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ABUSO DE CONFIANÇA À SEGURANÇA SOCIAL
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
PAGAMENTO DAS REMUNERAÇÕES
Sumário
O não pagamento das remunerações aos trabalhadores não constitui causa de justificação da ilicitude, nem de exclusão da culpa que obste à consumação do tipo descrito no art.º 107º do RGIT e à responsabilização da entidade empregadora e do seu sócio gerente pelo crime de abuso de confiança à segurança social. Esta conclusão retira-se, em primeiro lugar, dos objectivos prosseguidos com a instituição do sistema de segurança social português, bem assim, da natureza e características da relação jurídica obrigacional que se estabelece entre o Estado e os contribuintes, no que tange à forma como as contribuições e cotizações devidas à Segurança Social são calculadas e pagas ou cobradas. E a mesma solução resulta da consideração do bem jurídico protegido com a incriminação contida no art.º 107º do RGIT e, por fim, da configuração do crime como um crime omissivo puro.
Texto Integral
Acordam os Juízes que integram a 3ª Secção, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO
Por sentença proferida no dia 15 de Novembro de 2019, no processo comum singular nº 873/17.8T9SNT do Juízo Local Criminal de Sintra, Juiz 1, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, o arguido A______, como autor material de um crime de abuso de confiança em relação à Segurança Social, sob a forma continuada, p e p. pelos artigos 107º e 105º nº 1 da Lei nº 15/01, de 5 de Junho e 30º nº 2 do Código Penal, na pena de seis meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de dezoito meses, sob a condição de, no citado período, o arguido continuar a proceder ao pagamento das prestações fixadas no âmbito do acordo celebrado na execução fiscal que corre termos com o nº 1101201300895423.
O arguido interpôs recurso desta sentença, tendo, para o efeito, apresentado as seguintes conclusões:
1) O arguido não pagou as remunerações devidas aos trabalhadores, sendo que a obrigação contributiva surge com o pagamento das remunerações aos trabalhadores.
2) Logo, não podia ser exigido ao arguido que pagasse as contribuições à Segurança Social, (cfr. entre outros, acórdão do STA de 23 de Maio de 2007, Processo: 0185/07, Relator: Jorge Lino).
3) Ponderados todos os factos, prova testemunhal e documental, resulta que, ao contrário do afirmado na douta sentença, a gerência da sociedade era exercida de direito, pelo arguido e pelo outro gerente M____________.
4) Basta ver a certidão da Conservatória do Registo Comercial, fls 51 e 52, e a apreciação do digno Procurador que afirma que o processo é arquivado em relação ao M____________ com os fundamentos aí exarados.
5) E daí o arquivamento, apesar do referido arguido ser o gerente da sociedade, de direito e de facto, ao contrário do afirmado pelo M. mo Juiz a quo no n.º 3 da matéria de facto dada como provada.
6) De toda a prova produzida resulta “que os vencimentos dos trabalhadores indicados a fls 387-394 e 399-400 não foram pagos pela sociedade denunciada mas pelo Fundo de Garantia Salarial” sic da alínea b) da Apreciação do M. P. e consubstanciada pelos documentos referidos e folhas 8 da douta sentença.
7) A sociedade arguida e, logicamente, o arguido, não pagaram as remunerações aos trabalhadores, logo, consequentemente, não retiveram contribuições ou cotizações.
8) Nos termos dos artigos 105.º e 107.º do RGIT, para haver crime tem que haver retenção, faltando esse elemento no caso dos autos.
9) Mal andou o Mmo. Juiz a quo ao dar como provados que o não foram e fez errada interpretação das provas que estavam à sua frente.
10) Pode a douta sentença afirmar, por ser verdade, que o arguido e a sociedade não entregaram à Segurança Social os montantes referidos em 7 dos factos provados;
11) Mas já não pode dar como provado que o arguido A_____ tenha “retido a totalidade dos montantes retidos a esse título...”, porque não reteve, pois, os salários foram pagos pelo Fundo de Garantia Salarial.
12) E não se diga o cliché plasmado no n.º 10 dos Factos Provados, é uma conclusão, e não um facto, pelo que deve ser eliminada dos factos provados, além de que resulta de uma premissa errada: Os salários não foram pagos e nada foi retido.
13) Assim como o facto transcrito de “11” da Acusação, pois que entre 9 de Setembro 16 e 20 de Dezembro de 2017, não houve qualquer atividade da arguida M_______, que já desde o início de 2015 havia sido declarada insolvente.
14) De acordo com o preceituado no art.º 105º do RGIT, ex vi do art.º 107º, são elementos constitutivos deste ilícito criminal: a) O elemento subjectivo: Apropriação ilegítima total ou parcial; b) O elemento objectivo: a não entrega da prestação tributária deduzida.
15) Resulta claro que não estão preenchidos os elementos típicos do crime, nem do elemento subjectivo - a apropriação, porque o arguido não pagou os salários, logo nada deduziu e de nada se apropriou;
16) O arguido se nada deduziu, nada podia entregar - elemento objectivo.
17) Foram efectivamente entregues as declarações para a Segurança Social, como sempre se fez, para evitar as multas e coimas a quem não efectuar essa entrega no prazo legal, mas nada mais do que isso: entregaram-se as declarações, mas não se pagaram os salários correspondentes a essas declarações.
18) Apesar do facto provado - n.º 9 da douta sentença, resulta dos documentos juntos aos autos a fls. 439 e seguintes que o arguido regularizou de imediato a situação, acordando com a Segurança Social o pagamento, tendo iniciado esse pagamento prestacional em Agosto de 2016, após requerimento seu dentro do prazo de pagamento e consequente deferimento da sua pretensão.
19) Está provado documentalmente nos autos que o arguido esteve doente e com baixa desde 05/02/2013 a 25/01/2014 - facto 19 dos factos provados
20) “Todavia, este ao longo do citado período não deixou de se deslocar, ainda que pontualmente, à sede da empresa - facto 20 dos factos provados.
21) É bom de ver que, “ainda que pontualmente” significa uma presença não assídua, não frequente, irregular, que não podia exercer a gerência de facto da sociedade arguida, só pontualmente.
22) O arguido não cometeu o crime porque foi injustamente condenado.
23) Ao decidir como decidiu, a sentença recorrida violou, entre outros, o artigo 105.º do RGIT, ex vi do art.º 107.º.
Sem prescindir,
24) Quanto à medida da pena, entendeu o Mmo. Juiz a quo condenar o arguido na pena de seis meses de prisão, considerando e ponderando as alíneas a) a h) na sua determinação.
25) O tribunal entendeu não achar adequada e suficiente para prevenir o cometimento de novos crimes a pena de multa, em substituição da pena de prisão, tendo em conta o historial criminal do arguido, por entender que as finalidades não sairiam satisfeitas com tais penas substitutivas que não traduzem acrescido encargo para o arguido relativamente às que lhe foram aplicadas no passado, razão pela qual afastou a sua aplicação.
26) O artigo 75º do CP enumera os pressupostos que conduzem ao instituto da reincidência, e um deles prende-se com o facto de o arguido já ter sido condenado por sentença transitada em julgado, ou seja no momento em que o arguido praticaria novos facto já tinha sido julgado por sentença anterior transitada em julgado.
27) No caso dos autos, não pode ser considerado tal instituto da reincidência, uma vez que no momento dos factos imputados ao arguido não existia nenhuma sentença anterior, transitada em julgado.
28) O arguido foi julgado por dois crimes de abuso de confiança fiscal, um praticado em 2011 e outro praticado em 2013 ambos com trânsito em julgado em 2017, os factos em análise foram também eles praticados entre 2011 e 2014, ou seja antes do trânsito em julgado de qualquer outra sentença, uma vez que todos estes factos se imputam à fase em que a empresa entrou em insolvência.
29) A douta sentença não fala em reincidência, mas refere os “antecedentes criminais” e o “historial criminal” do arguido para aplicar a pena de prisão em vez da pena de multa, como se de um reincidente se tratasse.
30) Nesta matéria valem os doutos ensinamentos plasmados no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 7 de Fevereiro de 2018; Processo: 858/16.1PCLSB.L1-3, Relator: Maria da Graça Santos Silva.
31) Mesmo que o arguido tivesse cometido o crime de que vem acusado, seria punido com uma pena de prisão até 3 anos ou pena de multa até 360 dias.
32) Estabelece o nosso CP, no seu artigo 40º, a protecção de bens jurídicos e a reinserção do agente na sociedade como finalidades da aplicação de uma pena.
33) E, o disposto no art.º 70º do CP refere que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, isto é, a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
34) No caso dos autos, todos os “antecedentes criminais” e o “historial criminal” do arguido referem-se a uma época bem clara, específica e bem delimitada no tempo: as dificuldades da empresa que levaram à sua insolvência depois de uma agonia financeira.
35) Em parte numa altura em que o arguido estava de baixa.
36) O arguido encontra-se bem inserido na comunidade e familiar e socialmente inserido.
37) Requereu e está a cumprir, escrupulosamente um plano de pagamentos com a Segurança Social, a quem está a pagar, com juros, todas as prestações que entenderam ser devidas, apesar dos ordenados não terem sido pagos.
38) Todo esse esforço tem sido feito única e exclusivamente pelo arguido, já que o gerente de facto e de direito M____________ anda fugido a citações e notificações e, como é bom de ver, colocou a bom recato todo o seu património e nada tem em seu nome.
39) Para o arguido A_____, que tem dado sempre o “corpo às balas” a opção por uma pena de multa seria bastante para realizar, adequada e suficientemente, as finalidades da punição expressas no referido artigo 70.º do CP.
40) O arguido, tirando os episódios supra referidos no período delimitado da agonia da M_______, tem bom comportamento, quer antes quer depois dos factos.
41) Com o seu comportamento tem liquidado todos os valores que a Segurança Social reclamou, eliminando os eventuais prejuízos, e tudo única e exclusivamente do seu bolso.
42) Tem revelado capacidade para manter uma conduta licita para o futuro.
43) O douto tribunal a quo deveria ter optado pela pena de multa e suspender a mesma sob a condição de continuar a proceder ao pagamento das prestações fixadas no âmbito do acordo celebrado.
44) Não o fazendo, o Tribunal recorrido violou, entre outras, as normas dos artigos 40º e 70º do CP.
Termos em que, deve ser dado provimento ao presente recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que absolva o arguido do crime de que vem injustamente condenado nos termos supra expostos, com as legais consequências.
Admitido o recurso, o Mº. Pº. apresentou resposta, na qual, apresentou as seguintes conclusões:
1) Compulsadas as conclusões de recurso apresentadas pelo arguido são essencialmente as seguintes questões principais que cumpre apreciar:
- Gerência de direito exercida pelo arguido e não de facto;
- Inexistência de obrigação contributiva porquanto não pagou os salários aos trabalhadores e inexistência do elemento subjetivo do crime;
- Escolha da pena.
2) Contudo, antes demais, verifica-se que o arguido não referiu especificamente nas alegações, ou sequer nas conclusões, quais os concretos factos que, na sua opinião, deviam ter sido considerados provados.
3) Ora, o incumprimento deste ónus implica, pois, que o Venerando Tribunal da Relação desconheça quais os factos concretos que o recorrente efetivamente consideram incorretamente julgados, impossibilitando por essa via a sua sindicância (sem prejuízo, naturalmente, do disposto no nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal).
4) E assim sendo, não tendo o arguido/recorrente cumprido adequadamente as exigências normativas previstas nos nº 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal, entende-se que o Venerando Tribunal da Relação, não poderá sindicar a decisão proferida quanto à matéria de facto, fora do quadro dos vícios elencados no nº 2 do artigo 410º do mesmo diploma legal.
5) Deverá, pois, considerar-se, sem mais, assente toda a factualidade dada como provada na sentença.
6) Relativamente ao crime em causa, este consubstancia “um crime omissivo puro, que se consuma no momento em que o agente não entrega a prestação tributária que devia, ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo não cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito”.
7) Assim, compete às entidades empregadoras declarar as remunerações pagas no mês anterior aos seus trabalhadores, devendo, no ato de pagamento dos montantes a título de retribuição, proceder ao desconto dos valores das cotizações devidas à Segurança Social, bem como entregar o correspondente valor monetário.
8) De forma que, a entidade empregadora ao proceder aos descontos no vencimento dos trabalhadores, a título de cotizações ou cotizações para a Segurança Social, fica responsável por essas quantias, detendo-as de forma temporária e em nome alheio, mas de forma lícita, porque tal detenção resulta do cumprimento de uma obrigação legal.
9) Não o fazendo, a sua conduta integra o crime de abuso de confiança contra a segurança social.
10) Atentando na factualidade dada como provada, dúvidas não restam quanto ao preenchimento de todos os elementos do tipo, quer objetivos, quer subjetivos.
11) E muito embora o arguido/recorrente questione a gerência da sociedade, referindo que era apenas gerente de direito e não de
facto, não é, porém, isso que resulta da sentença e da sua fundamentação.
12) Decorre de toda a fundamentação expendida na sentença que o arguido exerceu efetivamente poderes de gerência da sociedade no período temporal em causa, tendo o domínio funcional dos factos referentes ao exercício das obrigações para com a segurança social e tendo optado o recorrente pelo incumprimento da obrigação tributária.
13) De modo que, face ao dado como provado na sentença recorrida, designadamente o que se fez constar nos pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9 e 10 dúvidas não restam quanto ao preenchimento de todos os elementos objetivos do ilícito criminal em apreço.
14) Ao atuar do modo descrito, quando podia e devia ter atuado de modo diverso, é o arguido merecedor de um juízo de censura e, por isso, deve ser considerado culpado.
15) O recorrente discorda ainda da escolha da pena pugnando pela aplicação de uma pena de multa em detrimento da pena de prisão aplicada.
16) Como é sabido, as necessidades de prevenção geral são muito elevadas neste tipo de crimes, não só pelo grande número de infrações deste tipo que ocorrem por todo o país, mas também sobretudo pelos problemas que tal tipo de ilícito causa não só na gestão dos fundos da Segurança Social como também pelos problemas que causam aos trabalhadores em causa.
17) E o mesmo se refira relativamente às necessidades de prevenção especial.
18) Emerge da análise da factualidade como provada que não é a primeira vez que o arguido incorre na prática de factos de semelhante natureza, o que, aliás, levou à sua condenação no âmbito dos processos nº 749/14.0IDLSB e nº 3535/16.0T9SNT, o primeiro por factos praticados em maio de 2013 e o segundo por factos praticados entre maio de 2011 a dezembro de 2012.
19) Ora, muito embora não ignore que estas condenações ocorrem em momento posterior à prática dos factos em causa nos presentes autos, certo é que os factos pelos quais o arguido foi condenado nesses autos reportam igualmente aos anos de 2013 a 2014, o que é bem revelador do caráter relapso do arguido na prática deste tipo de crimes.
20) De modo que, muito embora não se ignorem os argumentos que militam contra as penas curtas de prisão, considera-se que, no caso apreço, bem andou o tribunal na opção pela pena de prisão, por se considerar que só esta poderá acautelar a prática de outros comportamentos desviantes por parte do arguido, transmitindo-lhe a noção de que este tipo de condutas não ficam impunes, tanto mais que o arguido não demonstrou qualquer arrependimento nem assumiu qualquer comportamento que evidenciasse ter apreendido o desvalor das suas condutas.
21) De forma que, tendo em consideração estas circunstâncias, entende- se que as finalidades da punição no caso dos autos apenas serão cumpridas relativamente ao arguido mediante a aplicação da pena de prisão que foi aplicada, suspensa na sua execução e condicionada ao pagamento dos valores acordados no âmbito do processo de execução fiscal.
22) Por tudo isto, entende-se que a sentença não merece qualquer reparo, motivo pelo qual deve ser mantida na íntegra.
Concluiu pela improcedência do presente recurso, mantendo-se a sentença recorrida.
Remetido o processo a este Tribunal, na vista a que se refere o art.º 416º do CPP, o Mº. Pº. emitiu parecer, subscrevendo a resposta na íntegra e concluindo pela manutenção da decisão recorrida.
Foi cumprido o disposto no art.º 417º nº 2 do CPP, sem qualquer resposta do recorrente.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência prevista no art.º 419º do CPP, cumpre decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Delimitação do objecto do recurso e identificação das questões a decidir:
De acordo com o preceituado nos arts. 402º; 403º e 412º nº 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação.
Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos art.ºs 379º nº 2 e 410º nº 3 do CPP e dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito ( Acórdão do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, I.ª Série-A, de 28.12.1995 e o AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).
Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).
Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código do Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso pela seguinte ordem:
Em primeiro lugar das que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
Em segundo lugar, das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
Finalmente, as questões relativas à matéria de Direito.
Seguindo esta ordem lógica, as questões a decidir são as seguintes:
Saber se, como pretende o arguido, não estão verificados os elementos constitutivos do tipo de abuso de confiança à segurança social por que foi condenado;
Se a pena aplicada é excessiva e deve ser substituída por outra, concretamente, por uma pena de multa.
2.2. Fundamentação de facto
Os factos considerados provados, no Tribunal da primeira instância, foram os seguintes (transcrição parcial):
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos:
1. A sociedade "M_______, Lda." tinha sede na E_________________, Cacém.
2. Era titular do número de contribuinte fiscal 50-___________1 e encontrava-se inscrita como contribuinte para a Segurança Social com o n.º 25-________.
3. A sua gerência foi exercida pelo arguido A______, assim bem como por M____________(este último de facto), os quais agiam em nome e interesse da sociedade, dirigiam a sua actividade, celebravam contratos com fornecedores e clientes e efectuavam recebimentos e pagamentos.
4. A sociedade tinha membros de órgãos estatutários e empregava diversos trabalhadores, e procedia ao pagamento das remunerações que lhes eram devidas, cabendo-lhe também a tarefa de efectuar as deduções a tais remunerações, correspondentes às cotizações devidas à Segurança Social, apuradas pela incidência da percentagem fixada na lei sobre as remunerações, de enviar as relações mensais alusivas a esses descontos/retenções e de entregar o respectivo montante àquela entidade.
5. Enquanto entidade patronal, sempre deduziu nas remunerações mensais pagas aos seus trabalhadores e membros de órgãos estatutários as contribuições devidas por estes à Segurança Social, nos montantes, respectivamente, de 11% e de 10%.
6. Porém, devido às dificuldades financeiras que, em momento anterior, começou a atravessar, a sociedade, por decisão do arguido singular e, bem assim, de M____________, não entregou à Segurança Social a totalidade dos montantes retidos a esse título relativamente aos meses de Maio a Outubro de 2013 e Janeiro a Outubro de 2014, nos valores, respectivamente de €97,39; de €732,65; de €606 ,29; de €606,56; de €595,21; de €615,60; de €271,78; de €601,82; de €526,21; de €507,37; de €298,43, de €95,50, de €60,45; de €66,04; de €73,72 e de €1.237,65, num total de €7.036,67;
(Não existe nº 7);
8. Não o tendo feito até ao dia 20 do mês posterior a que respeitavam as contribuições, nem nos 90 dias que lhes seguiram.
9. O arguido foi notificado no dia 20 de Junho de 2016 para proceder ao pagamento dos referidos montantes não entregues, acrescidos dos respectivos juros de mora e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias a contar da referida notificação.
10. Contudo, não procedeu a qualquer pagamento, com o inequívoco e bem-sucedido propósito de alcançar para a sociedade, em nome e no interesse de quem o arguido actuava, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantias que não eram suas, dando-lhe o destino que entendeu, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à Segurança Social, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao actuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, o que causava um prejuízo patrimonial equivalente àqueles montantes.
11. As quantias em causa viriam a ser pagas, à excepção das referentes aos meses de Setembro e Outubro de 2014 entre 9 de Setembro de 2016 e 20 de Dezembro de 2017.
12. O arguido singular agiu sempre em nome e no interesse da sociedade, num contexto de dificuldades económicas e financeiras que a sociedade atravessava e na convicção de que a sua actuação estava a ser bem-sucedida e seria brevemente solucionada, o que motivou a instalação de um ambiente favorável à sua reiteração na prática descrita que levou a cabo, homogeneamente, ao longo do período de tempo referido.
13. Agiu o arguido singular de modo voluntário, livre e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal.
Mais se provou que:
14. O arguido, em reversão da sociedade "M_______, Lda." celebrou com o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, um plano de 150 prestações mensais e sucessivas, com vista à regularização das contribuições e contribuições do período supra indicado em 6., com excepção de Setembro e Outubro de 2014 (os quais não foram participados na execução fiscal que corre termos com o n.º 110-).
15. Do referido plano prestacional foram pagas até ao momento 38 das fixadas 150 prestações.
16. O arguido A_____ é divorciado e vive só, em casa própria.
17. Encontra-se inactivo profissionalmente desde Fevereiro de 2015.
18. Frequentou a Licenciatura de Direito (até ao 3.º ano).
19. Esteve doente e com baixa médica desde 5/2/2013 a 25/1/2014.
20. Todavia, este ao longo do citado período não deixou de se deslocar, ainda que pontualmente, à sede da empresa.
21. O arguido foi condenado:
21.1. No âmbito do Processo n.º 749/14.0IDLSB, deste Juízo Local Criminal de Sintra, por decisão datada de 5/12/2016, transitada em julgado em 17/1/2017, pela prática, em Maio de 2013, de um crime de abuso de confiança fiscal, numa pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €6,00, num total de €720,00, pena essa já julgada extinta.
21.2. No âmbito do Processo n.º 3535/16.0T9SNT, do Juízo Local Criminal de Sintra - Juiz 3, por decisão datada de 15/11/2017, transitada em julgado em 15/12/2017, pela prática de um crime de abuso de confiança em relação à segurança social, por factos praticados entre Maio de 2011 a Dezembro de 2012, numa pena de 230 dias de multa, à taxa diária de €3,00, num total de €690,00, pena essa já julgada extinta.
* * *
II. 2. Matéria de facto não provada:
Com relevo para a decisão a proferir, não se provou que:
A) No período indicado na acusação, M____________ exercia em exclusivo a gerência da "M_______, Lda.", sendo aquele quem celebrava contratos com fornecedores e clientes, efectuava e recebia pagamentos;
* * *
II. 3. Motivação da decisão de facto
A fundamentação da matéria de facto, por parte do tribunal consiste na "exposição quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal" exigida pelo art.º 374.º, n.º 2, do CPP.
Dado que toda a prova produzida na audiência de discussão e julgamento se encontra integralmente gravada em suporte digital - o que permite a sua ulterior reprodução e, desse modo, um rigoroso controlo do modo como o Tribunal formou a sua convicção sobre a matéria de facto - proceder-se-á a uma mais sucinta fundamentação, sendo unicamente dado maior destaque aos aspectos essenciais, tornando desnecessário tudo o que vá para além disso.
Assim, a convicção do tribunal sobre a matéria de facto provada resultou da análise crítica, segundo as regras de experiência e lógica comum, das declarações prestadas pelo arguido, dos depoimentos prestados em audiência e dos documentos juntos aos autos.
Concretizando:
O arguido, nas declarações que prestou, invocou ter estado ausente dos destinos da sociedade por motivos de saúde e que esta seria efectivamente gerida por M____________, que tinha mais um papel de comercial, ao contrário de M____________ que dizia ser quem seria o decisor das questões mais importantes. Disse que o não pagamento à segurança social se deveu às dificuldades económicas da empresa, ao ponto de terem existido salários em atraso aos trabalhadores e dívidas a outros fornecedores, que culminaram no seu encerramento e na insolvência.
Aludiu ao acordo de pagamento em prestações que celebrou com a Segurança Social que se encontra em curso.
Tais declarações não mereceram inteira credibilidade no que respeita à atribuição a M____________ de maior importância no papel decisor dos assuntos da gerência da sociedade, já que o arguido, no âmbito dos processos onde foi julgado e condenado anteriormente - a que é feita referência em 21.1. e 21.2. - por factos quer imediatamente anteriores, quer contemporâneos, tinha confessado integralmente e sem reservas o seu papel de gerente (de direito e de facto) na M_______, Lda.
Foi valorado o declarado pela testemunha Patrícia Delgado, técnica Superior da Segurança Social que enunciou os meses referentes às cotizações dos salários declarados e processados, descrevendo os respectivos valores, taxas, culminando com a indicação do montante actualmente em dívida à Segurança Social, por sua vez concatenado com os documentos de fls. 82-88, 100-170, 187194, 203-206, 210-211, 319-325, 329-335, 339-342, 346-351 e 355-361, 439 a 455, 467, 470 a 478 verso.
As testemunhas, ex-trabalhadores da sociedade-arguida, identificaram e expressamente como sendo seu patrão o arguido pessoa que, juntamente com M____________, lhes transmitia ordens e instruções quanto ao que respectivamente deveriam fazer na sua actividade, aludiram as dificuldades que a empresa entretanto atravessou. Quanto ao que lhes teria ficado por pagar até ao momento em que findaram o vínculo contratual com aquela, foi valorada a informação de fls. 399/400 (onde constam os valores da contribuições e cotizações, com dedução dos vencimentos pagos pelo Fundo de Garantia Salarial).
R________-, técnico oficial de contas, disse, resumidamente, que a empresa era gerida pelo arguido e por M____________ e aludiu às dificuldades económicas daquela, que se agravaram ao ponto de implicarem a sua insolvência. Referiu ainda que alguns trabalhadores ficaram com salários por receber, mas que foi accionado o Fundo de Garantia Salarial.
Alfredo Caetano corroborou as dificuldades financeiras do arguido e da empresa do qual era sócio-gerente, afirmando ter chegado a emprestar dinheiro a A_____ para que este procedesse a pagamento de verbas ao estado.
O tribunal veio a louvar-se ainda no teor da certidão permanente de fls. 51/52, nos documentos de fls. 439 a 455, 467, nos certificados de registo criminal de fls. 435 a 437 e nas certidões das decisões condenatórias de fls. 481 a 502 verso.
Quanto à intenção do arguido, ou seja, o dolo necessário, este está demonstrado pela análise dos factos objectivos que resultaram provados, sendo que o seu modo de actuação revela o carácter desejado da conduta, com carácter de continuidade.
Ainda assim, tal como supra se referiu, não será despiciendo destacar ser amplamente veiculado o carácter ilícito do comportamento em causa, pelo que dificilmente seria possível admitir que o mesmo o pudesse ignorar.
Assim se formou a convicção do Tribunal.
A não prova da factualidade indicada em A) decorre da ausência de elementos probatórios suficientemente credíveis que apontassem para a sua verificação.
2.3. Apreciação do mérito do recurso
Quanto à primeira questão.
O arguido enfoca a sua tese de que não praticou o crime de abuso de confiança à segurança social pelo qual foi condenado em três circunstâncias: a de que, apesar de gerente de direito, o arguido nunca exerceu a gerência de facto; a de que a obrigação contributiva nunca chegou a existir na medida em que não pagou os salários aos trabalhadores e a inexistência do elemento subjetivo do tipo.
A primeira constatação que há a fazer é a de que no concerne às circunstâncias da gerência só de direito ou da gerência de direito e de facto, bem como à existência da obrigação contributiva à Segurança Social e à verificação do elemento subjectivo do tipo, a matéria de facto considerada provada pelo Tribunal do julgamento desmente a tese do arguido.
Com efeito, tal como consta dos pontos 1 e 3 da matéria de facto provada exarada na sentença recorrida, a sociedade "M_______, Lda." tinha sede na E__________________, Cacém e era gerida, tanto de facto como de direito, pelo arguido A______, agindo em nome e interesse da sociedade, dirigindo a sua actividade, celebrando contratos com fornecedores e clientes e efectuando recebimentos e pagamentos, sendo que, além dele, nestas actividades de gestão e prossecução do objecto social da referida empresa, também havia um outro gerente, mas este último apenas de facto, o tal M____________, em relação ao qual o processo foi arquivado.
No que se refere à existência da obrigação de entrega das contribuições à Segurança Social, na medida em que a mesma emerge do início de uma relação laboral entre por exemplo, uma empresa e uma pessoa ou conjunto de pessoas ao serviço, cumprindo as suas ordens e instrução, em regime de vinculação económica e subordinação hierárquica, nos termos do art.º 37º da Lei 110/2009 de 16 de Setembro e que é através das declarações das remunerações elaboradas e enviadas pela entidade patronal que se fixa o montante a pagar estando os prazos para o efeito legalmente estabelecidos nos art.ºs 38º a 43º da mesma Lei, tendo resultado provado, no ponto 5 da matéria de facto exarada como tal na sentença recorrida que «enquanto entidade patronal, sempre deduziu nas remunerações mensais pagas aos seus trabalhadores e membros de órgãos estatutários as contribuições devidas por estes à Segurança Social, nos montantes, respectivamente, de 11% e de 10%», está plenamente configurada a existência de tal obrigação.
O mesmo se diga quanto ao elemento subjectivo do tipo, em face da factualidade descrita nos pontos 6 a 13 da matéria de facto provada.
Com efeito, o crime de abuso de confiança à Segurança Social redunda numa simples omissão – de pagamento das contribuições deduzidas, de acordo com as taxas legais, dos vencimentos devidos aos trabalhadores e essa está perfeitamente ilustrada nos factos descritos em 6 e 8 a 10.
No que concerne ao elemento subjectivo do tipo previsto no art.º 107º do RGIT cumpre antes de mais assinalar que se trata de crime necessariamente doloso, bastando qualquer das modalidades de dolo previstas no artigo 14º do Código Penal para a consumação, consubstanciado no elemento intelectual, ou seja, no conhecimento dos elementos do tipo objectivo de ilícito, por parte do agente e na vontade de realização do facto típico (elemento volitivo), o que, transposto para a materialidade típica específica do abuso de confiança à segurança social, exige que o agente tenha previsto e querido não entregar as prestações a que sabia estar obrigado, não obstante estar ciente que tal conduta é proibida e punida pela lei penal.
Já não se exige, pois, como antes acontecia com a previsão contida no antigo art.º 24º do RJIFNA, a existência de um dolo específico traduzido na intenção de obter vantagem patrimonial indevida, sendo bastante o dolo genérico (Paulo José Rodrigues Antunes, Infracções Fiscais e seu Processo, Regime Geral de 2001/2002 Anotado, Almedina, Fevereiro de 2002, página 128 e ss. e Lopes Dias, Enquadramento Dogmático dos Crimes Contra a Segurança Social, 2005, p. 27, in https://www.verbojuridico.net/doutrina/penal/penal_segurancasocial.pdf).
A responsabilidade dos administradores, gerentes e representantes das sociedades pelas infracções fiscais cometidas em nome da sociedade, decorre do estabelecido no artigo 6º, nº 1, do RGIT, que estabelece que será punido quem agir voluntariamente como titular dum órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem.
Ora, o que resultou da matéria de facto provada foi que a empresa M_______, por decisão do seu gerente, o arguido recorrente não entregou à Segurança Social a totalidade dos montantes retidos a esse título relativamente aos meses de Maio a Outubro de 2013 e Janeiro a Outubro de 2014, num total de €7.036,67 e que essa decisão foi tomada de forma livre, voluntária e consciente, por si e enquanto legal representante da sociedade, bem sabendo que a sua descrita conduta era proibida e como tal punida pela lei penal e que agiu dessa forma, com o inequívoco e bem-sucedido propósito de alcançar para a sociedade, em nome e no interesse de quem o arguido actuava, uma vantagem patrimonial indevida, consubstanciada na posse e utilização em benefício próprio de quantias que não eram suas, dando-lhe o destino que entendeu, bem sabendo que os montantes em causa pertenciam à Segurança Social, a quem estavam obrigados a entregar, e que ao actuar da forma descrita o faziam sem autorização e contra a vontade desta entidade, que é quanto basta para afirmar a existência do dolo.
O arguido recorrente veio argumentar que, ponderados todos os factos, prova testemunhal e documental, resulta que, ao contrário do afirmado na douta sentença, a gerência da sociedade era exercida de direito, pelo arguido e pelo outro gerente M____________ e para tanto basta ver a certidão da Conservatória do Registo Comercial, fls 51 e 52, e a apreciação do digno Procurador que afirma que o processo é arquivado em relação ao M____________ com os fundamentos aí exarados.
E veio, ainda, dizer que o arquivamento foi proferido, apesar do referido arguido ser o gerente da sociedade, de direito e de facto, ao contrário do afirmado pelo M. mo Juiz a quo no nº 3 da matéria de facto dada como provada, bem assim que, de toda a prova produzida resulta “que os vencimentos dos trabalhadores indicados a fls 387-394 e 399-400 não foram pagos pela sociedade denunciada mas pelo Fundo de Garantia Salarial” sic da alínea b) da Apreciação do M. P. e consubstanciada pelos documentos referidos e folhas 8 da douta sentença.
Este conjunto de argumentos não é nem adequado, nem suficiente para colocar em crise a decisão da matéria de facto contida na sentença de que recorre, porque nem se integra em qualquer dos vícios decisórios enumerados no art.º 410º nº 2, nem se reconduz a uma impugnação da matéria de facto válida e eficaz nos termos do art.º 412º do mesmo diploma e das exigências de impugnação especificada a que se referem os nºs 3, 4 e 6 daquele artigo.
A matéria de facto pode ser sindicada em recurso através de duas formas: uma, de âmbito mais estrito, a que se convencionou designar de «revista alargada», implica a apreciação dos vícios enumerados nas als. a) a c) do art.º 410º nº 2 do CPP; outra, denominada de impugnação ampla da matéria de facto, que se encontra prevista e regulada no art.º 412º nºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma, envolve a reapreciação da actividade probatória realizada pelo Tribunal, na primeira instância e da prova dela resultante, mas com limites, porque subordinada ao cumprimento de um dever muito específico de motivação e formulação de conclusões do recurso (Maria João Antunes, in RPCC – Ano 4 Fasc.1 – pág. 120; Acs. da Relação de Guimarães de 6.11.2017, proc. 3671/13.4TDLSB.G1; da Relação de Évora de 09.01.2018 proc. 31/14.3GBFTR.E1; da Relação de Coimbra de 08.05.2018, proc. 30/16.0GANZR.C1; da Relação de Lisboa de 12.06.2019, processo 473/16.0JAPDL.L1, in http://www.dgsi.pt).
Assim, nos termos do nº 3, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e c) as provas que devem ser renovadas».
O nº 4 do mesmo artigo acrescenta que, tratando-se de prova gravada, as indicações a que se referem as alíneas b) e c) do nº 3 se fazem por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, segundo o estabelecido no nº 6.
Ou seja, o recorrente terá de indicar, com toda a clareza e precisão, o que é que, na matéria de facto, concretamente, quer ver modificado, apresentando as suas versões probatória e factual alternativas à decisão de facto exarada na sentença que impugna, e quais os motivos exactos para tal modificação, em relação a cada facto alternativo que propõe.
Os argumentos aduzidos devem ser convincentes no sentido de demonstrarem que se impõe a versão oposta à que foi adoptada pelo tribunal do julgamento pois que, não basta para alterar a decisão de facto, a mera possibilidade de atribuir à prova produzida ou renovada uma diferente interpretação.
Do equilíbrio entre a necessidade de assegurar um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto e a constatação de que o tribunal de recurso só indirectamente tem acesso à prova, através da gravação, portanto, sem a força da imediação e do exercício do contraditório que são característicos do julgamento em primeira instância, que postulam a excepcionalidade das alterações ao julgamento da matéria de facto, feito na primeira instância, resulta a concepção do recurso como um remédio e a proibição de que redunde num novo julgamento ou numa outra convicção do tribunal de recurso, em substituição integral da já formulada pelo tribunal da primeira instância.
Trata-se, em suma, de colocar à apreciação do tribunal de recurso a aferição da conformidade ou desconformidade da decisão da primeira instância sobre os factos impugnados com a prova efetivamente produzida no processo, de acordo com as regras da experiência e da lógica, com os conhecimentos científicos, bem como com as regras específicas e princípios vigentes em matéria probatória, designadamente, com os princípios da livre apreciação da prova e in dubio pro reo, assim como, com as normas que regem sobre a validade da prova e sobre a eficácia probatória especial de certos meios de prova, como é o caso da confissão, da prova pericial ou da que emerge de certo tipo de documentos, mas de forma parcial, restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente invoque e demonstre ter sido julgados de forma incorrecta (cfr., nesse sentido, Ac. STJ n.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, de 18-4-2012. No mesmo sentido, Acs. do Tribunal Constitucional nºs 124/90; 322/93; 59/2006 e 312/2012, in www.tribunalconstitucional.pt e AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07-12-2005; Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393 e Paulo Saragoça da Mata, in “A livre apreciação da prova e o dever de fundamentação da sentença”, em Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, pág. 253).
O art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal, estabelece a possibilidade de o recurso se fundamentar na insuficiência da matéria de facto provada para a decisão; na contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão, ou no erro notório na apreciação da prova, «mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito».
A apreciação destes vícios não implica qualquer sindicância à prova produzida, no Tribunal de primeira instância, porque envolve apenas a análise do texto da decisão recorrida, na sua globalidade, sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, ainda que constem do processo. Apenas as regras de experiência comum podem servir de critério de aferição da sua existência.
O recorrente não invocou qualquer destes vícios, sendo certo que da análise do texto da decisão recorrida os mesmos não se descortinam.
Com efeito, a sentença enumera a matéria de facto, seguindo uma ordem lógica e cronológica, descrevendo os factos atinentes à omissão de pagamento das contribuições devidas à Segurança Social, no contexto das relações jurídicas laborais entre a empresa arguida e os seus trabalhadores por conta de outrem, qual o papel jurídico e de facto que o arguido recorrente neles desempenhou, o contexto económico da vida da empresa em que os mesmo forma praticados e outras de natureza pessoal referentes ao percurso de vida, condições pessoais e económicas a antecedentes criminais do arguido, tendo motivado a sua convicção por referência aos meios de prova disponíveis, que analisou de forma crítica e conjugada, explicando os motivos por que lhes atribuiu credibilidade e o tipo de informações que deles retirou, aplicou o direito e efectuou o enquadramento jurídico-penal da matéria de facto provada e procedeu à escolha e determinação concreta da pena, em linha de coerência, mostrando-se observados os princípios da livre apreciação da prova e de acordo com as regras de experiência comum, nos termos do art.º 127º do CPP, da fundamentação das decisões judiciais nos termos do art.º 205º da CRP e tal como também é imposto pelo art.º 374º nº 2 do CPP e a aplicação do Direito mostra-se consentânea com a matéria de facto considerada proada, do mesmo modo que os factos provados e não provados se mostram em sintonia com a análise crítica da prova contida no texto da decisão.
Ora, no que que concerne ao erro de julgamento, a censura dirigida à decisão de facto proferida deverá assentar «na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção (…)».
«A reapreciação da prova, dentro daqueles parâmetros, só determinará uma alteração da matéria de facto quando do respectivo reexame se concluir que as provas impõem uma decisão diversa, excluindo-se a hipótese de tal alteração ter lugar quando aquela reapreciação apenas permita uma decisão diferente da proferida, porquanto, se a decisão de facto impugnada se mostrar devidamente fundamentada e se apresenta como uma das possíveis soluções face às regras da experiência comum, deve a mesma prevalecer, não ocorrendo, nesse caso, violação das regras e princípios de direito probatório» (Ac. da Relação de Lisboa de 10.09.2019 proc. 150/18.7PCRGR.L1-5. No mesmo sentido, por todos, Acs. do STJ de 12.09.2013, proc. 150/09.8PBSXL.L1.S1 e de 11.06.2014, proc. 14/07.0TRLSB.S1; Acs. da Relação de Coimbra de 16.11.2016, proc. 208/14.1JACBR.C1; de 13.06.2018, proc. 771/15.0PAMGR.C1 e de 08.05.2019, proc. 62/17.1GBCNF.C1; Acs. da Relação do Porto de 15.11.2018, proc. 291/17.8JAAVR.P1 e de 25.09.2019, processo 1146/16.9PBMTS.P1; da Relação de Lisboa de 24.10.2018, proc. 6744/16.8L1T9LSB-3; de 13.11.2019, proc. 103/15.7PHSNT.L1, in http://www.dgsi.pt).
Ora o que o arguido recorrente se limitou foi a discordar do arquivamento do processo, o que não pode constituir tema do presente recurso que não se destina a sindicar decisões do Mº. Pº. e a manifestar a sua discordância do facto descrito em 3 da matéria de facto provada quanto à sua gerência de facto e de direito da empresa arguida, mas sem indicar qual é o meio de prova ou meios de prova que exigem a decisão contrária à que foi adoptada na sentença recorrida, nem qual tenha sido a regra de senso comum ou critério de razoabilidade, ou científico ou de prova legalmente catalogada do ponto de vista do respectivo valor probatório que o Tribunal desrespeitou ou considerou e não podia ter considerado para dar tal facto como demonstrado.
E por estas razões é que, não só a matéria de facto terá de manter-se tal como foi decidida na sentença recorrida, como à luz dela, se mostram verificados todos os elementos constitutivos do tipo de abuso de confiança à segurança social.
A este propósito e quanto ao argumento de que de toda a prova produzida resulta “que os vencimentos dos trabalhadores indicados a fls 387-394 e 399-400 não foram pagos pela sociedade denunciada mas pelo Fundo de Garantia Salarial” pelo que não tendo a sociedade arguida e, logicamente, o arguido, pago as remunerações aos trabalhadores, consequentemente, não retiveram contribuições ou quotizações, cumpre ainda esclarecer o seguinte:
O não pagamento das remunerações aos trabalhadores não constituí causa de justificação da ilicitude, nem de exclusão da culpa que obste à consumação do tipo descrito no art.º 107º do RGIT e à responsabilização da entidade empregadora e do seu sócio gerente pelo crime de abuso de confiança à segurança social.
Esta conclusão retira-se, em primeiro lugar, dos objectivos prosseguidos com a instituição do sistema de segurança social português, bem assim, da natureza e características da relação jurídica obrigacional que se estabelece entre o Estado e os contribuintes, no que tange à forma como as contribuições e cotizações devidas à Segurança Social são calculadas e pagas ou cobradas.
E a mesma solução resulta da consideração do bem jurídico protegido com a incriminação contida no art.º 107º do RGIT e, por fim, da configuração do crime como um crime omissivo puro.
Importa, desde logo, salientar que a fonte da obrigação de pagamento das contribuições ou quotizações à Segurança Social se insere num direito indisponível de ordem pública que é o direito à segurança social, em sintonia com o princípio constitucional consagrado no art.º 63º que abre o capítulo dos direitos sociais reconhecidos na Constituição da República Portuguesa como fundamentais, anunciando, no seu nº 1, tal direito em relação a todos os cidadãos e estabelecendo, no nº 2, que “incumbe ao Estado organizar, coordenar e subsidiar um sistema de segurança social unificado e descentralizado…”.
Assim, se, por um lado, a segurança social é, em parte, um encargo do Estado, a ser suportado pelo respectivo orçamento; por outro lado, porém, a segurança social não depende apenas do financiamento público directo, mas sim, também (ou sobretudo), das contribuições dos respectivos beneficiários (princípio da contributividade) estando aqui implícito um dever de contribuição para a segurança social (Gomes Canotilho e Vital Moreira, em Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 2007, volume I, pág. 817).
Em concretização deste desígnio, a Lei de Bases da Segurança Social (Lei 4/2007, de 16 de Janeiro, com as alterações introduzidas pelas Leis 83-A/2013 de 30 de Dezembro) e o Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social (Lei nº 110/2009, de 16/09, em 1/01/2011) prevêem diversos princípios e normas que visam compensar a perda ou redução dos rendimentos da actividade profissional, quando ocorram determinados eventos como, por exemplo, a doença, o desemprego, a maternidade, a velhice, a invalidez ou a morte (v.g. art.ºs 38º e 52º e 53º da Lei de Bases da Saúde).
Pretende-se, pois, garantir rendimentos de substituição de remunerações de trabalho perdidas (por efeito dos eventos referidos), ou de rendimentos de compensação de encargos suportados.
Para o efeito, este subsistema previdencial, assenta num sistema obrigatório e irrenunciável, de natureza contributiva ou autofinanciada, baseado na técnica das quotizações sociais, devidas pelos trabalhadores por conta de outrem e respectivas entidades empregadoras e pelos trabalhadores independentes, em que os montantes das remunerações constituem apenas a base de incidência contributiva (cfr. art.ºs 3º; 5º; 50º a 66º da Lei de Bases da Segurança Social e 11º a 14º Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial da Segurança Social), pois a forma de quantificação monetária da contribuição, de a tornar certa, líquida e exigível é a declaração que a entidade empregadora está vinculada a elaborar e a entregar nos termos, condições e prazos previstos nos art.ºs 40º a 43º da Lei 110/2009 de 16 de Setembro.
E se a fonte geradora da obrigação contributiva é o início do exercício da actividade profissional dos trabalhadores, de acordo com o disposto nos art.ºs 37º e 44º da Lei 110/2009 de 16 de Setembro, entre as suas causas de extinção previstas no art.º 188º da mesma Lei não se encontra a cessação do pagamento dos vencimentos.
O art.º 42º da referida Lei responsabiliza as entidades empregadoras pelo pagamento das contribuições e das quotizações dos trabalhadores ao seu serviço, cominando a omissão desse pagamento, como contraordenação leve, caso o pagamento ocorra no prazo máximo de tinta dias, após a data do vencimento, como contraordenação grave se o pagamento ocorrer, após trinta dias, mas antes de decorridos noventa e como crime, no circunstancialismo previsto no art.º 107º do RGIT (dada a remissão contida no nº 3 daquele artigo para o Regime Geral das Infrações Tributárias).
Mas o mesmo art.º 42º refere-se a «trabalhadores ao seu serviço», precisamente, porque o facto tributário gerador da relação jurídica contributiva da segurança social é uma outra relação jurídica constituída no domínio de outro ramo do Direito - uma relação jurídica laboral e, no seu nº 2, alude a «valor das quotizações por estes devidas», precisamente, porque é o rendimento colocado à disposição do sujeito passivo, como contrapartida monetária pela prestação do trabalho, nos termos previstos no art.º 46º, que serve de ponto de partida para o cálculo da quantia da contribuição, fazendo incidir sobre esse rendimento, a taxa legalmente prevista.
Ora, nos termos do art.º 46º nº 1, da mesma Lei 110/2009, sob a epígrafe «delimitação da base de incidência contributiva», para efeitos de delimitação da base de incidência contributiva consideram-se remunerações as prestações pecuniárias ou em espécie que nos termos do contrato de trabalho, das normas que o regem ou dos usos são devidas pelas entidades empregadoras aos trabalhadores como contrapartida do seu trabalho.
E a verdade é que tanto empírica, como juridicamente, remunerações ou salários devidos, não é o mesmo que remunerações ou salários pagos.
Ou seja, quer a quantificação do débito contributivo para com a instituição de segurança social a cargo da entidade empregadora, quer do crédito a favor do trabalhador beneficiário das prestações, a cargo da segurança social, uma vez verificados os respectivos eventos que, segundo a lei, justificam a sua atribuição, depende, exclusivamente, do vencimento que for devido, mesmo que este não tenha sido efectivamente entregue ao trabalhador, durante a relação laboral.
Isto está conforme, ainda, com a natureza «triangulada» da relação jurídica contributiva estabelecida com a segurança social, visto que a quantificação e pagamento da contribuição corre por conta de quem não é o sujeito passivo, mas antes de quem é o titular da capacidade contributiva e por isso mesmo, responsável por esse pagamento, no que é designado como substituto tributário, cuja responsabilização se legitima, por conseguinte, na retenção na fonte (art.º 59º nº 1 da Lei de Bases da SS) e esta, prescinde, pois, de saber se o crédito salarial foi efectivamente cumprido ou não, pois que o que interessa é que o montante da contribuição devida à Segurança Social seja pago, considerando, além do mais, que é do montante e do tempo dos descontos que dependem, quer a liquidez da Segurança Social para fazer face aos objectivos e atribuições de solidariedade social que lhes estão legalmente acometidos, quer o valor das prestações a pagar aos beneficiários, uma vez verificada alguma das causa previstas na lei, como fonte dessas prestações.
«A figura da substituição tributária, em que o sujeito passivo se torna estranho à relação tributária, no sentido de que não é parte desta relação por não lhe poder ser exigido o comportamento devido pelo sujeito activo (…) a responsabilidade do substituto tributário legitima-se através da retenção na fonte, na medida em que este se substitui ao sujeito passivo propriamente dito, pagando à segurança social com rendimentos ou riqueza do sujeito dotado de capacidade contributiva (no caso, o trabalhador por conta de outrem)» Lopes Dias, Enquadramento Dogmático dos Crimes Contra a Segurança Social, 2005, p. 29, in https://www.verbojuridico.net/doutrina/penal/penal_segurancasocial.pdf).
«A substituição fiscal, que corresponde geralmente à adopção do processo financeiro designado por retenção na fonte, verifica -se sempre que a lei impõe o dever de imposto, não à pessoa em relação à qual se verificam os pressupostos de facto da tributação, mas a um terceiro que vem, assim, a ocupar na relação, desde o início até à sua extinção, o lugar de sujeito passivo» (Braz Teixeira, Princípios de Direito Fiscal, p. 228. No mesmo sentido, Helder Leitão, Código de Processo Tributário Anotado, Elcla, 1999, p. 489).
Trata-se de um mecanismo que visa a agilização e a eficácia do processo de obtenção das receitas tributárias, por conseguinte, incompatível com fazer depender a dedução do imposto ou da contribuição do cumprimento da prestação pecuniária que lhe serve de base de cálculo.
Assim, constituindo apenas a base de incidência contributiva à Segurança Social, o efectivo cumprimento da contraprestação monetária devida pelo trabalho ou a sua omissão são indiferentes para a existência, certeza, liquidez e exigibilidade da obrigação de contribuir para a Segurança Social, até porque o facto tributário gerador de tal obrigação é o início de uma prestação de trabalho, abstraindo do valor da remuneração.
Esse valor só releva, na medida em que está para o montante devido pelas contribuições devidas à Segurança Social como um mero índice de referência, logo, o que importa é o montante que for devido, segundo os critérios definidos no citado art.º 46º da Lei 110/2009 de 16 de Setembro, mesmo que não tenha sido pago.
Além disso um e outro crédito prosseguem finalidades diferentes, tendo também regimes jurídicos de cobrança e liquidação diferenciados e autónomos.
O art.º 107º do RGIT aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho postula, no seu nº 1, a punição com as penas do crime de abuso de confiança fiscal, previstas nos nºs 1 e 5 do art.º 105º, das entidades empregadoras que, tendo deduzido do valor das remunerações devidas aos trabalhadores e membros dos órgãos sociais o montante das contribuições por estes legalmente devidas, não o entregam, total ou parcialmente, às instituições de segurança social.
O bem jurídico visado com esta incriminação é a integridade do património fiscal e o interesse de ordem pública na obtenção das receitas tributárias, nelas incluídas as parafiscais, como é o caso das contribuições devidas à Segurança Social, na medida em que são estas que asseguram a cabal execução das atribuições e competências financeiras do Estado, no caso específico, do abuso de confiança tipificado no art.º 107º do RGIT, sobretudo, a sustentabilidade da Segurança Social, em ordem à prossecução de finalidades de repartição justa dos rendimentos e da riqueza, na assistência aos cidadãos, na doença e na velhice, após a idade produtiva.
Ademais, face ao crescente envelhecimento da população, associado ao aumento da esperança média de vida e à crescente redução da taxa de natalidade, em Portugal.
«O tipo de crime de abuso de confiança fiscal tem em vista a protecção do bem jurídico património fiscal. Procura-se impedir e prevenir o desvio de créditos tributários, punindo-se o agente que violar a específica relação de confiança pelo facto de não entregar à Administração Fiscal as quantias que recebeu e deduziu» (Pedro Lomba e Joaquim Shearman de Macedo, in Crime de Abuso de Confiança Fiscal no Novo Regime Geral das Infracções Tributárias, Revista da Ordem dos Advogados, Ano 67, III, Lisboa, Dezembro de 2007, pp. 1213-1214. No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário – Sobre as Responsabilidades das Sociedades e dos seus Administradores conexas com o crime tributário, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2009, pág. 243 e 7 e Nuno Lumbrales, “O abuso de confiança fiscal no regime geral das infracções tributárias”, Fiscalidade, Janeiro/Abril de 2003, n.º 13/14, p. 96).
«E se a base de sustentação dos impostos são todos os cidadãos contribuintes, o suporte das contribuições à segurança social é mais limitado, a massa de empregadores e trabalhadores, para um universo de beneficiários, que tende a alargar, também, à medida que o crescimento demográfico se esvai e progride o envelhecimento populacional a que o esquema de protecção visa acudir, através de lançamento de taxas diferenciadas das atinentes aos impostos, sendo o seu orçamento mais apertado» (Ac. do STJ de 17.12.2009, proc. 331/01.2 TAVCD.S1; in http://dgsi.pt. No mesmo sentido AUJ nº 8/2010 de 14.07.2010, Diário da República, 1ª série, nº 186 de 23 de Setembro de 2010; Glória Teixeira e João Félix Nogueira, ‘Uma Perspectiva Fiscal’ in Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, II, p. 772; Casalta Nabais, O Financiamento da segurança social, pp. 643 -648).
Por isso, constituindo o bem jurídico tutelado no art.º 107º do RGIT, a prossecução de finalidades importantes para o Estado Social de Direito, ao nível da sustentabilidade da Segurança Social e da garantia de realização de uma justiça redistributiva como factor de solidariedade e coesão social e de exclusão da pobreza, mal se compreenderia que uma conduta ilícita da entidade empregadora – a omissão do pagamento da remuneração devida pela prestação laboral – justificasse a ilicitude ou excluísse a culpa de outra conduta ilícita ainda mais grave, porque geradora de responsabilidade penal – o não pagamento das contribuições devidas à segurança social, prejudicando duplamente o trabalhador, destituindo-o da possibilidade de usar e fruir do seu salário e impedindo-o de beneficiar de prestações pecuniárias destinadas a compensar a perda ou redução dos rendimentos da actividade profissional, quando ocorram as eventualidades doença, desemprego, maternidade, velhice, invalidez, etc., previstas na lei.
Idêntica solução se impõe, face à configuração do tipo de abuso de confiança à Segurança Social como um crime omissivo puro.
A acção típica do abuso de confiança à segurança social consiste na omissão de entrega, total ou parcial, do montante das contribuições devidas ao sistema de solidariedade e segurança social – art.º 1º nº 1 al. d) e definidas no art.º 11º nº 1 al. a), in fine, do mesmo RGIT, como tributos para fiscais cuja cobrança caiba à administração da segurança social, sendo também a sua consumação, do ponto de vista subjectivo, exclusivamente, feita a título doloso.
Quanto à sua estrutura objectiva, o crime de abuso de confiança à segurança social é omissivo puro, desvinculando-se do conceito de apropriação ilegítima de bens patrimoniais alheios, assim como, da intenção de apropriação, bastando à consumação a mera violação do dever legal de entrega tempestiva das prestações deduzidas ou retidas.
Consuma-se e esgota-se com o incumprimento, por parte do agente, de um “dever de acção”, sem ulterior obrigação de evitar o resultado (cfr. Reinhart Maurach, “Tratado de Derecho Penal”, Ariel, Tomo II, páginas 276 e seguintes; Figueiredo Dias, “Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, página 692).
O que vale por dizer que o momento da sua consumação corresponde ao momento do vencimento e da exigibilidade da prestação, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 5º nºs 1 e 2 do RGITE; 3º do CP e das que regulam especificamente o tempo do cumprimento das contribuições devidas à Segurança Social, no momento em que, decorridos os prazos legais para o cumprimento da obrigação de entrega dos montantes que o agente deduziu aos valores das remunerações devidas a trabalhadores e membros dos órgãos sociais, por estes devidas, tal obrigação não foi cumprida.
«(…) A violação da obrigação tributária de entrega não é anterior ao comportamento criminoso, pois que este consiste precisamente nessa violação.
«A responsabilidade tributária e a responsabilidade penal não têm, pois, causas diversas.
«Radicam-se, sim, em normas distintas, de natureza tributária e de natureza penal, mas (…) a conduta omissiva é a mesma» (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2013 de 15.11.2012, Diário da República n.º 4/2013, Série I de 07.01.2013).
E, nos termos do art.º 5º nº 2 do RGIT, as infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários, de harmonia com o preceituado no citado art.º 3º do CP.
Esta coincidência temporal entre o momento da consumação do crime e o momento em que, à luz da lei, a prestação fica vencida e é exigível, resulta do princípio da unidade do sistema jurídico (art.º 9º nº 1 do Código Civil) conjugado com a omissão, na descrição legal do tipo contida no art.º 107º do RGIT da alusão, que antes era enunciada no art.º 24º do RJIFNA, à «intenção de obter para si ou para outrem vantagem patrimonial indevida» assim como ao elemento «apropriação» (redacção do mesmo preceito dada pelo Decreto-Lei n.º 394/93, de 24 de Novembro), este último, elemento constitutivo característico do crime de abuso de confiança p. e p. pelo art.º 205º do CP (Costa Andrade in «O abuso de confiança fiscal e a insustentável leveza (de um acórdão) do Tribunal Constitucional», in Direito Penal Económico e Europeu: Textos Doutrinários, vol. III, pp. 243 e segs.; Costa Andrade e Aires de Sousa, in As metamorfoses e desventuras de um crime (abuso de confiança fiscal) irrequieto – reflexões críticas a propósito da alteração introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Lisboa, Ano 17, nº 1, Janeiro – Março 2007, p. 54; Germano Marques da Silva, in Direito Penal Tributário – Sobre as Responsabilidades das Sociedades e dos seus Administradores conexas com o crime tributário, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2009, p. 242).
Quanto à consideração deste tipo de ilícito penal como crime omissivo puro ou de mera inactividade, na jurisprudência, cfr., ainda, os Acs. da Relação de Coimbra de 30.11.2005, proc. 3500/05; de 17.03.2009, proc. 1461/07.2TACBR.C1; de 21.04.2010, proc. 930/04.0TACBR e de 22.02.2017, proc. 599/14.4TACBR.C1, todos in www.dgsi.pt; Ac. do STJ de 09.04.2008, AUJ nº 6/2008, DR, 1.ª série, n.º 94 de 15.05.2008; de 07.02.2007, proc. 4086/06; Ac. do STJ de 21.06.2012, proc. 10987/05.1TDLSB.L1.S1; Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2012, D.R. n.º 206, Série I de 24.10.2012; Acórdão STJ de Uniformização de Jurisprudência n.º 2/2015 in Diário da República n.º 35/2015, Série I de 19.02.2015; Acs. da Relação de Évora de 16.04.2013, proc. 538/11.4TABJA.E1; Relação do Porto de 10.10.2012, proc. 163/10.7TAMCD.P1; Acs. da Relação de Lisboa de 24.02.2010, proc. 2191/08.3TDLSB-A.L1.3; de 20.03.2012, proc. 5.209/04.5TDLSB -L1.5; de 30.05.2012, proc. 4/02.9IDMGR.C2 e de 20.03.2018, proc. 1374/12.6TAMTJ.L2-5, in www.dgsi.pt).
Por isso, «o que conta é a não entrega dos meios de pagamento, que o agente declara ter retido no envio das declarações à Segurança Social, não importando apurar se houve ou não pagamento efectivo das remunerações, pois, não deixa de haver apropriação não porque o agente faz sua quantia que recebeu, mas porque faz sua, ou continua a fazer sua quantia que deveria sair do seu património e não sai» (Ac. da Relação de Lisboa de 20.03.2012, proc. nº 5209/04.5TDLSB.L1-5. No mesmo sentido, Ac. da Relação do Porto de 09.10.2013, proc. 1033/10.4TAVFR.P1; Ac. da Relação de Guimarães de 09.07.2015, proc. 182/10.3TAVVD.G1, Ac. da Relação de Lisboa de 20.03.2018, proc. 1374/12.6TAMTJ.L2-5, todos in http://www.dgsi.pt).
O recurso improcede, pois, nesta parte.
Quanto à segunda questão.
O recorrente pretende ver-lhe aplicada uma pena de multa e que a mesma seja suspensa sob a condição de continuar a proceder ao pagamento das prestações fixadas no âmbito do acordo celebrado.
Nos termos do art.º 40º nº 1 do CP, é função da pena, salvaguardar a reposição e a integridade dos bens jurídicos violados com a prática dos crimes e, na medida do possível, assegurar a reintegração do agente na sociedade, consagrando a prevenção geral e a prevenção especial como fundamentos legitimadores da aplicação das penas e acrescentando, no seu nº 2, que, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Este art.º 40º veio, pois, concretizar no âmbito do Direito Penal e em matéria de escolha e dosimetria das penas, os princípios constitucionais da necessidade e da proporcionalidade ou da proibição do excesso, consagrados no artigo 18º nº 2 da CRP.
Por seu turno, o art.º 71º nº 1 do CP impõe que a determinação da pena seja realizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
Com efeito, «o ponto de partida da determinação judicial das penas é a determinação dos seus fins, pois, só partindo dos fins das penas, claramente definidos, se pode julgar que factos são importantes e como se devem valorar no caso concreto para a fixação da pena» (Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, II, pág. 1194).
«A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial» (Fernanda Palma, As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva, nas Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1998, AAFDL, pág. 25).
A culpa não é, pois, o fundamento da pena, antes constituindo, a um tempo, o seu suporte axiológico-normativo, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa – e também o limite que a pena nunca poderá exceder.
E é a culpa apreciada em concreto, de acordo com a teoria da margem da liberdade, segundo a qual os limites mínimo e máximo da sanção são ajustados à culpa, conjugada com os fins de prevenção geral e especial das penas.
Assim, em primeiro lugar, a medida da pena será fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos (exigências de prevenção geral positiva).
De seguida, dentro desta moldura, a medida concreta da pena será doseada por referência às exigências de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
Por fim, a culpa fornece o limite máximo e inultrapassável da pena.
«A culpa do infractor apenas desempenha o (importante) papel de pressuposto (conditio sine qua non) e de limite máximo da pena a aplicar por maiores que sejam as exigências sociais de prevenção» (Américo Taipa de Carvalho, em Prevenção, Culpa e Pena, in Liber Discipulorum para Jorge Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 2003, pág. 322).
Culpa e prevenção são, por conseguinte, os dois limites a observar no processo de escolha e determinação concreta da medida da pena e prosseguindo a necessidade de assegurar este equilíbrio, entre a medida óptima da tutela dos bens jurídicos e das expectativas da comunidade e a medida concreta da pena abaixo da qual «já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar» (cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 229).
O art.º 71º do Código Penal enumera as circunstâncias que contribuem para agravar ou atenuar a responsabilidade, a que o Tribunal deverá atender, para tal efeito.
Dispõe este preceito, no nº 1, que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 do mesmo artigo enumera, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender, dispondo o nº 3, que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, em correspondência com o artigo 375º nº 1 do CPP, que impõe que a sentença condenatória especifique os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Nessa enumeração exemplificativa vislumbram-se critérios, tanto associados à prevenção geral, como é o caso da natureza e do grau de ilicitude do facto (que impõem maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como relacionados com exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.
Com efeito, esses critérios referem-se, uns, à execução do facto – als. a), b), c) e e), parte final, como é o caso do grau de ilicitude do facto, do modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente; a intensidade do dolo ou da negligência e os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; outros, à personalidade do agente, como sejam as suas condições de vida e a sua preparação ou falta dela, para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – als. d) e f) – e, outros, ainda, à conduta anterior e posterior ao facto – al. e) - especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime.
Mas estas circunstâncias a que se refere o mencionado nº 2 do art.º 71º, são aquelas que não integram os elementos constitutivos do tipo, sob pena de violação do princípio do «ne bis in idem».
No entanto, tais circunstâncias, na parte em que a sua intensidade concreta ultrapasse os limites necessários que a lei considera no tipo incriminador para a determinação da moldura penal abstracta, devem ser consideradas na fixação concreta dessa moldura.
Estas circunstâncias devem ser, ainda, valoradas de acordo com a teoria da margem da liberdade.
Tal como resulta do teor das conclusões, o recorrente pretende a alteração da pena, sem que, no entanto, concretize minimamente quais são as razões de facto e de direito que o Tribunal do julgamento deixou de ponderar e a que deveria ter atendido para fixar a pena nos moldes que ele propõe, no presente recurso.
Ora, lendo o excerto da decisão condenatória impugnada, que se refere à escolha e determinação concreta da pena, a conclusão que importa retirar é a de que o Tribunal aplicou a pena de prisão de seis meses suspensa na respectiva execução durante um ano, com acerto e proporcionalidade.
Aí se diz o seguinte (transcrição parcial):
O crime praticado é punido com pena de prisão até três anos ou pena de multa até 360 dias.
A graduação da pena concreta é feita, atendendo ao critério dos artigos 71.º e 79.º do Código Penal.
E, acrescenta o artigo 13.º do RGIT, que na determinação da medida da pena deve ser atendido, sempre que possível, o prejuízo causado pelo crime.
Já o artigo 15.º, n.º 1 postula que: "Cada dia de multa corresponde a uma quantia entre (euro) 1 e (euro) 500, tratando-se de pessoas singulares, e entre (euro) 5 e (euro) 5.000, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos. "
Assim, no caso em apreço temos a considerar e ponderar:
a) o grau de ilicitude que será mediano, considerando o valor global em que o Estado foi lesado: 7.036,67 (sete mil e trinta e seis euros e sessenta e sete cêntimos);
b) estar o arguido a cumprir plano prestacional com vista ao pagamento do montante em dívida à Segurança Social e que foram alvo de execução fiscal;
c) o dolo necessário;
d) a culpa, que embora elevada, se encontra ligeiramente mitigada pelo destino dado aos valores monetários em causa;
e) a inserção social do arguido;
f) o apurado quanto à sua actual situação económica e pessoal do arguido;
g) o consignado quanto aos seus antecedentes criminais, donde se extrai que as necessidades de prevenção especial assumirão um patamar mediano;
h) as necessidades de prevenção geral, que se têm por elevadas, atenta a proliferação da prática deste tipo de crimes, não só a nível nacional, como, com particular incidência, nesta comarca de Sintra;
Por tudo o exposto entendo que a aplicação de uma sanção não privativa da liberdade será insuficiente para a protecção dos bens jurídicos postos em crise e as necessidades de prevenção geral que a situação vertente reclama, dadas as pretéritas condenações de que foi alvo.
Nessa medida, decido condená-lo na pena de seis meses de prisão.
A decisão recorrida tomou igualmente posição expressa no que se refere à possibilidade de substituição desta pena de prisão por medidas não privativas da liberdade, nos seguintes termos (transcrição parcial):
Da substituição da pena de prisão:
Considerando a pena concretamente fixada, assumem relevância abstracta as penas substitutivas actualmente previstas em relação à pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do disposto no artigo 58.º, do Código Penal.
In casu, e atentas as circunstâncias dadas como provadas, concretamente as referentes aos historial criminal do arguido, entendo que não se mostra adequada e suficiente para prevenir o cometimento de novos crimes, a substituição da pena de prisão aplicada por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 58.º, do referido Código, nem a substituição em pena de multa, por entender que as finalidades não sairiam satisfeitas com tais penas substitutivas que não traduzem acrescido encargo para o arguido relativamente às que lhe foram aplicadas no passado, razão pela qual se afasta a sua aplicação.
Com efeito, as exigências de prevenção geral são muito fortes, neste tipo de crimes, em face da enorme proliferação de crimes de natureza idêntica e considerando o bem jurídico tutelado na norma incriminadora – já que, seja a credibilidade das relações entre a Administração Tributária e os contribuintes, na perspectiva da revelação da sua verdadeira capacidade contributiva, seja, na da globalidade das receitas tributárias, do que não se duvida é que se trata de um relevante instrumento do Estado de Direito Democrático, ao nível da redistribuição da riqueza e da prossecução de ponderosos interesses de ordem social - e o sentimento generalizado de impunidade que os agentes económicos têm em relação àquilo que é comummente chamado de «fuga ao Fisco» e que urge combater e neutralizar, valores estes que têm igual valor e eficácia, eventualmente, até acrescida quando estejam em causa, as prestações devidas à Segurança Social, dada a sua incidência directa na prossecução das finalidades do Estado Social.
Somam-se as razões de prevenção especial, em atenção ao facto de o arguido já ter sofrido condenações anteriores por crimes da mesma natureza, sem que as mesmas tenham surtido qualquer efeito dissuasor no sentido de o impedir de incorrer em novos comportamentos delituosos semelhantes.
Umas e outras desaconselham, à luz dos critérios insertos nos art.ºs 40º e 70º do CP, a alteração da pena aplicada na decisão recorrida.
O recurso, improcede, pois, na totalidade.
III – DISPOSITIVO
Termos em que decidem, neste Tribunal da Relação de Lisboa:
Em negar provimento ao recurso, confirmando, na íntegra, o acórdão recorrido.
Custas pelo arguido, que se fixam em 4 UCs – art.º 513º do CPP.
Notifique.
*
Acórdão elaborado pela primeira signatária em processador de texto que o reviu integralmente (art.º 94º nº 2 do CPP), sendo assinado pela própria e pela Mma. Juíza Adjunta.
Tribunal da Relação de Lisboa, 24 de Junho de 2020
Cristina Almeida e Sousa
Florbela Sebastião e Silva