No âmbito da ação tutelar comum em que se aprecie processo tutelar de restituição judicial de criança, na sequência do envio pela autoridade central da Suíça, país subscritor da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de um pedido formulado pelo Progenitor de regresso imediato do filho à Suíça, o juiz tem de respeitar, quer as imposições que decorrem da CH, quer os princípios orientadores dos processos tutelares cíveis, enumerados no art. 4.° do RGPTC e ainda os princípios gerais do processo civil, designadamente os do contraditório (art. 3.°, n.° 3 e 4) e da igualdade de armas (art. 4.°).
I. Relatório
1. O MINISTÉRIO PÚBLICO instaurou, em ... de novembro de 2022, a presente ação tutelar comum, contra AA, maior, titular do n.º de contribuinte .......02, atualmente residente em ..., peticionando que, mediante a atribuição de natureza urgente aos presentes autos, fosse apreciada a deslocação da criança BB para Portugal, a qual poderá ser ilícita, atendendo ao preceituado na Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças.
Por despacho datado de ... de ... de 2022, foi designada data para a prestação de declarações da progenitora.
Na data agendada, com observância do formalismo legalmente previsto, procedeu-se à inquirição da progenitora que, em suma, afirmou que lhe cabe o direito de decidir sobre o local de residência do BB, que o progenitor não exerce, de modo efetivo, os seus direitos de visita, e que foi sempre a progenitora que acompanhou a criança ao longo da sua vida, e com a mesma residiu, não estando o BB, mormente atendendo à sua situação de saúde (autismo), em condições de ser separado da progenitora sem prejuízo do seu superior interesse.
Seguidamente, a progenitora requereu que lhe fosse concedido prazo para apresentar defesa por escrito, assim como prova documental do alegado, devidamente traduzida.
Pelos motivos consignados na ref. CITIUS n.º ...47, não se procedeu à produção da prova testemunhal indicada no requerimento identificado pela ref. CITIUS n.º ...94.
O Ministério Público pronunciou-se, defendendo que a criança deve manter-se em Portugal, à guarda e cuidados da progenitora.
Conclusos os autos, e sendo esta acção de natureza urgente foi de imediato proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, decide-se julgar a ação improcedente e, em consequência, não ordenar o regresso da criança BB à Suíça.”
2. Inconformado o progenitor do menor CC interpôs recurso de apelação, invocando a violação da lei – civil (artigo 25.º do RGPTC), processual (no n.º 3, do artigo 3.º, do CPC), e constitucional (artigo 20.º da CRP– em especial por não ter podido exercer o contraditório, ocorrendo uma decisão surpresa, e tendo os factos fixados sido apurados sem a sua possibilidade de contradição, apenas a partir da versão da requerida e de documentos juntos por esta, sem audição ou prova produzida pelo pai, numa decisão que lhe é desfavorável e que indefere o pedido por si formulado.
3. O Tribunal da Relação conheceu do recurso e manteve a decisão da 1ª instância, sem fundamentação essencialmente diversa e sem voto de vencido.
O acórdão recorrido decide no sentido de a criança não ter de voltar à Suíça, por razões relacionadas com o seu superior interesse, apesar de reconhecer que a progenitora violou deveres impostos e que permitiam a decisão de regresso ao país de onde proveio, por via da convenção de Haia de 1980, e procura justificar que o recorrente teve oportunidade de contraditar o processo, quer porque o mesmo só surgiu na sequência da sua iniciativa junto das autoridades helvéticas, quer porque a sua posição se encontra suportada em documentos juntos na Suíça e que o tribunal tomou em consideração, assim como os apresentados pela recorrida, sem dar grande relevo à oportunidade que o recorrente pedia de ser ouvido e de poder carrear provas para os autos, permitindo ao Tribunal decidir com uma visão mais ampla dos factos relevantes.
4. O recorrente, no recurso de revista que interpõe a título de revista excepcional, formula as seguintes conclusões (transcrição):
“A. A situação de particular relevância social e jurídica dos presentes autos convoca claramente a necessária orientação do Supremo Tribunal de Justiça para a obtenção de uma melhor aplicação do Direito, devendo o Recurso interposto ser, nessa medida, por este Tribunal apreciado.
B. Em nosso entender, a Acórdão recorrido deverá ser substituído por outro que admita o recurso de revisão interposto pelo Recorrente, dando assim provimento ao presente Recurso de Revista.
C. Do ponto de processual, não foram respeitados os direitos do contraditório e igualdade das partes.
D. Não foi dada a possibilidade ao Recorrente de participar nos presentes autos, por meio de audição, a qual não foi sequer suscitada pelo Tribunal de primeira instância, apesar de a Mãe ter sido ouvida.
E. Não lhe foi dada a possibilidade de exercer o seu contraditório relativamente ao invocado pela Mãe nos autos, não tendo o Recorrente sido não notificado para efeitos de resposta, por parte do Tribunal de Primeira Instância, tudo sem que lhe tenha sido apresentada qualquer justificação ou motivação para tal.
F. Sendo certo que, embora se trate de um processo de natureza urgente, existia uma obrigação de notificação ao Recorrente para, querendo, ser ouvido e participar do processo.
G. Já que, em qualquer processo que envolva uma criança, ambos os pais são ouvidos e prestam as suas declarações sobre aquele que entendem ser o superior interesse do filho, não sendo os processos sob a égide da Convenção sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças diferentes.
H. Do ponto de vista material, quer o Tribunal de Primeira Instância, quer o Tribunal a quo, estavam em condições de tomar uma decisão diferente e Consentânea com a realidade dos factos que foram considerados provados nos presentes autos.
I. Pese embora o Tribunal de Primeira Instância e agora o Tribunal a quo, tenham considerado que os Progenitores exercem conjuntamente as responsabilidades parentais relativas à criança, a verdade é que, para justificar a decisão adotada, acabam por defender o seu contrário, ainda que encapotadamente, no sentido de que não existia um exercício das responsabilidades parentais efetivo por parte do Pai, ora Recorrente, o que não se pode aceitar.
J. Nunca o Tribunal a quo deveria ter corroborado o entendimento de que a Criança se deve manter em Portugal por ser com a Mãe com quem mantém “uma relação de maior proximidade afetiva, e que sempre lhe prestou, até à data, os cuidados necessários para se desenvolver de modo saudável”, (i) não só porque tanto não resultou exatamente provado dos autos; (ii) como tanto não é sequer o objeto deste processo, já que não está em causa a relação de afetividade da Criança com os Progenitores, mas tão somente a ilicitude da deslocação da criança para Portugal e a necessidade de autorização por parte do Recorrente para o efeito em função do exercício das responsabilidades parentais conjunto por parte dos Progenitores.
K. O Tribunal a quo fez também tábua rasa do teor da Convenção, de 08/11/2018, que o MP juntou à Petição Inicial que instrui o presente processo, do qual se retira que os Progenitores concordaram em exercer a autoridade parental conjunta sobre o filho, o que incluía, por isso, a autorização de saídas para o estrangeiro e no âmbito do qual se definem os direitos de visita do Pai relativamente ao filho.
L. Se o Tribunal de Primeira Instância e o Tribunal a quo tinham já Conhecimento do teor da referida prova junta aos autos pelo MP, então nunca a decisão material poderia ter sido tomada no sentido do não exercício efetivo das responsabilidades parentais por parte do Pai e, por causa disso, considerar-se que não estavam reunidos os pressupostos para ordenar o retorno imediato da Criança à Suíça.
M. Mais a mais, quando não resultou provado que o Recorrente não exercia os seus direitos de visita e que logrou afastar-se quer física quer emocionalmente do filho (factos c) e d) da Sentença do Tribunal de Primeira Instância).
N. O Tribunal a quo (e o Tribunal de Primeira Instância), na decisão proferida, não tomou em consideração o teor do documento referido no ponto H supra, tendo, pelo contrário, desconsiderado, sem justificação séria e atendível, a importância do mesmo e relevado, ao invés, as declarações de parte da Mãe, sem que tenha igualmente sido ouvido o Recorrente, para que pudesse vir atestar se efetivamente o regime constante daquele documento era ou não exercido e cumprido, não decidindo em conformidade com o interesse da Criança.
O. A acrescer, existem afirmações na Sentença do Tribunal de Primeira Instância, ora corroboradas pelo Acórdão de que se recorre, que não fazem qualquer sentido, por assentarem em pressupostos errados, quer no terreno dos factos, quer do direito aplicável, o que conduziu a um resultado que só poderá ser revogado pelo presente Tribunal.
P. O Tribunal de Primeira Instância esqueceu-se do ponto essencial: é que foi a Mãe quem se colocou na posição da necessidade de um eventual afastamento entre a Criança e esta, sendo apenas pela deslocação ilícita da Criança para Portugal por parte da Mãe, que, neste momento, existe uma relação de maior proximidade (fática que não emocional) entre a Mãe e a Criança.
Q. Em condições normais, a Criança teria, como sempre teve uma igual vinculação afetiva com a Mãe e com o Pai, independentemente de pernoitar em casa da Mãe ou do Pai ou de estar mais vezes com um ou com outro, simplesmente porque estava com os dois, o que não ocorre desde que a Mãe trouxe a Criança para Portugal com exceção do passado dia .../06/2023.
R. A Criança sempre teve o Pai e a Mãe como figuras de referência, apenas deixando de ter aquele último mais presente na sua vida quando a Mãe ilicitamente se deslocou para Portugal sem a autorização do Recorrente, levando a um afastamento forçado entre Pai e Criança.
S. Não podem nem a Criança nem o Pai ser prejudicados por uma posição em que a Mãe se colocou propositadamente – o Progenitor com mais proximidade da Criança – e em que colocou a Criança – um maior afastamento fático do Pai.
T. Em suma: Sentença de Primeira Instância e o Acórdão recorrido assentam em pressupostos que desconsideram a situação do caso concreto: (i) que a afastamento fático entre o Pai e o filho foi premeditada e ilegalmente criado pela Mãe; (ii) que foi a Mãe quem se colocou na posição de ser o Progenitor que está mais próximo da vida da Criança e do dia-a-dia desta; e (iii) que, resulta da prova documental junta aos autos pelo MP, que a regulação exercício das responsabilidades parentais é exercida por ambos os Progenitores e que o Pai não deu autorização para a vinda da Criança para Portugal.
U. O enquadramento jurídico que o Tribunal a quo fez no Acórdão recorrido com a manutenção da Sentença do Tribunal de Primeira Instância é, na ótica do Recorrente, e por todas as razões supra expostas, errado, não podendo proceder, porque ilegal.
V. Devendo este Tribunal dar provimento ao presente Recurso de revista, tendo objetivamente em consideração os factos que foram efetivamente considerados provados nos presentes autos e a prova documental que deles resulta, devendo o Acórdão recorrido ser revogado, por violação do disposto nos artigos 3.º, n.º 3, do CC, 20.º da CRP e 25.º do RGPTC, e substituído por outro que, no superior interesse da criança e no cumprimento da Lei, determine o regresso da Criança para a Suíça, país onde sempre residiu e no qual ambos os Progenitores exerciam o regulação das responsabilidades parentais atribuída, por isso, a ambos.”
5. Foram apresentadas contra-alegações defendendo-se a não admissibilidade do recurso, por incumprimento dos ónus previstos no art.º 672.º do CPC, e, se o mesmo for admitido, a manutenção da decisão recorrida.
6. O recurso foi admitido no tribunal recorrido com o seguinte despacho:
“Uma vez que a apreciação dos pressupostos do recurso de revista excepcional compete ao Supremo Tribunal de Justiça, remeta os autos àquele Tribunal – artigo 673º, n.º 3 do Código de Processo Civil.”
7. O MP ofereceu a sua posição sobre o recurso concluindo:
“Pelo exposto, o recurso:
- deve ser rejeitado nos termos do art. 672º nº 2 als. a) e b) CPC;
caso assim se não entenda,
- não deve ser admitido por falta dos pressupostos do nº 1 do art. 672º nº 1 CPC;
caso assim se não entenda,
- deve ser julgado improcedente.”
7. Por acórdão da formação veio decidido admitir-se o recurso de revista excepcional para análise da questão definida no despacho da relatora que remeteu os autos à formação, dizendo-se aí:
“13. E, no caso dos autos, afigura-se existir, na realidade, um problema de legalidade desse tipo, importando responder à seguinte questão: tendo um processo deste tipo origem em pedido formulado e instruído pelo progenitor (pai) que requer o regresso da criança ao país de onde foi “subtraída”, deve este progenitor ter a mesma oportunidade dada à outra progenitora (mãe) de oferecer elementos de prova - adicionais aos que ofereceu com o pedido inicialmente formulado - que possam servir de defesa da sua posição quando a progenitora (mãe) invoca – e demonstra – que a criança não deve regressar por ser mais conveniente para o seu superior interesse, e que justifica com factos que alega – os quais foram apenas por si apresentados e analisados pelo tribunal sem outros meios de prova – relativos a uma maior relação de proximidade com a criança, incumprimento pelo pai de deveres inerentes a responsabilidades parentais e especial situação de fragilidade do menor atenta a sua doença (transtorno do espectro autista)?
Não obstante a situação dos presentes autos colocar esta questão – e nessa medida se poder entender que a revista pela via normal não está excluída – importa ainda salientar que há um obstáculo à admissão da mesma – a dupla conformidade decisória entre sentença e acórdão recorrido, obstáculo que pode ser ultrapassado pela via da admissão da revista excepcional, pedida pelo recorrente.
Para que esta via possa ser alcançada impõe-se obter uma decisão nesse sentido da formação a que se reporta o art.º 672.º do CPC.”
Colhidos os vistos legais, cumpre analisar e decidir.
II. Fundamentação
De facto
8. Resultaram indiciariamente provados, com interesse para a decisão urgente a proferir, os seguintes factos:
1) A criança BB é filha da Requerida e de CC, residente na Avenue de ..., na Suíça.
2) Os progenitores, que não são casados, nem vivem juntos, exercem conjuntamente as responsabilidades parentais relativas à criança.
3) A criança residiu na Suíça até ao passado dia ... de setembro, data em que a progenitora a trouxe para Portugal, passando a residir com a mesma em ....
4) A criança BB reside exclusivamente com a progenitora pelo menos desde ... de fevereiro de 2018, tendo sido, desde então, a progenitora que lhe prestou todo o apoio necessário, inclusive no que concerne à sua situação de saúde.
5) A criança padece de um transtorno do espectro autista, e estava a beneficiar de uma intervenção terapêutica na Suíça.
6) No dia ... de outubro de 2022, o progenitor requereu, junto das autoridades competentes para o efeito na Suíça, o regresso imediato do seu filho, alegando que, tendo o mesmo residido na Suíça desde o seu nascimento, foi trazido para Portugal sem o seu conhecimento ou consentimento prévio.
7) Pelo menos em junho de 2022, o progenitor foi informado da intenção da progenitora de passar a residir em Portugal com o BB.
8) A progenitora deslocou-se para Portugal por via aérea, não tendo encontrado qualquer entrave, por parte das autoridades locais, para sair do país com a criança.
9) Na Suíça, foi fixado regime de convívios entre o progenitor e a criança, que aquele nem sempre cumpriu, fazendo-se substituir, por vezes, por terceiros.
10) A partir do dia ... de agosto de 2022, o convívio da criança com o progenitor deveria ter ocorrido em dia sim, dia não, mas o progenitor apenas exerceu esse direito no final de agosto, por dois dias, e no final de setembro, também por dois dias.
11) Foi apresentada, na Suíça, uma queixa pela progenitora contra o progenitor, por alegadamente a requerida ter sido vítima de uma agressão, na presença da criança, no dia ... de julho de 2022.
12) Foi já solicitada intervenção terapêutica para a criança, em Portugal, encontrando-se agendada consulta para o efeito.
13) A criança frequenta, em Portugal, jardim de infância.
14) A progenitora trabalhava, na Suíça, apenas em tempo parcial, e não tinha meios económicos para continuar a suportar o sustento de ambos, naquele país, tendo optado por passar a residir em Portugal por ter, neste país, apoio familiar, podendo assim trabalhar a tempo inteiro.
15) A progenitora declarou não ter condições económicas, nem apoio familiar, para regressar à Suíça.
16) O progenitor era fiador do contrato de arrendamento do apartamento em que a progenitora residia com a criança, e a requerida comunicou-lhe que iria rescindir o referido contrato, atenta a sua intenção de passar a residir em Portugal.
17) Foi confirmado, na Suíça, por um psiquiatra/psicoterapeuta, que a progenitora apresenta competências parentais para cuidar do BB.
9. E vieram não provados, os seguintes factos:
a. Ao tempo da deslocação da criança para Portugal, encontrava-se em curso uma investigação por parte dos serviços sociais suíços.
b. Está atribuído à progenitora, exclusivamente, o direito de decidir sobre o local de residência da criança.
c. Desde a data em que foi diagnosticado autismo à criança que o progenitor se vem a distanciar da mesma, quer física, quer emocionalmente.
d. O progenitor não cumpriu o direito de visita por período superior a dois meses.
e. Foi celebrado entre os progenitores um acordo segundo o qual o progenitor poderia conviver com a criança de sábado a 2.ª feira, de quinze em quinze dias, e na semana de não convívio com o progenitor ao fim de semana, o mesmo passaria com o pai o período de 4.ª feira, desde as 10h:00m, até 6.ª feira, ao início das atividades escolares.
f. A criança foi submetida a cirurgia de urgência em razão da gravidade da apneia do sono de que padece, não tendo o pai tido, nesse circunstancialismo, qualquer intervenção, não visitando o seu filho, nem no período de internamento, nem no período de convalescença, já em casa.
g. O pai da criança é proprietário de um imóvel em Portugal, adquirido pelos avós paternos da criança, no qual habitam várias vezes por ano.
h. O progenitor ratificou a rescisão mencionada em 16) e removeu, do locado, as mobílias que lhe pertenciam.
i. Após o diagnóstico da criança com transtorno do espectro autista, o progenitor afirmava não se sentir confortável na companhia do filho.
j. Se a criança regressar à Suíça, será integrada em instituição para pessoas com transtorno do espectro autista.
De Direito
10. Conforme acórdão da formação e conclusões do recorrente, a questão objecto do recurso é a seguinte: tendo um processo deste tipo origem em pedido formulado e instruído pelo progenitor (pai) que requer o regresso da criança ao país de onde foi “subtraída”, deve este progenitor ter a mesma oportunidade dada à outra progenitora (mãe) de oferecer elementos de prova - adicionais aos que ofereceu com o pedido inicialmente formulado - que possam servir de defesa da sua posição quando a progenitora (mãe) invoca – e demonstra – que a criança não deve regressar por ser mais conveniente para o seu superior interesse, e que justifica com factos que alega – os quais foram apenas por si apresentados e analisados pelo tribunal sem outros meios de prova – relativos a uma maior relação de proximidade com a criança, incumprimento pelo pai de deveres inerentes a responsabilidades parentais e especial situação de fragilidade do menor atenta a sua doença (transtorno do espectro autista)?
11. Conforme o acórdão da formação teve já oportunidade de referir, através da citação do texto de Gonçalo Oliveira Magalhães, “Aspetos da ação destinada ao regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II BIS”, em Julgar, n.º 37, pág. 45-46:
“Estamos perante um processo tutelar de restituição judicial de criança instaurado pelo Ministério Público, na sequência do envio pela autoridade central da Suíça, país subscritor da Convenção de Haia de 1980 sobre os Aspetos Civis do Rapto Internacional de Crianças, de um pedido formulado pelo Progenitor de regresso imediato do filho à Suíça, o qual se encontra com a Progenitora, em Portugal.
No recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça discutem-se os direitos processuais do Progenitor que formulou o pedido de restituição naquela ação tutelar.
Como refere Gonçalo Oliveira Magalhães1, analisando este tipo de ações:
«O RGPTC não prevê uma forma especial de processo tutelar cível aplicável à ação de restituição, o que a faz. cair na esfera da forma residual da denominada ação tutelar comum (art. 67.° do RGPTC), em relação à qual a lei adjetiva apenas dispõe que o juiz pode ordenar as diligências que repute necessárias antes de proferir a decisão final. Esta solução constitui, a um tempo, uma fonte de dificuldades e, a outro, um desafio para o juiz, confrontado com um terreno fértil para o exercício do seu dever de gestão processual (art. 6.°, n.° 1, do CPC), com o objetivo de dar resposta à equação processual: "uma decisão justa do processo com os menores custos, a maior celeridade e a menor complexidade que forem possíveis no caso concreto".
No cumprimento desse dever, o juiz tem de respeitar, ademais das imposições que decorrem da CH e do RBIIb, nos termos supra expostos, os princípios orientadores dos processos tutelares cíveis, enumerados no art. 4.° do RGPTC: simplificação instrutória e oralidade, consensualização e audição e participação da criança. Tem de respeitar também os princípios gerais do processo civil, designadamente os do contraditório (art. 3.°, n.° 3 e 4) e da igualdade de armas (art. 4.°).»
A resolução da questão colocada no recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça exige, pois, uma sensível ponderação das particularidades do pedido formulado neste tipo de ações e da sua sujeição às regras da Convenção de Haia, das caraterísticas específicas de um processo de jurisdição voluntária e dos princípios constitucionais que norteiam um processo judicial orientado para a realização dos interesses dos menores.”
Nestes processos o desafio do juiz a quem se pede que decida rápido e bem não pode passar por cima de princípios fundamentais do sistema legal e constitucional português, nomeadamente o do contraditório, senão em situações absolutamente excepcionais – e quando assim sucede até a lei prevê um contraditório a posteriori.
Na situação dos autos, quem despoletou a intervenção do tribunal viu-se confrontada com uma decisão que atendeu a factos relevantíssimos sobre os quais não lhe foi dada oportunidade de pronúncia e que foram decisivos na resolução – negando-a – da pretensão que formulara.
A celeridade imposta pela lei não é um valor superior ao da defesa, no sentido de a pretensão ser negada por factos sobre os quais o interessado não teve oportunidade de ser ouvido e produzir prova, mesmo que indiciária, por força da lei e da CRP.
Quer isto dizer que se considera inadmissível que a pretensão do requerente tenha sido decidida com base em factos indiciários apurados – grande parte deles – a partir da posição adoptada pela requerida, que mereceu a credibilidade do tribunal, mas sem que ao tribunal fosse sequer colocada a questão de saber o que sobre esses factos tinha o requerente a dizer e a demonstrar, mesmo que indiciariamente.
Voltando a citar o mesmo autor e obra, na pág. 46-7, que reforça a ideia de necessidade de formar uma convicção com recolha de elementos mais alargada do que os oferecidos pelo requerido, em face da posição que este tenha assumido:
“Na instrução prévia à audiência de discussão e julgamento, deve [o juiz] determinar as diligências adequadas a permitir a decisão da questão de mérito – que, em princípio, é apenas a ilicitude da deslocação ou retenção, verdadeira causa de pedir. Assume relevo o disposto no art.º 14.º da CH. Nesta fase, dependendo do que for alegado pelo requerido, pode ser necessária a recolha de informações sociais, inclusive no país da residência habitual da acriança. Pense-se na hipótese de o requerido alegar, de forma substanciada, com arrimo no art.º 13º, §1, da CH, que existe um risco grave de a criança, no seu regresso, ficar sujeitas a perigos de ordem física ou psíquica ou, de qualquer outro modo. Ficar numa situação intolerável2. Para o efeito, é de ponderar o recurso à autoridade central, como alternativa aos mecanismos de cooperação judiciária internacional.”
E finalmente, acompanhando a conclusão (p. 47):
“7. No termo deste percurso, pode concluir-se que, na acção destinada à restituição de criança vítima de uma deslocação ou retenção ilícitas entre Estados -Membros da União Europeia, com excepção da Dinamarca, cabe ao juiz nacional determinar, de acordo com a lei adjectiva interna, o encadeado de actos processuais, realizando ou determinando a realização de todas as diligências que se afigurem necessárias para a decisão e indeferindo as que o não sejam ou tenham finalidade dilatória, devendo, todavia, assegurar, em respeito pelo que decorre da CH e do TBIIb, que a decisão é proferida no mais curto espaço de tempo e com participação efectiva da criança.”
Em síntese, nos poderes do juiz está não só a determinação dos actos processuais necessários à tomada da decisão, mas também a observância dos princípios fundamentais da lei interna, nos quais se inclui o contraditório.
Em face do exposto, não pode sufragar-se o entendimento adoptado na decisão recorrida, por violação de princípio fundamental, determinando-se a revogação da decisão e a baixa do processo para nova pronúncia, com respeito pelo princípio do contraditório e eventual realização de outras diligências tidas por necessárias.
III. Decisão
Pelos fundamentos expostos é concedida a revista, revogando-se a decisão recorrida e ordenando-se a baixa do processo à 1ª instância para nova pronúncia, com eventual realização de outras diligências tidas por necessárias, após o que será proferida nova decisão.
Custas pela recorrida.
Lisboa, 14 de Setembro de 2023
Relatora: Fátima Gomes
1º adjunto: Dr(a). Maria dos Prazeres Pizarro Beleza;
2º Adjunto: Dr. Ferreira Lopes
______
1. Aspetos da ação destinada ao regresso da criança ilicitamente deslocada ou retida, à luz da Convenção da Haia de 25 de outubro de 1980 e do Regulamento Bruxelas II BIS, em Julgar, n.º 37, pág. 45-46.
2. (nota 42 – “A omissão desta diligência na fase instrutória da acção de restituição nos tribunais nacionais foi realçada no Ac. do TEDH Phostina Efthymiou e Ribeiro Fernandes v. Portugal, de 5.2.2015.”