I. O STJ, na qualidade de tribunal de revista, só conhece de matéria de direito, não lhe sendo lícito interferir no juízo decisório empreendido pela Relação com base na reapreciação dos meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação.
II. Não constituindo o estado civil (e o mesmo se dirá para o parentesco) “thema decidendum” e no domínio de ações que versem sobre direitos disponíveis, a sua demonstração é admissível por confissão tácita, não sendo necessária a sua prova por documento extraído do registo civil.
III. Inexistindo, porém, confissão tácita porquanto a alegada existência de um prévio casamento e de filhos do Recorrente foi impugnada pela Recorrida, tais factos, ainda que não integrando o “thema decidendum”, só poderiam ser demonstrados através das formas a que se reporta o artigo 211.º, nºs 1 e 2, do Código do Registo Civil, e não por meio de prova testemunhal, como pretende o recorrente.
IV. A circunstância de ser da propriedade exclusiva do Recorrente o dinheiro utilizado para adquirir o prédio assim como para liquidar o preço da obra correspondente à execução da empreitada de construção da moradia não apresenta a virtualidade de ilidir a presunção registral adveniente do artigo 7.º, nº 1, do Código do Registo Predial ou de afastar a força das declarações de vontade constantes da escritura pública de compra e venda do imóvel.
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NO RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA
AA
Autor / Apelado / Recorrente
BB
Ré / Apelante / Recorrida
O Autor intentou a presente acção pedindo:
- a condenação da Ré a reconhecer que o prédio identificado nos autos foi adquirido apenas pelo Autor e a expensas apenas suas, e que o Autor construiu a habitação no dito prédio a expensas exclusivamente suas, sendo tal prédio da exclusiva propriedade do Autor;
- se ordene à competente Conservatória de Registo Predial corrija o registo do prédio no sentido de o mesmo ser propriedade exclusiva do Autor.
Subsidiariamente, e para o caso do anterior pedido improceder, pede que:
- se condene a Ré a reconhecer o direito do Autor a adquirir a propriedade do terreno ocupado – in casu, a parte da Ré -, pagando o valor que o prédio tinha antes das obras, nos termos e para os efeitos do art. 1340.º, n.º 1, do Código Civil; ou
- se condene a Ré a indemnizar o Autor na proporção da metade que a mesma beneficia ou tem direito no referido imóvel.
Para fundamentar o seu pedido alega que, não obstante ser casado com a Ré no regime de separação de bens e de na escritura de compra e venda ter sido declarado que a mesma era feita em comum pelo casal, o certo é que o preço foi integralmente pago com dinheiro do Autor; bem como foi este que com dinheiro de sua exclusiva propriedade custeou por inteiro a construção que mandou implantar no terreno; pelo que se deve considerar que o terreno e a construção nele existentes são da sua exclusiva propriedade.
A Ré contestou, por impugnação e excepcionando litispendência (com o processo 22/15.7... – acção de divisão do prédio urbano que resultou da construção implantada no terreno identificado nos autos), simulação de preço e abuso de direito.
Foi proferido saneador que, invocando a autoridade de caso julgado da decisão proferida na acção 22/15.7... (que reconheceu o direito de compropriedade da Autora – aqui Ré – sobre o prédio em causa e o declarou indivisível), absolveu a Ré da instância.
Inconformado, apelou o Autor tendo a Relação revogado a sentença recorrida porquanto a invocada sentença proferida na acção 22/15.7... havia sido revogada pela Relação, que julgou a mesma acção improcedente.
Prosseguindo a acção veio a ser proferida sentença que, considerando ter-se logrado prova de o terreno e a construção nele implantada sido adquirido com dinheiro da propriedade exclusiva do autor, assim se elidindo a presunção registral, julgou a acção procedente, condenado a Ré a reconhecer o Autor como exclusivo proprietário do prédio em causa e ordenando a correspondente rectificação do registo predial.
Agora inconformada, apelou a Ré tendo a Relação, considerando que a eficácia real do contrato de compra e venda não permitia concluir pela propriedade exclusiva do Autor mas que esta lhe podia advir por acessão industrial imobiliária se e quando procedesse ao pagamento da correspondente indemnização, julgou a apelação parcialmente procedente, condenado a Ré a reconhecer que o terreno em causa e a construção nele implantadas foram custeados exclusivamente pelo Autor e a ver reconhecido o direito do Autor a adquirir a sua quota na propriedade do imóvel, ficando seu único proprietário, mediante o pagamento de 8.450,00 €, acrescido da actualização em função do índice de preços ao consumidor publicado pelo Instituto Nacional de Estatística até efetivo pagamento, caducando tal direito caso tal valor não seja consignado em depósito no prazo de 30 dias contados do trânsito em julgado da sentença.
Irresignado, veio o Autor interpor recurso de revista concluindo, em síntese, que a Relação não deveria ter alterado a matéria de facto e que deveria tê-lo considerado como proprietário exclusivo do imóvel.
Não houve contra-alegação.
II – Da admissibilidade e objecto do recurso
A situação tributária mostra-se regularizada.
O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (artigo 631º do CPC) e se encontra devidamente patrocinado (artigo 40º do CPC).
Tal requerimento está devidamente instruído com alegação e conclusões (artigos 639º do CPC.
O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º do CPC).
Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).
Destarte, o recurso merece conhecimento.
Vejamos se merece provimento.
De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.
Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões por que entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Assim, em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:
- da violação de normas relativas à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto;
- da propriedade exclusiva do recorrente sobre o prédio.
III – Os factos
Das instâncias vêm fixada a seguinte factualidade:
Factos provados:
1. O autor e a ré foram casados entre si, entre ... de janeiro de 2001 e data não determinada, mostrando-se agora divorciados;
2. O casamento foi celebrado com convenção antenupcial, lavrada por auto na Conservatória da ... em ... de outubro de 2000, tendo sido estipulado o regime da separação de bens;
3. [Considerado não provado pela Relação];
4. [Considerado não provado pela Relação];
5. [Considerado não provado pela Relação] Nem tão pouco o património que os filhos herdariam, no futuro e à sua morte, do autor.
6. À data do casamento, o autor já contava com algumas poupanças, resultado de uma vida de trabalho nos Estados Unidos da América.
7. Por documento escrito, com data de 28 de Abril de 2001, sob a epígrafe “Contrato-Promessa de Compra e Venda”, CC, representada por DD [primeiro outorgante] pelo preço global de 3.200.000$00, declarou prometer vender a AA [segundo outorgante], casado em regime de separação total de bens com BB, que declarou prometer comprar, o prédio rústico denominado Sorte ... ou ..., omisso na matriz e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º543/26092000;
8. Nesse documento encontra-se aposta, após a menção “O Primeiro Outorgante”, a assinatura de DD e, após a menção “O Segundo Outorgante” as assinaturas do autor e da ré.
9. Como antecipação do pagamento do preço estipulado, foi paga a quantia de 1.200.000$00 (um milhão e duzentos mil escudos), através do cheque n.º ........15, emitido sobre a conta bancária solidária n.º .......49, do Banco NovaRede – Banco Comercial Português, com data de 30/04/2001;
10. Conta Bancária que o autor municiou, para o efeito, em 18 de abril de 2001, 30 de abril de 2001 e 2 de maio de 2001, com dinheiro que transferiu através de conta bancária sua nos Estados Unidos da América;
11. Mais concretamente 2.255.762$00 (dois milhões, duzentos e cinquenta e cinco mil, setecentos e sessenta e dois escudos), 1.626.965$00 (um milhão, seiscentos e vinte e seis, novecentos e sessenta e cinco escudos), e, 5.575.334$00 (cinco milhões, setecentos e setenta e cinco mil, trezentos e trinta e quatro escudos).
12. Por escritura pública de compra e venda, lavrada no dia 4 de Maio de 2001, no Cartório Notarial de ..., exarada a fls.63, do Livro n.º107, declararam DD, em representação de CC, casada com EE, FF, casada com GG, HH casada com II, JJ, solteiro, vender, em comum, a AA, ora réu, e mulher BB, que declararam aceitar, o seguinte imóvel: «prédio rústico denominado Sorte ...”, sito no lugar da ..., da dita freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo predial deste concelho sob o número quinhentos e quarenta e três, da respetiva freguesia, registado em comum e sem determinação de parte ou direito a favor dos vendedores pela inscrição G-um, omisso à matriz (…)».
13. Nessa data, através do cheque n.º ........94, emitido sobre a conta bancária solidária n.º .......49, do Banco NovaRede – Banco Comercial Português foi liquidado o remanescente do preço, no montante de 2.000.000$00 (dois milhões de escudos).
14. Também esse dinheiro provinha da conta referida em 10, municiada nos termos ali descritos [redação dada na sequência da impugnação da que anteriormente constava: “Também este dinheiro pertencia exclusivamente ao autor.”].
15. Encontra-se descrita, através da Ap.1 de 2001/05/04, retificada através da Ap. 157 de 13/09/2011, a aquisição, por compra, a favor do autor AA e da ré BB, do prédio rústico denominado Sorte ..., com a área total de 720 m2, a confrontar de norte e sul com caminho público, do nascente com KK e do poente com LL, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º 543/20000926.
16. Na constância do matrimónio com a ré, o autor mandou construiu uma moradia nesse prédio rústico, dando lugar ao prédio urbano correspondente ao artigo matricial 566º, da freguesia de ..., concelho de ....
17. A obra de construção da moradia foi adjudicada a MM, em 25/02/2003, pelo preço total de € 92.500,00 (noventa e dois mil e quinhentos euros).
18. Para o que o réu contraiu junto da sua irmã, NN e marido OO vários empréstimos;
19. Empréstimos, esses, titulados por meio de declaração de confissão de dívida.
20. O autor, com o avançar da construção da moradia, foi procedendo ao pagamento faseado da mesma ao construtor.
21. Além disso, o autor teve a necessidade de vender outro seu imóvel, para financiar a construção 22. Mormente um terreno sito na freguesia de ..., no concelho de ....
23. Pelo qual recebeu, em 2 de agosto de 2005, a quantia de € 90.000,00 (noventa mil euros).
24. Com o resultado de tal negócio, o autor pagou a sua irmã e cunhado os referenciados € 90.000,00 (noventa mil euros) em 11 de agosto de 2005;
25. Ficando, então, por saldar a quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), por parte do autor à sua irmã e cunhado;
26. Que o autor apenas logrou pagar – o remanescente desse valor e outros montantes que, entretanto, pediu emprestados - em 4 de Maio de 2012;
27. Momento em que o autor entregou à sua irmã um cheque no montante de € 37.000,00 (trinta e sete mil euros).
28. A ré nunca contribuiu para a aquisição do terreno, nem para o financiamento da construção da referenciada moradia.
29. Pouco tempo após o casamento com o autor, a ré reformou-se, recebendo um reduzido valor a título de reforma.
30. Ao passo que a ré sempre apresentou a declaração de IRS em Portugal, por ter cá os seus rendimentos;
31. O autor apresenta as suas declarações de IRS nos Estados Unidos da América, por auferir lá os seus rendimentos (pensão de reforma).
32 – A Ré acompanhou todo o processo construtivo.” (Facto aditado ex vi artigo 607º nº 4 e 663º nº 2 do Código de Processo Civil).
33- O prédio, antes das obras, tinha o valor de mercado de 16.900,00 € (Facto aditado ex vi artigo 607º nº 4 e 663º nº 2 do Código de Processo Civil).
Factos não provados:
1. Para casar com a ré, o autor viu-se forçado a regressar a Portugal, pois aquela não estava na disposição de ir viver para os Estados Unidos da América;
2. Para tanto, o autor viu-se na contingência de, rapidamente (o que o fez perder dinheiro), ter que vender o seu negócio – uma oficina de peças para automóveis;
3. E, bem assim, os imóveis de que era ali proprietário.
4. A ré nunca contribuiu para a economia familiar.
5. A reforma auferida pela ré sempre foi depositada (no caso, transferida) numa conta bancária na qual a ré era a única titular.
6. O casal decidiu comprar um terreno para nele construir uma moradia para férias;
7. A ré sempre acompanhou o autor nas diligências para comprar o terreno e nada foi decidido sem o aval dela;
8. O autor sempre prometeu à ré que o património adquirido em Portugal o seria em nome dos dois para garantir património à mesma;
9. Uma vez que nos Estados Unidos já teria feito partilhas com os seus filhos;
10. A conta bancária solidária n.º .......49, sempre foi livremente movimentada pelo autor e pela ré;
11. Os cheques referidos em 9. e 13. dos factos provados foram preenchidos, datados e assinados pela ré;
12. Toda a negociação para a adjudicação da construção da casa, projeto e escolha de materiais contou com a participação ativa e determinante da ré;
13. O autor sempre afirmou que a casa era para a ré, já que ela não tinha habitação própria e os filhos do autor nunca viriam para Portugal.
14. O regime da separação de bens foi estipulado por exigência do autor, que contava, à data, com 58 anos, e tinha já dois filhos maiores de idade, de um anterior casamento [aditado pela Relação – anterior facto provado 3].
15. Como tal, o autor esclareceu a ré que não queria, com o casamento entre ambos, prejudicar a relação que tinha com os filhos [aditado pela Relação – anterior facto provado 4].
16. Nem tão pouco o património que os filhos herdariam, no futuro e à sua morte, do autor [aditado pela Relação – anterior facto provado 5].
IV – O direito
Da violação de normas relativas à reapreciação da decisão sobre a matéria de facto
O recorrente pretende colocar em causa a decisão proferida pela Relação quanto à impugnação da matéria de facto, alvitrando que os pontos 3, 4 e 5 não deveriam ter passado de provados a não provados.
Os factos em causa apresentam a seguinte redação: “3. O regime da separação de bens foi estipulado por exigência do autor, que contava, à data, com 58 anos, e tinha já dois filhos maiores de idade, de um anterior casamento; 4. Como tal, o autor esclareceu a ré que não queria, com o casamento entre ambos, prejudicar a relação que tinha com os filhos; 5. Nem tão pouco o património que os filhos herdariam, no futuro e à sua morte, do autor.”
Como é reiteradamente afirmado pela jurisprudência do STJ, este tribunal, na qualidade de tribunal de revista, só conhece de matéria de direito (art. 46.º da LOSJ), não lhe sendo lícito interferir no juízo decisório empreendido pela Relação com base na reapreciação dos meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação (cfr., entre muitos outros, os acórdãos de 09-12-2021, Processo n.º 2043/15.0T8STR.E1.S1, de 20-04-2022, Processo n.º 403/21.7T8MBR.C1.S1, de 20-04-2022, Processo n.º 28126/17.4T8LSB.L1.S1, de 31-03-2022, Processo n.º 505/17.4T8FAR.E1.S1e de 21-04-2022, Processo n.º 1045/20.0T8GMR.G1.S1). Destarte, e como decorre da leitura conjugada do disposto nos arts. 674.º/3 e 682.º/2 do CPC, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.
No que tange à matéria fáctica elencada no ponto 3), considerou o Tribunal da Relação de Guimarães que os factos atinentes ao estado civil e ao parentesco poderão ser provados por confissão ficta e não unicamente por prova documental autêntica quando tal facticidade, como sucede “in casu”, não é central no processo e neste não se assume como pressuposto de aplicação de qualquer norma. A decisão recorrida, após fazer notar o caráter controvertido de tais factos, acabou por concluir que nenhuma prova foi produzida sobre os mesmos, fazendo transitá-los para a matéria de facto não provada. O recorrente, por sua vez, não alega a violação de disposições de direito probatório substantivo referentes a prova vinculada (em concreto, das normas constantes dos arts. 1.º/1/b), 4.º e 211.º/1 do Código do Registo Civil), antes pretende a demonstração da factualidade em causa através de prova testemunhal, sublinhando que a mesma não integra a causa de pedir do pleito.
A jurisprudência do STJ tem-se pronunciado, de modo maioritário, no sentido defendido pela decisão recorrida, isto é, no sentido de que não constituindo o estado civil (e idêntico raciocínio se pode formular a respeito do parentesco) “thema decidendum” e no domínio de ações que versem sobre direitos disponíveis (como sucede com o caso que suscita a nossa análise), a sua demonstração é admissível por confissão tácita, não sendo necessária a sua prova por documento extraído do registo civil.
O acórdão do STJ de 06-02-2003, Processo n.º 02B4731, considerou que “o casamento é um facto jurídico que, nos termos dos artºs. 1º, n.º 1, d), 4º, e 211º, todos do Cód. Registo Civil, só pode provar-se por um dos meios indicados no último preceito, entre os quais se não inclui a confissão. Todavia, em processo civil, o estado civil ou o parentesco podem alcançar-se mediante acordo das partes ou confissão sempre que os respectivos factos jurídicos não constituam objecto directo da acção, antes constituindo relações jurídicas prejudiciais ou condicionantes, meros pressupostos da decisão a proferir, elementos da hipótese de facto da norma.”
Segundo o acórdão do STJ de 12-01-2006, Processo n.º 3694/05, “(…) II - Nas acções de incumprimento contratual, a prova do casamento de qualquer das partes não exige a junção do competente documento autêntico, pois o estado civil daquelas não é o pomo nuclear da lide.”
Segundo o acórdão de 08-09-2015, Processo n.º 579/08.9TBABF.E1.S1, relatado por João Camilo, “I - Não estando o casamento dos réus e o respetivo regime englobados no “thema decidendum”, é admissível a sua demonstração por confissão tácita, sendo desnecessária a sua demonstração por documento extraído do registo civil (…)”
Segundo ao acórdão do STJ de 10-09-2009, Processo n.º 3536/07.9TVLSB.S1 , “I - Quando a questão do casamento não é a questão jurídica central de um determinado processo, a “aceitação” do casamento prescinde bem da certidão do registo civil exigida pelo art. 4.º do CRgC – a confissão basta (…)”
Em sentido diverso, considerou o acórdão de 05-02-2009, Processo n.º 1705/08, que “(…) III - O casamento é um facto obrigatoriamente sujeito a registo (art. 1.º, n.º 1, al. d) do CRgC) e a sua prova apenas pode ser feita nos termos e meios dispostos pelo mesmo Código - arts. 4.º e 211.º do CRgC. IV - A falta da junção da certidão do assento de casamento não pode ser suprida pela confissão tácita resultante da revelia (arts. 485.º, al. d), do CPC e 364.º, n.º 2, do CC); e mesmo que se aceite que esta permite considerar provado o casamento, subsistirá sempre a dificuldade resultante do desconhecimento da respectiva data.” Considerou este aresto: “para o que realmente interessa, não foi junta certidão (como sempre exigia a redacção anterior do artigo 211° referido). O recorrente sustenta que essa exigência não vale para acções em que, como a presente, estão em jogo direitos disponíveis e não versam sobre o estado das pessoas; e que, portanto, a falta de contestação tinha como efeito que se devesse considerar provado o casamento. No entanto, a alínea d) do artigo 485° impede essa conclusão; e ao mesmo resultado leva o disposto no n° 2 do artigo 364° do Código Civil, impedindo a substituição da certidão em falta por confissão tácita (como é a que resulta da revelia). Não há qualquer indicação, por parte do legislador, de que tal regime apenas vale quanto a acções com determinado objecto; e a garantia alcançada com as exigências de prova justifica-se independentemente da função que os factos sujeitos a registo desempenhem numa acção.”
Na situação em apreço, os factos atinentes à existência de um prévio casamento e de filhos do recorrente, como bem nota o Tribunal da Relação de Guimarães, foram impugnados pela recorrida no art. 7.º da contestação, não sendo de aplicar, por conseguinte, o regime da confissão “ficta”. Nessa circunstância tais factos, ainda que não integrando o “thema decidendum”, tão-só poderão ser demonstrados através das formas a que se reporta o art. 211.º, nºs 1 e 2, do Código do Registo Civil, e não por meio de prova testemunhal, como pretende o recorrente.
Na falta de tais meios de prova, nenhum juízo de censura nos merece a circunstância de os mesmos factos terem sido considerados não provados pela Relação.
Quanto aos factos constantes dos pontos 4) e 5) não existe qualquer disposição legal que exija certa espécie de prova para a demonstração da sua existência. O Tribunal da Relação de Guimarães para esteirar a sua convicção a tal respeito mobilizou meios de prova desprovidos de valor tabelado, não cabendo no âmbito dos poderes de cognição do STJ sindicar o alegado erro decisório imputado à instância recorrida nesta sede.
Da propriedade exclusiva do recorrente sobre o prédio
A decisão recorrida considerou, num entendimento que vem disputado pelo recorrente, que a circunstância de ser da propriedade exclusiva deste o dinheiro utilizado para adquirir o prédio assim como para liquidar o preço da obra correspondente à execução da empreitada de construção da moradia não apresenta a virtualidade de ilidir a presunção registral adveniente do art. 7.º/1 do Código do Registo Predial ou de afastar a força das declarações de vontade constantes da escritura pública de compra e venda do imóvel outorgada a 04-05-2001.
Como aponta Rui Pinto Duarte, (O Registo Predial, Coimbra, Almedina, 2020, reimpressão, pp. 107-108), um dos efeitos inerentes ao registo é o da “presunção do direito registado e da presunção da sua pertença a quem está registado como titular (art. 7.º) Quem tem um direito registado a seu favor presume-se titular desse direito enquanto o registo estiver em vigor.”
Os argumentos, mobilizados pelo tribunal “a quo” para sustentar são de acolher: não tendo sido suscitada a questão da divergência entre a vontade e a declaração ou um vício relevante da vontade, deve presumir-se a vontade exteriorizada através das declarações negociais emitidas pelas partes na escritura de compra e venda (cfr. Lebre de Freitas, A falsidade no Direito Probatório, 2.ª edição, Coimbra, Almedina, 2013, p. 40) ; por outro lado, existindo uma presunção registral de compropriedade entre as partes do prédio em discussão, competia ao recorrente levar a cabo a prova do contrário (artigo 350.º, nº 2, do CCiv), demonstrando uma causa de aquisição da propriedade exclusiva a seu favor.
No caso, inexistem elementos fácticos para afirmar a posse exclusiva do imóvel pelo recorrente anterior ao registo de aquisição do direito de compropriedade idónea a extrair a presunção da titularidade exclusiva do direito reclamado, nos termos do artigo 1268.º do CC.
Assim, a ilisão da presunção legal “iuris tantum” adveniente do registo seria suscetível de ser operada através da demonstração, pelo recorrente, da aquisição originária do direito de propriedade exclusiva sobre o imóvel – o que não sucedeu. A prova de que residia na sua titularidade exclusiva o dinheiro utilizado para custear o preço de aquisição do terreno e a construção da moradia no mesmo edificada não se mostra juridicamente operativa para ilidir a mencionada presunção, num sistema (como é o nosso) em que o contrato de compra e venda apresenta um efeito real – a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito – que se opera, de acordo com o princípio da consensualidade, em termos imediatos e instantâneos logo no momento da celebração do contrato (cfr. artigos. 879.º, al. a), 1317.º, al. a) e 408.º, nº 1 do CCiv), independentemente do pagamento do preço (Cfr., a este respeito, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, volume III, 14.ª edição, Coimbra, Almedina, 2022, pp. 20-28).
Numa outra formulação: no nosso ordenamento, a transferência de direito real sobre coisa imóvel (e, por isso, sujeita a registo) determinada, opera-se por mero efeito de contrato entre as partes, ou seja, na síntese do acórdão do STJ de 03-07-2008, Processo n.º 08B1345, “por exclusivo resultado do consenso das partes legitimamente manifestado e no próprio instante da celebração – sem necessidade de qualquer acto posterior”. Assim, a titularidade dos fundos alocados para o pagamento do preço (em concreto, a circunstância de a mesma residir em apenas um dos comproprietários adquirentes ou até num terceiro) não implica qualquer efeito translativo do direito de propriedade sobre a coisa alienada.
Ainda que a intenção das partes tivesse sido no sentido de que apenas o recorrente assumisse a qualidade de adquirente do imóvel, como o mesmo afiança, tal vontade não foi regularmente declarada em escritura pública ou em documento particular autenticado, de acordo com o exigido pelo artigo 875.º do CCiv, não sendo admissível, como decorre do estatuído pelo artigo 364.º, nº 1, do CCiv, substituir tais documentos por outro meio de prova ou por documento de força probatória inferior (como seja o documento particular consistente no contrato-promessa outorgado a 28-04-2001).
Vejamos como a jurisprudência do STJ se tem pronunciado acerca da temática.
Ante uma situação em que o imóvel foi adquirido - ainda que em data anterior à celebração do casamento – em compropriedade por cônjuges casados segundo o regime de separação de bens, o STJ, em aresto de 19-05-2020, Processo n.º 260/11.1TVLSB.L1.S1, considerou que “não tendo sido eficazmente impugnada a declaração constante dessa escritura, de que o autor e a ré compraram o imóvel em comum e partes iguais, o facto de se ter provado que ele pagou mais do que ela não é suficiente para afirmar que as quotas de cada um deles, como comproprietários, são diferentes.”
Ainda que se reportando a situação não coincidente com a que se ajuíza, o acórdão do STJ de 22-02-2022, Processo n.º 351/20.8T8ORM.E1.S1, não deixou de fazer notar que o facto de um dos cônjuges, casado em regime de separação de bens, suportar os custos da construção realizada num imóvel conjuntamente com o seu cônjuge, proprietário exclusivo do segundo, não a torna comproprietária daquela construção.
V – Decisão
Termos em que se nega a revista, confirmando a decisão recorrida.
Custas, aqui e nas instâncias, pelo Recorrente.
Lisboa, 14 de setembro de 2023
Rijo Ferreira (Relator)
Cura Mariano
Fernando Baptista