I. Não merece censura a decisão de ineptidão da petição inicial por aplicação do art. 186.º, n.º 2, als. a) e c), do CPC.
II. Tampouco merece censura o juízo de inviabilidade da presente acção popular, por se entender, à luz dos pedidos formulados, não se estar em presença de interesses individuais homogéneos que possam justificar o tratamento conjunto ou indiferenciado dos interesses de cada consumidor no âmbito de uma acção popular.
“A - reconhecer que os consumidores, Autor e Autores Populares, incluindo o Autor, têm direito a que lhe sejam entregues produtos com a genuinidade, qualidade e composição descrita ou indicada no rótulo do mesmo;
B - reconhecer que cometeram fraude sobre mercadorias e contra a genuinidade, qualidade e composição dos géneros alimentícios ao vender um azeite como “Azeite Virgem Extra”, quando não era azeite virgem extra;
C - reconhecer que não prestaram aos consumidores, Autor e Autores Populares, a informação correta sobre a qualidade do azeite Grão Mestre “Azeite Virgem Extra”, mas sim uma informação falsa quanto à sua genuinidade, qualidade e composição;
D - reconhecer que o comportamento supra descrito consubstancia em concorrência desleal e desonesta, nomeadamente ao usar falsas descrições ou indicações sobre a natureza e qualidade do azeite Grão Mestre “Azeite Virgem Extra”;
E - reconhecer que em caso de falta de conformidade do produto, os consumidores, Autores Populares, incluindo o Autor, têm direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição;
F - reconhecer que o comportamento supra descrito nos pontos C e D, tido com o Autor e demais Autores Populares, é ilícito;
G - abster-se de realizar as práticas comerciais agressivas e ilegais mencionadas nos pontos C e D supra;
H - reconhecer que agiram com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, seja quanto ao Autor, como quanto aos Autores Populares;
I - reconhecer que com esse comportamento lesaram gravemente os interesses do Autor e dos demais Autores Populares, nomeadamente vendendo um produto que não era o que estes esperavam quando o compraram, levando-os a comprar o mesmo em erro;
e em consequência, devem as Rés ser condenadas a:
J - em relação ao Autor e aos demais Autores Populares:
a. repor a falta de conformidade do bem por meio de substituição, redução adequada do preço ou a resolução do contrato nos termos dos artigos 4(1)(5) e 5(1) do Decreto Lei 67/2003.
b. uma indemnização por todos os danos que causaram na esfera jurídica e patrimonial do Autor e dos Autores Populares devido ao comportamento ilícito supra descrito, nomeadamente, mas não exclusivamente, pelas garrafas de azeite Grão Mestre Azeite Virgem Extra compradas e entretanto consumidas por engano imputável às Rés, na exata quantia que por elas pagaram Autor e Autores Populares, a apurar em execução de sentença.
Sendo no caso do Autor possível concretizar, já neste momento, o pedido, o que se faz do seguinte modo:
c. repor a falta de conformidade do azeite Grão Mestre Azeite Virgem Extra relativamente à fatura 121580 emitida pela 1.ª Ré,
d. pagar a quantia de 5 euros por dia a contar da citação até à reposição do bem desconforme; e. 5000 euros a título de danos morais e que resultaram da lesão da tranquilidade, do bem-estar físico e psíquico, tudo devido ao comportamento ilícito das Rés, nomeadamente o ter levado o Autor a consumir um azeite que julgou ser azeite virgem extra mas que não era, o que levou obviamente a algum sofrimento físico e moral, perda de confiança nas normas e nas relações comerciais, ainda que o Autor atribua culpa deste comportamento ilícito e temerário das Rés à falta de inação da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica que deveria sancionar e impedir tais comportamentos, mas que inexplicavelmente não o faz, principalmente face a indícios que remontam a 2013;
f. assim como uma indemnização dos custos suportados pelo Autor com a propositura desta ação, não obstante o carácter popular da mesma e a “teoria das custas de parte”;
g. os juros que se vencerem à taxa legal aplicável a cada momento contados desde a data do vencimento da obrigação de indemnizar até integral pagamento;
e no caso de qualquer um dos pedidos supra procederem, deve a Ré ser condenado a:
L- enviar a sentença que vier a ser proferida a todos os seus clientes e/ou ex-clientes, potenciais Autores Populares e nessa qualidade titulares dos interesses identificados, para que estes, querendo, façam valer os seus direitos nos termos da Lei 83/95 artigo 22(3).”.
Para tanto, alega o A., em síntese, que, tal “como a maioria dos cidadãos portugueses, consome azeite, incluindo o Azeite Grão Mestre, alegadamente «Azeite Virgem Extra», produzido e comercializado pela 2ª Ré e vendido ao consumidor final pela 1ª Ré”.
Sucede que, apesar de o A. e os restantes consumidores adquirirem esse produto acreditando que se trata de um Azeite Virgem Extra, como consta do respectivo rótulo, o mesmo não pode como tal ser classificado “porquanto não é um azeite virgem extra”.
Ora, “tanto a 2ª Ré, que é quem produz o aludido Azeite, como a 1ª Ré, que é quem vende o mesmo ao consumidor final, sabiam que estariam a comercializar um azeite com a indicação de ser um azeite virgem extra, mas que não era, pois pelo menos desde 2013 que várias notícias têm sido trazidas a público sobre a falta de conformidade do azeite com o declarado no rótulo (…), apesar do Autor só ter tido conhecimento desse facto no dia 4 de novembro de 2021, quando leu a DECO PROTESTE. O mesmo aconteceu com muitos outros consumidores, aqui Autores Populares, sendo possível que muitos consumidores ainda consumam o aludido azeite Grão Mestre, acreditando que estão a consumir um «Azeite Virgem Extra».”.
Assim, uma vez que “as Rés, com a intenção de enganar os consumidores nas relações negociais, produz e expõe para venda e vendem um azeite de natureza diferente e de qualidade inferior à que afirmam possuir”, “o Autor e demais Autores Populares sentem-se por isso enganados ao terem pago por um produto de natureza diferente e de qualidade inferior àquele que as Rés afirmavam possuir. E em consequência sofreram um dano patrimonial ao terem comprado o suprarreferido azeite.”.
Para além disso, acrescenta ainda o A. que também “sofreram danos não patrimoniais, danos morais in re ipsa, necessariamente ínsitos no dano decorrente de terem sido enganados e levados a consumir um produto que não queriam, em vez de outro que desejavam e tinham adquirido”.
Inclusivamente, “o Autor sofreu e está a sofrer com todo o comportamento das Rés, nomeadamente devido à angústia, ansiedade, frustração, sentido de falta de proteção da saúde pública e da economia que seria esperada num Estado de direito em que as Rés se comportassem de acordo com os costumes, boa fé, praxis mercantil e as leis”.
Nestes termos, considera o A. que, “assente que a proteção conferida aos ora Autores Populares se enquadra quer no âmbito de previsão da CRP artigo 52(3) e CPC artigo 31, importa frisar que os presentes direitos dos consumidores e que se fazem valer na presente ação, traduzem, simultaneamente, direitos individuais homogéneos e direitos coletivos de todos os Autores. Direitos coletivos na medida em que, com a presente ação, visam os Autores acautelar o interesse público no correto e eficiente funcionamento do mercado em geral (nomeadamente contra as práticas concorrenciais desleais que afetam todo o ecossistema económico e social), no sentido da defesa da coletividade ou grupo de consumidores e ao mesmo tempo consumidores de bens e serviços da Ré, enquanto número indeterminável de pessoas que representam a procura por esses bens e serviços, realizam compras na 1ª Ré dos produtos da 2ª Ré, e ainda a segurança e a confiança na Lei, que são condições essenciais ao regular funcionamento do mesmo [cf. CRP artigo 81(f)]. Direitos individuais homogéneos na medida em que, com a presente ação, visam os Autores ver reparado um prejuízo que foi causado no montante dos valores que despenderam na aquisição e da privação de uso [cf. CRP artigo 52(3), na parte em que refere: incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização (SOFIA NASCIMENTO RODRIGUES, A proteção…, pp. 61-62)].”.
No âmbito dos presentes autos foi proferido despacho do seguinte teor:
“Em conformidade com o disposto no artigo 13º da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, «a petição deve ser indeferida quando o julgador entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido, ouvido o Ministério Público e feitas preliminarmente as averiguações que o julgador tenha por justificadas ou que o autor ou o Ministério Público requeiram».
No caso em apreço verifica-se que os pedidos constantes da petição inicial foram formulados de forma vaga, não traduzindo, na maior parte dos casos, a adoção de qualquer providência que pudesse vir a ser determinada pelo Tribunal, o que poderá constituir fundamento de ineptidão da petição inicial.
Mas, para além disso, não poderá deixar de se questionar a admissibilidade do recurso à instauração de uma ação popular com vista a satisfazer as pretensões apresentadas pelo Autor e que consistem na reposição da “falta de conformidade do bem por meio de substituição, redução adequada do preço ou a à resolução do contrato nos termos dos artigos 4(1)(5) e 5(1) do Decreto-Lei 67/2003” e no pagamento de “uma indemnização por todos os danos que [as Rés] causaram na esfera jurídica e patrimonial do Autor e dos Autores Populares devido ao comportamento ilícito supra descrito, nomeadamente, mas não exclusivamente, pelas garrafas de azeite Grão Mestre Azeite Virgem Extra comprados e entretanto consumidas por engano imputável às Rés, na exata quantia que por elas pagaram Autor e Autores Populares, a apurar em execução de sentença”.
De facto, importa começar por aferir se o exercício de tais direitos (individuais) estará abrangido pelo direito de ação popular que o Autor acionou.
De todo o modo, antes de se ponderar a admissibilidade do prosseguimento da presente ação, notifique o Ilustre Mandatário constituído nos autos, assim como a Digna Magistrada do Ministério Público para, querendo, se pronunciarem, dentro do prazo de dez dias, acerca das questões atrás mencionadas.”.
Notificado do referido despacho, o A. pronunciou-se nos termos constantes do requerimento a que corresponde a referência n.º 2916668.
Por seu turno, também o Ministério Público juntou aos autos o requerimento com a referência n.º 2919896.
Na sequência da notificação do requerimento apresentado pelo Ministério Público, o A. veio exercer o direito ao contraditório, juntando aos autos o requerimento a que corresponde a referência n.º 2925056.
Por despacho do Juiz da 1.ª instância foi decidido indeferir liminarmente a petição inicial «com fundamento na verificação das exceções dilatórias a que atrás se aludiu (nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial e inadmissibilidade do recurso à instauração de uma ação popular em face da natureza individual dos interesses invocados)».
2. Inconformado, o A. interpôs recurso per saltum para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando as seguintes conclusões:
«1. Os recorrentes, autores populares, interpõe[m] o presente recurso por entender em que o tribunal a quo não fez a melhore mais correta interpretação do direito quanto às questões mencionadas supra em §1 ao decidir indeferir liminarmente a petição inicial e consequentemente absolver os réus da instância, com fundamento na verificação da exceções dilatória de ineptidão da petição inicial e inadmissibilidade do recurso à instauração de uma ação popular em face da natureza individual dos interesses invocados.
2. O presente recurso vem na modalidade da revista per saltum, por recair apenas sobre a matéria de direito, o que é feito nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1) ex vi artigo 644 (1, a) e 678 (3) todos do CPC.
3. Os autores têm legitimidade para interpor o presente recurso acompanhado das respetivas alegações sob a matéria de direito (cf. artigo 631 do CPC) e estão em tempo de o fazer (cf. artigo 638 do CPC).
4. Os recorrentes, mui respeitosamente, discordam do douto despacho pelas razões vertidas nos §§ 2, 3, 4, 5 e 6 supra, para onde se remete para uma completa compreensão e evitando aqui uma repetição fastidiosa e prolixa do que aí se encontra de forma resumida.
5. Mas que, resumindo ainda mais, se estriba no facto dos autores terem um interesse pretensamente partilhado por todos os consumidores dos produtos produzidos e /ou comercializados pelas rés (conforme o caso), nas mesmas condições – afetados pelo comportamento ilícito destas (causa de pedir escorada de forma depurada nos factos) - e o direito de serem indemnizados pelos danos provocados por esses comportamentos.
6. Entendem, desse modo, que na presente lide estamos perante a defesa de interesses coletivos (que se prendem com os pedidos), não revelando a causa de pedir ou o pedido quaisquer particularidades derivadas da multiplicidade dos factos que caraterizam as relações entre os autores populares e as rés ou um qualquer pleito abusivo do direito da ação popular que possam interromper o direito de ação popular.
7. Isto porque a definição do objeto da causa (pedido e causa de pedir) é conforme configurado pelos autores – rectius causa petendi – e a forma de processo (ação popular), tal como acontece com outros pressupostos processuais (i.e. legitimidade ativa ou passiva, competência do tribunal, instância, etc.) é tal como configurada pelos autores no articulado inicial.
8. Assim, atentos à causa de pedir exaltada no §2 supra, para onde se remete, evitando aqui a sua extensa repetição, e ao pedido, transcrito no que releva no § 3 supra, também para onde se remete, é inequívoco que estão preenchidos os requisitos do direito de ação popular nos termos da lei 83/95 que tem estribo na CRP.
9. Isto porque, a situação é a descrita nos factos (§ 2 supra) e que resultou numa lesão em massa aos autores populares derivado do comportamento ilícito das rés - comum a todos os autores.
10. Assim, o lastro de individualização tem de ser abstraído, pois não se trata, no processo, de atacar as condições precisas e particulares que diferem para cada um dos autores populares em razão do negócio na altura concretizado, onde as datas, os preços pagos e os subjacentes de outras condições do negócio (i.e. compra a dinheiro, com cartão de crédito, etc) são irrelevantes.
11. O que se ataca é o comportamento ilícito das rés, designadamente a fraude sobre mercadorias e contra a genuinidade, qualidade e composição dos géneros alimentícios que cometeram, a falta de garantir a qualidade dos bens e serviços, garantir a proteção dos interesses económicos dos consumidores a que estão sujeitos quando vendem os seus produtos, garantir o direito à informação em particular, garantir a qualidade dos bens e serviços e de se abster de concorrer deslealmente ao adotar um comportamento concorrencial contrário às normas e usos honestos, nomeadamente ao usar falsas descrições ou indicações sobre a natureza e qualidade do azeite supra referido.
12. Por fim, como sustentado no § 6 supra, o douto despacho decidiu mal relativamente à ineptidão da petição inicial.
13. Isto porque, de forma resumida, evitando repetir o já referido no § 6 supra, porque os factos alegados e que integram o núcleo essencial da causa de pedir são perfeitamente inteligíveis e não carecem de densificação ou concretização mais depurada em alguns aspeto ou nalguma vertente em que a pretensão tem estribo e que dos elementos factuais constitutivos de que depende o reconhecimento do direito invocado pelos autores que constam na petição inicial, não se verifica qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir.
14. Por fim, no § 7, orientados pelo princípio da celeridade e economia processual (cf. artigo 6 do CPC) que determina a resolução da maior quantidade possível de litígios com o mesmo processo, vem a CITIZENS' VOICE, aproveitando este recurso e o facto de ser representado pelo mesmo mandatário que o autor já interveniente, para, enquanto titular dos interesses em causa na presente ação, pedir para nela intervir a título principal e aceitando-o na fase em que se encontrar (cf. artigo15 da lei 83/95), aceitando inclusivamente representar, por sua própria iniciativa, todos 27 de 33 os demais titulares dos interesses em causa que não tenham exercido a auto exclusão prevista no artigo 15 in fine da Lei 83/95, com as consequências legais que desta decisão se possa retirar (cf. artigo 14 da lei 83/95).
15. Sendo que, como se explica no § 7 a CITIZENS’ VOICE é uma associação de defesa dos consumidores da União Europeia, cujos estatutos e deliberações da assembleia geral de sócios, lhe conferem poderes para intervir, como autora, neste tipo de ações.
§9. Pedido
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência ser revogada o douto despacho recorrido, substituindo-se por outra que determine a descida dos autos à primeira instância e o prosseguimento da ação como ação popular.»
Ou, se «assim não entendam, deve a ação seguir apenas na parte que diz respeito aos autores populares, cindindo-se os mesmos do autor interveniente – o que evitará a propositura de uma nova ação popular sem o pedido especificado do autor, com tudo que isso acarreta para as partes e para o sistema judicial.».
A Recorrida Auchan, S.A. contra-alegou, concluindo nos termos seguintes:
«i. A decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª instância não merece qualquer censura ou reparo, devendo ser mantida pelo Supremo Tribunal de Justiça, in totum, uma vez que a Petição Inicial do Autor ora Recorrente é inepta, nos termos previstos no artigo 186.º, n.º 1, do CPC.
ii. Acresce que se verifica, ainda, conforme destacado pelo Tribunal a quo, “(…) que o objeto da presente ação declarativa, tal como foi delimitado pelo Autor na petição inicial, extravasa o âmbito da tutela dos interesses difusos, coletivos e homogéneos que permitiria a instauração de uma ação popular (…)”.
iii. Determina o artigo 186.º, n.º 1, do CPC, que é nulo todo o processo quando for inepta a petição inicial.
iv. Tal qual salientado pelo Tribunal de 1.ª instância, é essencial aferir, por um lado, se os pedidos deduzidos pelo Autor foram feitos de forma a que desencadeassem na ineptidão da sua Petição Inicial e, por outro lado, se os direitos individuais que o Autor pretende exercer se encontram abrangidos pela acção popular que actualmente corre os seus termos.
v. Conforme refere o douto Tribunal a quo na sentença proferida, e cujo teor, pela clareza de raciocínio se transcreve:
“(…) No caso em apreço, analisado o teor da petição inicial, verifica-se que os pedidos formulados pelo Autor nos pontos A a I do seu petitório consubstanciam alusões vagas e imprecisas que não se traduzem na adoção de qualquer providência concreta que o Autor solicite que venha a ser determinada pelo Tribunal no âmbito dos presentes autos, nem no reconhecimento da verificação de qualquer efeito jurídico decorrente dos factos alegados (…) Assim, por se afigurar que nos pontos A a I do petitório apresentado pelo Autor não foi formulado qualquer pedido concreto e determinado que pudesse vir a ser apreciado pelo Tribunal, não poderia deixar de se concluir que, nessa parte, a petição inicial é inepta, por falta de indicação do pedido (cfr. artigo 186º, n.º 1 e 2, alínea a), do CPC).
vi. Concordamos também integralmente e sem reservas quando o Tribunal de 1.ª instância invoca que: “(…) Na verdade, o único pedido concreto formulado pelo Autor corresponde ao ressarcimento do prejuízo inerente ao pagamento do preço das garrafas de azeite “compradas e entretanto consumidas por engano”, solicitando o Autor que as Rés sejam condenadas a indemnizar os adquirentes “na exata quantia que por elas pagaram Autor e Autores Populares”. Mas, mesmo no que concerne ao pedido de restituição da quantia paga pela aquisição das garrafas de azeite mencionadas pelo Autor verifica-se a existência de uma contradição substancial e insanável entre esse pedido e qualquer uma das pretensões indicadas na alínea a. do ponto J do petitório apresentado pelo Autor (…)”.
vii. Os interesses cuja tutela é pretendida pelo Autor com a vertente acção popular não configuram interesses homogéneos que pudessem vir a ser apreciados, de forma indiferenciada, no âmbito da presente acção, extravasando, ainda, o âmbito da tutela dos interesses difusos, colectivos e homogéneos que permitiria a instauração de uma acção popular.
viii. O Autor ora Recorrente, apesar de não poder exigir a tutela jurisdicional de interesses próprio e individuais, ainda se limitar a invocar, de forma vaga e indeterminada, “danos” que não fundamenta e concretiza.
ix. No que concerne à alegada homogeneidade do pedido formulado pelo Autor e conforme refere o Ministério Público na sua resposta ao recurso apresentado, que pela clareza citamos: “(…) Contrariamente ao referido pelo recorrente, os vários consumidores de azeite que poderiam vir a ser representados pelo Autor ao abrigo do disposto nos artigos 14º e 15º, n.º 1, da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto, não são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo, pois as Rés poderiam invocar diferentes defesas contra cada um desses consumidores tendo em conta, desde logo, o prazo de caducidade do exercício dos direitos indicados no ponto J do petitório apresentado pelo Autor.
Efetivamente, em função da data em que cada um dos consumidores em causa tenha adquirido as garrafas de azeite identificadas nos presentes autos, poderiam as Rés invocar ou não o decurso do prazo de caducidade que se encontra previsto no artigo 5º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de abril (entretanto revogado, mas aplicável aos contratos celebrados até ao dia 1 de janeiro de 2022, conforme resulta do disposto nos artigos 53º a 55º do Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de outubro).
Mais, a inexistência da homogeneidade necessária entre os interesses individuais de cada um dos consumidores de azeite mencionados pelo Autor resulta da própria petição inicial (…)”.
x. Por toda a fundamentação acima exposta, deve a decisão proferida pelo Tribunal a quo manter-se por ser acertada e adequada e não merecer qualquer reparo ou censura.».
2. Não existem obstáculos à admissibilidade do recurso, uma vez que se verificam os pressupostos previstos no artigo 678.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.
3. Atentas as conclusões apresentadas pelo Recorrente, o recurso tem por objecto as seguintes questões:
• Saber se a petição inicial formulada pelo A. deve ser liminarmente indeferida por ineptidão, assim como saber se é inadmissível a instauração da acção popular por parte do A., em função da natureza dos interesses invocados;
• Saber se deve ser admitida a intervir, a título principal, a associação Citizens Voice.
4. O A. instaurou a presente acção popular, sob a forma de processo comum, contra as RR. Auchan Retail Portugal, S.A., e Penazeites – Azeites Tradicionais, S.A., solicitando a condenação destas a:
“A- reconhecer que os consumidores, Autor e Autores Populares, incluindo o Autor, têm direito a que lhe sejam entregues produtos com a genuinidade, qualidade e composição descrita ou indicada no rótulo do mesmo;
B- reconhecer que cometeram fraude sobre mercadorias e contra a genuinidade, qualidade e composição dos géneros alimentícios ao vender um azeite como “Azeite Virgem Extra”, quando não era azeite virgem extra;
C- reconhecer que não prestaram aos consumidores, Autor e Autores Populares, a informação correta sobrem a qualidade do azeite Grão Mestre “Azeite Virgem Extra”, mas sim uma informação falsa quanto à sua genuinidade, qualidade e composição;
D- reconhecer que o comportamento supra descrito consubstancia em concorrência desleal e desonesta, nomeadamente ao usar falsas descrições ou indicações sobre a natureza e qualidade do azeite Grão Mestre “Azeite Virgem Extra”;
E- reconhecer que em caso de falta de conformidade do produto, os consumidores, Autores Populares, incluindo o Autor, têm direito a que esta seja reposta sem encargos, por meio de reparação ou de substituição;
F- reconhecer que o comportamento supra descrito nos pontos C e D, tido com o Autor e demais Autores Populares, é ilícito;
G- abster-se de realizar as práticas comerciais agressivas e ilegais mencionadas nos pontos C e D supra;
H- reconhecer que agiram com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos seja quanto ao Autor, como quanto aos Autores Populares;
I- reconhecer que com esse comportamento lesaram gravemente os interesses do Autor e dos demais Autores Populares, nomeadamente vendendo um produto que não era o que estes esperavam quando o compraram, levando-os a comprar o mesmo em erro; e em consequência, devem as Rés ser condenadas a:
J- em relação ao Autor e aos demais Autores Populares:
a. repor a falta de conformidade do bem por meio de substituição, redução adequada do preço ou a resolução do contrato nos termos dos artigos 4(1)(5) e 5(1) do Decreto Lei 67/2003.
b. uma indemnização por todos os danos que causaram na esfera jurídica e patrimonial do Autor e dos Autores Populares devido ao comportamento ilícito supra descrito, nomeadamente, mas não exclusivamente, pelas garrafas de azeite Grão Mestre Azeite Virgem Extra compradas e entretanto consumidas por engano imputável às Rés, na exata quantia que por elas pagaram Autor e Autores Populares, a apurar em execução de sentença.
Sendo no caso do Autor possível concretizar, já neste momento, o pedido, o que se faz do seguinte modo:
c. repor a falta de conformidade do azeite Grão Mestre Azeite Virgem Extra relativamente à fatura 121580 emitida pela 1.ª Ré,
d. pagar a quantia de 5 euros por dia a contar da citação até à reposição do bem desconforme;
e. 5000 euros a título de danos morais e que resultaram da lesão da tranquilidade, do bem-estar físico e psíquico, tudo devido ao comportamento ilícito das Rés, nomeadamente o ter levado o Autor a consumir um azeite que julgou ser azeite virgem extra mas que não era, o que levou obviamente a algum sofrimento físico e moral, perda de confiança nas normas e nas relações comerciais, ainda que o Autor atribua culpa deste comportamento ilícito e temerário das Rés à falta de inação da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica que deveria sancionar e impedir tais comportamentos, mas que inexplicavelmente não o faz, principalmente face a indícios que remontam a 2013;
f. assim como uma indemnização dos custos suportados pelo Autor com a propositura desta ação, não obstante o carácter popular da mesma e a “teoria das custas de parte”;
g. os juros que se vencerem à taxa legal aplicável a cada momento contados desde a data do vencimento da obrigação de indemnizar até integral pagamento;
e no caso de qualquer um dos pedidos supra procederem, deve a Ré ser condenado a:
L- enviar a sentença que vier a ser proferida a todos os seus clientes e/ou ex-clientes, potenciais Autores Populares e nessa qualidade titulares dos interesses identificados, para que estes, querendo, façam valer os seus direitos nos termos da Lei 83/95 artigo 22.”.
4.1. Partindo da análise da petição inicial, o tribunal recorrido considerou, em primeiro lugar, que “os pedidos formulados pelo Autor nos pontos A a I do seu petitório consubstanciam alusões vagas e imprecisas que não se traduzem na adoção de qualquer providência concreta que o Autor solicite que venha a ser determinada pelo Tribunal no âmbito dos presentes autos, nem no reconhecimento da verificação de qualquer efeito jurídico decorrente dos factos alegados.”.
Refere-se no despacho recorrido que, naqueles pontos do peticionado (A. a I.), “o Autor alude a vários aspetos que constituem a causa de pedir por si invocada, mas não formula qualquer pedido concreto sobre o qual o Tribunal pudesse pronunciar-se, julgando-o procedente ou improcedente.”.
Acrescenta o despacho recorrido, citando Abrantes Geraldes (Temas da Reforma do Processo Civil, Vol. I, 2.ª ed., Almedina, Coimbra, 2003, pág. 121), que “a indeterminabilidade ou a ambiguidade do objeto do processo constitui uma falha tão grave quanto as referidas anteriormente, devendo o autor expressar a sua vontade de forma que possa ser facilmente apreendida por terceiros e de modo a permitir a definição dos contornos do direito no caso concreto, quando tiver de ser proferida a sentença. Será inepta uma petição que contenha um pedido vago e abstrato, como aquele que foi objeto do Ac. da Rel. de Évora, de 13-12-84, in CJ, tomo V, pág. 314, e que consistia em «proibir o réu de todo e qualquer ato ofensivo de interesses do autor», ou quando se pretenda a condenação, na entrega de um prédio rústico ou urbano, sem qualquer identificação. O mesmo vício de ineptidão caracterizará uma petição elaborada nos termos da que foi objeto de pronúncia no Ac. da Rel. de Évora, de 14-6-78, in CJ, tomo IV, pág. 1284, e onde se formulava o pedido de declaração genérica e vaga, sem caracterização de factualidade definida e concreta, nos seguintes termos: «declaração de que o autor não tem para com o réu qualquer dívida ou qualquer obrigação de pagar ou indemnizar...».”.
O Recorrente, em sede de alegações de recurso, invoca estarem “na petição inicial os elementos factuais constitutivos de que depende o reconhecimento do direito invocado pelos autores”, não se verificando “qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir.”.
A propósito desta alegação do Recorrente, a qual se encontra consubstanciada nas conclusões recursórias 12 e 13, importa esclarecer que a mesma não corresponde à fundamentação do despacho recorrido. Com efeito, a decisão de ineptidão da petição inicial foi proferida com fundamento na ausência de “qualquer pedido concreto e determinado que pudesse vir a ser apreciado pelo Tribunal” no que respeita aos pontos A. a I. do peticionado. Significa isto que o tribunal recorrido considerou existir uma verdadeira falta de indicação do pedido (cfr. art. 186.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), do CPC)) e não, como parece ter entendido o Recorrente, uma ausência de causa de pedir ou uma qualquer contradição entre o pedido e a causa de pedir.
Ora, diz-se inepta a petição quando falte ou seja ininteligível a indicação do pedido ou da causa de pedir, quando ocorra contradição entre o pedido e a causa de pedir ou quando se cumulem causas de pedir ou pedidos substancialmente incompatíveis (art. 186.º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Quanto ao pedido, dúvidas não existem de que o mesmo é um elemento essencial da petição inicial, o que faz com que a sua falta ou ininteligibilidade torne a petição inepta e que este vício acarrete a nulidade de todo o processo e a absolvição do réu da instância (arts. 186.º, n.º 1 e n.º 2, alínea a), e 278.º, n.º 1, alínea b), do CPC).
Daí que, conforme se escreve no acórdão deste Supremo Tribunal de 22-03-2007 (processo n.º 06S3961), disponível em www.dgsi.pt, se exija que, na petição inicial, “o autor concretize a providência que pretende ver decretada pelo tribunal, de modo a que este não fique com dúvidas acerca do efeito jurídico que ele visa obter com a acção, isto é, de modo a que não se veja impossibilitado de decidir por ignorar o que o autor realmente pretende”, aí se salientando que, “como é óbvio, os pedidos vagos e imprecisos não satisfazem aquela exigência”, o mesmo sucedendo quanto à admissibilidade de pedidos genéricos, como decorria do disposto no n.º 1 do art. 471.º do CPC (correspondente ao actual art. 556.º), nos termos do qual a formulação de tais pedidos só é permitida: “a) Quando o objecto mediato da acção seja uma universalidade, de facto ou de direito; b) Quando não seja ainda possível determinar, de modo definitivo, as consequência do facto ilícito, ou o lesado pretenda usar da faculdade que lhe confere o artigo 659.º do Código civil; ou c) Quando a fixação do quantitativo esteja dependente de prestação de contas ou de outro acto que deva ser praticado pelo réu”.”.
Justifica aqui referir-se o acórdão da Relação de Lisboa de 13-02-2019 (proc. n.º 5931/18.9T8LSB.L1-4), consultável em www.dgsi.pt, no qual se afirma o seguinte:
“No que concerne especialmente à inteligibilidade/ininteligibilidade do pedido, importa ter em consideração que consistindo o pedido na forma de tutela jurisdicional que é requerida para determinada situação subjectiva, e podendo o mesmo ter um de dois significados (como pretensão material, representa a afirmação de um direito subjectivo ou de um interesse juridicamente relevante - por exemplo, a arguição da nulidade de um negócio -, e como pretensão processual, e com ligação ao art. 3º do C.P.Civil de 2013, traduz-se na identificação do meio de tutela jurisdicional pretendido pelo autor - por ex. declaração de nulidade do negócio), o mesmo tem que obedecer a determinadas características: exige-se que o pedido seja deduzido de forma clara e inteligível e seja preciso e determinado.
Só um pedido cujo alcance possa ser compreendido pelo juiz e pelo réu é passível de sustentar um processo em que se pretende uma decisão judicial definidora de um conflito de interesses, não se admitindo a formulação de pedidos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros. Não pode pretender-se colocar o réu ou o juiz na posição de ter de adivinhar a real vontade do autor. O réu só pode exercer efectivamente o contraditório quando confrontado com uma pretensão cujos contornos e alcance resultem claros da petição inicial, sem necessidade de conjecturar acerca da verdadeira intenção do autor quando resolveu solicitar a intervenção judicial; no que ao juiz concerne, a clareza e inteligibilidade da tutela solicitada visam evitar, incertezas quanto ao objecto da acção no que respeita à forma de tutela pretendida. Assim, pedido ininteligível é aquele que se apresenta em termos obscuros ou ambíguos, não permitindo seja apreendido com segurança qual o efeito jurídico pretendido.”. [negritos nossos]
Ao impor que o autor formule expressamente um pedido quis o legislador assegurar que se encontra identificada tanto a providência pretendida como o efeito prático-jurídico a alcançar, exigindo-se, ainda, que a pretensão jurisdicional seja autonomizada dos factos que a sustentam (cfr. art. 552.º, n.º 1, alíneas d) e e), do CPC). Daí que, nas palavras de Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022 págs. 242), o pedido deva ter “uma formulação que possa ser compreendida pelo réu e pelo juiz, dado que só assim é possível sustentar um processo em que se pretende uma decisão judicial definidora de um conflito de interesses, não se admitindo a apresentação de petições que integrem pedidos ininteligíveis, ambíguos, vagos ou obscuros.” [negrito nosso].
4.2. No caso dos autos, há que distinguir os vários pedidos formulados, uma vez que são distintos os vícios de que padecem.
Atendendo aos pedidos formulados nos pontos A. a I. da petição inicial, dúvidas não subsistem de que os mesmos consistem em pedidos de “declaração de reconhecimento” por parte das RR. dos alegados direitos que sustentam a causa de pedir delineada pelo A.. Verifica-se que tais declarações de reconhecimento não se identificam com qualquer providência concreta útil que vise tutelar a posição jurídica do mesmo A., tanto mais que, a serem atendidas, colocariam dificuldades ao nível da sua exequibilidade. Poder-se-ia, eventualmente, equacionar a possibilidade de tais pedidos assumirem relevo enquanto pedidos implícitos, conexos com outros pedidos explicitamente formulados (como ocorre noutras acções, como sucede, por exemplo, na acção de reivindicação com o pedido de reconhecimento da titularidade do bem cuja restituição é pedida). Entende-se, porém, que essa possibilidade de conexão não existe no caso concreto, já que as demais providências requeridas (pontos J., alíneas a) a g)) visam, em síntese, tutelar a posição jurídica do A. no contexto do contrato de compra e venda (de azeite) celebrado com a 1.ª R., que aquele considera ter sido defeituosamente cumprido.
Temos, assim, que a vacuidade e abstracção dos pedidos formulados nos pontos A. a I. da petição inicial tornam desnecessário que, sobre tais pedidos, recaia uma pronúncia judicial, por se concluir que qualquer decisão proferida, estaria, nessa parte, ferida de inocuidade, por inexequível e insusceptível de concretizar a tutela da situação apresentada a juízo. Se alguma dúvida subsistisse a este respeito, bastaria verificar que, a ter lugar uma pronúncia judicial sobre os pedidos em causa, não seria possível definir quais os limites do caso julgado material formado com tal pronúncia.
Quanto ao peticionado no ponto J., alínea b), de condenação das RR. no pagamento de indemnização pelos danos patrimoniais suportados pelo A. e pelos danos suportados pelos demais autores populares em virtude do comportamento ilícito imputado às RR. (relativo à alegada prestação de informação falsa sobre a qualidade do azeite Grão Mestre “Azeite Virgem Extra”), indemnização essa que, nos termos constantes do pedido, seria apurada em sede de execução de sentença, constata-se que o mesmo é genérico, vago e impreciso, tanto mais que os invocados danos não se encontram descritos ou individualizados na petição inicial. Concorda-se, assim, com o despacho recorrido que considerou que o pedido de indemnização “de todos os danos” causados na esfera jurídica dos potenciais interessados, sem que os mesmos surjam minimamente identificados na acção, não consubstancia um pedido determinado e preciso, susceptível de apreciação por parte do tribunal. O mesmo juízo vale para os pedidos, conexos com o ponto J., alínea b), formulados no ponto J. alíneas d) a g).
Por outro lado, o pedido ínsito na mesma alínea b) do ponto J., relativo à restituição da quantia paga pela aquisição das garrafas de azeite, está em manifesta contradição com as providências requeridas nas alíneas a) e c) do mesmo ponto J, sendo, nesta parte, inepta a petição por aplicação do art. 186.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
Como se escreve no despacho recorrido:
“[A] restituição, aos adquirentes do preço pago pelas garrafas de azeite que se encontram em causa nos autos seria incompatível quer com a substituição das mesmas, quer com a redução do preço pago. Por outro lado, pretendendo o Autor que as Rés sejam condenadas a devolver o preço por estes pago pela aquisição de garrafas de azeite “compradas e entretanto consumidas por engano”, afigura-se inequívoco que esse pedido seria também incompatível com a resolução dos contratos de compra e venda já que este pressuporia a devolução, pelos interessados, dos bens adquiridos.”.
Como se escreveu no acórdão deste Supremo Tribunal de 05-07-2005 (proc. n.º 1981/05), não publicado, ocorre “contradição entre o pedido de condenação no pagamento do valor residual e juros e a causa de pedir integrante da resolução do contrato: é óbvio que, resolvido o contrato, ocorreria contradição entre a afirmação dessa resolução e o pedido de tal pagamento com base nela, o que igualmente constitui ineptidão da petição inicial».
Deste modo, não merece censura o juízo do tribunal recorrido ao considerar inepta a petição inicial.
5. Passemos a apreciar a questão da alegada verificação dos pressupostos da instauração de uma acção popular.
O despacho recorrido entendeu que, no caso em apreço, “os interesses cuja tutela é pretendida através da instauração da presente ação não configuram interesses homogéneos que pudessem vir a ser apreciados, de forma indiferenciada, no âmbito de uma ação popular.”. Escuda-se, para tanto, no argumento essencial de que os vários consumidores de azeite que poderiam vir a ser representados pelo A. ao abrigo do disposto nos arts. 14.º e 15.º, n.º 1 da Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, não são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo, conclusão que entende resultar da própria petição inicial, tanto mais que as RR. poderiam vir a invocar diferentes defesas contra cada um dos consumidores, desde logo no que concerne ao prazo de caducidade do exercício dos direitos indicados no ponto J. do peticionado.
Entende, por sua vez, o Recorrente que, na presente lide, está em causa a defesa de interesses colectivos, o que decorre da causa de pedir que estrutura a acção e dos pedidos nela formulados.
Conclui o Recorrente no sentido de que se está perante uma lesão em massa dos autores populares e que, por isso, se encontram preenchidos os requisitos do direito de acção popular previstos na Lei n.º 83/95, assumindo-se, na sua perspectiva, como irrelevantes as condições particulares que diferem para cada um dos autores populares em razão do negócio concreto realizado (cfr. conclusões recursórias 6 a 11).
Vejamos.
5.1. Importa começar por enquadrar, do ponto de vista jurídico, a temática relativa à acção popular.
A Constituição da República Portuguesa (CRP), no seu art. 52.º, n.º 3, consagra expressamente o direito de acção popular nos seguintes termos:
“É conferido a todos, pessoalmente ou através de associações de defesa dos interesses em causa, o direito de acção popular nos casos e termos previstos na lei, incluindo o direito de requerer para o lesado ou lesados a correspondente indemnização, nomeadamente para:
a) Promover a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções contra a saúde pública, os direitos dos consumidores, a qualidade de vida e a preservação do ambiente e do património cultural;
b) Assegurar a defesa dos bens do Estado, das regiões autónomas e das autarquias locais.”.
No plano da legislação ordinária, cumpre atentar na supra referida Lei n.º 83/95, de 31 de Agosto, que regula o exercício do direito de acção popular.
Dispõe o art. 1.º, n.º 2, da referida lei, que “são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a proteção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.”.
Por sua vez, são titulares do direito de acção popular, de acordo com o art. 2.º, n.º 1, da mesma lei “quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.”.
Conforme previsto no art. 14.º da Lei n.º 83/95, nos processos de acção popular, “o autor representa por iniciativa própria, com dispensa de mandato ou autorização expressa, todos os demais titulares dos direitos ou interesses em causa que não tenham exercido o direito de auto-exclusão previsto no artigo seguinte, com as consequências constantes da presente lei”.
Segundo Paulo Otero («A acção popular, configuração e valor no actual Direito Português», in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59, Dezembro de 1999, págs. 871-873):
“A acção popular, sendo sempre uma acção judicial e, neste sentido, a expressão do direito fundamental de acesso aos tribunais, distingue-se de todas as demais modalidades de acções pela amplitude dos critérios determinativos da legitimidade para a respectiva propositura.
Mediante a acção popular, pode dizer-se que todos os membros de uma comunidade - ou, pelo menos, um grupo de pessoas não individualizável pela titularidade de qualquer interesse directamente pessoal - estão investidos de um poder de acesso à justiça visando tutelar situações jurídicas materiais que são insusceptíveis de uma apropriação individual.
A acção popular traduz, deste modo, uma forma de tutela jurisdicional de posições jurídicas materiais que, sendo pertença de todos os membros de uma certa comunidade, não são, todavia, apropriáveis por nenhum deles em termos individuais. Deparamos aqui, por isso mesmo, com um conjunto de interesses materiais solidariamente comuns aos membros de uma comunidade e cuja titularidade se mostra indivisível através de um processo de apropriação individual. Neste sentido, deverá afirmar-se que o actor popular age sempre no interesse geral da colectividade ou da comunidade a que pertence ou se encontra inserido, isto sem que tal meio de tutela judicial envolva a titularidade de qualquer interesse directo e pessoal.”.
No plano da legitimidade processual, dispõe ainda o art. 31.º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “Ações para a tutela de interesses difusos”, o seguinte:
“Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei”.
5.2. A propósito do que sejam interesse difusos, vejam-se os arts. 3.º alínea f), e 13.º, alínea c), da Lei de Defesa do Consumidor (LDC) - Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, na sua versão mais recente).
Conforme dispõe o art. 3.º, alínea f), o consumidor tem direito “[à] prevenção e à reparação dos danos patrimoniais ou não patrimoniais que resultem da ofensa de interesses ou direitos individuais homogéneos, colectivos ou difusos”.
E o art.13.º da LDC estipula que:
“Têm legitimidade para intentar as ações previstas nos artigos anteriores:
a) Os consumidores diretamente lesados;
b) Os consumidores e as associações de consumidores ainda que não diretamente lesados, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31 de agosto;
c) O Ministério Público e a Direção-Geral do Consumidor quando estejam em causa interesses individuais homogéneos, coletivos ou difusos”.
Entende-se por interesses difusos aqueles que pertencem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos e respeitam, por isso, a interesses indivisíveis da colectividade.
Dentro da categoria dos interesses difusos (em sentido amplo) é possível englobar diferentes realidades, podendo distinguir-se entre interesses difusos em sentido estrito, interesses colectivos e interesses individuais homogéneos.
No acórdão deste Supremo Tribunal de 08-09-2016 (proc. n.º 7617/15.T8PRT.S1), consultável em www.stj.pt, encontramos, a este respeito, a seguinte síntese dos ensinamentos de Miguel Teixeira de Sousa (A legitimidade popular na tutela dos interesses difusos, Lex, Lisboa, 2003, págs. 46 e segs.):
“Os interesses difusos são interesses que possuem uma dimensão individual e supra-individual, ao contrário dos interesses individuais, que só possuem uma dimensão individual, pertencem exclusivamente a um ou a alguns titulares. Os interesses particulares homogéneos são aqueles em que não existem situações individuais particularizadas, mas tão só situações jurídicas genericamente consideradas.
Os interesses difusos encontram-se dispersos ou disseminados por vários titulares, mas são interesses sem sujeito ou sem titulares, cabem a todos e cada um dos membros de uma classe ou de um grupo, mas são insusceptíveis de apropriação individual por qualquer desses sujeitos, sendo, pois, a dupla dimensão individual e supra-individual uma característica essencial desses interesses
Os interesses difusos são indiferenciados, não só porque podem pertencer a qualquer sujeito que se inclua numa certa classe ou categoria, mas também porque eles existem independentemente de qualquer relação voluntária estabelecida entre os seus titulares. São interesses de uma classe ou de um grupo, ou seja, de um conjunto de pessoas que podem satisfazer uma necessidade através da apropriação de um mesmo bem e é por isso que se pode falar também de interesses difusos de consumidores.
Os interesses difusos recaem sobre bens que podem ser gozados de uma forma concorrente e não exclusiva, pois que os seus titulares, ao beneficiarem de um certo bem, não impedem os outros que possam igualmente disfrutar desse mesmo bem.
Os interesses individuais homogéneos podem ser definidos como os interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso “stricto sensu” ou de um interesse colectivo.
Não são apenas interesses singulares, isto é, de um indivíduo, mas também interesses supra- individuais, pois que pertencem a todos os titulares do interesse difuso “stricto sensu” ou do interesse coletivo.
Na acção popular procura-se a tutela de um interesse difuso, assim como os correspondentes interesses individuais homogéneos de todos os seus titulares.
No entanto, para que a tutela colectiva seja praticável, ela impõe normalmente a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos seus titulares.
Na verdade, a tutela colectiva não é possível sem a abstração do “lastro de individualização” que é característica das situações “standard”.
A tutela de interesses difusos “stricto sensu” e a tutela de interesses colectivos visam finalidades que não são totalmente coincidentes.
Quando se trata de defender interesses difusos, o que sobreleva é a protecção do interesse supra individual “qual tale” e a prossecução da finalidade visada com a sua previsão no ordenamento jurídico, por exemplo, a prevenção de uma agressão ambiental ou uma reacção contra o uso de uma cláusula contratual ilegal.
Quando se trata de defender interesses colectivos, o que ressalta é a protecção das situações individuais de cada um dos titulares.
Enquanto os interesses difusos são sempre compatíveis com uma tutela subjetivamente indiferenciada, à protecção dos interesses coletivos pode não interessar a apreciação individualizada da situação de cada um dos titulares.
A tutela dos interesses colectivos só é admissível até onde for aceitável uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos seus titulares.
A tutela individual requer uma cuidadosa reconstrução dos factos e o sucesso dela pode depender da averiguação de alguns pormenores, mas a tutela colectiva só é viável abstraindo das especificidades de cada uma das situações individuais.
Quando uma acção se destina à protecção de interesses difusos “stricto sensu”, ela tutela um interesse indivisível e insusceptível de ser individualizado, pelo que não se requer qualquer apreciação individual de cada um dos titulares daquele interesse.
Quando se destina à protecção de interesses colectivos, ela permite a colectivização de uma massa de acções individuais, mas como estão em causa bens privados de vários sujeitos, não pode dispensar uma análise individualizada da situação de cada um dos seus titulares.”. [negritos nossos]
No plano jurisprudencial, os interesses individuais homogéneos, enquanto objecto admissível de acção popular, são encarados como “todos aqueles casos em que os membros da classe são titulares de direitos diversos, mas dependentes de uma única questão de facto ou de direito, pedindo-se para todos eles um provimento jurisdicional de conteúdo idêntico” (cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de 23-09-1997 (proc. n.º 97B503) e de 20-10-2005 (proc. n.º 05B2578), ambos disponíveis em www.dgsi.pt, em ambos se citando Ada Pellegrini Grinover.
Sobre o que se entende estar compreendido no objecto da acção popular e a diferença entre interesses difusos, interesses colectivos e interesses individuais homogéneos, atente-se ainda no sumário do referido acórdão de 08-09-2016 (proc. n.º 7617/15.T8PRT.S1), onde se escreve o seguinte:
“I - A ação popular tem como objeto a tutela de interesses difusos (o que compreende os interesses difusos stricto sensu, os interesses coletivos e os interesses individuais homogéneos), os quais se caraterizam por possuírem uma dimensão individual e supra individual, pela sua titularidade caber a todos e a cada um dos membros de uma classe ou de um grupo (independentemente da sua vontade) e por recaírem sobre bens que podem ser gozados de forma concorrente e não exclusiva.
II - Os interesses individuais homogéneos são definíveis como situações jurídicas genericamente consideradas, correspondendo aos interesses de cada um dos titulares de um interesse difuso ou de um interesse coletivo.
III - A tutela do interesse difuso supõe a abstração de particularidades respeitantes a cada um dos titulares, pois o que sobreleva é a proteção do interesse supra individual e a prossecução da finalidade visada com a sua criação na ordem jurídica, o que prescinde da apreciação de qualquer especificidade; porém, quando por intermédio daquela ação se almeje a tutela de um interesse coletivo, releva a proteção de situações individuais dos respetivos titulares, sendo que tal é admissível apenas até ao limite em que seja aceitável uma apreciação indiferenciada das mesmas, sem que, contudo, se dispense a análise individualizada de cada uma.
IV - Posto que a ação popular não é admissível quando o demandado possa invocar diferentes defesas contra os vários representados, deve-se atentar na posição por este assumida, assumindo-se assim aquela possibilidade como um critério prático para discutir a sua admissibilidade.
V - A legitimidade popular deve ser aferida em função do poder de representação dos titulares do interesse por parte do autor popular e do seu interesse na demanda, sendo que os representados devem todos ter sido atingidos pela violação do mesmo interesse difuso ou estarem em risco de o serem.
VI - A adequação da representação pressupõe a inexistência de um conflito de interesses entre o autor popular e os titulares do interesse difuso e a garantia de que a sua atuação permite substituir a presença daqueles em juízo.
VII - Invocando os autores um interesse pretensamente partilhado por todos os clientes da ré – o pagamento de prestações dos créditos bancários para habitação através de qualquer meio idóneo para o efeito, nomeadamente contas bancárias sedeadas noutras instituições – que não está a ser por esta respeitado e as respetivas consequências, é de considerar que estamos perante a defesa de interesses coletivos (que se prendem com a forma de amortização dos ditos financiamentos), não revelando a causa de pedir ou o pedido quaisquer particularidades derivadas da multiplicidade dos factos que caraterizam as relações entre o banco e os seus mutuários.
VIII - Sendo possível, face à definição do objeto da causa, proceder a uma apreciação indiferenciada da situação de cada um dos mutuários, competirá ao tribunal, uma vez apuradas as suas particularidades, apreciar se as mesmas inviabilizam uma tomada de decisão numa ação popular ou se, pelo contrário, os elementos factuais que são comuns a todas elas se revelam prevalentes, sempre tendo em vista a necessidade de abstração referida em III.
IX - O juízo de manifesta improcedência previsto no art. 13.º da Lei n.º 83/95, de 31-08, supõe a inexistência do fumus boni iuris.”.
Assim, e de acordo com o ensinamento de Miguel Teixeira de Sousa (ob. cit., pág. 164), “a acção popular não é admissível quando o demandado possa invocar contra algum ou alguns dos representados uma defesa pessoal, isto é, quando possa utilizar fundamentos de defesa específicos contra alguns desses representados”. [negritos nossos]
Exemplifica o mesmo autor (ob. cit., pág. 164), afirmando o seguinte: “Basta pensar, por exemplo, que, em relação a certos lesados, a causalidade entre o facto e o dano pode concorrer com outros factores ou que alguns lesados podem ter contribuído, através de um comportamento de risco ou negligente, para a produção do dano. Isto mostra que os vários representados na acção popular podem ser titulares de um mesmo interesse – porque, por exemplo, todos eles ter direito a ser indemnizados pelo demandado -, sem que se possa dizer que todos eles são titulares do mesmo interesse individual homogéneo e, portanto, se que se possa concluir pela admissibilidade dessa acção quanto a todos eles. Assim, (...) a possibilidade de o demandado na acção popular invocar diferentes defesas contra os vários representados pode ser utilizada como um critério prático para verificar se eles são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo” [negritos nossos]
5.3. Consideremos o caso concreto em apreço. O interesse invocado pelo A. consiste, fundamentalmente, e em face dos pedidos formulados nos pontos J. e L. do peticionado, na reposição da falta de conformidade do bem por meio de substituição, redução adequada do preço ou resolução do contrato; e na atribuição (ao A. e a “todos os clientes”) de uma indemnização pelos danos causados na esfera patrimonial do A. e demais autores populares devido ao comportamento ilícito imputado às RR. (relativo à prestação de informação falsa sobre a qualidade do azeite Grão Mestre “Azeite Virgem Extra”), indemnização essa que, nos termos constantes do pedido, seria apurada em sede de execução de sentença.
Para além do exposto, o A., individualizando a sua situação jurídica, peticiona a reposição da falta de conformidade do azeite por si adquirido e respeitante à factura 121580 emitida pela 1.ª R.; e ainda a condenação no pagamento de € 5.000 a título de danos morais por si sofridos e numa indemnização pelos custos suportados pelo A. com a propositura desta acção, não obstante a natureza de acção popular da mesma.
Ora, em face do concretamente peticionado nos termos supra aludidos, entende-se que, efectivamente, não estamos perante a defesa de interesses difusos ou supra individuais passíveis de serem invocados numa acção popular.
Na verdade, o que está fundamentalmente em causa é o interesse individual do A., indissociável do invocado cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda por si celebrado com a 1.ª R., pretendendo o A., com aqueles pedidos, repor a conformidade da sua situação jurídica.
Repare-se que, face ao objecto da acção, é indesmentível concluir-se que, no caso, as relações contratuais dos clientes da 1.ª R. podem não ser idênticas entre si, não sendo possível, face aos concretos pedidos formulados, abstrair das especificidades de cada uma das situações individuais de cada um dos eventuais titulares do interesse invocado na acção relativo à qualidade de um bem de consumo.
Recorrendo ao critério prático a que alude o supra citado acórdão deste Supremo Tribunal de 08-09-2016, e tal como referido no despacho liminar proferido nos autos, as demandadas poderiam invocar diferentes defesas contra os vários representados, tendo em consideração, desde logo, o prazo de caducidade dos direitos invocados na acção (prazo esse previsto no art. 5.º-A do Decreto-Lei n.º 67/2003, de 8 de Abril, aplicável ao caso uma vez que a presente acção foi intentada em ...-11/2021, e que o regime instituído pelo Decreto-Lei n.º 84/2021, de 18 de Outubro, apenas se aplica aos contratos celebrados após a sua entrada em vigor (01-01-2022); cfr. arts. 51.º e 55.º do mesmo diploma legal). Tal situação demonstra efectivamente que os vários consumidores de azeite que poderiam vir a ser representados pelo A. não são titulares de um mesmo interesse individual homogéneo.
A este propósito, concorda-se com a fundamentação constante do despacho proferido na 1.ª instância quando aí se escreve que:
“Recorde-se que, relativamente à generalidade dos consumidores que poderiam encontrar-se em causa, o Autor tinha solicitado que as Rés fossem condenadas a “repor a falta de conformidade do bem por meio de substituição, redução adequada do preço ou a resolução do contrato nos termos dos artigos 4(1)(5) e 5(1) do Decreto Lei 67/2003” e a pagar “uma indemnização por todos os danos que causaram na esfera jurídica e patrimonial do Autor e dos Autores Populares devido ao comportamento ilícito supra descrito, nomeadamente, mas não exclusivamente, pelas garrafas de azeite Grão Mestre Azeite Virgem Extra compradas e entretanto consumidas por engano imputável às Rés, na exata quantia que por elas pagaram Autor e Autores Populares, a apurar em execução de sentença”.
Porém, quando pretendeu concretizar esses pedidos relativamente a si próprio, o Autor formulou pretensões que não coincidem com as anteriormente mencionadas, tendo em conta, desde logo, que, em vez da restituição do preço pago pelas garrafas de azeite adquiridas, solicitou a reposição do bem por si adquirido, bem como o pagamento da quantia de € 5,00 por dia desde a data da citação até à efetiva reposição do bem desconforme.
Por outro lado, para além de quantificar em € 5.000,00 o valor da indemnização devida pelos restantes danos por si sofridos, só no seu caso particular é que o Autor logrou identificar quais são os danos a ressarcir, os quais consistiriam nos “danos morais e que resultaram da lesão da tranquilidade, do bem-estar físico e psíquico, tudo devido ao comportamento ilícito das Rés, nomeadamente o ter levado o Autor a consumir um azeite que julgou ser azeite virgem extra mas que não era, o que levou obviamente a algum sofrimento físico e moral, perda de confiança nas normas e nas relações comerciais, ainda que o Autor atribua culpa deste comportamento ilícito e temerário das Rés à falta de inação da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica que deveria sancionar e impedir tais comportamentos, mas que inexplicavelmente não o faz, principalmente face a indícios que remontam a 2013”.
Ora, tal desfasamento verificado entre a pretensão formulada relativamente aos restantes consumidores e a pretensão formulada relativamente ao Autor afigura-se bem revelador da inexistência de qualquer homogeneidade de situações jurídicas que pudesse justificar o tratamento conjunto dos interesses individuais de cada consumidor que seria próprio de uma ação popular.
Mas, para além de o Autor não ter peticionado, relativamente os restantes consumidores, o ressarcimento dos mesmos danos que alega ter sofrido, afigura-se que não seria admissível pressupor que os restantes consumidores que adquiriram às Rés garrafas de azeite Grão Mestre – Azeite Virgem Extra tenham sofrido danos idênticos aos invocados pelo Autor.
Na verdade, como é alegado pelo próprio Autor, já desde o ano de 2013 que têm vindo a público notícias que dão conta da falta de conformidade de azeites comercializados, sob diversas marcas disponíveis no mercado, entre as quais a denominada Grão Mestre, com a indicação, no respetivo rótulo, de que consubstanciam um azeite virgem extra quando, de acordo com os resultados obtidos em laboratório, apenas poderão ser classificados como azeite virgem.
Ora, neste contexto, não é admissível pressupor que os restantes consumidores que adquiriram garrafas de azeite Grão Mestre – Azeite Virgem Extra desconhecessem as notícias a que se aludiu e que, como é do conhecimento público, têm vindo a ser divulgadas não só pela própria Associação de Defesa do Consumidor que solicitou a realização dos testes laboratoriais atrás mencionados, mas também pelos meios de comunicação nacionais.
Na verdade, a divulgação pública, inclusivamente através dos meios de comunicação social, dos resultados dos referidos testes laboratoriais afasta a suposição de que os danos não patrimoniais invocados pelo Autor e cujo ressarcimento é por este solicitado tenham afetado, de forma idêntica, os restantes consumidores que adquiriram garrafas de azeite comercializadas sob a marca Grão Mestre e com a indicação, no respetivo rótulo, de que contêm um azeite virgem extra.
Deste modo, dúvidas não restam de que os interesses cuja tutela é pretendida através da instauração da presente ação não configuram interesses homogéneos que pudessem vir a ser apreciados, de forma indiferenciada, no âmbito de uma ação popular.”. [negritos nossos]
No mesmo sentido, pode ler-se no sumário do recente acórdão da Relação de Lisboa de 26-05-2022 (proc. n.º 26412/16.0T8LSB.L2-2), consultável em www.dgsi.pt, o seguinte:
“I. O objeto natural e próprio da ação popular e que pressupõe o alargamento da legitimidade próprio do autor popular é uma tutela coletiva que impõe a abstração de algumas particularidades respeitantes a cada um dos titulares lesados.
II. O autor popular não tem legitimidade para apresentar em juízo pedidos de providência jurisdicional próprios da clássica ação individual, norteada pela tutela do interesse individual de cada um dos consumidores concretamente lesados.
III. Assim, no caso dos presentes autos, a A., associação de defesa dos interesses dos consumidores, não tem legitimidade para peticionar, em alegada ação popular, que o tribunal condene as RR. a retomarem os veículos afetados pagando aos respetivos proprietários um valor que dependerá do valor inicial do veículo, do ano, da kilometragem mas que não poderá ser inferior a um montante entre os 12.500 USD e os 44.000 USD oferecido aos consumidores norte-americanos, ou a repará-los, se for essa a opção dos consumidores e se a reparação do veículo for possível; a assumirem os custos remanescentes dos contratos de aluguer ou leasing celebrados pelos consumidores para aquisição dos veículos afetados, no caso dos consumidores optarem por porem fim a tais contratos; a pagarem aos consumidores uma indemnização pelas informações falsas produzidas e pela depreciação do valor dos veículos afetados, não inferior a um montante entre os 5.100 USD e os 10.000 USD ou, em alternativa, se o tribunal assim o entender, a 15% do valor de compra do veículo.”.
Acrescenta o referido aresto que “o caráter comum e homogéneo dos interesses tutelados na ação popular refletir-se-á na providência jurisdicional fixada. Conforme expende Lebre de Freitas (“A ação popular do direito português”, in sub judice, 24, janeiro/março de 2003, p. 24), “[e]nquanto o consumidor a quem é fornecida a coisa com defeito tem direito, conforme os casos e em conformidade com a lei geral, à sua reparação, à sua substituição, à redução do preço, à resolução do contrato e/ou à indemnização (por dano material ou moral), o autor da acção popular mais não poderá que pedir uma indemnização globalmente fixada, em termos porventura equitativos”. [negritos nossos]
Na linha do que foi decidido em tal acórdão, também se considera que a presente acção popular instaurada pelo A. “resvala dos terrenos da tutela coletiva, onde deveria conter-se, para os terrenos da ação individual, onde caberá a cada consumidor lesado alegar os factos concretos que fundam o seu direito e identificar a providência jurisdicional que reputa adequada à respetiva tutela do seu interesse individual.”.
5.4. Aplicando todas estas considerações ao caso concreto sub judice, conclui-se pela inviabilidade da presente acção popular, por se entender – à luz dos pedidos formulados e acima analisados – não se estar em presença de interesses individuais homogéneos que pudessem justificar o tratamento conjunto ou indiferenciado do interesse de cada consumidor no âmbito de uma acção popular.
6. Consequentemente, fica prejudicado o conhecimento do requerimento apresentado no sentido de ser admitida a intervenção a título principal da Citizens Voice (associação de defesa de consumidores da União Europeia).
7. Pelo exposto, julga-se improcedente o recurso de revista per saltum, confirmando-se a decisão recorrida.
Sem custas (cfr. a previsão da alínea b) do n.º 1 do art. 4.º, conjugada com o n.º 5 do mesmo art. 4.º, do Regulamento das Custas Processuais)
Lisboa, 14 de Setembro de 2023
Maria da Graça Trigo (relatora)
Catarina Serra
Paulo Rijo Ferreira