal de ....

6. O processo de cadastro geométrico foi concluído em 3 de novembro de 2020, dando origem a dois artigos matriciais distintos resultantes da divisão do anterior artigo 24º da Secção NN1 – ao artigo 50º da Secção 1NN1, denominado ..., e ao artigo 51º da Secção 1NN1, denominado ..., correspondente ao Imóvel.

7. Em 21 de dezembro de 2020, a Câmara Municipal de ... emitiu parecer técnico favorável sobre a viabilidade da realização da operação urbanística que a Autora pretendia realizar no Imóvel, condicionado apenas à apresentação de elementos de natureza meramente formal.

8. O referido parecer tem validade de um ano a contar da data da respetiva emissão.

9. Àquela data estavam verificadas as condições previstas no nº 1 da Cláusula Quarta do contrato-promessa para o início da contagem do prazo de realização da escritura prometida.

10. O imóvel objeto do contrato promessa confronta a Norte com o caminho de ferro, a Sul com caminho público, Herdade da Lezíria e CC, a Nascente com a Herdade da Lezíria e a Poente com DD.

11. O acesso do imóvel à via pública, mais concretamente à Estrada Nacional 1... (troço que liga ... a ...), é efetuado exclusivamente através do alegado “caminho público”, o que sucede há mais de 60 anos e sendo o mesmo constituído de pedra e terra ali existente, com cerca de 120 metros de comprimento e 7,20 metros de largura.

12. O referido caminho confronta a norte com o imóvel e com o prédio misto denominado “...”, sito na freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número ...34 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial sob os artigos 3º da secção NN1, 278º, 873º e 874º da União das Freguesias de ... e ..., do qual são proprietários DD e mulher FF.

13. Pelo menos desde o dia 2 de maio de 2019, o proprietário do prédio denominado “...”, DD, colocou à saída do identificado “caminho”, no segmento que faz a ligação à Estrada Nacional A... - G..., um portão em ferro, fechado por um cadeado, e uma rede de arame de aço, em toda a sua largura, impedindo, dessa forma, o acesso ao imóvel através da via pública, quer a pé quer através de veículos ligeiros ou pesados.

14. O identificado proprietário do prédio confinante terá adotado tal comportamento com base no seu entendimento de que o caminho em causa não é um caminho público, mas sim um caminho agrícola ou “serventia fazendeira”, o qual atravessa as propriedades e que, por sua vez, liga os terrenos para as alfaias agrícolas laborarem.

15. Mais entende o proprietário do prédio confinante que tal caminho não existe nem nunca existiu para a passagem de pessoas, mas apenas e tão-só para uso dos proprietários dos terrenos agrícolas confinantes e respetivos trabalhadores e alfaias agrícolas, fazendo parte integrante da sua propriedade.

16. Em data que a Autora não consegue precisar, mas que terá ocorrido ainda em maio de 2019, o Réu AA informou a Autora, na pessoa do seu consultor financeiro Dr. GG, da ocorrência dos factos acima descritos, mais concretamente de que o acesso ao Imóvel pela via pública havia sido cortado.

17. Conforme era do expresso conhecimento dos Réus, tal acesso seria sempre condição essencial à realização do projeto da promitente compradora de construir no Imóvel um Empreendimento de Turismo em Espaço Rural, o qual depende, naturalmente, da existência incontestada do caminho de acesso público ao Imóvel e da sua livre utilização por clientes, trabalhadores, fornecedores e demais utilizadores daquele empreendimento.

18. O Réu AA tranquilizou a Autora, informando-a que iria, de imediato, tentar resolver a situação junto do proprietário do prédio confinante.

19. Considerando que à data daqueles factos ainda se encontrava a decorrer junto da Câmara Municipal de ...o processo de informação prévia relativo à viabilidade da realização no Imóvel da operação urbanística pretendida pela Autora bem como todo o trabalho já desenvolvido e custos incorridos por esta na elaboração do plano de negócio e de arquitetura do projeto, na elaboração e submissão do pedido de informação prévia e nas diversas diligências realizadas junto dos serviços camarários e das diversas entidades intervenientes na aprovação do projeto, o qual se tinha traduzido, até à referida data, e para além do valor de sinal entregue, num investimento superior a €40.000,00 (quarenta mil euros), a Autora informou o Réu AA que aceitava aguardar que este resolvesse a situação do impedimento de acesso ao Imóvel até à data da aprovação daquele pedido.

20. Na sequência do que consta do ponto 18, de imediato, a Autora transmitiu ao Réu AA que a impossibilidade de acesso ao Imóvel através da via pública determinaria a impossibilidade da concretização do negócio prometido uma vez que o contrato-promessa havia sido celebrado na manifesta convicção da existência de livre acesso do imóvel à via pública através do identificado caminho, dito “público”.

21. A Autora deixou bem claro aos Réus que era condição essencial para a realização do negócio prometido a existência e prova do livre e incontestado acesso ao imóvel através da via pública, nos termos e pelo caminho com base no qual foi celebrado o Contrato-Promessa e elaborados e submetidos todos os projetos e documentação referentes ao empreendimento turístico a construir no local, designadamente o projeto de arquitetura e o pedido de informação prévia, e que tal situação teria de estar regularizada e devidamente documentada até à decisão por parte da Câmara Municipal de ... do referido pedido de informação prévia.

22. Os Réus ficaram bem cientes do facto referido no artigo anterior, tendo aceitado as condições impostas pela Autora.

23. As tentativas de resolução extrajudicial do litígio promovidas pelos Réus junto do proprietário do prédio confinante resultaram goradas.

24. Perante tal circunstância, os Réus decidiram recorrer aos meios judiciais para a resolução do litígio com o proprietário do prédio confinante, tendo deduzido uma providência cautelar com vista à remoção dos sobreditos portão e rede, onde era também pedida a declaração de aquisição por usucapião de um direito legal de passagem pelo referido caminho, a qual correu os seus termos neste mesmo Tribunal, no Juízo Central Cível de ... – Juiz ..., sob o número 3637/19.0...

25. No âmbito desse procedimento cautelar resultaram provados, além do mais, os seguintes factos:

“27) - O requerente celebrou em 28.03.2018, um contrato promessa de compra e venda com Figuravulsa Unipessoal Lda, junto aos autos a fls. 95 a 100, que aqui se dá por inteiramente reproduzido), através do qual o promitente comprador prometeu adquirir o prédio do R. pelo valor de 800.000,00€, em ordem à promoção de um empreendimento turístico, condicionado à sua aprovação pela Câmara Municipal de ... tendo o Requerente já recebido 140.000,00€ de sinal.

28) - A realização do empreendimento turístico em causa, só será possível, com a existência e a utilização do mencionado caminho.

29) -Perante o impedimento de acesso ao prédio, o comprador do prédio e promotor do empreendimento turístico, não terá interesse no negócio e o contrato promessa caducará.

30) No momento atual, os técnicos, engenheiros e arquitetos, estão impedidos de aceder ao mesmo para realização das demarcações, medições, trabalhos técnicos e de topografia no âmbito da realização do citado empreendimento…”.

26. Após o indeferimento do procedimento cautelar os RR instauraram uma ação que corre termos no Juízo Central Cível, J..., com o nº 533/20.0..., a que foi atribuído o valor de €53.400,00.

27. Na qual, com relevância para os presentes autos, peticionaram:

“(i) Que lhes fosse reconhecido o direito legal de passagem pelo caminho em causa sobre o Imóvel, adquirido por usucapião;

(ii) Que os réus fossem condenados a reconhecer-lhes o referido direito legal de passagem e a efetuar a remoção do portão que impede o acesso ao Imóvel”.

28. Na mesma ação os Réus alegam além do mais:

“(i) Artigo 50º (…), no prédio do A. está a ser implementado um projeto de natureza turística, cuja aprovação se encontra em adiantado estado e para muito breve, junto da Câmara Municipal de ..., conforme declara que se junta (Docs. 25, 26 e 27);

(ii) Artigo 51.º Tal empreendimento turístico, que irá certamente valorizar o prédio dos RR., vai ter um investimento de cerca de 5 milhões de euros e vai criar cerca de 50/60 postos de trabalho;

(iii) Artigo 52.º Tendo em vista tal projeto o A. celebrou um contrato promessa de compra e venda, com uma empresa, Figuravulsa Unipessoal Lda., que irá adquirir o prédio do A. pelo valor de 800.000,00€ e promover tal empreendimento turístico, condicionado à aprovação do mesmo pela Câmara Municipal de ..., com um sinal já recebido pelo A. de 140.000,00€.( Docs.28 e 29 );

(iv) Artigo 53.º No momento atual, em virtude de ter sido impedido o acesso ao prédio, os técnicos, engenheiros e arquitetos, daquela empresa, estão impedidos de aceder ao mesmo para realização das demarcações, medições, trabalhos técnicos e de topografia no âmbito da realização do citado empreendimento, aliás ordenados pela própria Câmara. (Doc. 27);

(v) Artigo 54.º Perante tal impedimento de acesso ao prédio o A. corre o sério risco de não poder cumprir o mencionado contrato promessa de compra e venda, não concretizar o negócio de venda em causa, a não construção do empreendimento em questão e o incumprimento do contrato, com as consequências daí resultantes, designadamente as indemnizações a pagar ao promitente comprador, uma vez que o acesso ao prédio se encontra vedado e a impedir o caminho a ser utilizado pelos promotores e aos futuros utilizadores de tal empreendimento;

(vi) Artigo 55.º Sofrendo com tal situação, pelo menos o requerente, um prejuízo, no que toca ao empreendimento de cerca de 140.000,00€, devolução do sinal recebido em dobro, até porque a compra do prédio e a realização do empreendimento turístico, só serão possíveis, com a existência e a utilização do mencionado caminho, caindo assim o A. numa situação de incumprimento do contrato promessa (sublinhado nosso);

(vii) Artigo 56.º É que, o comprador do prédio e promotor do empreendimento turístico, perante o impedimento de acesso ao prédio, e da sua realização, perderá o interesse no negócio, uma vez que todos os prédios e utilizadores do empreendimento, não terão acesso ao mesmo e a partir do mesmo (sublinhado nosso);

(viii) Artigo 57.º Se o negócio não se vier a concretizar (escritura de compra e venda) o A. perderá um negócio no valor de 800.000,00€ e sofrerá um prejuízo que neste momento não é possível quantificar e determinar, pelo que se relega essa determinação e quantificação para execução de sentença…”.

29. Quando foi comunicado à A. o fecho do caminho, a mesma não manifestou vontade de alterar, modificar ou revogar de imediato o contrato-promessa objeto destes autos.

30. No âmbito da referida ação foi já realizada o julgamento, encontrando-se os autos conclusos para prolação de sentença.

31. A operação urbanística a implementar pela Autora no imóvel, cujo projeto era do expresso conhecimento dos Réus, consistia na construção de alojamentos destinados às designadas “Residências Sénior”, inspirada nos “resorts” existentes no estado Norte-Americano da ..., compostos por cerca de 100 unidades de alojamentos independentes em edifícios e moradias, complementados com áreas comuns e serviços de residência assistida, tais como hortas e jardins, restaurante e café/esplanada, piscina interior

32. O que implica, naturalmente, o livre acesso ao imóvel através da via pública, pois, de outra forma, seria impossível a clientes, fornecedores, colaboradores e demais terceiros acederem às residências e espaços comuns do alojamento e, consequentemente, utilizarem, fruírem e prestarem os seus serviços e trabalho no local.

33. A A. procedeu à marcação da escritura pública de compra e venda do Imóvel para o dia 1 de fevereiro de 2021, às 10h00, no Cartório Notarial de ... da Dra. EE.

34. Em 14.01.2021 a A. enviou carta registada aos RR, da qual consta:

«Exmos. Senhores,

Na qualidade de Promitente Compradora do Imóvel objeto do Contrato-Promessa, e considerando que:

i. A celebração do contrato prometido foi condicionada à prévia aferição por parte da Câmara Municipal de ... da viabilidade de realização pela Promitente Compradora da operação urbanística de construção no Imóvel de um Empreendimento de Turismo em Espaço Rural, bem como à conclusão do Processo de Cadastro Geométrico com o nº .../2009;

ii. A outorga da escritura pública de compra e venda teria lugar no prazo máximo de 2 (dois) meses a contar da data de notificação pela Câmara Municipal de ... do resultado do Pedido de Informação Prévia e da comunicação da conclusão do processo de cadastro;

iii. Conforme é do conhecimento de V. Exas., o processo de cadastro geométrico encontra-se concluído;

iv. Conforme também é do conhecimento de V. Exas., em 21 de dezembro de 2020, a Câmara Municipal de ... emitiu parecer técnico favorável sobre a viabilidade da realização da operação urbanística mencionada no Considerando () supra, condicionado apenas à apresentação de elementos de natureza meramente formal, o qual tem validade de um ano a contar da daquela data;

v. Encontram-se, assim, verificadas as condições previstas no nº1 da Cláusula Quinta para o início da contagem do prazo de realização da escritura prometida, cuja marcação compete à Promitente Compradora, ora signatária;

vi. Conforme é do conhecimento de V. Exas., desde, pelo menos, o dia 2 de maio de 2019, que o único caminho de acesso ao Imóvel através da via pública, quer a pé quer através de veículos ligeiros ou pesados, encontra-se vedado por aí ter sido colocado pelo proprietário de um dos prédios confinantes um portão em ferro, fechado por um cadeado, e uma rede de arame, em toda a sua largura;

vii. Conforme V. Exas. não podem ignorar, o Contrato-Promessa foi celebrado na manifesta convicção da existência de livre acesso do Imóvel à via pública através do identificado caminho, dito “público”, o qual, afinal e segundo alega o proprietário do prédio confinante, é um mero caminho agrícola ou “serventia fazendeira” que faz parte integrante da sua propriedade, razão pela qual procedeu à respetiva vedação, situação que configura uma alteração anormal das circunstâncias em que as Partes fundaram a sua decisão de contratar;

viii. Tal vedação impede, em absoluto, o acesso ao Imóvel por parte de terceiros através da via pública e, consequentemente, a realização do projeto da Promitente Compradora de construir no local um Empreendimento de Turismo em Espaço Rural – condição essencial para a aquisição do Imóvel e consequente celebração do contrato prometido -, o qual depende, naturalmente, da existência incontestada do caminho de acesso público ao Imóvel e da sua livre utilização;

ix. Apesar de V. Exas. não poderem ignorar que o impedimento do livre acesso ao Imóvel determina o não cumprimento do Contrato-Promessa – conforme, aliás, já alegaram em sede judicial -, a verdade é que a resolução do litígio tendo por objeto a definição da natureza jurídica do referido caminho de acesso arrasta-se já há quase 2 anos (desde maio de 2019), encontrando-se ainda o respetivo processo judicial no tribunal de 1ª instância e sem julgamento marcado, acrescendo que a resolução desse processo em sentido favorável à vossa pretensão é manifestamente incerta;

x. A realização do avultado investimento que projetámos efetuar no Imóvel não se compadece com o decurso dos prazos normais de resolução dos processos judiciais, sendo certo que, entretanto, devido a várias vicissitudes às quais fomos alheios, já aguardámos quase 3 (três) anos pela resposta ao pedido de informação prévia;

xi. Face aos factos enunciados nos Considerandos anteriores, e tendo em conta que a Promitente Compradora tem de dar cumprimento ao disposto na Cláusula Quarta, nºs 1 e 2, do Contrato-Promessa, serve a presente para, nos termos e para os efeitos da citada cláusula contratual, informar V. Exas. que a escritura pública de compra e venda do Imóvel encontra-se marcada para o dia 1 de Fevereiro de 2020, às 10h00, no Cartório Notarial de ... da Dra. EE, na Rua ..., com a advertência, porém, que a mesma apenas poderá realizar-se caso, até à ou na data da sua outorga, se encontrem verificadas as seguintes condições:

1. Garantia inequívoca, incondicional e irrevogável de livre acesso do Imóvel à via pública através do caminho a que se referem os Considerandos (vi) e seguintes supra, através de servidão de passagem, adquirida por contrato, usucapião ou outra forma legal e exarada em documento autêntico que preencha todas as formalidades e requisitos legais necessários ao registo desse direito na Conservatória do Registo Predial, o que deverá ser aferido pela Notária perante a qual será outorgada a escritura pública;

2. Documentos comprovativos da renúncia ou do não exercício do direito de preferência que possa assistir aos proprietários dos prédios confinantes;

3. Documento comprovativo do cancelamento da hipoteca que incide sobre o Imóvel, registada a favor da Caixa de Crédito Agrícola Mútuo de ..., CRL., exarado em documento autêntico que preencha todas as formalidades e requisitos legais necessários ao respetivo registo na Conservatória do Registo Predial, o que deverá ser aferido pela Notária perante a qual será outorgada a escritura pública.

A não realização da escritura na data agendada por falta de comparência de V. Exas. ou por não ser facultada a documentação identificada nos nºs 1, 2 e 3 do parágrafo anterior, ou qualquer outra da vossa responsabilidade, consubstanciará incumprimento definitivo do Contrato-Promessa da responsabilidade dos Promitentes Vendedores, e, consequentemente, determinará o direito da Promitente Compradora de resolver o mesmo e exigir a devolução em dobro do sinal e reforço de sinal já pagos.».

35. Os RR. responderam, por carta datada de 18 de janeiro de 2021, informando a Autora, em síntese, que são alheios aos factos ocorridos relativos ao impedimento de acesso ao imóvel, que o assunto está a ser objeto de resolução em sede judicial e que não têm forma de garantir à Autora o livre acesso ao imóvel, estando apenas disponíveis para declarar na escritura que entendem ser titulares de um direito legal de passagem cujo reconhecimento peticionaram que fosse declarado por via judicial.

36. A A. respondeu por carta datada de 22 de janeiro de 2021, com o seguinte teor:

«Exmos. Senhores, Acusamos o recebimento da V. carta em referência. A título prévio, refira-se que não entendemos a razão da vossa alegada estupefação uma vez que os factos descritos na N. carta de 14 de janeiro e a nossa posição sobre os mesmos já vos haviam sido verbalmente transmitidos. No que se refere concretamente aos argumentos invocados por Exas., informamos o seguinte:(xii) Independentemente das razões que possam assistir à vossa tese acerca da natureza jurídica do caminho de acesso em questão e das diligências que, entretanto, levaram a cabo junto do proprietário do prédio confinante e do tribunal, o facto objetivo e indesmentível é que tal caminho se encontra vedado, impedindo o acesso do Imóvel à via pública; (xiii) O facto de a sentença da providência cautelar que referem ter considerado que V. Exas. beneficiam de um direito legal de passagem pelo caminho em causa é irrelevante uma vez que, nessa sede, é feita apenas prova indiciária do direito e a respetiva decisão não tem efeito de caso julgado; (xiv) Por outro lado, considerando a fase processual em que se encontra o respetivo processo judicial, a decisão definitiva sobre a definição da natureza jurídica do caminho de acesso pode demorar vários anos, mantendo-se, entretanto, o impedimento de acesso do Imóvel à via pública, circunstância que é manifestamente incompatível com a realização do projeto de investimento que teve como base a nossa decisão de aquisição do Imóvel; (xv) Acresce, como também já referimos, a incerteza relativa a uma eventual decisão favorável à vossa pretensão, sendo certo que V. Exas. não alegam qualquer facto concreto relativo a um eventual acordo com o proprietário do prédio confinante; (xvi) O facto que alegam no ponto 10 da V. Carta é suscetível de configurar atuação de má fé, já que V. Exas. não podem ignorar que o Contrato-Promessa foi celebrado na plena convicção da existência de livre acesso do Imóvel à via pública pelo caminho em discussão, motivo pelo qual, naturalmente, essa questão nem sequer se colocou aquando da discussão e outorga do referido contrato; (xvii) Em suma, reiteramos de forma integral todos os factos e argumentos constantes da N. carta de 14 de janeiro, informando que a celebração da escritura prometida apenas poderá ocorrer caso se verifiquem as condições estipuladas nos pontos 1 e 3 da nossa identificada comunicação; (xviii) Mais advertimos que a não realização da mesma na data agendada por falta de comparência de V. Exas. ou por não ser facultada a documentação supra referida, ou qualquer outra da vossa responsabilidade, consubstanciará incumprimento definitivo do Contrato-Promessa da responsabilidade dos Promitentes Vendedores, e, consequentemente, determinará o direito da Promitente Compradora de resolver o mesmo e exigir a devolução em dobro do sinal e reforço de sinal já pagos, no montante total de €800.000,00 (oitocentos mil euros)».

37. Os Réus não responderam à carta referida no artigo anterior.

38. No dia 1 de fevereiro de 2021, data designada pela Autora para a realização da escritura prometida, compareceram no local marcado, Cartório Notarial de ... da Dra. EE, a procuradora da Autora, Dra. HH, e os Réus.

39. Questionados acerca do cumprimento das condições impostas pela Autora para a outorga da escritura, designadamente a referida no ponto 1 de 31, isto é, a garantia inequívoca, incondicional e irrevogável de livre acesso do Imóvel à via pública através do caminho aí referido por meio de servidão de passagem, adquirida por contrato, usucapião ou outra forma legal e exarada em documento autêntico que preencha todas as formalidades e requisitos legais necessários ao registo desse direito na Conservatória do Registo Predial, os Réus limitaram-se a apresentar uma mera declaração particular, subscrita pelos próprios, na qual declaram, o seguinte:“(i) que são titulares de um direito legal de passagem, adquirido por usucapião, que dá acesso ao Imóvel;(ii) que tal caminho de acesso existe há mais de 100 anos sendo utilizado por estes e por outros proprietários há mais de 30 anos sem oposição de quem que seja;(iii) que no referido caminho foi colocado de forma ilegal e ilegítima um portão junto à EN 1... pelo proprietário do prédio confinante, impedindo a sua utilização e o acesso ao Imóvel (sublinhado nosso), e (iv) que, com vista à remoção de tal portão e reconhecimento judicial do seu alegado direito de passagem, intentaram junto do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal a ação nº 533/20.2... do Juízo Central Cível – Juiz ..., facto que é do inteiro conhecimento da promitente compradora Figuravulsa, Lda., ora Autora”.

40. Face aos motivos acima expostos, a Autora não aceitou realizar a escritura naquelas condições, tendo sido lavrado pela senhora Notária, a pedido da Autora, Certificado que atesta o seguinte:

(i) Em 28 de Março de 2018, AA e mulher BB, na qualidade de Promitentes Vendedores, e Figuravulsa, Unipessoal, Lda., na qualidade de Promitente Compradora, celebraram um Contrato Promessa de Compra e Venda de Imóvel tendo por objeto o prédio rústico denominado “...”, situado na ..., freguesia da União das Freguesias ... e ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número 2712 da freguesia de ... e inscrito na matriz predial rústica sob o artigo 24 da secção NN1 da União das Freguesias de ... e ...;

(ii) O preço acordado para a compra e venda prometida foi de €800.000,00 (oitocentos mil euros), tendo a promitente compradora, com a assinatura do Contrato – Promessa, pago aos promitentes vendedores a quantia de € 140.000,00 (cento e quarenta mil euros), a título de sinal e princípio de pagamento do preço, de cujo recebimento estes conferiram plena e integral quitação;

(iii) A celebração do contrato prometido foi condicionada à prévia aferição por parte da Câmara Municipal de ...da viabilidade de realização pela Promitente Compradora da operação urbanística de construção no Imóvel de um Empreendimento de Turismo em Espaço Rural, bem como à conclusão do Processo de Cadastro Geométrico com o nº .../2009;

(iv) A outorga da escritura pública de compra e venda teria lugar no prazo máximo de 2 (dois) meses a contar da data de notificação pela Câmara Municipal de ... do resultado do Pedido de Informação Prévia e da comunicação da conclusão do processo de cadastro;

(v) Em 28 de março de 2018, as Partes celebraram uma Adenda ao Contrato – Promessa, através da qual se limitaram a alterar a redação do nº 3 da Cláusula Sétima do Contrato-Promessa, tendo por objeto o âmbito e requisitos da devolução em dobro do sinal por parte dos promitentes vendedores em caso de não conclusão do processo de cadastro ou da sua inviabilidade ou impossibilidade;

(vi) Em virtude do atraso na aprovação do pedido de informação prévia referido no Considerando (iii) supra, a promitente compradora acedeu a realizar a favor dos promitentes vendedores um reforço de sinal no montante de €260.000,00 (duzentos e sessenta mil euros), cujo pagamento veio a ser formalizado através de nova Adenda ao Contrato-Promessa celebrada em julho de 2018 e pago na data de celebração da mesma, tendo estes conferido plena e integral quitação do respetivo recebimento;

(vii) O processo de cadastro geométrico encontra-se concluído;

(viii) Em 21 de dezembro de 2020, a Câmara Municipal de ... emitiu parecer técnico favorável sobre a viabilidade da realização da operação urbanística mencionada no Considerando (iii) supra, condicionado apenas à apresentação de elementos de natureza meramente formal, o qual tem validade de um ano a contar da daquela data;

(ix) Encontravam-se, assim, verificadas as condições previstas no nº1 da Cláusula Quarta do Contrato – Promessa para o início da contagem do prazo de realização da escritura prometida, cuja marcação competia à Promitente Compradora;

(x) Sucede, porém, que desde, pelo menos, o dia 2 de maio de 2019, o único caminho de acesso ao Imóvel através da via pública, quer a pé quer através de veículos ligeiros ou pesados, encontra-se vedado por aí ter sido colocado pelo proprietário de um dos prédios confinantes um portão em ferro, fechado por um cadeado, e uma rede de arame, em toda a sua largura;

(xi) O Contrato-Promessa foi celebrado na manifesta convicção da existência de livre acesso do Imóvel à via pública através do identificado caminho, dito “público”, o qual, afinal e segundo alega o proprietário do prédio confinante, é um mero caminho agrícola ou “serventia fazendeira” que faz parte integrante da sua propriedade, razão pela qual procedeu à respetiva vedação, situação que configura uma alteração anormal das circunstâncias em que as Partes fundaram a sua decisão de contratar;

(xii)Tal vedação impede, em absoluto, o acesso ao Imóvel por parte de terceiros através da via pública e, consequentemente, a realização do projeto da Promitente Compradora de construir no local um Empreendimento de Turismo em Espaço Rural – condição essencial para a aquisição do Imóvel e consequente celebração do contrato prometido -, o qual depende, naturalmente, da existência incontestada do caminho de acesso público ao Imóvel e da sua livre utilização;

(xiii) Os promitentes vendedores não podem ignorar que o impedimento do livre acesso ao Imóvel determina o não cumprimento do Contrato-Promessa, conforme, aliás, já alegaram e reconhecerem na ação judicial que instauraram contra o proprietário do prédio confinante, a qual corre termos pelo Juízo Central Cível de ..., Juiz ..., sob o Proc. nº 3637/19.0...) tendo por objeto a definição da natureza jurídica do referido caminho de acesso;

(xiv) Tal ação judicial arrasta-se já há quase 2 anos (desde maio de 2019), encontrando-se ainda o respetivo processo judicial no tribunal de 1ª instância () e sem julgamento marcado, acrescendo que, face à posição assumida pelos Réus (proprietários do prédio confinante) em sede de contestação, a resolução desse processo em sentido favorável à pretensão dos promitentes vendedores é manifestamente incerta;

(xv) A realização do avultado investimento que a Promitente Compradora projetou efetuar no Imóvel não se compadece com o decurso dos prazos normais de resolução do identificado processo judicial, sendo certo que, entretanto, devido a várias vicissitudes às quais esta foi alheia, a mesma já aguardou quase 2 (dois) anos pela resposta ao pedido de informação prévia;

(xvi) Face aos factos enunciados nos Considerandos anteriores, a promitente compradora, aquando da marcação da escritura, informou os promitentes vendedores que apenas aceitaria realizar o negócio se estes até à data da mesma ou no ato da sua celebração apresentassem uma garantia inequívoca, incondicional e irrevogável de livre acesso do Imóvel à via pública pelo caminho a que se referem os Considerandos (x) e seguintes supra, através de servidão de passagem, adquirida por contrato, usucapião ou outra forma legal e exarada em documento autêntico que preencha todas as formalidades e requisitos legais necessários ao registo desse direito na Conservatória do Registo Predial;

(xvii) Os promitentes vendedores não apresentaram tal garantia pelo que a promitente compradora entende que o facto de o Imóvel prometido não ter livre acesso à via pública, ao contrário do que havia sido a convicção na qual esta fundou a sua decisão de contratar, impede a realização do fim a que o mesmo se destina, não estando tal circunstância coberta pelos riscos próprios do negócio, consubstanciando uma alteração anormal das circunstâncias nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 437º do Código Civil, motivo pelo qual não lhe pode ser exigível, por afetar gravemente os princípios da boa fé, a celebração do contrato definitivo de compra e venda…”.

41. Ao referido Certificado Notarial foram anexos, a pedido dos Réus, cópia da Declaração referida no ponto 33 e, a pedido da Autora, cópia do cheque bancário do remanescente do preço, no montante de €400.000,00 (quatrocentos mil euros), cuja emissão esta solicitou tendo em vista a possibilidade de realização da escritura caso os Réus cumprissem as garantias impostas.

42. Apesar da não realização da escritura, a Autora, naquele mesmo dia ainda apresentou aos Réus uma proposta de resolução extrajudicial do litígio, mostrando-se inclusivamente disponível para aceitar o pagamento em prestações do valor do sinal, em singelo, no prazo de 6 (seis) meses com carência de 6 (seis) meses, frisando que tal proposta era válida apenas para efeitos extrajudiciais.

43. Os Réus protelaram durante 15 (quinze) dias uma resposta à referida proposta, acabando por informar a Autora, no dia 15 de fevereiro, que apenas aceitavam a prorrogação do prazo para a realização da escritura por período a acordar de modo a dar-lhes tempo de resolver o litígio com os proprietários do prédio confinante e, dessa forma, vender o imóvel com as qualidades contratadas (livre acesso à via pública).

44. Face à demora associada ao trânsito em julgado da decisão da ação judicial que tem por objeto a definição da situação de acesso ao imóvel pela via pública e à incerteza do desfecho desta ação, bem como ao facto de a Informação Prévia emitida pela Câmara Municipal de ... ter a validade de apenas um ano, a A. não aceitou continuar a aguardar a concretização do negócio.

45. O investimento que a Autora se propôs realizar com a operação urbanística a implementar no Imóvel rondava os €15.000.000,00 (quinze milhões de euros), obtidos com recurso a capitais próprios e parte a ser financiado através de empréstimos bancários e incentivos financeiros existentes para o setor de atividade em questão, o que não era compatível com tal demora e incerteza.

46. Assim, a Autora, em 15 de fevereiro de 2021, dirigiu aos Réus uma carta em que lhes comunica que pelos motivos enunciados no certificado notarial e que deu por integralmente reproduzidos, considerava o Contrato-Promessa dos autos definitivamente incumprido por estes e, em consequência, solicitou-lhes a devolução em dobro do valor da totalidade do sinal recebido, no montante de €800.000,00 (oitocentos mil euros), no prazo máximo de 8 (oito) dias.

47. Os Réus responderam por carta datada de 5 de março, da qual consta o seguinte:

«Acusamos a receção da vossa carta acima identificada, a qual mereceu a nossa melhor atenção e agradecemos.

Porém, não podemos aceitar o conteúdo da mesma por se mostrar totalmente contrário à realidade dos factos e, consequentemente, à lei, razão pela qual o refutamos aqui em absoluto.

Com efeito, e conforme já tivemos oportunidade de expressar e de vos transmitir anteriormente, consideramos não existir da nossa parte qualquer incumprimento do contrato-promessa de compra e venda celebrado em 28 de março de 2018 relativo ao imóvel de nossa propriedade denominado ...», que legitime a devolução do sinal prestado e, muito menos, que essa devolução seja feita em dobro, como agora V. Exas. pretendem.

Efetivamente, todas as condições estabelecidas no contrato-promessa aqui em causa para efeitos de outorga da escritura pública de compra e venda se encontram verificadas e foram por nós cumpridas.

Se demoraram, foi por razões claramente imputáveis a V. Exas., nomeadamente no atraso na preparação e apresentação do PIP junto da Câmara Municipal de ....

Por esta razão, a vossa pretensão mostra-se manifestamente abusiva e sem qualquer suporte factual e legal, pelo que a rejeitamos!

A situação do acesso agora convenientemente invocada por V. Exas. para não celebrarem a escritura pública de compra e venda não nos é minimamente imputável e resultou de uma conduta, no mínimo estranha e inesperada, de terceiros.

Contudo, importa sublinhar que reagimos pronta e eficazmente a tal situação e a mesma encontra-se em vias de resolução, aguardando-se apenas o julgamento da ação judicial por nós interposta para remoção do impedimento de acesso ao ...», vislumbrando-se sérias hipóteses de sucesso por força da decisão já existente em sede de procedimento cautelar quanto à existência do nosso direito de acesso.

A essa expetativa séria acresce o facto de a Câmara Municipal de ... ter deferido o PIP apresentado por V. Exas., sendo certo que isso só foi possível porquanto, igualmente, houve o reconhecimento por esta entidade pública do nosso direito de acesso ao ...».

Maiores garantias que estas não existem!

A verdade é que somos nós, neste momento, quem mais prejuízos tem sofrido com o protelar desta situação, pois, decorridos 3 anos sobre a data da assinatura do contrato-promessa aqui em causa, ainda não concretizámos a venda e não recebemos o respetivo preço, o que não deixaremos de reivindicar caso a outorga da escritura pública de compra e venda não ocorra a breve prazo. considerando nós existirem as condições necessárias à celebração da escritura pública de compra e venda, para o que estamos disponíveis.

E que, não obstante não ter sido decretada, por não se verificar, no entendimento do Tribunal, a existência de uma situação de perigo de lesão iminente dos direitos dos Réus, reconheceu que «… estando o referido caminho perfeitamente delineado e solidificado e ocorrendo a sua utilização pelo Requerente há 28 anos, tendo por referência o disposto no art.º 1294.º do CC, somos a concluir que o requerente adquiriu, por usucapião, o direito de passagem no caminho em causa nos autos».

48. A Autora apenas apresentou o Pedido de Informação Prévia junto da Câmara Municipal de ... em 15 de janeiro de 2019.

49. O R. marido diligenciou e deslocou-se aos serviços da Câmara Municipal de ... no sentido de prestar os esclarecimentos solicitados no âmbito do PIP e perceber quais os documentos em falta.

50. Foi também o Réu marido quem diligenciou junto do Presidente da Câmara Municipal de ... por causa do Pedido de Informação Prévia.

51. Tendo marcado com este uma reunião, onde esteve presente um representante da Autora, o Dr. GG, a qual ocorreu em julho de 2020, e onde se sensibilizou o referido Presidente para a importância para o concelho de ... do projeto alvo do Pedido de Informação Prévia e para a necessidade de se imprimir alguma celeridade no andamento deste.

52. No dia 06 de janeiro de 2021, os Réus receberam um telefonema do Dr. GG, na qualidade de representante da Autora, a informar que esta não pretendia celebrar a escritura de compra e venda relativa ao contrato-promessa objeto dos presentes autos.

53. A Autora não enviou qualquer carta ou documento aos Réus a transmitir a sua preocupação com a situação ou a transmitir a necessidade de se rever o contrato-promessa, por alegada alteração dos pressupostos de contratação.

54. E continuou a instruir o Pedido de Informação Prévia junto da Câmara Municipal de ....

55. Perante o fecho do caminho os Réus apresentaram, de imediato, uma queixa-crime junto da GNR de ....

56. Os Réus, nomeadamente o Réu marido, sempre deram conhecimento de todas estas diligências à Autora.

57. Tendo inclusivamente o Dr. GG, que sempre atuou como representante da Autora junto dos Réus, sido testemunha no âmbito da providência cautelar antes identificada.

II.3.2.

Factos não provados

O tribunal de primeira instância julgou não provada a seguinte factualidade:

A) Que o atraso na apresentação e aprovação do PIP se tenha devido à alteração da legislação de proteção contra incêndios decorrentes dos grandes fogos de 2017, as quais vieram determinar restrições à construção em espaço rural introduzindo uma faixa de não edificação até 50 metros da estrema dos terrenos sendo as respetivas exceções analisadas por comissões municipais de defesa da floresta compostas por inúmeras entidades distintas (proteção civil, bombeiros, I..., E... / R..., A..., T..., In..., etc.).

B) A apreciação do Pedido de Informação Prévia decorreu sem que tivesse havido qualquer alteração à legislação que enquadrava o mesmo.

C) Designadamente no que respeita à legislação relativa à defesa da floresta contra incêndios e às regras sobre construção que a mesma impunha.

D) Só em 06.01.2020 é que a A, comunicou ao R. que não pretendia celebrar o contrato prometido, invocando para tal, e pela primeira vez, a situação do corte do caminho de acesso ao imóvel prometido vender e comprar.

E) Nunca, entre maio de 2019 e janeiro de 2021, a Autora tinha invocado tal situação como impeditiva da celebração da escritura pública de compra e venda do imóvel prometido comprar e vender no âmbito do contrato objeto dos presentes autos.

F) Nem tal foi apresentado aos Réus, como condição de qualquer alteração ou modificação dos termos e condições constantes do contrato-promessa celebrado em 28 de março de 2018.

G) A Autora sempre se mostrou pouco diligente e proativa no acompanhamento e condução do Pedido de Informação Prévia junto da Câmara Municipal de ...,

H) Demorando a responder e a esclarecer às diversas solicitações desta entidade.

I) O deferimento do Pedido de Informação Prévia apresentado pela Autora, chegou ao conhecimento dos Réus em 04 de janeiro de 2021.

J) O PIP pode ser renovado por novo período de 1 ano.

K) O fecho do caminho teve em vista impedir o acesso dos Réus e apenas dos Réus ao seu imóvel objeto do contrato-promessa de compra e venda aqui em causa, pois aos demais utilizadores do caminho foi dada uma chave para abertura do portão.

L) Quando foi comunicada à A. o fecho do caminho, a mesma não manifestou qualquer preocupação, reserva ou incómodo quanto à concretização da promessa de compra e venda.

B. De Direito

Os requisitos da relevância da alteração das circunstâncias

1. De acordo com o art. 406.º, n.º 1, do CC, "o contrato deve ser pontualmente cumprido, e só pode modificar-se ou extinguir-se por mútuo consentimento dos contraentes ou nos casos admitidos na lei."

2. Constitui exceção a este princípio da força vinculativa dos contratos a possibilidade de resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias.

3. Assim, conforme o art. 437.º, n.º 1, do CC, "se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal, tem a parte lesada direito à resolução do contrato, ou à modificação dele segundo juízos de equidade, desde que a exigência das obrigações por ela assumidas afecte gravemente os princípios da boa fé e não esteja coberta pelos riscos próprios do contrato"; acrescentando o n.º 2 do mesmo preceito que "requerida a resolução, a parte contrária pode opor-se ao pedido, declarando aceitar a modificação do contrato nos termos do número anterior."

4. A resolução do contrato consubstancia-se, fundamentalmente, num imperativo do princípio da justiça contratual (verificadas certas alterações de circunstâncias sobre as quais as partes alicerçaram a decisão de contratar).

5. Está em causa um contrato de execução diferida, existindo uma hiato temporal entre o ato constitutivo da relação jurídico-negocial (celebração do contrato promessa de compra e venda – 25 de março de 2018) e o ato de cumprimento (celebração do contrato de compra e venda – até dois meses após a notificação do resultado do Pedido de Informação Prévia pela Câmara Municipal de ... e da comunicação do processo do cadastro).

6. A questão da invocabilidade do art. 437.º, n.º 1, do CC, é a de saber se a Autora/Recorrente pode, com base nesse preceito, eximir-se, total ou parcialmente, ao cumprimento da obrigação de celebrar o contrato prometido, alegando, para o efeito, o impacto da falta de livre acessibilidade à IC... no empreendimento turístico por si projetado no imóvel que prometeu comprar.

7. A invocabilidade do art. 437.º, n.º1, CC, pela Autora/Recorrente, exige, naturalmente, a alegação e a prova dos elementos constitutivos da respetiva previsão ou facti-species. Impende sobre ela o ónus correspondente.

8. Considere-se então o contrato sub judice perante os elementos que se identificam naquele preceito: a) que a alteração diga respeito a circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar; b) que essas circunstâncias tenham sofrido uma alteração anormal; c) que a estabilidade do contrato ou dos seus termos acarrete uma lesão para uma das partes; d) que a estabilidade do contrato ou dos seus termos afete gravemente os princípios da boa fé; e) que a situação não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato.

9. Impõe-se, pois, apurar se o contrato-promessa de compra e venda celebrado entre a Autora e os Réus foi afetado por uma alteração das circunstâncias, justificativa da sua resolução.

10. O instituto da alteração das circunstâncias ilustra a relação de tensão dialética que existe entre o princípio do cumprimento pontual dos contratos - pacta sunt servanda – e o reconhecimento, pela ordem jurídica, de que a exigibilidade absoluta do cumprimento, perante uma modificação radical das circunstâncias subsistentes ao tempo da conclusão do negócio jurídico, pode traduzir-se numa summa injuria. Isto significa a possibilidade de surgir um conflito entre o princípio da autonomia privada – que exige o acatamento das vinculações assumidas – e a justiça da relação contratual - a preservar perante a verificação de uma alteração das circunstâncias.

11. Este conflito entre o princípio da autonomia privada e a justiça contratual pode ser resolvido com base no instituto da alteração das circunstâncias, que o legislador consagrou, no art. 437.º, n.º 1, do CC, procedendo a uma certa harmonização prática entre eles.

12. Averiguar da possibilidade de resolver o contrato por alteração das circunstâncias traduz-se em apurar quando é que a pretensão ao cumprimento se revela como que radicalmente contrária à justiça material que é exigência fundamental da ordem jurídica.

13. A contrariedade da pretensão de cumprimento a essa exigência de justiça material está legalmente associada a uma ideia de inexigibilidade à luz dos “princípios da boa fé” (art. 437.º, n.º 1, do CC). Todavia, a possibilidade de resolver o contrato por alteração das circunstâncias representa um desvio ao princípio do cumprimento pontual dos contratos (art. 406.º, n.º 1, do CC). Daqui decorre que compete ao sujeito que queira prevalecer-se de uma alteração das circunstâncias a prova dos seus pressupostos de facto, como lhe pertence também o ónus da argumentação jurídica tendente à sua qualificação para o efeito das consequências desse instituto. O que significa igualmente que uma situação de incerteza só se resolve juridicamente de modo correto negando a aplicabilidade do instituto da alteração das circunstâncias.

14. A Autora baseia o seu pedido de resolução do contrato promessa de compra e venda por alteração das circunstâncias numa perturbação do equilíbrio contratual (cf. Conclusões A, B, E, K, L, M e EE das suas alegações de recurso). Contudo, não lhe assiste razão. Uma alteração das circunstâncias dá lugar à resolução do contrato, não porque o resultado económico da realização do contrato para as partes tenha sido desigual (ou especialmente gravoso, até, para uma delas), mas só na medida em que certas circunstâncias supervenientes tenham vindo como que a ameaçar a justiça da relação contratual apurada perante a alocação inicial do risco inerente ao contrato1. A resolução do contrato por alteração das circunstâncias não se encontra de modo algum legalmente vinculada à salvaguarda de um princípio de equilíbrio contratual tão só aferido pelos resultados. Na verdade, não é desequilibrado um contrato em que o risco do negócio em que uma das partes pretende incorrer com base nele corra exclusivamente por conta dela. É o que decorre, de resto, das regras gerais de distribuição do risco contratual. A ordem jurídica pátria não impõe a celebração de contratos equilibrados: nem de contratos equilibrados ab initio, nem de contratos equilibrados nos seus efeitos práticos finais. A norma do art. 437.º, n.º 1, do CC, não se lhe refere, em tão pouco vincula o instituto da alteração das circunstâncias ao objetivo, in se e per se, de um equilíbrio contratual. Por conseguinte, o reequilíbrio de que pode falar-se apenas pode ser o da restauração da justiça contratual implicada pela relação contratual inicialmente estabelecida. Isto significa que compete ao sujeito a avaliação e a decisão sobre o conteúdo das obrigações que assume, sem que caiba à ordem jurídica sindicar por princípio a equivalência das vinculações assumidas aos interesses materiais em jogo. E muito menos a posteriori. Se assim não fosse, abrir-se-iam as portas ao oportunismo. Acresce que o respeito pela autonomia da contraparte não pode deixar de aceitar desequilíbrios contratuais. Se o sujeito celebrou um negócio jurídico desequilibrado, sibi imputet. Trata-se de uma consideração que uma sociedade comercial, como a Autora, não deve descurar.

15. Entende-se, por isso, que o controlo do equilíbrio contratual seja normalmente feito pela ordem jurídica portuguesa tão só se o espaço da autonomia do sujeito se mostrou por alguma forma perturbado. O que a Autora alega é diverso: não invoca um vício originário do contrato promessa, mas antes uma vicissitude que, supostamente e em sua opinião, a afetaram, produzindo uma injustiça que esta alegadamente não permitiria, ao ponto de se requerer a sua resolução. Só que o desequilíbrio de uma relação afetada por uma circunstância superveniente apenas pode relevar perante o contrato celebrado e a alocação do risco decorrente da sua natureza. A demonstração desse desequilíbrio implica, portanto, uma comparação e uma identificação da equação económica inicial do contrato que é, inteiramente, encargo e ónus de quem queira dele prevalecer-se.

16. Pelo que, in casu, toda a incerteza ou dúvida é resolvida contra a Autora.

17. O fulcro do art. 437.º, n.º 1, do CC, encontra-se nos “princípios da boa-fé”. É à luz destes princípios que os pressupostos da aplicação do instituto da alteração das circunstâncias devem ser preenchidos. A boa-fé convoca, naquela disposição, a necessidade de a relação contratual não poder manter-se se deixar de se poder considerar minimamente justa depois da verificação de uma alteração das circunstâncias. Não se trata de corrigir um qualquer desequilíbrio supervenientemente ocorrido, nem de salvar uma das partes de uma (hipotética) lesão numa comparação abstrata com a posição da outra parte; como não se trata de identificar tais situações com uma injustiça, pois a ordem jurídica não interfere, via de regra, no que as partes livremente estabeleceram, nem nos riscos que decidiram correr e que podem onerar apenas, e gravemente, uma delas. A boa-fé permite apenas avaliar a justiça de uma relação atingida por certa vicissitude à luz da racionalidade originária do contrato, fosse ela já então equilibrada ou não. O instituto da alteração das circunstâncias visa tutelar aquela justiça mínima que uma relação efetivamente afetada por uma perturbação anormal entretanto ocorrida há-de preservar2. E tal por comparação com a justiça inicial da relação, tal qual as partes a configuraram. Os “princípios da boa-fé” que a lei refere correspondem à exigência de que se mantenha a justiça da relação atingida pela superveniência em consideração do modo por que foi ab initio configurada pelas partes. Daí a importância de respeitar a alocação originária do risco assumida pelas partes, que o art. 437.º, n.º 1, do CC, não pode sacrificar.

18. No caso em apreço, a Autora pretende, na verdade, modificar uma alocação do risco que lhe é alegadamente desfavorável, desrespeitando a forma por que a distribuição desse risco foi, desde o início, entendida por ela.

19. Deve também levar-se em devida linha de conta que a alteração das circunstâncias só releva se a lesão da justiça da relação contratual, tal como configurada inicialmente pelas partes, for realmente grave. O requisito é doutrinariamente aceite. O art. 437.º, n.º 1, do CC, exige que a alteração das circunstâncias, para ser juridicamente relevante, “afecte gravemente os princípios da boa-fé”. Entende-se que, dada a importância do princípio pacta sunt servanda, a ordem jurídica, em nome da boa-fé, apenas consinta a resolução do contrato se a lesão de uma das partes na sequência da ocorrência de circunstâncias supervenientes que afetaram a relação for significativa. Quando exige uma violação grave dos princípios da boa-fé, o art. 437.º, n.º 1, do CC, requer que uma das partes tenha sofrido um prejuízo muito significativo face ao modo como o contrato foi inicialmente configurado pelas partes, pois só então se torna exigível a resolução do contrato com base na boa-fé. Importa, de novo, recordar que a gravidade da lesão se afere, não por referência a quaisquer resultados económicos finais de determinado contrato, mas perante a alocação do risco inerente ao contrato celebrado.

20. Esta prova cabe à Autora.

21. De relevante importância para a solução do presente caso é que as circunstâncias supervenientes invocadas pela Autora só podem dar lugar à resolução do contrato se corresponderem às “circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar”. A falsa perceção dessas mesmas circunstâncias pelas partes, ao tempo da celebração do negócio jurídico, é tratada na nossa ordem jurídica como erro sobre a base do negócio (art. 252.º, n.º 2, do CC). Já as alterações supervenientes foram, ao longo do tempo, objeto de diversos entendimentos. Desde logo, de acordo com uma fórmula antiga, rebus sic stantibus intelliguntur. A cláusula rebus sic stantibus é suscetível de ser compreendida por referência à vontade das partes, como uma cláusula contratual, ainda que tacitamente fixada, segundo a qual elas apenas aceitariam vincular-se contratualmente enquanto persistisse o ambiente objetivo vigente ao tempo da celebração do negócio jurídico. Depois, ainda na mesma linha, a teoria da pressuposição: estava em causa uma condição ou pressuposição presente na vontade negocial comum, ainda que não desenvolvida ou apenas tacitamente assumida. Aplicando estas teses – a da cláusula rebus sic stantibus e a da pressuposição - ao caso sub judice, seria necessária a prova, pela Autora, de uma vontade de ambas partes – incluindo, portanto, a dos Réus – no sentido da fixação tácita da cláusula rebus sic stantibus, ou de uma pressuposição como condição não desenvolvida a que este teria aderido.

22. A factualidade provada não permite concluir que a Autora tenha cumprido esse ónus.

23. Foi com o desenvolvimento posterior da noção de base negocial que “a alteração anormal das circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar” se deslocou do âmbito da vontade para o da boa-fé3. Apesar de ter inspirado a formulação do art. 437.º, n.º 1, do CC, não é de fácil concretização. Situa-se entre um entendimento subjetivo, como representação comum das partes de um certo estado de coisas, para ambas determinante, e um entendimento objetivo, traduzindo aquele circunstancialismo existente ao tempo da celebração do negócio jurídico (representado ou não pelos sujeitos em causa) cujo desaparecimento compromete a causa da vinculação ou o escopo contratual conjunto, independentemente de previsão das partes4. A sua plasticidade não significa, porém, que não tenha limites que não podem ser ultrapassados e que condicionam seriamente a sua aplicação à situação sub iudice.

24. Pode dizer-se que a receção da teoria da base do negócio no nosso ordenamento jurídico, embora mitigada pelo princípio da boa-fé, confere ao instituto da alteração das circunstâncias uma dimensão contemporânea do momento da celebração do contrato, eventualmente até, cum grano salis, numa perspetiva algo subjetivista5. Segundo a posição dominante, são circunstâncias em que se alicerçou a decisão de contratar, em que as partes fundaram a decisão de contratar os factos que, respeitando a uma delas ou a ambas, determinaram, de modo essencial, a vontade negocial e, assim, condicionam o efeito vinculativo das declarações negociais. A base do negócio é, por conseguinte, bilateral ou comum às partes - representação comum, ou representação unilateral notória ou conhecida da outra parte6.

25. Seria necessário que a Autora/Recorrente provasse ter sido fundamento do contrato promessa de compra e venda celebrado a circunstância de não existir perturbação ao livre acesso ao imóvel prometido comprar. Aquela condição implícita está ancorada na natureza do contrato, no reconhecimento mútuo ou no reconhecimento daquela essencialidade pela outra parte, ou na boa-fé. In casu, ao tempo da celebração do contrato-promessa verifica-se a livre acessibilidade ao imóvel objeto do contrato prometido através de um caminho de pedra e terra, com cerca de 120 metros de comprimento e 7,20 metros de largura, situado a sul do prédio prometido vender/comprar e que ligava o dito prédio à via pública, concretamente à IC..., acessibilidade que perdurou no tempo durante mais de 60 anos (e até 2 de maio de 2019) – cf. factos provados sob os n.os 11 e 12. Está igualmente provado que o projeto que a promitente-compradora pretendia implementar no imóvel em causa nos autos - um conjunto de alojamentos destinados a “residências sénior”, em número de 100 unidades, complementados com áreas comuns e serviços de residência assistida –, o qual era do conhecimento dos Réus/Recorridos/promitentes-compradores (cf. facto provado sob o n.º 17) -, dependia da existência incontestada de caminho de acesso público ao imóvel e da sua livre utilização por clientes, trabalhadores, fornecedores e demais utilizadores daquele empreendimento (cf. factos provados sob os n.os 17, 31 e 32).

26. Contudo, ao tempo da celebração do contrato-promessa, as partes não representaram positivamente, conscientemente a possibilidade de a livre acessibilidade à IC... vir a ser perturbada. Nem condicionaram tão pouco a eficácia desse contrato à ausência de qualquer perturbação a esse livre acesso à IC.... Isto mesmo se encontra mencionado tanto na missiva da Autora de 22 de janeiro de 2021, “essa questão nem sequer se colocou aquando da discussão e outorga do referido contrato”, como na sentença do Tribunal de 1.ª Instância, “Mas, como acima ficou dito, quando o contrato promessa foi celebrado havia o acesso irrestrito ao prédio, em face da transitabilidade pelo caminho, sendo que não resultou provado que a mesma alguma vez tivesse sido questionada, além de que a descrição predial refere que o prédio confronta de sul com “caminho público”, natureza que suscita a convicção da sua livre tansitabilidade, que nos termos do que resulta do ponto 11, sucedia há mais de 60 anos.

27. Atente-se, pois, na base do negócio em sentido subjetivo. Consistindo o regime da alteração das circunstâncias numa resposta da ordem jurídica a uma discrepância ou desconformidade entre o contrato e a realidade, exige-se a prova das representações das partes correspondentes ao que constituem alegadamente as circunstâncias em que ambas – e não apenas uma – fundaram a sua decisão de contratar. O que, no caso em apreço, implicaria a prova de que ambas aceitaram e deram a sua concordância em de algum modo submeter a sorte do contrato à evolução de certas circunstâncias num dado sentido. E ainda que o não tivessem expresso: como que corresponderia a uma espécie de condição ou a uma cláusula não desenvolvida e apenas tacitamente assumida (conforme as teses da cláusula rebus sic stantibus ou da pressuposição).

28. No caso sub judice, o ónus dessa prova cabe integralmente à Autora. O que inclui a demonstração, não só das representações que pudessem ter os Réus a respeito do que constitui a sua base do negócio, como também da sua disponibilidade ou vontade para aceitar condicionar a eficácia do contrato à manutenção de certas circunstâncias por eles também representadas (ou à não verificação de certas eventualidades ou ocorrências).

29. Da factualidade provada resulta que semelhante prova não foi feita pela Autora, pois tal não decorre dos factos dados como provados sob os n.os 17 e 21(17. Conforme era do expresso conhecimento dos Réus, tal acesso seria sempre condição essencial à realização do projeto da promitente compradora de construir no Imóvel um Empreendimento de Turismo em Espaço Rural, o qual depende, naturalmente, da existência incontestada do caminho de acesso público ao Imóvel e da sua livre utilização por clientes, trabalhadores, fornecedores e demais utilizadores daquele empreendimento. 21. A Autora deixou bem claro aos Réus que era condição essencial para a realização do negócio prometido a existência e prova do livre e incontestado acesso ao imóvel através da via pública, nos termos e pelo caminho com base no qual foi celebrado o Contrato-Promessa e elaborados e submetidos todos os projetos e documentação referentes ao empreendimento turístico a construir no local, designadamente o projeto de arquitetura e o pedido de informação prévia, e que tal situação teria de estar regularizada e devidamente documentada até à decisão por parte da Câmara Municipal de ... do referido pedido de informação prévia.). Desses factos apenas resulta que os Réus conheciam a essencialidade do acesso á via pública para a realização do empreendimento turístico que a Autora projetara, de um lado e, de outro, que antes da data marcada para a celebração do contrato de compra e venda, a Autora recordou os Réus dessa essencialidade. Tal não integra a base do negócio entendida em sentido subjetivo. Reitere-se que isto mesmo se encontra plasmado na missiva da Autora de 22 de janeiro de 2021, “essa questão nem sequer se colocou aquando da discussão e outorga do referido contrato”, e na sentença do Tribunal de 1.ª Instância, “Mas, como acima ficou dito, quando o contrato promessa foi celebrado havia o acesso irrestrito ao prédio, em face da transitabilidade pelo caminho, sendo que não resultou provado que a mesma alguma vez tivesse sido questionada, além de que a descrição predial refere que o prédio confronta de sul com “caminho público”, natureza que suscita a convicção da sua livre tansitabilidade, que nos termos do que resulta do ponto 11, sucedia há mais de 60 anos.” Efetivamente, a base do negócio na alteração das circunstâncias é bilateral: respeita simultaneamente aos dois contraentes e não pode dizer-se que as circunstâncias invocadas pela Autora/Recorrente tenham sido, para os promitentes-vendedores, determinantes do contrato promessa de compra e venda ao tempo da sua celebração.

30. Um conceito objetivo da base negocial (i.e, “circunstâncias em que as partes fundaram a sua decisão de contratar“) origina igualmente muitas limitações e exigências. Compreendida objetivamente, a base negocial identifica uma área de risco comum a ambas as partes, cuja superveniência deve ser suportada por ambas independentemente das representações e da vontade que possam ter tido. Assim entendida, a base do negócio encontra-se ou cruza-se com a noção de riscos próprios do contrato mencionada no art. 437.º, n.º 1, in fine, do CC: é que aquilo que constitui risco próprio do contrato para uma das partes não pertence ex definitione à base comum do mesmo. Deste modo, “as circunstâncias em que ambas as partes fundaram a sua decisão de contratar” requerem a ponderação do tipo de negócio jurídico que elas celebraram e da alocação do risco a que nele procederam. Em geral, os riscos próprios de cada contrato obtêm-se com base no tipo contratual a que pertence o contrato celebrado e das cláusulas estabelecidas pelas partes. Tudo o que se encontra incluído em tais riscos está, por definição, fora do âmbito de relevância da base negocial objetiva. De acordo com o art. 437.º, n.º 1, in fine, do CC, não se permite a resolução do contrato quando a alteração das circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar pertence aos riscos próprios do contrato, aplicando-se, nesse caso, o regime do risco próprio desse contrato. Assim, se a perturbação superveniente afeta apenas a esfera de risco de uma das partes, não há lugar à resolução do contrato. Diversamente, a resolução do contrato já tem lugar quando a perturbação superveniente afeta uma esfera de risco comum a ambas partes – i.e, não reservada pela lei ou pelo negócio jurídico a apenas uma delas. Pode dizer-se que quando a base negocial (comum) é entendida em sentido objetivo, a sua demonstração acaba por implicar também uma prova (negativa) de que não se está perante riscos próprios do contrato. Relevante é atender à distribuição do risco contratual tal como visado pelo tipo de negócio e pelas estipulações das partes. Em si, a alegação de que havia, do ponto de vista de uma das partes, um equilíbrio inicial do contrato que foi subvertido pela ocorrência de circunstâncias supervenientes não é suficiente: o equilíbrio inicial é distinto da base negocial objetiva em que assenta o negócio.

31. O ónus da prova da alteração de uma base negocial comum em sentido objetivo é de quem dela se quer prevalecer: in casu, da Autora. E é a esta que cabe demonstrar que as circunstâncias que alegadamente constituem essa base comum não correspondem a vicissitudes inseridas na esfera de risco de cada uma das partes, própria do contrato em causa. Ela suporta integralmente o ónus da prova. Correndo, também por isso, inteiramente o risco da incerteza e da dúvida sobre a ocorrência de um fundamento de resolução do contrato.

32. Aliás, a alocação do risco própria do contrato promessa de compra e venda contraria a possibilidade de afirmar que a ocorrência das circunstâncias supervenientes alegadas pela Autora consubstancia uma alteração da base negocial. Por isso, a ação não pode deixar de ser decidida contra a Autora.

33. Com efeito, as duas regras fundamentais de distribuição do risco contratual, subsidiariamente aplicáveis, representam um obstáculo às pretensões da Autora. «As duas grandes regras sobre a distribuição do risco contratual dizem-nos que o devedor corre o “risco de prestação” e o credor o “risco de utilização”. No risco de prestação são abrangidos o do agravamento do custo ou das dificuldades da prestação, enquanto esta se mantém possível in natura, o da perda do direito à contraprestação e o da perda dos dispêndios e esforços feitos com vista à prestação, quando esta se torne impossível. […] O risco de utilização da prestação, que recai sobre o credor, traduz-se em a prestação não servir para o fim a que este a destinava, ou em não poder ele utilizá-la para esse ou outro fim, por se ter malogrado o seu plano de aplicação da mesma. Quando o plano obrigacional venha a falhar por contingência que atinja a prestação (em si, como conduta ou processo, ou no seu objecto), temos um “risco de prestação”, que é risco do devedor; quando o mesmo plano se frustre ou venha a falhar por contingências relacionadas com o uso da prestação pelo credor, ou com a esfera da vida ou com a empresa deste (atinentes, à participação deste na concreta execução da prestação), temos um «”isco de utilização" […], que é risco do credor. O “risco de prestação” onera o devedor, o “risco de utilização” […] recai sobre o credor»7. No caso em apreço, as contingências de que a Autora se queixa – as perturbações à livre acessibilidade à IC... e o seu impacto no empreendimento turístico que pretendia construir no imóvel que prometeu comprar – consubstanciam um risco dela, porque atingem apenas o seu plano de aproveitamento de uma prestação dos Réus – a venda do imóvel e consequente transferência do direito de propriedade sobre o imóvel – que os Réus pretendem realizar. O risco do desperdício do valor-utilidade ou do rendimento da prestação é, por princípio, do credor, titular do direito à prestação. Não seria certamente assim se a Autora tivesse acautelado devidamente essas contingências no contrato que celebrou com os Réus. Mas tal não foi previsto. Quer dizer que a distribuição do risco da ocorrência das circunstâncias supervenientes que, segundo a Autora, interferiram no contrato promessa de compra e venda, determinado de acordo com as regras mencionadas, só poderia ser alterada se a Autora mostrasse que o risco de utilização ou emprego da prestação a cargo dos Réus devia correr também por conta destes.

34. Diga-se, ainda, que, de acordo com o art. 410.º, n.º 1, do CC, “À convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo contrato são aplicáveis as disposições legais relativas ao contrato prometido, exceptuadas as relativas à forma e as que, por sua razão de ser, não se devam considerar extensivas ao contrato-promessa”. O regime da compra e venda não permitiria à Autora obter a anulação do contrato com base nos arts. 905.º e ss do CC, pois a perturbação, por terceiro, da livre acessibilidade à IC... não configura “ónus ou limitações que excedam os limites normais inerentes aos direitos da mesma categoria” (art. 905.º, n.º 1). Os meios de tutela contra esse tipo de perturbação são outros.

35. A prova competia, pois, à Autora.

36. Via de regra, se o risco de certa superveniência se encontra alocado a uma das partes por alguma específica regra legal ou contratual, não haverá lugar à resolução do contrato fundado em alteração das circunstâncias. De acordo com as regras de distribuição do risco contratual mencionadas supra, pode dizer-se que quando a verificação de circunstâncias supervenientes afeta apenas o fim de emprego da prestação do devedor, esse risco é tão só do credor, não podendo ser transferido para a contraparte. Assim, salvo se do contrato resultasse que os Réus assumiam a partilha do risco da frustração desse fim, esse risco não pode deixar de ser alocado inteiramente à Autora. Por isso, não há lugar à resolução do contrato por alteração das circunstâncias: justamente porque o insucesso económico do empreendimento turístico que pretendia implementar no imóvel prometido vender e comprar é risco próprio da Autora.

37. Porém, mesmo perante um entendimento diverso – de que a perturbação da livre acessibilidade à IC... era facto cujo impacto no contrato promessa de compra e venda estava para além da alocação do risco nele estabelecido -, não deixa de ser verdade que os efeitos das circunstâncias supervenientes se localizam essencialmente no plano do sucesso económico do projeto turístico almejado, materializando-se na diminuição de receita da Autora. Trata-se de prejuízos que se encontram, ainda assim, fundamentalmente associados a uma tipologia de riscos que são geneticamente da Autora.

38. Note-se ainda que o art. 437.º, n.º 1, do CC, apenas prevê a resolução do contrato quando haja uma lesão do sujeito, e não quando ele deixou tão só de obter uma vantagem que pretendia com o contrato.

39. Conforme referido supra, o espaço de relevância de uma alteração das circunstâncias encontra-se recortado por aquilo que são os riscos próprios do contrato. Tudo o que constitua risco do contrato para uma das partes tem de excluir-se da base negocial comum (i.e., daquelas circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar). Não importa, portanto, que a Autora pretendesse realizar um projeto turístico no imóvel que prometeu comprar e que os Réus conhecessem essa sua pretensão, assim como a essencialidade, para o efeito, da livre acessibilidade à IC.... O que de modo algum resulta do exposto é que o conhecimento pelos Réus da representação e expectativa da Autora implica automaticamente a assunção, por parte daqueles, do risco das falhas dessas previsões. Em sede de alteração das circunstâncias, a base do negócio perturbada tem de ser de ambas as partes. Assim, uma representação subjetiva que se mostre partilhada pelas partes não importa ipse jure uma partilha de risco. Se ela incide sobre um elemento de que uma das partes suporta, por princípio, o risco em virtude das regras de alocação do risco contratual – em que ao credor cabe suportar o risco da rendibilidade da prestação no âmbito da atividade a que se dedica –, a alocação desse risco à outra parte exige a demonstração da vontade de esta assumir ou partilhar um risco a que, por princípio, era alheio.

40. No caso sub iudice, tal não foi demonstrado.

41. Por último, a perturbação, por terceiro, do exercício de um direito real é como que um risco ou circunstância normal, inerente, designadamente, à posição de titular do direito de propriedade, que não justifica a intervenção do regime da alteração das circunstâncias e não fundamenta a resolução do contrato. É que a circunstância superveniente deve ser extraordinária, determinada por uma daquelas causas que na estatística são denominadas como acidentais, por se verificarem em via não normal. Para a Autora, na qualidade de promitente compradora, a perturbação do livre acesso ao imóvel prometido adquirir é sempre um evento anormal, qualquer que seja a causa; ela celebra o contrato na expectativa de que aquele livre acesso à IC... não seja perturbado, pelo que a sua perturbação não se inclui dentro daquele risco que as partes costumam tomar em consideração ao concluir negócios desse tipo. Os riscos de perturbação do exercício do direito de propriedade traduzidos na perturbação do livre acesso ao prédio prometido comprar são riscos inerentes a qualquer proprietário de um imóvel como aquele dos autos. O promitente-comprador sofre a concretização dos riscos normais, inerentes à posição de titular de um tal direito de propriedade. Suporta os riscos que têm relevância no tráfego. Não se descura que para o promitente-comprador concreto a perturbação do livre acesso ao imóvel prometido adquirir é sempre um evento anormal — ninguém promete comprar um prédio à espera de ver o livre acesso perturbado logo de seguida. Mas este sentimento diz respeito ao dano e não ao risco. O que se pode dizer é que o dano é anormal para cada promitente-comprador; o risco desse dano ocorrer é normal ou anormal, e está presente em cada caso, porque é um risco objetivo. Na medida em que o risco de perturbação do exercício do direito de propriedade pode ser considerado um risco normal, será suportado por todos os promitentes-adquirentes em circunstâncias idênticas8.

Em jeito de conclusão,

1. Inverificando-se os requisitos necessários para que a alteração das circunstâncias invocada pela Autora/Recorrente legitime a resolução do contrato celebrado, ao abrigo do art. 437.º do Cód. Civil, impõe-se o respeito pelo princípio da autonomia privada, pelo princípio pacta sunt servanda, pela lex contractus. Justifica-se pois a imodificabilidade das obrigações assumidas pelas partes, não exonerando a Autora/Recorrente das suas obrigações. Outra solução desconsideraria a economia e a justiça do programa contratual.

2. O arquivamento do Pedido de Informação Prévia, no decurso do prazo estabelecido para a apresentação das alegações de recurso de revista da Autora, deveu-se à falta de impulso do processo de licenciamento, dentro do prazo legal, por parte da Autora – sibi imputet.

3. De resto, já transitou em julgado a decisão, proferida na ação n.º 533/20.2... do Juízo Central Cível – Juiz ..., que reconheceu aos Réus o direito de passagem adquirido por usucapião, pelo caminho identificado supra. Isto também consentiria ao negócio conduzir a bom porto o resultado negocial que a Autora teria prefigurado ab initio – cf. documento junto pelos Réus/Recorridos ao abrigo do art. 680.º do CPC.

4. Fica prejudicado o conhecimento da questão dos efeitos da declaração de resolução.

IV - Decisão

Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pela Autora Figuravulsa-Unipessoal, Lda., confirmando-se o acórdão recorrido, ainda que com fundamentação diferente.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 11 de Julho de 2023


Maria João Vaz Tomé (Relatora)

Manuel Aguiar Pereira

Pedro Lima Gonçalves

_____________________________________________


1. Cf. Manuel A. Carneiro da Frada, Alteração das Circunstâncias e Justiça do Contrato, Cascais, Principia, 2021, pp. 33-34.↩︎

2. Cf. Manuel A. Carneiro da Frada, Alteração das Circunstâncias e Justiça do Contrato, Cascais, Principia, 2021, pp. 31 e ss.↩︎

3. Cf. António Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, II, Coimbra, Almedina, 11984, pp. 1035 e ss.↩︎

4. Cf. Manuel A. Carneiro da Frada, Alteração das Circunstâncias e Justiça do Contrato, Cascais, Principia, 2021, pp. 49 e ss.↩︎

5. Relativamente à evolução histórica do instituto da alteração das circunstâncias no Direito luso, cf. João de Matos Antunes Varela, Ineficácia do Testamento e Vontade Conjectural do Testador, Coimbra, 1950, p.263 e ss, e 323 e ss; Luís Carvalho Fernandes, A Teoria da Imprevisão no Direito Civil Português, Lisboa, 2001; Mário Júlio de Almeida Costa, Direito das Obrigações, Almedina, Coimbra, 2009, p.285 e ss.↩︎

6. De acordo com Heinrich Ewald Hoerster, "Desta maneira, a base negocial é a representação de uma das partes, existente na altura da conclusão do contrato e reconhecida quanto ao seu significado pela outra parte, sem ser contestada por esta, ou a representação comum de ambas as partes, acerca da existência ou a futura verificação ou não-verificação de certas circunstâncias, sobre as quais assentou a vontade negocial" - A Parte Geral do Código Civil Português. Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra, 1992, p. 577; Henrique Sousa Antunes, “Anotação ao Artigo 437.º”, in Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, Das Obrigações em Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2018, pp. 156 e ss; João Calvão da Silva, “Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2013”, in RLJ, 143, p. 369.↩︎

7. Cf. João Baptista Machado, Obra Dispersa, I, Braga, Scientia Ivridica, 1991, pp. 274-275.↩︎

8. Embora num contexto diferente, cf. Guilherme de Oliveira, “Alteração das circunstâncias, risco e abuso do direito, a propósito de um crédito de tornas. Parecer”, in Colectânea de Jurisprudência, Tomo V, 1989, pp. 24 e ss.↩︎