I – O crime de violência doméstica tutela a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar, pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização das alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal.
II – O crime de violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção comporta e, também, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna, o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto.
III – Pressupõe, também, uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita, na maioria dos casos, a uma situação de submissão à vontade do/a agressor/a.
IV – O estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal de cada um dos arguidos enquanto vítima da actuação do outro não tem, necessariamente, de resultar da existência de domínio ou de subjugação de um em relação ao outro quando, com a sua actuação, um deles visa o outro.
V – Esse estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal de cada um deles pode também resultar da configuração global da concreta actuação de cada um em relação ao outro, indissociável da relação análoga à dos cônjuges entre eles existente à data.
VI – Nos comportamentos ofensivos recíprocos, a circunstância de cada um dos arguidos assumir quer a qualidade de agressor quer a qualidade de vítima, não impede que se tenham por verificados, em relação à concreta conduta de cada um deles descrita na acusação, os elementos constitutivos – objectivos e subjectivos – do crime de violência doméstica, nomeadamente quando os comportamentos de cada um dos arguidos não ocorre na sequência dos comportamentos do outro.
I- Relatório
1. … o Ministério Público proferiu despacho de acusação contra os arguidos AA e BB, nele lhes imputando a prática, em autoria material ( singular ), sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art. 152º, nºs 1, alínea b), 2, al. a), 4 e 5 do Código Penal.
“…
2.ª - O crime de violência doméstica pode ser praticado reciprocamente por ambos os sujeitos/arguidos, nomeadamente, quando os actos são cometidos na mesma ocasião e não apenas em momentos divergentes, desde logo porque o elemento literal não o exclui.
3.ª - Para que se verifique a existência do crime de violência doméstica, não se mostra necessário que exista uma relação de domínio ou de subjugação de um dos arguidos relativamente ao outro.
4.ª - O bem jurídico no crime de violência doméstica é plural e complexo e abrange a protecção da dignidade humana e quando as condutas afectam a dignidade pessoal e individual do cônjuge, namorado, companheiro… o crime verifica-se.
5.ª - O facto de ambos os arguidos atentarem contra a dignidade do outro não tem a virtualidade para excluir e afastar a censurabilidade da própria conduta.
6.ª - As condutas imputadas a ambos os arguidos são de uma intensidade e gravidade bastante, as quais apenas poderão ser subsumíveis ao crime de violência doméstica.
…”
“…
II. O crime de violência doméstica não pode ser cometido em reciprocidade.
III. Para que exista crime de violência doméstica é necessário a existência de uma vítima e de um vitimador.
IV. Os factos não preenchem o tipo de ilícito em causa, por não ter sido atingido o bem jurídico lesado, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugaçãoe submissão atingindo a dignidade da pessoa humana de um dos arguidos em relação ao outro.
…”
…
A) Delimitação do Objeto do Recurso
…
No caso vertente, atentas as conclusões apresentadas pelo recorrente Ministério Público, a questão a decidir é a de saber se existem indícios da prática pelos arguidos do crime de violência doméstica que lhes vem imputado na acusação.
Vejamos, então, o teor da decisão recorrida, que, na parte relevante para apreciação do recurso, se transcreve:
1. AA, …
2. BB, …
imputando-lhes a prática, respectivamente, em autoria material (singular), sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al b), 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, ….
II
…
Da prova produzida em sede de inquérito e de instrução:
Na fase processual de inquérito, foram coligidos nos autos, designadamente, os seguintes elementos documentais:
- Fotografias, a fls. 93 a 106;
- Certificados do registo criminal, a fls. 8 e 227; - Relatório, a fls.185 a 192.
Inquiriram-se as testemunhas:
…
Foram constituídos e interrogados como arguidos: …
Na presente fase processual, não foram levadas a efeito diligências probatórias.
Da suficiência ou insuficiência de indícios da verificação dos pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança:
Do imputado crime de violência doméstica:
…
Dos elementos probatórios carreados para os presentes autos e supra enunciados, destacando-se as declarações prestadas por cada um dos simultaneamente arguidos e ofendidos, …, parcialmente corroboradas pelos depoimentos das testemunhas …, e atendendo, ainda, ao teor dos autos de notícia, das fotografias, a fls. 93 a 106, e do relatório, a fls.185 a 192, podemos afirmar que existem indícios dos seguintes factos narrados na douta acusação pública:
1 – Os arguidos, AA e BB iniciaram uma relação de namoro em 2016;
2 – Passando a coabitar em 2019, na Rua ..., em ..., nesta cidade;
3 – Com a coabitação surgiram os primeiros episódios de conflito e confronto;
4 – Com efeito, a arguida BB, no interior da casa de morada de família apelidou, por diversas vezes, AA de putanheiro, porco de merda, mulherengo, pessoa ruim;
5 – E, em tom sério, disse-lhe: “tens os cornos assentes! tu não prestas, ninguém gosta de ti, nem os teus filhos”;
6 – “Um destes dias mato-te”;
7 – Para além disso, a arguida BB, de forma a denegrir a imagem de AA, diz aos amigos e colegas de trabalho daquele que “é um putanheiro”;
8 – A 21 de Fevereiro de 2022, AA disse à arguida BB que pretendia terminar a relação e, consequentemente, que esta abandonasse a casa de morada de família;
9 – Porém, a arguida BB, não acatando tal, começou a partir vários objectos em casa, nomeadamente louça;
10 – Ademais, a arguida BB colocou no lixo roupa de cama, cortinados e edredons pertencentes a AA;
11 – E rasgou o papel de parede e sempre com o propósito de o humilhar;
12 – No dia 21 de Abril de 2022, data em que em saiu de casa, a arguida BB desferiu com violência diversos pontapés no portão da habitação;
13 – Em data não concretamente apurada do ano de 2020, o arguido AA agarrou com força os braços de BB;
14 – E colocou-a na rua;
15 – Cerca de 3 ou 4 vezes, o arguido AA, de forma autoritária levantou a mão à ofendida BB, com o propósito de a intimidar;
16 – O arguido AA, por diversas vezes, apelidou a vítima BB de ladra, porca e fraca;
17 – E disse-lhe que ela tem amantes e que dá a cona mas que ninguém a quer;
18 – Em data não concretamente apurada, o arguido AA tentou forçar a vítima BB a manter sexo anal contra a vontade desta;
19 – Os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e conscientemente.
…, a indiciada factualidade não preenche o tipo legal de crime em causa, por não ter sido atingido o bem jurídico tutelado pela violência doméstica, não tendo ocorrido uma relação de domínio ou subjugação e submissão, atingindo a dignidade da pessoa humana, de um agente sobre o outro, antes se estando perante duas pessoas que vivem em situação análoga à conjugal e mutuamente se insultam, em uma situação de paritário conflito: a arguida, no interior da casa de morada de família, apelidou, por diversas vezes, o co-arguido de putanheiro, porco de merda, mulherengo pessoa ruim e disse-lhe: “tens os cornos assentes! tu não prestas, ninguém gosta de ti, nem os teus filhos”, e disse aos amigos e colegas de trabalho daquele que ele é um putanheiro; o arguido chama a companheira de “ladra, porca e fraca” e diz-lhe “que ela tem amantes” e que “dá a cona mas que ninguém a quer”; bem como se agridem fisicamente e às respectivas liberdades: o arguido agarrou com força os braços da co-arguida e colocou-a na rua; levantou a mão à co-arguida com o propósito de a intimidar e tentou forçá-la (de modo concreto que se desconhece) a manter sexo anal contra a vontade desta; a arguida disse ao co-arguido “um destes dias mato-te”; partiu vários objectos em casa, nomeadamente, louça e colocou no lixo roupa de cama, cortinados e edredons pertencentes àqueloutro e rasgou o papel de parede; desferiu diversos pontapés no portão da habitação.
Os comportamentos dos arguidos surgem, pois, como equivalentes na perspectiva da sua censurabilidade, nenhum deles logrando alcançar uma posição de efectivo domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem se distinguindo, um como vítima e o outro como agressor.
Não se indicia, assim, a seguinte factualidade:
“- Os arguidos actuaram desrespeitando-se e menorizando-se reciprocamente, ofendendo-se reciprocamente na honra e consideração bem sabendo que tinham o dever acrescido de se respeitar mutuamente;
- Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e mesmo assim, não se abstiveram de as levar a cabo”.
Restará, pois, concluir pela não pronúncia de ambos os arguidos, estendendo-se a mesma, pelo entendimento supra expendido, ao arguido não requerente da instrução, visto o preceituado no art.º 307.º, n.º 4, do Cód. de Processo Penal.
III
Pelo exposto, não pronuncio os arguidos:
1. …
2. …
pela prática dos factos que lhes são imputados na acusação, susceptíveis de, alegadamente, os constituírem autores materiais, respectivamente (em autoria material singular), sob a forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo art.º 152.º, n.ºs 1, al b), 2, al. a), 4 e 5, do Código Penal, determinando, consequentemente, o oportuno arquivamento dos autos.
Como deflui das conclusões recursivas, a questão suscitada no presente recurso consiste em saber se existem indícios da prática, pelos arguidos, do imputado crime de violência doméstica.
A dissensão do recorrente Ministério Público em relação à decisão de não pronúncia dos arguidos que, através do presente recurso, vem pôr em causa, esteia-se, apenas, no entendimento de que na decisão recorrida se fez uma incorrecta ponderação do enquadramento jurídico-penal da factualidade descrita na acusação pública deduzida nos autos contra os arguidos.
Ancorada na densificação normativa que o tipo legal de crime de violência doméstica imputado aos arguidos na acusação comporta e no entendimento doutrinal e jurisprudencial que dele vem sendo sufragado, profusamente adiantados na decisão recorrida, considerou a Mma. Juiz a quo que a factualidade indiciada o não preenche, porque dela não resulta ter sido atingido o bem jurídico tutelado pelo crime de violência doméstica, por dela não decorrer uma relação de domínio ou subjugação e submissão, atingindo a dignidade da pessoa humana, de um arguido sobre o outro, antes se estando perante duas pessoas que vivem em situação análoga à conjugal e mutuamente se insultam, em situação de paritário conflito, surgindo os comportamentos dos arguidos como equivalentes na perspectiva da sua censurabilidade, nenhum deles logrando alcançar uma posição de efectivo domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem se distinguindo, um como vítima e o outro como agressor.
E, com base em tais premissas, atendendo aos comportamentos dos arguidos que, para o efeito, sintetizou sem menção, porém, do circunstancialismo de tempo que rodeou a actuação de cada um dos arguidos que decorre dessa factualidade tida por indiciada, o Tribunal recorrido concluiu que, a partir delas, não se identifica nem se distingue, “ um como vítima e o outro como agressor”, e, por isso, considerando, ainda, não indiciada a factualidade constante da acusação deduzida nos autos na parte atinente ao elemento subjectivo do crime de violência doméstica, …
Diferente é a perspectiva do Ministério Público junto da primeira instância e junto deste Tribunal da Relação.
Quanto ao primeiro, por entender que ambos os arguidos deveriam ser pronunciados, pela prática, cada um deles, de um crime de violência doméstica por que vêm acusados, alinhando no corpo da motivação do recurso os seguintes argumentos:
- para o preenchimento do tipo legal do crime de violência doméstica não se mostra necessário que haja uma relação de domínio ou de subjugação de uma arguido relativamente ao outro;
- de acordo com o despacho de acusação, no ano de 2019 e nos dias 21 de fevereiro de 2022 e 21 de abril de 2022, essa relação de domínio ou de subjugação terá sido exercida pela arguida BB e no ano de 2020 essa relação de domínio ou se subjugação terá sido exercida pelo arguido AA;
- o crime de violência doméstica pode ser praticado reciprocamente por ambos os sujeitos, quando os autos são cometidos na mesma ocasião e não apenas em momentos divergentes, porque o elemento literal o não exclui;
- a circunstância de ambos atentarem contra a dignidade do outro não tem a virtualidade para excluir e afastar a censurabilidade da própria conduta.
- as condutas de ambos os arguidos são de uma intensidade e gravidade bastante, e, por isso, subsumíveis ao crime de violência doméstica.
Quanto ao segundo, por sufragar no Parecer emitido nos autos que as condutas de cada um dos arguidos, ou pelo menos algumas delas, de inegável cariz atentatório da dignidade humana, estão desfasadas temporalmente, o que lhes retira o carácter de reciprocidade, colocando a(s) vítima(s) numa posição de inferioridade relacional, em cada um desses momentos, pelo que, tais condutas cairão no âmbito de protecção do crime de violência doméstica.
Cremos, porém, que a decisão recorrida aglutina questões que importa apreciar separadamente.
A primeira delas, é, desde logo, a valoração dos elementos probatórios carreados para os autos …, com vista a decidir se se mostra ou não indiciada toda a factualidade descrita na acusação deduzida nos autos contra os arguidos, designadamente, a atinente ao elemento subjectivo do crime de violência doméstica que nela se descreve da seguinte forma:
“- Os arguidos actuaram desrespeitando-se e menorizando-se reciprocamente, ofendendo-se reciprocamente na honra e consideração bem sabendo que tinham o dever acrescido de se respeitar mutuamente;
- Os arguidos sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e mesmo assim, não se abstiveram de as levar a cabo”.
O tribunal recorrido considerou tal factualidade não indiciada, apesar de considerar indiciada toda a demais descrita na acusação deduzida contra os arguidos, e, fê-lo, no seguimento, apenas, da consideração de que os comportamentos dos arguidos surgem “ como equivalentes na perspectiva da sua censurabilidade, nenhum deles logrando alcançar uma posição de efectivo domínio de um sobre o outro, não se identificando, nem se distinguindo, um como vítima e o outro como agressor.”
Cremos, porém, que tal argumentação, por si só, não poderá suportar a decisão …
Isto porque.
O dolo, legalmente definido no art. 14º do C. Penal, consiste no conhecimento – elemento intelectual – e vontade – elemento volitivo – do agente em realizar o facto, com consciência da sua censurabilidade – consciência da ilicitude.
O elemento intelectual implica a previsão ou representação pelo agente das circunstâncias do facto, portanto, o conhecimento dos elementos constitutivos do tipo objectivo, sejam descritivos sejam normativos.
O elemento volitivo consiste na vontade do agente de realização do facto depois de ter previsto ou representado os elementos constitutivos do tipo objectivo – assim revelando a sua personalidade contrária ao direito, para uns, ou uma atitude contrária ou indiferente perante a proibição legal revelada no facto [elemento emocional do dolo], para outros.
O dolo, enquanto facto subjectivo, enquanto facto da vida interior do agente, não pode ser apreendido ou percepcionado directamente por terceiros pelo que a sua demonstração, tem que ser feita por inferência, através da conjugação da prova dos factos objectivos, em particular, dos que integram o tipo objectivo do crime, pelo que relativamente à prova dos factos subjectivos esta é alcançável por recurso a presunções naturais e às regras da experiência comum.
Ora, tendo o tribunal recorrido considerado indiciado que:
“ 1 – Os arguidos, … iniciaram uma relação de namoro em 2016;
2 – Passando a coabitar em 2019, na Rua ..., em ..., nesta cidade;
3 – Com a coabitação surgiram os primeiros episódios de conflito e confronto;
4 – Com efeito, a arguida BB, no interior da casa de morada de família apelidou, por diversas vezes, AA de putanheiro, porco de merda, mulherengo, pessoa ruim;
5 – E, em tom sério, disse-lhe: “tens os cornos assentes! tu não prestas, ninguém gosta de ti, nem os teus filhos”;
6 – “Um destes dias mato-te”;
7 – Para além disso, a arguida BB, de forma a denegrir a imagem de AA, diz aos amigos e colegas de trabalho daquele que “é um putanheiro”;
8 – A 21 de Fevereiro de 2022, AA disse à arguida BB que pretendia terminar a relação e, consequentemente, que esta abandonasse a casa de morada de família;
9 – Porém, a arguida BB, não acatando tal, começou a partir vários objectos em casa, nomeadamente louça;
10 – Ademais, a arguida BB colocou no lixo roupa de cama, cortinados e edredons pertencentes a AA;
11 – E rasgou o papel de parede e sempre com o propósito de o humilhar;
12 – No dia 21 de Abril de 2022, data em que em saiu de casa, a arguida BB desferiu com violência diversos pontapés no portão da habitação;
13 – Em data não concretamente apurada do ano de 2020, o arguido AA agarrou com força os braços de BB;
14 – E colocou-a na rua;
15 – Cerca de 3 ou 4 vezes, o arguido AA, de forma autoritária levantou a mão à ofendida BB, com o propósito de a intimidar;
16 – O arguido AA, por diversas vezes, apelidou a vítima BB de ladra, porca e fraca;
17 – E disse-lhe que ela tem amantes e que dá a cona mas que ninguém a quer;
18 – Em data não concretamente apurada, o arguido AA tentou forçar a vítima BB a manter sexo anal contra a vontade desta;
19 – Os arguidos actuaram de forma livre, voluntária e conscientemente. “
Visto, pois, que, a nível probatório, o dolo, enquanto facto interno, se deduz de factos externos, objectivos, revelados pela conduta do agente, não pode, a partir dos factos que o tribunal recorrido considerou indiciados acabados de elencar, deixar de considerar-se que, igualmente, resulta indiciado terem os arguidos actuado, desrespeitando-se e menorizando-se reciprocamente, ofendendo-se reciprocamente na honra e consideração, bem sabendo que tinham o dever acrescido de se respeitar mutuamente, e que, bem sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, e mesmo assim, não se abstiveram de as levar a cabo, como, aliás, se lhes imputava na acusação contra os mesmos deduzida nos autos.
E, assim sendo, deverá ter-se por indicada toda a factualidade descrita na acusação.
Questão diferente desta, é a de saber se, mesmo a considerar-se indiciada toda a factualidade descrita na acusação deduzida nos autos contra ambos os arguidos, …, de tal factualidade se poderá pu não subsumir o crime de violência doméstica que a cada um dos mesmos nela vem imputado.
O tribunal recorrido entendeu que não.
O Ministério Público discorda por entender que os factos indiciados são subsumíveis ao crime de violência doméstica imputado aos arguidos na acusação, …
Não obstante as longas considerações expendidas na decisão recorrida sobre os bens jurídicos tutelados pela incriminação do crime de violência doméstica, afigura-se-nos importante acrescentar algumas notas sobre a identificação e caracterização dos mesmos, a respeito dos quais vem sendo notada alguma flutuação doutrinal e jurisprudencial que, a nosso ver, não foi levada em conta na decisão recorrida.
De forma, que poderemos considerar generalizada, apontam-se como tuteladas pela proteção da norma incriminadora do crime de violência doméstica, a saúde e a dignidade da pessoa, entendida esta numa dimensão garantística da integridade pessoal contra ofensas à saúde física, psíquica emocional ou moral da vítima embora no estrito âmbito de uma relação de tipo intra-familiar pois é a estrutura “família” que se toma como ponto de referência da normativização acobertada nas alíneas a) a d) do nº 1 do art. 152º o que não significa, porém, que seja a “família” a figura central alvo de protecção mas antes essa pessoa que nela se insere, individualmente considerada – a este propósito e de forma mais desenvolvida, vejam-se, entre outros, Plácido Conde Fernandes, «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal» in “Revista do CEJ, nº 8 (especial), pags 304-305, Augusto Silva Dias «Crimes contra a vida e a integridade física», 2ª ed. aafdl, pag. 110.
A violência doméstica pressupõe um contacto relacional perdurável no seio dessa estrutura de tipo familiar, com o sedimento tradicional que esta noção inevitavelmente comporta e também, claro está, com a ponderação da realidade sócio-cultural hodierna o que se traduz numa multiplicidade de sujeitos passivos inseridos nesse contacto, frisando-se, contudo, que a ideia de perdurabilidade nada tem a ver com uma qualquer exigência de frequência ou repetição dos “actos violentos” para ter como verificado o crime.
E pressupõe, também, uma contundente transgressão relativamente à esfera de autonomia da vítima sujeita na maioria dos casos, como a experiência demonstra, a uma situação de submissão à vontade do(a) agressor(a), «de alguém de quem possa depender, ao nível mesmo da vontade sobre as dimensões mais elementares da realização pessoal» redundando «numa específica agressão marcada por uma situação de domínio (…) geradora de um específico traço de acentuada censura» - neste sentido, Cfr. Pedro Maia Garcia Marques, «Ora, trabalha sofre e cala … ou não» in “Direito e Justiça, Estudos dedicados ao Prof. Nuno José Espinosa Gomes da Silva”, pags 332-333.
Podendo, assim, dizer-se que o crime de violência doméstica tutela uma pluralidade de bens jurídicos, que encontram autónoma protecção noutros tipos legais e que a subsunção dos factos terá lugar em relação ao crime de violência doméstica quando houver lugar a um agravamento do juízo de censura referente à violação de pelo menos um dos bens jurídicos a que a norma alude, pela circunstância de esses bens serem ofendidos no âmbito de uma relação de coabitação ou de uma relação familiar, ou análoga, ainda que sem coabitação, ou após o termo dessa relação, mas como consequência dela.
É em função dessa circunstância que se determina a relação de especialidade entre cada um daqueles tipos legais e o tipo de violência doméstica, aceitando-se, pois, que o crime de violência doméstica é uma forma especial do crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensas à integridade física, de ameaças, de coacção, de sequestro, de importunação sexual, de coacção sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra – vide, neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código Penal, 4ª Edição actualizada, pág. 646-647.
Como se perfilha no acórdão do STJ, de 11.03.2021, disponível in www.dgsi.pt, “ no ilícito de violência doméstica é objectivo da lei assegurar uma “tutela especial e reforçada “da vítima perante situações de violência desenvolvida no seio da vida familiar ou doméstica que, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, evidenciem um estado de degradação, enfraquecimento ou aviltamento da dignidade pessoal quanto de perigo ou de ameaça de prejuízo sério para a saúde e para o bem-estar físico e psíquico da vítima.
Em última instância, é ainda o conceito de integridade pessoal (física e psíquica) comum ao crime de ofensa à integridade física simples, com a particularidade de, aqui, ser outra a caracterização da agressão e da actuação do agressor, estabelecidas, ambas, em função do "ambiente e da imagem global do facto" indiciador de um maior desvalor da acção e de um potencial perigo de prejuízos sérios para a saúde e para o bem-estar da vítima. O importante é, pois, analisar e caracterizar o quadro global da agressão física ou psíquica de forma a determinar se ela evidencia um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal da vítima que permita classificar a situação como de maus tratos, que, por si só, constitui um "risco qualificado que a situação apresenta para a saúde física ou psíquica da vítima". Nesse caso, impõe-se a condenação pelo crime de violência doméstica, do artigo 152°, do CP. Se não, a situação integrará a prática de um dos vários crimes comuns.”( sublinhados nossos).
E, como ainda se deixou expresso no Ac. do Tribunal da Rel. de Coimbra, de 22-09-2021, disponível in www.dgsi.pt., “ A opção do legislador na tipificação do ilícito actualmente constante do art. 152º do Código Penal terá decorrido essencialmente da generalização da percepção de que as condutas hoje integradas naquele tipo legal constituíam um grave problema social e familiar, transversal à generalidade das ordens jurídicas, carecido de urgente atenção legislativa. Não terá sido alheio ao pensamento legislativo o reconhecimento de que o tipo de relações em causa tem a potencialidade de gerar situações de dominação e de sujeição ou dependência, criando uma vulnerabilidade que pode propiciar um tratamento humilhante, de amesquinhamento, ou mesmo degradante. Porventura por força dessa constatação sectores consideráveis da doutrina, como da jurisprudência, acentuaram a relação de domínio ou de dependência e as vulnerabilidades daí resultantes. A evolução doutrinal e jurisprudencial veio apontar novos caminhos, afastando a necessidade de verificação de qualquer relação de dependência, esgrimindo, entre outros argumentos, a ausência de referência, na formulação legal, de semelhante requisito”. ( sublinhado nosso).
Daí que, como se sufraga neste último aresto, “O elemento distintivo resultará necessariamente da imbricação entre o crime cometido e a relação existente entre o seu autor e a vítima e, nessa medida, o enquadramento será sempre casuístico. Sempre que as circunstâncias do caso evidenciarem que, apesar da relação conjugal, familiar ou análoga, contemporânea da infracção ou anterior a ela, a prática do crime se oferece como estranha a essa relação, poderemos estar perante um dos tipos de crime que tutelam a integridade física ou psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a honra, mas não já perante um crime de violência doméstica. Na verdade, este último crime não traduz um tipo legal qualificado ou, sequer, agravado, pela relação pessoal intercorrente entre o autor e a vítima, mas sim um crime autónomo que, como já referimos, se encontra numa relação de especialidade e que visa responder a uma impactante realidade social, multifacetada, é certo, mas suficientemente identificada, de frequente verificação, geradora de consideráveis danos físicos, psíquicos e sociais, carecida de uma específica tutela jurídico-criminal. A opção pelo tipo do art. 152º em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente os bens jurídicos por aquele abrangidos exige a verificação de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime ser indissociável da relação presente ou passada. “
Na decisão recorrida considerou-se que do comportamento dos arguidos não decorre uma relação de domínio ou subjugação e submissão de um arguido em relação ao outro, susceptível de atingir a dignidade de cada um deles enquanto pessoas, respeitando a mesma a duas pessoas que vivem em situação análoga à conjugal e mutuamente se insultam, em situação de paritário conflito, surgindo os comportamentos de ambos como equivalentes na perspectiva da respectiva censurabilidade, nenhum deles evidenciando uma posição de efectivo domínio sobre o outro, não se identificando, nem se distinguindo, por isso, um como vítima e o outro como agressor.
Concordando, embora, que os comportamentos de ambos os arguidos que defluem da factualidade que lhe vem imputada na acusação e que, como já decidido, se deve ter por indiciada, se possam ter como equivalentes do ponto de vista da intensidade ofensiva ou censurabilidade que evidenciam, como sopesou o Tribunal recorrido, não poderemos, porém, sufragar o entendimento que este perfilha no sentido de que tais comportamentos não são susceptíveis de atingir a dignidade humana de cada um dos arguidos, porque, através dos mesmos, cada um deles é visado e ofendido com a actuação do outro.
Explicando.
Quer a actuação da arguida BB em relação ao arguido AA …, quer a actuação do arguido AA em relação à arguida BB …, não podem deixar de revelar inegável cariz atentatório da dignidade humana, assumindo, qualquer uma delas, uma configuração global de desrespeito pela pessoa do outro com elas visada, por delas se evidenciar um estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal de cada um dos visados, suceptíveis de pôr em perigo ou de ameaçar, seriamente, a saúde e o bem-estar físico e psíquico dos mesmos.
O estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal de cada um deles enquanto vítima da actuação do outro, não tem, necessariamente, de resultar da existência de domínio ou de subjugação de um em relação ao outro quando, com a sua actuação, um deles visa o outro.
Esse estado de degradação, enfraquecimento, ou aviltamento da dignidade pessoal de cada um deles pode também resultar, como se nos afigura acontecer no caso em vertente, da configuração global da concreta actuação de cada um em relação ao outro, indissociável da relação análoga à dos cônjuges, à data, entre eles existente.
Vejamos, agora, se a circunstância de, quer um, quer outro, dos arguidos assumirem, quer a qualidade de agressor quer a de vítima, impede ou não que se tenham por verificados, em relação à concreta conduta de cada um deles descrita na acusação, os elementos constitutivos – objectivos e subjectivos – do crime de violência doméstica que lhes vem imputado.
A primeira observação a fazer é a de que não se descortina nos comportamentos de cada um dos arguidos descritos na acusação que as situações que os envolvem tenham ocorrido na sequência umas das outras, antes, pelo contrário, o circunstancialismo de tempo, modo e lugar que rodeia, pelo menos algumas das situações neles contempladas, leva até a crer que estas se mostram desfasadas no tempo.
Tanto assim que, vindo alegado, em sede de instrução, pela arguida BB, que a sua conduta surge no contexto de uma relação conturbada “ e sempre que era confrontada com atos agressivos por parte do arguido se limitava a defender-se “ – ponto 17º do RAI - o tribunal recorrido, admitindo, embora, indiciar-se a existência de episódios de conflito e confronto entre a mesma e o arguido, não considerou indiciado que os comportamentos da arguida BB que vêm descritos na acusação tivessem ocorrido no circunstancialismo de modo por ela alegado, ou seja, surgidos sempre que era confrontada com atos agressivos por parte do arguido e que deles se limitava a defender-se.
Doutra parte, também não resulta da descrição fáctica feita na acusação e tida por indiciada que o comportamento nela imputado ao arguido AA se insira num contexto de resposta ou reacção ao comportamento nela imputado à arguida BB em que aquele é visado.
Pelo que, no contexto fáctico que assim emerge dos autos, se nos afigure apresentarem-se ambos os arguidos como agressores em momentos divergentes, posto que nas ocasiões descritas na acusação apenas um deles se apresenta como vítima, e, nessa medida, discordamos do entendimento sufragado na decisão recorrida quando nela se refere a respeito dos comportamentos dos arguidos que nestes não se identifica, nem se distingue, um como vítima e o outro como agressor.
Admitindo, embora, que tal entendimento do Tribunal recorrido possa valer para aquelas situações em que se esteja perante actos agressivos recíprocos na mesma ocasião e com igual ou idêntica gravidade, e, não por serem recíprocos, mas, por o fundamento do ilícito penal (o bem jurídico) protegido com o crime de violência doméstica não estar a ser afectado, por não se se poder considerar estar a ser afectada a dignidade humana de um perante o outro, ambos capazes e portadores da mesma (in)dignidade, poder justificar que o direito não deva nesse confronto proteger qualquer dignidade, a verdade é que tal asserção não encontra essa razão de ser no complexo fáctico que se indicia nos autos.
Como se perfilha no Ac. do TRP, de 16.03.2022, disponível in www.dgsi.pt, a respeito do crime de violência doméstica que nele se desenhava ”A reciprocidade das agressões como forma de desconsideração da tipicidade, só serão de atender quando no curso dos episódios se desfaz a polaridade agressor-vítima, e assim a intenção de domínio e de humilhação de um deles sobre o outro “.
In casu, pelo menos em relação a alguns dos episódios que integram quer o comportamento do arguido, quer o comportamento da arguida, que se mostram indiciados mantém-se, perfeitamente perceptível, a polaridade agressor – vítima, ao contrário do que se decidiu no despacho recorrido.
Daí que, com fundamento na reciprocidade dos comportamentos dos arguidos, não possa nesta fase da instrução do processo sustentar-se a desconsideração da tipicidade do crime de violência doméstica por que se mostram acusados.
Pelo exposto, deve proceder o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que pronuncie os arguidos pelos factos e pela incriminação que lhes vem imputada na acusação deduzida nos autos.
Em face do exposto, acordam os juízes desta Relação em:
1. Conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente, revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que pronuncie os arguidos pelos factos e pela incriminação que lhes vem imputada na acusação deduzida nos autos.
2. Sem custas.
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( Texto elaborado pela relatora e revisto por todos os signatários – art. 94º, nº2 do CPP )
(Maria José Guerra – relatora)
(Teresa Coimbra - 1ª adjunta )
(Rosa Pinto – 2ª adjunta)