CRIME DE BURLA
PREJUÍZO PATRIMONIAL
CONSUMAÇÃO
LOCAL DA PRÁTICA DO CRIME
TRIBUNAL COMPETENTE
Sumário

I. No crime de burla o resultado corresponde à medida do empobrecimento do sujeito passivo, em consequência da conduta astuciosa do agente.
II. A consumação do ilícito não depende do enriquecimento do agente, antes ocorre no momento me que se dá o empobrecimento do ofendido, na circunstância o momento em que o lesado perde o controlo do património que de boa fé entregou e por essa via perdeu.
III. Sendo o local em que ocorre o empobrecimento aquele que releva para a determinação da consumação do crime, é esse também o que determina o tribunal territorialmente competente para o conhecimento do ilícito cometido.

Texto Integral

ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA

1. RELATÓRIO


A – Decisão Recorrida

Nos autos nº 701/20.7T9STC a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo de Instrução Criminal, Juiz ..., foi proferido despacho de pronúncia em relação aos arguidos AA, BB e A..., Unipessoal, Lda, pela prática:
- um crime de burla qualificada, p.p., pelas disposições conjugadas dos Artsº 14 nº1, 26,, 217 nº1 e 218 nº1 do C. Penal, por referência ao disposto no Artº 202 al. a) do mesmo Código, no que concerne ao ofendido CC;
- um crime de burla qualificada, p.p., pelas disposições conjugadas dos Artsº 14 nº1, 26,, 217 nº1 e 218 nº2 al. a) do C. Penal, por referência ao disposto no Artº 202 al. b) do mesmo Código, no que concerne à sociedade ofendida B...– Sociedade Unipessoal, Lda;
- um crime de burla qualificada, p.p., pelas disposições conjugadas dos Artsº 14 nº1, 26,, 217 nº1 e 218 nº1 do C. Penal, por referência ao disposto no Artº 202 al. a) do mesmo Código, no que concerne ao ofendido DD;

Aquando do momento para designar dia para Audiência de Julgamento, o Juiz ... do Juízo Central Criminal ..., proferiu o seguinte despacho (transcrição):

Como é sabido, os poderes autónomos de investigação do Tribunal supõem a declaração, no encerramento do inquérito, que se reuniram os indícios suficientes, conducentes à dedução da acusação (princípio da acusação) ou que, sujeitos às balizas legais da fase instrutória, os mesmos se verificam e, por isso conduzem à prolação do despacho de pronúncia, certo porém, que tais poderes quando cabalmente exercidos se hão de conter nos limites temáticos que determinam a sujeição do arguido a julgamento, e por isso mesmo, não os pode o tribunal livremente exceder (vinculação temática),
Por isso, o objeto do processo coincide com o objeto da acusação ou da pronúncia, no sentido de que é esta que fixa os limites da atividade cognitiva e decisória do tribunal, ou dito noutros termos, o thema probandurn e o thema decidendum.
No exato rigor, o thema probandum, impõe que a atividade do tribunal penal, consubstanciada na investigação e prova de determinados factos não possa sair fora dos limites traçados pela acusação (ou pela pronuncia, no caso de ter sido a fixar o objecto processual, como sucede no caso concreto) no acervo fático em que converge a sujeição do arguido a julgamento.
A razão de ser desta primeira abordagem prende-se, naturalmente, com a enunciação que dos factos se fez, para a partir desta se concluir pela falta de competência territorial deste tribunal - de julgamento - para o seu conhecimento e valoração,
É sabido que, a definição do critério atributivo da competência territorial, encontra-se consagrado no artigo 19,°/1 co Código do Processo Penal, que determina ser competente para o conhecimento do crime, o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação.
No caso em apreço, os tipos de crime imputados aos arguidos radicam no preenchimento dos arts. 217.0 e 215.0 (n." 1 e 2) do Código Penal.
O artigo 217.º do Código Penal, que tutela o bem jurídico património em geral tem como seus elementos constitutivos, a criação preordenada de um erro ou engano em que faz incorrer outrem sobre factos, em ordem à sua determinação na prática de atas causadores à vítima ou a terceiro de um prejuízo patrimonial, em benefício do próprio agente ou de terceiro.
O engano traduz-se num aproveitamento intencional de uma falsa representação da realidade pela vítima, encontrando-se a situação sob o domínio do agente, que assim mais que permite incentiva a vítima a laborar no erro que a leva à prática dos factos causadores do prejuízo patrimonial, em favor do agente ou do terceiro em prole de quem atua. O erro em que a vítima incorre pressupõe que a falsa representação operada por esta da realidade, derive da conduta ardilosa do agente, não se mostrando suficiente a simples casualidade da situação de erro em que se encontra a pessoa visada, sendo imprescindível que a fonte do erro em causa seja a conduta assumida pelo agente com vista à criação intencional dessa aparência de realidade.
Num caso e noutro, impõe-se de forma inelutável para o preenchimento do tipo a utilização de astúcia, no sentido mais expressivo e comum do termo, de que ressalta a ideia de que é o agente quem detém o completo domínio dos factos, por forma a que com o seu comportamento, pré ordenadamente determina a pessoa visada à adoção da conduta pretendida.
Verificadas as condutas descritas e imputadas aos arguidos no despacho de pronuncia, importa aferir da ocorrência, eri termos de causa-efeito, de um prejuízo patrimonial, da pessoa a quem o erro ou engano foi dirigido ou de outrem, e de um consequente enriquecimento do agente ou da pessoa que este pretendeu beneficiar. No que ao prejuízo patrimonial respeita, dentro da configuração legal do tipo de crime em causa, qualquer bem, interesse ou direito patrimonial, seja este pessoal ou real, pode ser objeto de lesão. Ainda, em consequência da conduta que vimos referindo, o próprio agente ou um terceiro terá que aceder a um ilegítimo enriquecimento. O enriquecimento tanto pode assumir a forma de aumento patrimonial dos bens do terceiro ou do agente como corresponder a uma diminuição do passivo patrimonial dessas mesmas pessoas, contanto que seja ilegítimo, ou seja, aquele a que não corresponde objetiva ou subjetivamente a qualquer direito.
Finalmente, ao nível subjetivo, assume o tipo de ilícito em causa a forma necessariamente dolosa, implicando que o agente atue movido pelo específico objetivo de, em último termo, obter um enriquecimento para si ou para terceiro, à custa da pessoa visada pelo erro ou engano astuciosamente provocado ou de terceiro que venha a ser patrimonialmente lesado pela conduta adotada por esta e predeterminada pelo agente.
A burla é qualificada quando, nos termos do n° 1 do artigo. 218.° do Código Penal, o prejuízo patrimonial causado ao ofendido for de valor elevado, cominando-se o ilícito com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias.
Por outro lado, a modalidade da burla mais grave encontra previsão no n° 2 do mencionado artigo 218.0 do Código Penal, prevendo-se a imposição de pena de prisão de dois a oito anos de prisão, se: a) O prejuízo patrimonial for de valor consideravelmente elevado; b) O agente fizer da burla modo de vida; c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença; ou d) A pessoa prejudicada ficar em difícil situação económica.
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Na compreensão dos factos, sendo o crime de burla um crime de forma vinculada, descrevendo o tipo o modo executivo de consumação, um crime de dano, por pressupor um prejuízo patrimonial de quem é sujeito passivo, um crime de resultado, porque se consuma com a saída de bens da disponibilidade fáctica do sujeito passivo e um crime de resultado parcial, caracterizando-se por uma descontinuidade ou falta de congruência entre os correspondentes tipo subietivo e objetivo, a consumação não depende do enriquecimento do agente, antes se bastando o empobrecimento do ofendido - Comentário ao Código Conimbricense, 11, 275-277.
Efetivamente, o resultado típico do crime de burla é o empobrecimento do sujeito passivoo, através do comportamento astucioso do agente, sendo que com ele o crime se consuma.
O momento da consumação do crime é, portanto, aquele em que o lesado abra mão da coisa ou do valor sem que a partir daí se possa controlar o seu destino, então já sem disponibilidade sobre esse património, como é entendimento jurisprudencial - ac do STJ de 21-06-2006 (relator Cons. Soreto de Barros) e de 04-06-2003 (relator Cons. Henriques Gaspar).
A consumação do crime exige, pois, o resultado consistente na saída dos bens ou valores da disponibilidade fáctica do legítimo titular, com a verificação de um efetivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro.
É competente para conhecer de um crime o tribunal em cuja área se tiver verificado a consumação, sendo que, verificando-se uma situação de concurso de infrações.
A esse propósito rege o artigo 24.° sobre a conexão de processos e o artigo 28.°, quanto à competência determinada pela conexão, ali se dizendo que se os processos devessem ser da competência de tribunais com jurisdição em diferentes áreas ou com sede na mesma comarca, é competente para conhecer de todos: a) O tribunal competente para conhecer do crime a que couber pena mais grave;
E só na falta de verificação deste critério, em caso de crimes de igual gravidade, o tribunal a cuja ordem o arguido estiver preso ou, havendo vários arguidos presos, aquele à ordem do qual estiver preso o maior número (b); e se não houver arguidos presos ou o seu número for igual, o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia de qualquer dos crimes (c).
Neste plano, a competência é determinada pelo local onde foi cometida a infração mais grave, o critério principal: estando em causa diversos crimes de burla praticados pelos mesmos agentes, em comparticipação, a competência determina-se pelo local onde foi cometida a burla qualificada pelo valor mais elevado, que de acordo com o despacho de pronuncia é a indiciariamente praticada no dia 05/09/2020, sendo ofendida a B...- SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA. e o empobrecimento ocorrido com a entrega dos 69 vitelos na Exploração denominada Herdade ..., sita em ... - factos descritos com inicio a 27/08/2020 quando, de acordo com o alegado. o arguido BB contactou telefonicamente, através do n.º ...54. EE, produtor agro-pecuário e legal representante da sociedade ofendida e, visando a venda de 69 vitelas e nesse circunstancialismo. o arguido BB, na qualidade de legal representante da sociedade arguida, declarou-se interessado na aquisição dos referidos 69 animais, tendo ambos combinado a sua compra e venda pelo montante total de EUR 47.000,00.
Da pronúncia consta ainda que, após a consumação do crédito de tal valor, através de uma transferência bancária para a conta do ofendido, o arguido deslocou-se a referida exploração, para recolha e transporte das 69 cabeças de gado, fazendo parte da descrição da astucia a introdução do facto vertido em 32.º sendo que em 05/09/2020, pelas 16:00 horas, o arguido deslocou-se, então, à Herdade ..., sita em ..., e procedeu ao carregamento das 69 vitelas para o interior do veiculo pesado de matricula ..-ZB-.., pertença da sociedade C... Lda - NUIPC 1563/20.....
Pelo exposto, tudo visto e ponderado, nos termos do artigo 32.°/ 2 - b) do Código do Processo Penai, declaro este Juízo Central da Secção Criminal da Comarca ..., territorialmente incompetente para realizar o julgamento nos presentes autos, declarando territorialmente competente para tal, o Juízo Central ... (Mista) Criminal ....

B – Recurso

Inconformado com o assim decidido, recorreu o MP com as seguintes conclusões (transcrição):

A) O despacho proferido nos presentes autos com referência citius ...70, do qual se recorre, declarou a incompetência territorial do Juízo Central Criminal ..., para realizar o julgamento dos presentes autos e. em consequência, declarou territorialmente competente para a sua realização o Juízo Central Criminal ....
B) Considerou que “a competência é determinada pelo local onde foi cometida a infração mais grave, o critério principal: estando em causa diversos crimes de burla praticados pelos mesmos agentes, em comparticipação, a competência determina-se pelo local onde foi cometida a burla qualificada pelo valor mais elevado, que de acordo com o despacho de pronuncia é a indiciariamente praticada no dia 05/09/2020, sendo ofendida a B...- SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA. e o empobrecimento ocorrido com a entrega dos 69 vitelos na Exploração denominada Herdade ..., sita em ...”.
C) Assim, cumpre apreciar a questão objecto do presente recurso que consiste em saber em que local ocorreu o empobrecimento do sujeito passivo, enquanto resultado do crime de burla qualificada na forma agravada, para se aferir da competência territorial do tribunal para realizar o Julgamento do processo.
D) Os factos a julgar nos presentes autos correspondem a um crime de burla qualificada na forma agravada previsto nos artigos 217 n.º 1 e 218.º, n.º 2, alínea a), ambos do Código Penal, cuja consumação do crime ocorre com o empobrecimento do lesado.
E) Motivopelo qual, importa aferir da circunstância que levou ao empobrecimento e, consequentemente, do local onde tal ocorreu,
F) ln casu, a sociedade ofendida "B...- Sociedade Unipessoal, Lda", recebeu na conta bancária, titulada pelo seu representante legal EE, junto da C.C.A.M. um crédito no valor de € 47.000,00, resultante do depósito do cheque efectuado, no di 04.09.2020, pelo arguido BB.
G) Realizado o pagamento e confirmado o credito na conta bancária, em 05.09.2020, a ofendida "B...– Sociedade Unipessoal Lda” procedeu à entrega de 69 vitelos aos arguidos, conforme havia sido acordado entre as partes.
H) Em 09.09.2020, foi retirado da conta bancária da ofendida o montante de € 47.000,00, uma vez que o cheque depositado pelo arguido BB era referente a uma conta bancária já encenada desde 2009 e não tinha provisão.
I) Facto este que resultou num prejuízo efectivo no património da ofendida, originando o seu empobrecimento, consumando-se assim o crime de burla.
J) Deste modo, o local da consumação do crime corresponderá ao lugar onde se encontra domiciliada a conta bancária do legal representante da ofendida "B...- Sociedade Unipessoal, Lda”
K) Da acusação, para a qual remete integralmente a pronúncia, apenas resulta a identificação do IBAN da conta e a identificação do banco a que pertence, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo, não sendo indicado o local em que se encontra domiciliada tal conta.
L) Todavia, resulta inequivocamente dos autos de inquério, fls. 683, que a conta bancária é domiciliada em ..., pelo que o tribunal territorialmente competente será o Juízo Central Criminal ....
M) Ainda assim, e caso não seja aceite, neste momento processual a consulta de tal elemento em virtude do mesmo não constar da acusação, devera então aplicar-se
o critério previsto no artigo 21.°, nº" 2, do Código de Processo Penal que dispõe:
Se for desconhecida a localização do elemento relevante, é competente o tribunal da área onde primeiro tiver havido notícia do crime
N) E nessa medida, in casu, será territorialmente competente a Secção Central Criminal ..., uma vez que a queixa deu entrada no DIAP ....
Termos em que deve o douto despacho de referência ...70 ser revogado, e substituído por outro ser revogado e substituído por outro que declare como territorialmente competente o Juízo Central Criminal ..., ou caso assim não se entenda por inexistir na acusação elemento relevante quanto ao local da consumação do crime, se declare como territorialmente competente a Secção Central Criminal ... por ter sido o local onde primeiro houve notícia do crime, devendo os Exmºs Senhores Juízes Desembargadores dar acolhimento ao teor das conclusões supra, como é de JUSTIÇA!

C – Respostas ao Recurso

Inexistem respostas ao recurso.

D – Tramitação subsequente

Aqui recebidos, foram os autos ao MP, tendo a Exmª Procuradora-Geral Adjunta se pronunciado no sentido do provimento do recurso.
Determinado o cumprimento do disposto no Artº 417 nº2 do CPP não foram apresentadas respostas.
Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.

2. FUNDAMENTAÇÃO

A – Objecto do recurso

De acordo com o disposto no Artº 412 do CPP e com a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no D.R. I-A de 28/12/95 (neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de Setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" HYPERLINK "http://www.dgsi.pt/" www.dgsi.pt, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria), o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai das respectivas motivações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
O objecto do recurso prende-se com a questão de saber se assiste, ou não, razão ao Mmº Juiz A quo, quando considerou o Juízo Central da Secção Criminal da Comarca ... territorialmente incompetente para a realização do julgamento nos presentes autos, declarando territorialmente competente para tal o Juízo Central ... (Mista) Criminal ....

B – Apreciação

A questão em análise, eminentemente jurídica, dirime-se com a definição do momento em que se deve ter por consumado o crime de burla.
É pacífico que nos autos, estando em causa três crimes de burla qualificada imputados aos arguidos, nos termos combinados dos Artsº 217 e 218 nsº1 e 2 al. a), por referência ao Artº 202 al. a), todos do C. Penal, a competência territorial caberá ao tribunal competente para conhecer do crime a que couber a pena mais grave, ao abrigo do estatuído no Artº 28 al. a) do CPP.
Por outro lado, também não é susceptível de dúvida que, dos três crimes em causa nos autos, o mais grave se reporta à ofendida B...– Sociedade Unipessoal, Lda, na medida em que o seu prejuízo ascendeu a € 47.0000,00.
A questão coloca-se, por isso, em saber em que momento é que este crime se deve considerar como consumado e, desse modo, definir, pelo local de tal consumação, o tribunal competente para o seu conhecimento.
Os factos, descritos na acusação pública e acolhidos por inteiro na pronúncia, são os seguintes:
No dia 27/08/20, o arguido BB contactou, telefonicamente, EE, produtor agro-pecuário e representante legal daquela sociedade, tendo por ambos sido acordada a aquisição por aquele, de 69 vitelas pertencentes à dita sociedade, pelo valor total de € 47.000,00, mais tendo ficado acordado que após a consumação do crédito de tal valor, através de uma transferência bancária para a conta da ofendida, o arguido deslocar-se-ia à exploração desta, sita em ..., para a recolha e transporte das 69 cabeças de gado.
Assim, no dia 04/09/20, o arguido, através de uma ATM de um Balcão da CCAM, sita em ..., depositou um cheque naquele valor na conta bancária de EE, representante legal da sociedade ofendida.
No dia seguinte, este acedeu ao seu saldo bancário através do homebanking, constatando o crédito da referida quantia, sendo que, nesse mesmo dia, 05/09/20 o referenciado arguido deslocou-se à Herdade ..., em ... e procedeu ao carregamento de 69 vitelas, fazendo-as suas e levando-as para paradeiro desconhecido.
No dia 09/09/20, foi o ofendido informado telefonicamente pelo seu banco que o montante de € 47.000,00 que lhe havia sido creditado provisoriamente na sua conta lhe fora retirado, porquanto o cheque que subjazia a tal operação não tinha provisão e era referente a uma conta encerrada desde 2009.
Sendo estes os fatos essenciais a ter em conta, acompanhamos o raciocínio efectuado pela decisão recorrida, que não nos merece qualquer censura.
Na verdade, o resultado típico do crime de burla é, como se sabe, o empobrecimento do sujeito passivo, que é uma consequência da conduta astuciosa do agente, o qual, traçando um quadro factual que não corresponde à representação efectiva da realidade, leva o ofendido a praticar actos que são lesivos do seu património e que só são por si executados em razão do artífice levado a cabo pelo agente.
Sendo sabido que a consumação deste ilícito não depende do enriquecimento do agente, antes se bastando com o empobrecimento do ofendido, o momento da consumação terá de ser aquele em que o lesado abra mão da coisa sem que a partir daí possa controlar o seu destino, o mesmo é dizer, o crime consuma-se no momento em que perdendo a disponibilidade sobre o seu património em causa (bem ou valor), o seu empobrecimento se torna efectivo (Cfr., neste sentido, Acs do STJ, de04/06/03 e 21/06/06, relatados, respectivamente, pelos Exmºs Juizes Conselheiros Henriques Gaspar e Soreto de Barros).
In casu, esse momento deve ser referenciado pela altura em que o arguido se deslocou à herdade da ofendida e recolheu as 69 vitelas, delas se apoderando, já que foi nesse momento que se concretizou o prejuízo patrimonial da ofendida, que se viu desapossada daquele seu património com o prejuízo inerente reportado ao valor de tais cabeças de gado.
É nesta saída das ditas vitelas da disponibilidade fáctica do seu legítimo titular que se deve aferir a consumação do crime em causa e não, como defende o recorrente, no momento em que o representante legal da ofendida recebe a notícia que, afinal, o crédito de € 47.000,00 que, provisoriamente, constava da sua conta bancária em consequência de um deposito de um cheque nesse valor efectuado pelo arguido BB não estava disponível, já que tal cheque não tinha provisão e era de uma conta já encerrada desde 2009.
Como pela própria acusação é referido, o dito saldo de € 47.000,00, em consequência do depósito do cheque efectuado pelo arguido, entrou na conta do ofendido como meramente contabilístico, sendo que o seu crédito efectivo somente é consumado, os seja, transformado em saldo disponível, após análise formal do título de crédito e boa validação do cheque em causa.
Não há, assim, ao contrário do afirmado pelo recorrente, uma situação em que o dinheiro tenha sido retirado da conta da ofendida, já que o mesmo em bom rigor, não chegou a ser ali depositado, antes estando numa situação de saldo contabilístico, pendente da aferição do boa cobrança do respectivo meio de pagamento, in casu, um cheque que tinha habilitação para servir como meio de pagamento válido e eficaz.
Nesta medida, não se aceita a argumentação recursiva, no sentido de a arguida ter perdido a disponibilidade da verba em causa, já que esta, na lógica do procedimento bancário, ainda não lhe tinha sido concedida, ainda não lhe estava disponível, o que só aconteceria depois de se comprovar que o cheque tinha a necessária provisão.
O local do empobrecimento da ofendida é o que releva para a determinação da consumação do crime e esse deve ser tido, salvo melhor opinião, por referência à sua Exploração denominada Herdade do Seco, sita em ..., onde ocorreu a entrega das ditas cabeças de gado ao arguido BB.
Se assim é, e tal parece ser uma asserção indiscutível, então é territorialmente competente para o conhecimento dos autos o tribunal desse local, ou seja, o Juízo Central ... (Mista) de ..., como, acertadamente, entendeu o Mmº Juiz a quo, improcedendo, por isso, o recurso.

3. DECISÃO

Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e em consequência, confirma-se o despacho recorrido.
Sem custas, por delas estar isento o recorrente.
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Consigna-se, nos termos e para os efeitos do disposto no Artº 94 nº2 do CPP, que o presente acórdão foi elaborado pelo relator e integralmente revisto pelos signatários.
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Évora, 26 de Setembro de 2023
Renato Barroso (Relator)
Carlos de Campos Lobo (Adjunto)
João Gomes de Sousa (Adjunto)
(Assinaturas digitais)