I - Se a sentença contiver quaisquer inexatidões devidas a omissão ou lapso material manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. A retificação pode ter lugar a todo o tempo, nos casos do n.º 3 do artigo 614.º do CPC.
II – Um erro ou lapso material só pode ser retificado, ao abrigo do artigo 614.º do CPC, se, ao ler o texto, logo se deteta que existe erro, resultando claro o que efetivamente se quis escrever.
III - É evidente pela leitura do dispositivo do Acórdão do Supremo que a condenação da seguradora não foi um lapso material, mas a consequência lógica decorrente da condenação do 1.º Réu, que tinha chamado a seguradora ao processo como interveniente principal.
IV - Se fosse admitido que, ao abrigo da possibilidade de correção de erros materiais, se pudesse conhecer questões de direito ou erros de julgamento que não foram atempadamente invocados, estar-se-ia a subverter a tramitação processual, abrindo-se a porta a que este procedimento fosse invocado ardilosamente para discutir questões processuais ou de mérito, que a parte, por negligência, não alegou dentro do prazo perentório legalmente estipulado para a prática do ato processual em que seria lícito fazê-lo.
V – Tal pretensão deduzida pela seguradora, após o trânsito em julgado do Acórdão que a condenou, para além de ser extemporânea, tem uma natureza anómala e patológica, constituindo um corpo estranho na normalidade do sistema.
Acordam em Conferência no Supremo Tribunal de Justiça
I - Relatório
1. AGEAS PORTUGAL - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., na ação que lhe moveu AA, veio requerer, em 24-04-2023, já após o trânsito em julgado do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 02-12-2020, que a condenou solidariamente com o 1.º Réu, BB, a pagar a uma indemnização à autora, a retificação do Acórdão de 2-12-2020, por alegado lapso manifesto, com os fundamentos seguintes que agora se transcrevem:
«1 - A parte – no caso a ora requerente - não pode ser absolvida do pedido em primeira instância - com trânsito em julgado - e ser depois neste Supremo condenada nesse mesmo pedido.
2 - AA propôs a presente acção, em processo comum, contra BB, R..., BV,CC, C...(SUCURSAL EM PORTUGAL) e, posteriormente, contra AGEAS PORTUGAL, S.A., como interveniente principal, pedindo que sejam os Réus e a interveniente principal condenados a pagar à Autora o valor de € 477.011,32, acrescido de juros de mora à taxa legal, desde a citação até integral pagamento, bem como a condenação dos mesmos a indemnizar a Autora pelos prejuízos futuros que esta venha ainda a sofrer e que não se encontram ainda quantificados, nos termos do artigo 564º do Código Civil, bem como de todos os prejuízos que se venha a determinar terem resultado da sua actuação, nos termos do artigo 569º do Código Civil, em ambos os casos a liquidar em execução de sentença, sem prejuízo da condenação líquida já peticionada.
«Foi proferida a seguinte douta
III. Sentença, DECISÃO:
Pelo exposto, julgo a presente acção totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, absolvo o 1º Réu, BB, o 4º Réu, CC, e a chamada, Ageas Portugal, S.A., do pedido.
Custas pela Autora (artigo 527.º do Código de Processo Civil).
Lisboa, 17 de Abril de 2019
3 – Provaram-se na acção (entre outros) os seguintes factos que constituíam limites do seguro (limites aos quais o douto acórdão de 2-12-2020, por lapso manifesto, não atendeu na decisão)
«82. Entre o 1º Réu e a chamada (ora requerente), com início em 01.05.1992, alterado com efeitos a 01.01.2005, foi celebrado um contrato de seguro do ramo Responsabilidade Civil, visando transferir a responsabilidade civil profissional decorrente da sua atividade médica, no âmbito “Cirurgia Plástica”, titulado pela apólice n.º xxxxxxx32.
83. A partir de 01.01.2005 a ora chamada garantia a responsabilidade civil profissional em que pudesse incorrer o tomador de seguro em virtude da sua atividade médica até ao montante de € 300.000,00, uma vez que o capital da anuidade fica limitado, em cada sinistro, a 50% do respectivo valor, sendo aplicada a cada sinistro, relativamente a danos patrimoniais, uma franquia de 10% do valor reclamado, com um mínimo de € 125,00.
84. Por referência a setembro de 1994, as garantias/capitais seguros eram os seguintes: danos corporais até € 249.398,95; danos materiais até € 74.819,68; defesa e recurso até € 4.987,98, vigorando uma franquia, relativamente a danos materiais, com um mínimo de € 124,74.
Está actualmente em curso o incidente de liquidação do douto acórdão de 2-12-2020, deduzido pela A., pelo valor de € 290.900,70.
A interveniente não pode ser condenada a pagar os € 290,900,70, valor acima da garantia contratual.
4 - A A. alegou de apelação dessa sentença proferida, de absolvição dos réus e da interveniente, assim:
5 - Na apelação o primeiro R., o único aí apelado como a apelante restringiu, contra-alegou:
«Termos em que deverá ser negado provimento ao presente recurso de Apelação e ser o mesmo julgado totalmente improcedente».
6 - O douto Ac. da Rel. de 5-11-2019 proferido nessa apelação considerou:
«(…) conclusões da alegação (cf. n.º 4 do mencionado art. 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Serve isto para dizer que, conforme decorre do conteúdo das alegações da recorrente, esta não coloca em crise a decisão recorrida na parte em que absolveu o réu DD do pedido, visando apenas obter a alteração daquela no sentido da condenação do réu BB, pelo que aquela parte da decisão deve considerar-se transitada em julgado.
(…)
Assim, perante as conclusões da alegação da autora/apelante, o objecto dos presentes recursos consiste em:
a) Apreciar a impugnação da matéria de facto;
b) Aferir sobre a responsabilidade civil contratual do réu BB decorrente de má prática médica e/ou por violação do dever de informação e eventual fixação do valor da indemnização a arbitrar».
E o douto acórdão da Relação decidiu:
b) Julgar improcedente a apelação, em consequência, a decisão recorrida.
7. Alegações de revista da A:
8 - Não é necessário o litisconsórcio entre o 1º R, único recorrido de apelação, e a interveniente, aliás não requerido pela A.. Inexiste ilegitimidade passiva.
A interveniente ora requerente foi na sentença absolvida do pedido.
A A. não apelou quanto a esta absolvição.
Disse expressamente nas alegações de apelação:
A absolvição da interveniente do pedido, decidida na sentença, transitou em julgado. Na apelação a apelante não pediu a sua condenação.
Artigo 625.º (art.º 675.º CPC 1961) Casos julgados contraditórios
1 - Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.
Onde a douta sentença com trânsito absolveu a interveniente do pedido, o douto acórdão de 2-12-2020 condenou-a nesse mesmo pedido.
Artigo 614.º (art.º 667.º CPC 1961) Retificação de erros materiais
1 - Se a sentença contiver quaisquer inexatidões devidas a omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.
3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo.
9 - Constitui um lapso manifesto do douto acórdão de 2-12-2020 não se haver apercebido desse trânsito e que tendo a interveniente sido absolvida do pedido pela douta sentença, o douto acórdão a condene nesse mesmo pedido.
A condenação da interveniente deve-se a lapso manifesto cuja rectificação requer a Vossas Excelências uma vez que foi absolvida na 1ª instância, com trânsito, confirmado pela Relação, sendo que quer a apelação quer a revista se restringiram à absolvição do 1º réu, nas conclusões, e seu epílogo.
A interveniente não foi recorrida nestes recursos nos quais, por isso, não exerceu nenhum contraditório, nem podia. Tão pouco o 1º R., único apelado, requereu ampliação do objecto do recurso de apelação para a condenação consigo da interveniente, dando-se o caso de os recursos procederem.
A absolvição da requerente transitou em julgado antes de ter sido proferido neste Supremo o douto acórdão de 2-12-2020.
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de Vossas Excelências, na rectificação no trecho decisório do douto acórdão de 2-12-2020 deve a interveniente, ora requerente, ser excluída da condenação; ou deve decidir-se que o caso julgado da absolvição na sentença prevalece sobre a condenação no acórdão de 2-12-2020.
Nestes termos e nos mais de direito, com o douto suprimento de Vossas Excelências, na rectificação no trecho decisório do douto acórdão de 2-12-2020 deve a interveniente, ora requerente, ser excluída da condenação; ou deve decidir-se que o caso julgado da absolvição na sentença prevalece sobre a condenação no acórdão de 2-12-2020».
Alegou, ainda, noutro requerimento apresentado no mesmo dia que «por lapso manifesto, não registou o pagamento da taxa de justiça referente ao pedido de retificação do douto acórdão de 2-12-2020, o que agora faz nos termos do artº 145º nº 3 do Cód. Proc. Civil» - Referência 186924
2. AA, Autora nos autos acima referenciados, notificada do requerimento da Ré “Ageas Portugal” veio apresentar a sua resposta, nos termos e com os fundamentos seguintes:
«1. O douto Acórdão proferido nestes autos por este Supremo Tribunal de Justiça revogou a sentença de 1.ª Instância e o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa e condenou solidariamente os Réu BB e sua Companhia de Seguros, a Ré “Ageas Portugal”.
2. Esse douto Acórdão transitou já em julgado, pelo que, quaisquer nulidades de que tal decisão padecesse se encontram nesta data definitivamente sanadas, nomeadamente, aquelas que no entender da Ré “Ageas Portugal” se verificariam, decorrentes de excesso de pronuncia, contradição com os fundamentos, ambiguidade ou lapso material.
3. Essas alegadas nulidades deveriam ter sido arguidas dentro do prazo que processualmente é concedido para o efeito sob pena, de não o tendo o sido, terem que considerar-se sanadas.
4. Aliás, a possibilidade, após qualquer decisão final de mérito, de reforma, suprimento de nulidades ou rectificação de lapso material, constitui excepção ao princípio de que, com a prolação dessa decisão final, fica esgotado o poder jurisdicional.
5. Ultrapassado – como ocorreu há já bastante tempo – o prazo para prática de tais actos de arguição, fica precludida a possibilidade de os praticar e como tal esgotado o poder jurisdicional.
6. O douto Acórdão proferido – que transitou em julgado nos termos do 628º do Código de Processo Civil - constitui caso julgado nos precisos termos em que julgou a matéria que lhe foi submetida, sendo que “a eficácia do caso julgado deve considerar-se extensiva à decisão de todas as questões preliminares que forem antecedentes lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado” (Acórdão deste Supremo Tribunal de 23.07.1980 in dgsi.pt – p.º 06819).
7. Mais; “o caso julgado só se forma em relação à causa de pedir e não também em relação aos fundamentos de facto” (Acórdão deste Supremo Tribunal de 17.02.1998 in SASTJ, ano 1998 – p.º 954/98), pelo que não pode colher a argumentação constante do ponto 3 do requerimento a que se responde.
8. E a decisão proferida é clara em condenar a Ré “Ageas Portugal” solidariamente com o Réu BB, sem qualquer limitação da responsabilidade daquela.
9. Essa douta decisão proferida por este Supremo Tribunal de Justiça revogou quer a decisão de 1.ª Instância, quer o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, pelo que, nenhuma dessas decisões poderia ter formado caso julgado.
10. Ainda que a douta decisão tivesses sido incorrecta por excesso de pronúncia e este Supremo Tribunal não pudesse ter-se pronunciado sobre a situação da Ré “Ageas Portugal” – o que não se admite – tal situação configuraria nulidade por excesso de pronúncia nos termos da alínea d) do n.º 1 do Art.º 615º do Código de Processo Civil, a qual deveria ter sido arguida no decêndio posterior à notificação do Acórdão e, não o tendo sido, tal eventual nulidade encontra-se desde há muito sanada.
11. De qualquer modo, nenhum excesso de pronúncia existiu, pois, a Ré “Ageas Portugal” é interveniente principal nos autos, tendo sido essa intervenção provocada pelo outro Réu BBe não deduzida pela Autora que não dirigiu pedido contra ela na petição inicial.
12 A sua posição recortou-se, pois, pela posição do Réu que a chamou, sendo irrelevante que a Autora não tenha feito qualquer pedido contra ela no recurso, porque a sua condenação resulta, de acordo com chamamento, da condenação daquele Réu.
Deve, pois, ser indeferido na totalidade o agora requerido pela Ré “Ageas Portugal”».
3. BB, Réu, notificado do requerimento apresentado pela Interveniente “Ageas Portugal” veio apresentar a sua resposta, com os seguintes fundamentos:
Por tudo o exposto, deve ser indeferido, na totalidade, o requerido pela Interveniente “Ageas
Portugal.”»
4. AGEAS PORTUGAL - COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., após remessa do processo ao Supremo Tribunal de Justiça, ordenada por despacho do tribunal de 1.ª instância de 29-06-2023, e que teve lugar em 13-07-2023, veio, em 14-07-2023, requerer ao Supremo Tribunal de Justiça o seguinte:
«Dispõe o Código Civil Artigo 8.º
3. Nas decisões que proferir, o julgador terá em consideração todos os casos que mereçam tratamento análogo, a fim de obter uma interpretação e aplicação uniformes do direito.
Nesse sentido requer a Vossa Excelência a consideração do que foi apreciado nos dois doutos acórdãos do Supremo que este acompanham».
5. A Seguradora juntou dois Acórdãos proferidos no processo n.º 250/12.7...
Cumpre apreciar e decidir.
II – Fundamentação
1. Veio a ré Seguradora, Ageas Portugal, em 24-04-2023, requerer ao Supremo Tribunal de Justiça (expediente remetido ao Supremo Tribunal pelo tribunal de 1.ª instância, em 26-06-2023), o seguinte: 1) pedido de retificação, por lapso manifesto, do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2-12-2020, que a condenou a pagar uma indemnização à autora da presente ação, solidariamente com o 1.º Réu; 2) pedido de apresentação do comprovativo do pagamento da taxa de justiça ao abrigo do artigo 145.º, n.º 3, do CPC (referência n.º 186924).
2. Após o processo ter sido remetido, pelo tribunal de 1.ª instância, a este Supremo Tribunal de Justiça, a Ageas Portugal apresentou outro requerimento, datado de 14-07-2023, pedindo que o Supremo tenha em consideração na sua decisão dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdãos de 2-12-2020 e de 09-02-2021, proferidos no processo n.º 250/12.7TVPRT.P1.S1), que alegadamente decidiram questão semelhante de modo distinto, invocando o artigo 8.º, n.º 3, do Código Civil, para que o Supremo Tribunal de Justiça decida pela sua absolvição.
3. Discordam da posição da seguradora, quer a autora, quer o 1.º Réu, sustentando, em síntese, que já correu o prazo para a seguradora reclamar do Acórdão de 02-12-2020, arguindo nulidades e/ou pedindo a sua retificação, tendo-se esgotado o poder jurisdicional relativamente às questões suscitadas. A seguradora foi chamada ao processopelo 1.º réu como interveniente principal, não sendo possível à autora delimitar sujetivamente o âmbito do recuro. O Acórdão de 02-12-2020 teria adquirido, portanto, força de caso julgado em relação à Seguradora.
4. Com efeito, verifica-se, após consulta do citius, que o Acórdão proferido, pela 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em 2 de dezembro de 2020, foi notificado à seguradora no mesmo dia e não tendo esta atempadamente apresentado qualquer reclamação contra o mesmo, em que alegasse nulidades, designadamente, nulidade por excesso de pronúncia, de forma a invalidar o segmento da decisão que se reporta à sua condenação, extinguiu-se há muito (a data do trânsito em julgado é de 25-02-2021) o direito de impugnar o citado Acórdão, encontrando-se esgotado o poder jurisdicional deste Supremo Tribunal para conhecer da questão suscitada.
5. Vejamos:
Face à extemporaneidade da reclamação da seguradora, só pode estar em causa o princípio contido no artigo 249º do Código Civil, que a jurisprudência tem admitido ser aplicável a todos os atos processuais e que permite a retificação, a todo o tempo, de lapso manifesto, por erro de cálculo ou de escrita, revelado no próprio contexto da declaração ou através das circunstâncias em que a declaração é feita.
No mesmo sentido, o artigo 614.º do CPC admite a retificação de erros materiais «1 - Se a sentença contiver quaisquer inexatidões devidas a omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. 2 – Em caso de recurso, a retificação só pode ter lugar antes de ele subir, podendo as partes alegar perante o tribunal superior o que entendam de seu direito no tocante à retificação. 3 - Se nenhuma das partes recorrer, a retificação pode ter lugar a todo o tempo».
Está em causa, pois, averiguar se a condenação da seguradora, tal como consta no dispositivo do Acórdão de 02-12-2020, constitui um lapso material ostensivo e manifesto, suscetível de ser corrigido a todo o tempo.
Um erro ou lapso material só pode ser retificado, ao abrigo do artigo 614.º do CPC, se for ostensivo, manifesto e evidente, sendo necessário que, ao ler o texto, logo se veja que há erro e que resulte claro o que efetivamente se quis escrever.
É evidente pela leitura do dispositivo do Acórdão do Supremo que a condenação da seguradora não constitui qualquer lapso material, mas a consequência lógica decorrente da condenação do 1.º Réu que tinha chamado a seguradora como interveniente principal, em virtude do contrato de seguro que com esta celebrara.
A seguradora está, com este pedido, a tentar fazer passar um eventual erro de direito por um lapso material manifesto, o que não é admissível.
Os argumentos usados pela Seguradora, designadamente, as declarações da recorrente, AA, na alegação do recurso de revista, interpretadas pela seguradora como uma limitação subjetiva do âmbito do recurso (o que desde já se diga, não ser líquido, pois a autora não demandou a seguradora na petição inicial, referindo-se nas tais declarações a outros réus por si demandados), são suscetíveis, em tese, de colocar a questão processual de saber se o Supremo incorreu em nulidade por excesso de pronúncia ao condenar a seguradora. Mas esta questão teria de ser colocada em sede de reclamação para a Conferência, que não foi atempadamente apresentada pela seguradora. Não tendo a seguradora apresentado tal reclamação, sibi imputet, a si mesma se imputa a consequência de suportar a condenação.
Fora dos casos de erro de escrita ou lapso manifesto, não será possível, ao abrigo deste regime, substituir uma decisão judicial por outra com alcance distinto, para além do prazo perentório que a lei adjetiva fixa para a prática do ato em questão, in casu, a reclamação para a Conferência que a seguradora devia ter apresentado e que não logrou apresentar dentro do prazo legal.
Se fosse admitido que, ao abrigo da possibilidade de correção de erros materiais, se pudesse conhecer questões de direito ou erros de julgamento que não foram atempadamente invocados, estar-se-ia a subverter a tramitação processual, abrindo-se a porta a que este procedimento fosse invocado ardilosamente para discutir questões processuais ou de mérito, que a parte, por negligência, não alegou dentro do prazo perentório legalmente estipulado para a prática do ato processual em que seria lícito fazê-lo.
6. Sustenta ainda a agora reclamante, em via subsidiária, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que condenou a seguradora, violou o caso julgado, pois que a seguradora foi absolvida pelo Tribunal da Relação, tendo a absolvição da seguradora transitado em julgado, porque não impugnada pela recorrente.
Todavia, esta forma de abordagem da questão tem dois obstáculos:
O primeiro consiste no momento processual em que é feita a invocação de ofensa ao caso julgado. É que o momento adequado teria de ser a interposição de recurso subordinado, pela Seguradora, contra o acórdão de absolvição proferido pela Relação, como meio de prevenir a condenação da Seguradora pelo Supremo Tribunal de Justiça, caso viesse a ser condenado o 1.º Réu e, em consequência, a Seguradora, ou, em alternativa, a reclamação para a Conferência em que podia ter sido invocada a nulidade por excesso de pronúncia.
O segundo, embora desnecessário para fundamentar a negação da pretensão da seguradora, que já caiu por extemporaneidade, é que não estamos, com efeito, perante qualquer caso julgado formal. O que se verifica é que, no Acórdão de 02-12-2020, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu que a Seguradora era titular da relação jurídica material controvertida, porque chamada (intervenção principal provocada) pelo 1.º Réu (e não pela Autora), assim adquirindo a posição processual de parte principal. Neste quadro processual não seria possível à autora desistir do recurso em relação à seguradora ou delimitar subjetivamente o âmbito do mesmo. Neste sentido, nos termos do artigo 320.º do CPC, “A sentença que vier a ser proferida sobre o mérito da causa aprecia a relação jurídica de que seja titular o chamado a intervir, constituindo, quanto a ele, caso julgado.”
Apesar de a questão ser controversa e gerar debate jurisprudencial, conforme decorre dos Acórdãos agora juntos pela seguradora (que, de resto, não contradizem a posição adotada no Acórdão de 02-12-2020), esse debate devia ter sido introduzido pela seguradora noutro momento processual, conforme já afirmamos: ou em sede de recurso subordinado contra o acórdão da Relação ou na reclamação para a conferência através da arguição de nulidades do Acórdão de 02-12-2020.
7. Conclui-se pois, que o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que decidiu condenar solidariamente a seguradora Ageas Portugal com o 1.º Réu, BB, constitui caso julgado, vinculando o tribunal e as partes a acatar o que nele ficou definido. Encontram-se, portanto, definitivamente acertadas as situações jurídicas objeto do litígio, bem como a eficácia subjetiva da decisão, que pode ser oposta a quem, na decisão transitada, seja tido como parte do ponto de vista da sua qualidade jurídica, o que se verifica em relação à seguradora chamada ao processo pelo 1.º Réu, a título de interveniente principal.
8. A pretensão de obter decisão de absolvição – seja através do conceito de lapso material, seja através do instituto do caso julgado formal – deduzida após o trânsito em julgado do Acórdão que se pretende impugnar e num momento em que está pendente incidente de liquidação da sentença – para além de ser extemporânea, tem uma natureza anómala e patológica, constituindo um corpo estranho na normalidade do sistema.
9. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC:
I - Se a sentença contiver quaisquer inexatidões devidas a omissão ou lapso material manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. A retificação pode ter lugar a todo o tempo, nos casos do n.º 3 do artigo 614.º do CPC.
II – Um erro ou lapso material só pode ser retificado, ao abrigo do artigo 614.º do CPC, se, ao ler o texto, logo se deteta que existe erro, resultando claro o que efetivamente se quis escrever.
III - É evidente pela leitura do dispositivo do Acórdão do Supremo que a condenação da seguradora não foi um lapso material, mas a consequência lógica decorrente da condenação do 1.º Réu, que tinha chamado a seguradora ao processo como interveniente principal.
IV - Se fosse admitido que, ao abrigo da possibilidade de correção de erros materiais, se pudesse conhecer questões de direito ou erros de julgamento que não foram atempadamente invocados, estar-se-ia a subverter a tramitação processual, abrindo-se a porta a que este procedimento fosse invocado ardilosamente para discutir questões processuais ou de mérito, que a parte, por negligência, não alegou dentro do prazo perentório legalmente estipulado para a prática do ato processual em que seria lícito fazê-lo.
V – Tal pretensão deduzida pela seguradora, após o trânsito em julgado do Acórdão que a condenou, para além de ser extemporânea, tem uma natureza anómala e patológica, constituindo um corpo estranho na normalidade do sistema.
III – Decisão
Pelo exposto, decide-se indeferir o pedido de retificação.
Custas pela reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.
Lisboa, 5 de setembro de 2023
Maria Clara Sottomayor (Relatora)
Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)
Maria João Vaz Tomé (2.ª Adjunta)