ALEGAÇÃO
DESENTRANHAMENTO
INTEMPESTIVIDADE
RECLAMAÇÃO
Sumário

Tendo a Ré recorrido do despacho que determinou que a secretaria procedesse de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 642.º do CPC, recurso que não foi admitido, é intempestivo o despacho que, na mesma data, ordena o desentranhamento da alegação do despacho que anteriormente condenara a Ré numa multa de 4 UC, por não terem sido pagas as guias emitidas pela secretaria, sem que tivesse decorrido o prazo para a apresentação da reclamação contra a não admissão daquele recurso.
(Elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Lisboa
Relatório

Na presente acção sob a forma de processo comum que AAA intentou contra BBB, em 6.6.2019, foi proferido o seguinte despacho:
“Recurso sobre aplicação de multa por falta ao Julgamento – ref.7582856, de 06-11-2018:
A ré interpôs recurso do despacho de 23-10-2018 que lhe aplicou uma multa por falta do seu representante legal à audiência de julgamento.
Não juntou comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida, mas consignou, na parte final do requerimento, o seguinte: «Para os devidos efeitos, consigna-se que o DUC e comprovativo de pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso, serão juntos no prazo previsto nos artigos 642.º, n.º 1 e 145.º do CPC.»
No dia 15-11-2018, veio juntar um comprovativo de que nesse mesmo dia tinha efetuado o pagamento da taxa de justiça no valor de €51,00.
Estamos de acordo quanto às normas aplicáveis.
O art.º 145.º do CPC, prescreve o seguinte:
«1 - Quando a prática de um ato processual exija o pagamento de taxa de justiça, nos termos fixados pelo Regulamento das Custas Processuais, deve ser junto o documento comprovativo do seu prévio pagamento ou da concessão do benefício do apoio judiciário, salvo se neste último caso aquele documento já se encontrar junto aos autos.
(...)
3 - Sem prejuízo das disposições relativas à petição inicial, a falta de junção do documento referido no n.º 1 não implica a recusa da peça processual, devendo a parte proceder à sua junção nos 10 dias subsequentes à prática do ato processual, sob pena de aplicação das cominações previstas nos artigos 570.º e 642.º.
(...)» [destaque nosso].
Resulta inequivocamente desta norma que a junção do comprovativo até pode ser posterior (nos dez dias seguintes), mas o pagamento tem de ser prévio à prática do ato processual.
Ora, a ré interpôs o recurso no dia 06-11-2018, mas só pagou a taxa de justiça no dia 15-11-2018, pelo que a consequência é a aplicação do art.º 642.º n.º 1 do CPC, ou seja, a notificação da recorrente para efetuar o pagamento da multa, pois a taxa de justiça, embora fora de prazo, já tinha sido, entretanto, paga.
A secretaria emitiu em 26-11-2018 a guia n.º 703080068876408, no valor de €102,00.
Essa guia não foi paga.
Assim, uma vez que falta o pagamento da multa, nos termos do n.º 2 do art.º 642.º do CPC, aplicável por força do art.º 1.º, n.º 2, al. a) do CPT, determino o desentranhamento da alegação apresentada sob a ref.7582856, em 06-11-2018 (fls.75 a 82 do processo físico).
Custas do incidente a cargo da ré, cuja taxa de justiça fixo em duas UC – art.º 7.º, n.ºs 4 e 8 do RCP e Tabela II-A, anexa àquele diploma.”
Inconformada, a Ré recorreu e sintetizou as alegações nas seguintes conclusões:
“I. O despacho de que se recorre não é mais do que a repetição – quase ipsis verbis - do anterior despacho proferido pelo MM. Juiz a quo e já impugnado pela ré/recorrente por meio do recurso que dele interpôs.
II. Com efeito, o Mm. Juiz a quo mais não faz do que repetir e reproduzir uma decisão que foi já impugnada pela ré, – tratando-se, como tal, duma decisão controversa e não definitiva – fazendo-o, porém, como se essa mesma decisão não tivesse sido objeto de recurso, impedindo, depois, a ré de fazer uso desse seu direito de impugnação e recurso, ao ordenar o desentranhamento da sua alegação, com o argumento de que a multa – cuja aplicação foi precisamente impugnada pela ré – não foi paga!!
III. A decisão constante da parte final do despacho que antecede, que ordena o desentranhamento da alegação por falta de pagamento da multa (cuja determinação e aplicação foi impugnada por meio de recurso) viola, para além dos artigos 145.º, 3 e 642.º, 1 do CPC, o disposto no artigo 83.º, n.º 3 do Código de Processo de Trabalho e artigo 644.º, n.º 2 e) e 647.º, n.º 3 e) do CPC, que estabelecem que o recurso interposto pela ré (da decisão que condene em multa ou comine outra sanção processual” – como é o caso da decisão recorrida que determinou a aplicação (indevida) da cominação prevista no n.º 1 parte final do artigo 642.º do CPC), tem efeito suspensivo.
IV. E por via dessa violação, o despacho em apreço consubstancia uma inaceitável denegação do direito de recurso da ré.
V. A decisão de que ora se recorre consubstancia, assim, um acto que a lei não admite, coarcta inaceitavelmente os direitos e garantias da ré, e, como tal, deve ser revogada
Termos em que e melhores de direito pede seja dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho recorrido.
Como é de JUSTIÇA.”
Não resulta dos autos que tenham sido apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata e em separado.
A Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
Notificadas as partes do teor do parecer, não responderam.
Por despacho da Relatora foi determinado que se instruísse os autos com o requerimento de interposição do recurso e respectivas alegações.
Foram colhidos os vistos.
Cumpre, agora, apreciar e decidir.
Objecto do recurso
Sendo o âmbito do recurso limitado pelas questões suscitadas pelo recorrente nas conclusões das suas alegações (art.ºs 635º nº 4 e 639º do CPC, ex vi do nº 1 do artigo 87º do CPT), sem prejuízo da apreciação das questões que são de conhecimento oficioso (art.608º nº 2 do CPC), no presente recurso a única questão a decidir é se o Tribunal a quo não deveria ter determinado o desentranhamento da alegação relativa ao recurso interposto pela Ré do despacho que lhe aplicou a multa de 4UC.
Fundamentação de facto
Para além da factualidade que decorre do relatório que antecede, dos autos ainda resultam provados os seguintes factos:
- Em 23.10.2018 foi proferido despacho que condenou a Ré numa multa de 4UC;
- Em 5.11.2018, a Ré recorreu do mencionado despacho;
- Em 23.11.2018 foi proferido despacho que determinou que a secretaria procedesse de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 642.º do CPC, mas apenas quanto à multa (de uma UC), pois quanto à taxa de justiça ela já fora paga, entretanto.
- Em 10.12.2018 a Ré recorreu do despacho mencionado no número anterior.
- Por despacho de 6.6.2019 (mesma data em que foi proferido o despacho ora recorrido), o Tribunal a quo não admitiu o recurso referido no número anterior.
- Em 26.6.2019, a Ré reclamou da não admissão do recurso.
-Em 23.3.2020 foi proferida decisão singular que indeferiu a reclamação.
Fundamentação de direito
Apreciemos, então, se o Tribunal a quo não deveria ter determinado o desentranhamento da alegação relativa ao recurso interposto pela Ré do despacho que lhe aplicou a multa de 4UC.
A este propósito defende a Recorrente, em síntese, que, em 05.11.2018, interpôs recurso de um despacho que lhe aplicou uma multa, tendo feito consignar no final desse mesmo requerimento de recurso que “para os devidos efeitos, consigna-se que o DUC e o comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso, serão juntos no prazo previsto nos artigos 642.º, n.º 1 e 145.º, n.º 3 do CPC” - tendo procedido, então, à junção do DUC e comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida em 15.11.2018, que em 26.11.2018 a ré foi notificada para no prazo de 10 dias efectuar o pagamento da multa aplicada, nos termos e para os fins do art.º 642.º n.º 1 CPC, que a Ré não se conformando com o teor do despacho, na parte em que determinava que a secretaria procedesse de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 642.º do CPC apenas quanto à multa de uma UC, dele recorreu, pugnando no sentido de que não podia haver lugar à aplicação de qualquer cominação à Ré porquanto o documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida pela interposição do recurso foi junto no prazo de 10 dias após a prática do acto, nos termos do disposto nos artigos 145.º, 3 e 642.º, 1 do CPC, que apesar de o recurso do despacho que aplicou a multa ter efeito suspensivo, veio o Tribunal a quo proferir novo despacho o qual não é mais do que a repetição – ipsis verbis – do seu despacho anterior, ou seja, este novo despacho, não é mais do que a repetição do despacho já impugnado pela ré/recorrente por meio do recurso que dele interpôs, apenas se acrescentando na parte final que “a secretaria emitiu em 26-11-2018 a guia n.º 703080068876408, no valor de €102,00. Essa guia não foi paga. Assim, uma vez que falta o pagamento da multa, nos termos do n.º 2 do art.º 642 do CPC, aplicável por força do art.º 1, n.º 2 al. a) do CPT, determino o desentranhamento da alegação apresentada sob a ref. 7582856, em 06-11-2018 (fls. 75 a 82 do processo físico)”, que  a decisão que ordena o desentranhamento da alegação por falta de pagamento da multa – cuja determinação e aplicação foi impugnada por meio de recurso - viola, para além dos artigos 145.º, 3 e 642.º, 1 do CPC, o disposto no artigo 83.º, n.º 3 do Código de Processo de Trabalho e artigo 644.º, n.º 2 e) e 647.º, n.º 3 e) do CPC, que estabelecem que o recurso interposto de decisão que condene em multa, como é o caso da decisão recorrida que tem efeito suspensivo, constituindo, tal despacho, por via dessa violação, uma acto que a lei não admite e uma inaceitável denegação do direito de recurso da ré.
Vejamos:
Conforme decorre dos factos provados, em 23.10.2018 foi proferido despacho que condenou a Ré numa multa de 4UC, em 5.11.2018, a Ré recorreu do mencionado despacho, em 23.11.2018 foi proferido despacho que determinou que a secretaria procedesse de acordo com o disposto no n.º 1 do art.º 642.º do CPC, mas apenas quanto à multa (de uma UC), pois quanto à taxa de justiça ela já fora paga, em 10.12.2018 a Ré recorreu desse despacho, por despacho de 6.6.2019 (mesma data em que foi proferido o despacho ora recorrido), o Tribunal a quo não admitiu o recurso referido no número anterior e, em 26.6.2019, a Ré reclamou da não admissão do recurso, reclamação que foi indeferida em 23.3.2020.
Ora, considerando os actos praticados e a sua cronologia, logo ressalta que:
- o despacho recorrido, por um lado, repete, em parte, o já afirmado no despacho proferido em 23.11.2018, anteriormente impugnado pela Ré, repetição que só pode ter o alcance de um mero relatório, tanto mais que já se mostrava esgotado o poder jurisdicional quanto à matéria em causa (cfr.art.613.º n.ºs 1 e 3 do CPC) e, por outro lado, acrescenta  que a secretaria emitiu as guias, que a Ré não as pagou e aplica a cominação a que alude o n.º 2 do artigo 642.º do CPC (desentranhamento da alegação); e
 - o despacho que ordenou o desentranhamento da alegação do recurso do despacho que condenou a Ré na multa de 2UC foi proferido intempestivamente.
Com efeito, tendo a Ré recorrido do despacho que determinou que a secretaria procedesse de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 642.º do CPC, tal significa que não aceitou a decisão do Tribunal a quo que levou a que a secretaria emitisse as guias relativas à multa e que acabaram por não ser pagas.
 Por isso, face à posição da Ré, não podia o Tribunal a quo, perante o não pagamento das guias enviadas à Ré aplicar, sem mais, a cominação prevista no n.º 2 do artigo 642.º do CPC.
Pode argumentar-se que, na data em que determinou o desentranhamento da alegação, o Tribunal a quo também não admitiu o recurso da Ré do despacho que determinou que a secretaria procedesse de acordo com o artigo 642.º n.º 1 do CPC.
Sucede, porém, que a Ré sempre poderia reclamar da não admissão do recurso, como reclamou, o que fez em 26.6.2019. Por isso, repete-se, em 6.6.2019, não podia o Tribunal a quo ter determinado o desentranhamento da alegação, pois nessa data ainda não era conhecida a sorte daquele recurso.
E mesmo que a reclamação venha a ser indeferida a final (a Reclamante ainda poderá impugnar a decisão proferida, conforme decorre do n.º 4 do artigo 643.º do CPC), a verdade é que mesmo mantendo-se o despacho que determinou que a secretaria procedesse de acordo com o artigo 642º n.º 1 do CPC e emitisse as guias para pagamento da multa, cremos que só depois de decidida a reclamação, é que a Ré terá a oportunidade, se assim o entender, de proceder ao pagamento da multa a que alude o artigo 642.º n.º 2 do CPC, tendo em vista a admissão e apreciação do recurso do despacho de 23.11.2010 (condena a Ré na multa de 4UC).
Por conseguinte, o recurso deverá ser julgado procedente com a consequente revogação do despacho recorrido.
Decisão
Em face do exposto, acorda-se em julgar o recurso procedente e, em consequência, revogar o despacho recorrido.
Sem custas.
Registe e notifique.

Lisboa, 24 de Junho de 2020
Maria Celina de Jesus de Nóbrega
Paula de Jesus Jorge dos Santos
Filomena Manso