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DIREITO DE PREFERÊNCIA
LEGITIMIDADE SUBSTANTIVA
TRANSMISSÃO OU CONSTITUIÇÃO DE DIREITOS REAIS
ARRENDATÁRIO
PRÉDIO URBANO
PROPRIEDADE HORIZONTAL
LOCADO
Sumário
1. No direito substantivo, o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo. 2. Uma vez invocada no âmbito do próprio processo, a legitimidade substantiva é analisada a posteriori, como questão controvertida, constituindo, por conseguinte, um requisito de procedência do pedido formulado pelo autor na petição inicial e esgrimido pelo réu na sua contestação. 3. Uma decisão do tribunal que incida sobre a falta de legitimidade substantiva determinará a absolvição do réu do pedido, isto é, a decisão judicial que venha a ser proferida sobre a existência ou não de legitimidade substantiva constituirá uma decisão de mérito da causa e não uma decisão formal. 4. Como pressuposto processual geral, ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjetivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão e o pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o. 5. Para aferir da legitimidade processual das partes, o julgador tem apenas que atentar na relação material controvertida tal como o autor a apresenta na petição inicial para, em face dela, verificar se ele e o réu são sujeitos com interesse direto, o primeiro em demandar, e o segundo em contradizer, não importando: - saber se essa relação é verídica ou não; - indagar da posição que o réu sobre ela venha a assumir; - considerar a relação que tenha resultado da discussão da causa, pois que esta vai interessar antes para o conhecimento de mérito. 6. A transmissão ou constituição de direitos reais, opera, em regra, por mero efeito do contrato de compra e venda, implicando a expressão “mero efeito do contrato”, constante do n.º 1 do art. 408.º CC, que a transferência ou constituição de direitos reais não está na dependência da tradição da coisa ou do imediato pagamento do preço, enquanto efeitos obrigacionais da compra e venda. 7. Na apreciação do direito de preferência do arrendatário de prédio urbano com diversos espaços de locação, mas sem estar constituído em propriedade horizontal, é aplicável a lei reguladora daquele direito em vigor à data da celebração do ato de alienação, pois tal direito configura uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que só a prática do negócio translativo da propriedade sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo. 8. Face ao teor do art. 1091.º, n.º 1, al. a), do CC, reescrito pela Lei n.º 6/2006, de 27.02, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada, ou seja, aquele normativo não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano indiviso ou não constituído em propriedade horizontal.
Texto Integral
Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – RELATÓRIO:
Autores i
1. F, Lda.;
2. BAP;
3. IMA;
4. HC, e sua filha, AM;
5.MEPR;
Autores II
6. AMOS;
7. MLGS;
8. AVM;
9. ACG;
10. JDG;
11. PMF;
12. ASM, casada com AJM,
instauraram, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Cível de Lisboa, onde foi distribuída pelo Juiz __, a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra:
F – Companhia de Seguros, SA[1]; e,
N, Unipessoal, Lda.[2],
pedindo que a ação seja «julgada provada e procedente», devendo, em consequência, «as RR ser condenadas:
a) A ver determinado, como preço efectivo de venda de cada um dos imóveis dos autos, para efeitos da acção de preferência a intentar, aquele que resultar da análise dos documentos cuja junção, por parte das RR, ora se requer, para efeitos do disposto nos art.ºs 416.º a 418.º e 1410.º do CC;
b) Na declaração de nulidade dos contratos de compra e venda constantes dos Documentos 2 e 4 supra, por violação das normas legais imperativas constantes dos art.ºs 416.º a 418.º e 1410.º do CC e art.º 7.º do CIMT, nos termos do disposto no art.º 294.º do CC.»
Alegam, para o efeito, e em síntese, que:
- Os Autores I (n.ºs 1 a 5) são o conjunto de inquilinos dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Rua do FT, n.ºs ____, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ____ da Freguesia de A, Concelho de Lisboa, o qual é, hoje, propriedade da N, após o ter adquirido à F por escritura outorgada no dia 29/08/2018;
- Os Autores II (n.ºs 6 a 12) são o conjunto de inquilinos dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Av.ª MM, n.º __, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ___ da Freguesia do A, Concelho de Lisboa, o qual é, hoje, propriedade da N, após o ter adquirido à F por escritura outorgada no dia 31/08/2018;
- Os dois imóveis supra identificados encontram-se em regime de propriedade total, sendo constituídos por andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, as quais se encontram locadas aos autores;
- Suspeitam os autores que os valores atribuídos aos imóveis alienados pelas escrituras de 29/08/2018 e 31/08/2018 são ficcionados, e que essa ficção apenas teve como objetivo criar mais um obstáculo a que os autores pudessem vir a juízo reclamar e exercer o direito de preferência que se arrogam;
- Na medida em que, por força do disposto no art.º 1410.º do Código Civil, teriam de caucionar valores exorbitantes e irreais (tanto na perspetiva do negócio em causa, como na do mercado em geral);
- Essa distorção da realidade, caso se comprove, é gravemente lesiva dos direitos e interesses que os autores pretendem salvaguardar, em ação de preferência a intentar, na medida em que lhes imporia um esforço financeiro, para conseguir adquirir os imóveis dos autos, muito superior àquele que resultaria dos correspondentes valores efetivamente considerados pelas rés, na montagem do negócio, pelo que se impõe a verificação destes valores e a determinação de que serão esses os que deverão ser considerados como preço de alienação dos edifícios dos autos, em sede da oportuna ação de preferência;
- Os autores têm as mais fortes e fundadas suspeitas de, em ambas estas escrituras públicas de compra e venda, se ter incorrido em violação do disposto nos números 2 e 3 do art.º 7.º do CIMT, em virtude de não ter sido liquidado e pago o imposto, apesar de a sociedade compradora não ter comprovado o exercício da sua atividade no ano anterior.
*
Validamente citadas:
I – veio a 2.ª ré apresentar exageradamente extensa e prolixa contestação, composta por 324 (trezentos e vinte e quatro) artigos, além da respetiva parte dispositiva, articulado no qual:
a) argui a exceção dilatória consistente na nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, em consequência de os pedidos formulados pelos autores serem substancialmente incompatíveis entre si;
b) argui a exceção dilatória consistente na falta interesse processual ou interesse em agir dos autores;
c) argui a exceção perentória consistente no abuso de direito de ação dos autores;
d) invoca a ilegitimidade substantiva dos autores com fundamento:
- na inexistência do seu alegado direito de preferência;
- na inaplicabilidade da Lei n.º 64/2018, de 20.10;
- na natureza una e indivisível da transação celebrada entre as rés.
No mais, defende-se por impugnação, em grande parte motivada.
Conclui assim:
«Nestes termos, e nos mais de direito aplicável:
a) Deverá ser julgada procedente a excepção de ineptidão da Petição Inicial por contradição entre os pedidos nela formulados e, por via disso, ser declarado nulo todo o processo;
Subsidiariamente, para o caso de assim não se entender - o que não se concede e só por mera cautela de patrocínio se equaciona -,
b) Deverá ser julgada procedente a exceção dilatória de falta de interesse em agir dos AA. e, em consequência, deverá a 2.ª Ré ser absolvida da instância;
Subsidiariamente, para o caso de assim não se entender - o que não se concede e só por mera cautela de patrocínio se equaciona -,
c) Deverão ser as exceções perentórias acima deduzidas julgadas procedentes por provadas e sempre deverá ser julgada a ação totalmente improcedente, por não provada, e, em consequência, ser a 2.ª Ré integralmente absolvida dos pedidos formulados pelos AA.»
II – veio a 1.ª ré apresentar contestação, na qual declara «aderir à contestação apresentada pela ré N, Unipessoal, Lda., reproduzindo, integralmente, os factos ali alegados nos seus exatos termos.»
Conclui assim:
«Nestes termos (...):
a) Deverá ser declarada a ineptidão da Petição Inicial por contradição entre os pedidos nela formulados, com a consequente nulidade de todo o processo;
Subsidiariamente, para o caso de assim não se entender – o que apenas se admite a benefício de raciocínio e sem nunca conceder -,
b) Deverá ser julgada procedente a exceção dilatória de falta de interesse em agir e, em consequência, deverá a 1ª Ré ser absolvida da instância;
Subsidiariamente, para o caso de assim não se entender – o que apenas se admite a benefício de raciocínio e sem nunca conceder –
c) Deverão ser as exceções perentórias deduzidas julgadas procedentes por provadas e ser julgada a acão totalmente improcedente por não provada e, em consequência, ser a 1ª Ré integralmente absolvida dos pedidos formulados pelos Autores;
d) Em qualquer caso, deve a presente ação ser considerada totalmente improcedente por não provada, condenando-se ainda os Autores no pagamento das custas judiciais e demais legais consequências daí decorrentes;
e) Por fim, deverá ser indeferido o requerimento dos Autores no sentido de ser ordenado às Rés a junção aos autos dos documentos indicados na parte final da Petição Inicial.»
*
Por despacho datado de 25 de setembro de 2019, o senhor juiz a quem o processo foi inicialmente distribuído:
- fixou à causa o valor de 9.928.269,29[3];
- julgou o Juízo Local Cível do Tribunal da Comarca de Lisboa, incompetente, em razão do valor, para preparar e julgar a presente ação, considerando competente para o efeito o Juízo Central Cível do mesmo Tribunal, para onde determinou a remessa dos autos.
*
Remetidos os autos ao Juízo Central Cível de Lisboa – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, onde foram distribuídos pelo Juiz _, foi ordenada a notificação dos autores para se pronunciarem sobre as exceções deduzidas pelas rés.
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Os autores responderem às exceções arguidas pelas rés, pugnando pela improcedência das mesmas.
*
Em seguida foi proferido despacho-saneador, do qual consta, além do mais, o seguinte:
«Conclui-se, portanto, que o pedido de declaração de nulidade dos contratos de compra e venda é substancialmente incompatível com o pedido de determinação do preço da venda.
Tal incompatibilidade substancial acarreta, como disposto na al. c) do nº2 do art.º 186º do Código de Processo Civil, a ineptidão da petição. Sendo inepta a petição, é nulo todo o processo, (art.º 186º nº 1 do CPC),
Destarte, absolvem-se as rés F – Companhia de Seguros, SA e N, Unipessoal, Lda da instância, (art.º 186º nº2 al. c) e 278º nº1 al. b) do CPC).»
*
Inconformados, os autores recorreram dessa decisão.
*
O acórdão desta Relação e Secção, datado de 28 de setembro de 2021, julgou procedente o recurso interposto pelos autores e revogou a «decisão recorrida que concluiu pela ineptidão da petição inicial e absolveu as RR. da instância.»
*
Na subsequente tramitação dos autos, realizou-se a audiência prévia, onde, no dia 9 de dezembro de 2022, foi proferido saneador-sentença, de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Destarte, julga-se não procedente o pedido, dele se absolvendo as rés.»
*
Inconformados, os autores interpuseram o presente recurso de apelação, concluindo assim as respetivas alegações:
«A - A douta Sentença recorrida julgou improcedente o pedido formulado pelos AA, em virtude de estes não serem titulares de direito de preferência sobre a alienação dos imóveis dos autos, segundo a redacção dada ao art.º 1091.º CC pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, que considerou ser a aplicável, pelo que não lhes assistiria o direito de demandar as RR com vista a ver apurado o preço efectivo da transacção daqueles imóveis (cfr. pág. 22 da douta Sentença recorrida).
B - Embora colocada sob as vestes de uma decisão do mérito da causa, o que esta apreciação feita pela douta Sentença recorrida opera é uma apreciação da qualificação jurídica dos AA, perante o objecto da causa, com vista a apurar se são titulares de direito que possa ser acautelado nestes autos, o que constitui questão atinente à verificação da legitimidade processual dos AA, como definida pelo art.º 30.º CPC.
C - Além de os AA serem, de facto, titulares do direito que visam acautelar e por isso lhes ser útil a procedência desta acção, facto é que os aspectos relacionados com a legitimidade das Partes já antes haviam sido decididos por esta mesma douta Sentença recorrida, designadamente na sua pág. 14, onde se considerou verificada a legitimidade das Partes, pelo que ocorre oposição frontal entre a primeira decisão e os fundamentos expostos para a segunda decisão, que torna a douta Sentença recorrida obscura e ininteligível, para os efeitos do disposto no art.º 615.º, n.º 1 c) CPC.
D - Com efeito, não faz qualquer sentido dizer, simultaneamente, que os AA têm interesse directo em demandar, porque da procedência da acção podem retirar a utilidade que prosseguem e que não têm o direito de demandar as RR para obter o que peticionam.
E – À data da prolacção da douta Sentença recorrida, das duas uma, ou os autos revelavam uma certa posição dos AA face ao objecto da causa, que lhes permitisse dispor da situação jurídica que prosseguem e obter vantagem da procedência da acção, o que os torna Parte legítima como se decidiu a pág. 14, ou nem sequer são titulares de direito que lhes confira alguma posição face ao objecto da causa, pelo que nem podem prosseguir a situação jurídica que expõem, como se decidiu a pág. 22, e então, afinal, não seriam Parte legítima e a relação jurídica processual nem se poderia ter constituído, por falta desse pressuposto.
F - A douta Sentença recorrida assenta a sua apreciação de inexistência, na esfera jurídica dos AA, do direito de preferência que se arrogam, sobre a premissa de ser esse o sentido da redacção da alínea a) do n.º 1 do art.º 1091.º CC vigente à data da outorga das escrituras de compra e venda e de a esse negócio ser inaplicável o estatuído pela Lei n.º 64/2018, de 29/10, apesar de ainda estar em curso o cumprimento da obrigação de pagamento do preço, aquando da entrada em vigor desta Lei, uma vez que o efeito de translação da propriedade já ocorrera na data da referida outorga das escrituras.
G - Tendo em conta que a execução desse mesmo negócio (seja na outorga de escrituras de compra e venda ou no pagamento dos respectivos preços, como decorre do declarado no Doc. 5 da PI e nas próprias escrituras de compra e venda, juntas posteriormente) ainda estava pendente, pelo menos, no dia 30/10/2018, então esse negócio cai sob a alçada do estatuído pela Lei n.º 64/2018, de 29/10, designadamente a alteração da redacção do art.º 1091.º do CC por ela introduzida, que expressamente afasta a aplicabilidade do disposto na parte final do n.º 1 do art.º 417.º do CC, nos termos pretendidos pelas RR, e consagra o direito de preferência de inquilino habitacional em imóvel sob o regime de propriedade total.
H – A respeito da alínea a) do n.º 1 do art.º 1091.º CC, na redacção vigente até 30/10/2018, duas teorias se defrontavam, na doutrina e na jurisprudência: a teoria expansionista (que subscrevemos) e a teoria do local. Segundo a teoria expansionista, o direito de preferência legalmente conferido ao locatário tanto pode incidir, segundo as circunstâncias do negócio projectado e/ou da configuração jurídica do edifício em causa, sobre o espaço locado como sobre a totalidade do edifício (relativamente ao qual o locado não tenha autonomia jurídica). Segundo a teoria do local, o direito de preferência legalmente conferido ao locatário apenas pode ser exercido sobre o concreto espaço locado – a menos que o senhorio ofereça, ao arrendatário de uma fracção autónoma, a preferência para a aquisição da totalidade do edifício- ficando inviabilizado esse exercício nos casos de venda da totalidade de edifício em regime de propriedade total, relativamente aos arrendatários de espaços nele contidos.
I - Observa-se a estranheza de um direito que a lei confere a determinada pessoa ver a possibilidade do seu exercício (que não a sua existência) condicionada por acto exclusivamente imputável a um terceiro. Depois, anota-se a curiosidade de esta teoria do local apenas admitir, como excepção à delimitação espacial do direito de preferência que opera, a decorrência da vontade do obrigado à preferência (oferecer a preferência sobre a venda da totalidade do prédio), independente da letra da lei ou da vontade do sujeito do direito.
J - O ponto essencial da fundamentação da teoria do local é o de o arrendatário de determinado espaço, sito em edifício não sujeito ao regime de propriedade horizontal, ter o seu direito de preferência limitado a um objecto que não tem autonomia jurídica passível de o qualificar como coisa e de possibilitar a realização de negócio jurídico que a tenha por objecto, enquanto não tem direito de preferência sobre a venda da totalidade desse edifício, porquanto o mesmo extravasa o objecto do seu direito, não sendo lícito conferir-lhe a faculdade de adquirir a totalidade do edifício, quando apenas é arrendatário de uma parte.
K - No caso destes autos essa objecção não tem cabimento, na medida em que todos os inquilinos de cada um dos 2 edifícios se propõem, conjuntamente, adquirir o edifício em que são arrendatários, desse modo assegurando a coincidência de objecto físico entre o conjunto de direitos de preferência a exercer e o bem imóvel a transacionar. Deste modo, mesmo segundo a supra descrita teoria do local, para a interpretação do disposto na alínea a) do n.º 1 do art.º 1091.º do CC, o conjunto dos ora AA vê enquadrada na letra da lei a sua pretensão aquisitiva.
L - Apesar de o negócio de compra e venda ajustado pelas RR se ter iniciado anteriormente, a sua pendência após o dia 30/10/2018 submete-o ao comando da nova redacção do art.º 1091.º do CC introduzida pela Lei n.º 64/2018, de 29/10 – que confere ao arrendatário habitacional em imóvel sob o regime de propriedade total o direito de preferência sobre a alienação do locado – por força do disposto na parte final do n.º 2 do art.º 12.º do CC.
M - Não pode, pois, subsistir qualquer dúvida de que, apesar de os edifícios dos autos não se encontrarem constituídos sob o regime de propriedade horizontal, aos AA é conferido o direito de preferência sobre a alienação dos mesmos edifícios ou, até, do locado que habitam. Por isso, tanto antes como depois do dia 30/10/2018, os AA gozam de direito de preferência sobre as alienações dos edifícios dos autos, sob pena de, num negócio que as RR reputam de uno e indivisível, os inquilinos de imóveis alienados por escrituras públicas outorgadas até 30/10/2018 estarem sujeitos a um regime legal e os de imóveis alienados por escrituras públicas outorgadas após essa data estarem sujeitos a regime legal diverso.
N - E não se diga que a circunstância de as específicas escrituras públicas de compra e venda dos autos terem sido outorgadas a 29 e 31/08/2018, as subtrai ao regime estatuído pela Lei n.º 64/2018, de 29/10. Primeiro, porque tal seria contraditório com a alegada unidade e indivisibilidade do negócio projectado pelas RR, o qual ainda se encontrava pendente de execução no dia 30/10/2018.
O - Segundo, porque, segundo o disposto no art.º 874.º CC, tanto a transmissão da propriedade como o pagamento do preço são elementos constituintes do contrato de compra e venda e indispensáveis para a sua perfeição, o que se corrobora pelo elenco de efeitos essenciais desse contrato constante do art.º 879.º CC, onde o pagamento do preço surge a par da translação da propriedade e da entrega da coisa, evidenciando que o negócio permanece incompleto enquanto algum desses efeitos essenciais não se verifica.
P – Mas também porque a dita Lei n.º 64/2018 tem caracter interpretativo ou clarificador, para os efeitos previstos no art.º 13.º do CC, como se refere na exposição de motivos do Projecto de Lei n.º 848/XIII (3.ª), que originou a Lei n.º 64/2018.
Q - Assim, dúvidas não restam de aos AA assistir o direito de preferência sobre as alienações dos imóveis dos AA, pelo que a douta Sentença recorrida incorre, por erro de aplicação, no vício de violação do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, 874.º, 879.º e 1091.º CC, este último tanto na redacção conferida pela Lei n.º 6/2006, de 27/02 como na redacção conferida pela Lei n.º 64/2018, de 29/10.» Conforme refere Rui Pinto, «depois de formular conclusões, o recorrente termina deduzindo um pedido de revogação, total ou parcial, de uma decisão judicial.»[4].
No presente recurso, após a formulação das conclusões as apelantes deduzem o seguinte pedido revogatório:
«Nestes termos e nos mais de Direito, cujo douto suprimento de V. Exas. se espera e invoca, deve a douta Sentença recorrida ser revogada, por força da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1 c) CPC e por violação do disposto nos artigos 12.º, n.º 2, 874.º, 879.º e 1091.º CC, este último tanto na redacção conferida pela Lei n.º 6/2006, de 27/02 como na redacção conferida pela Lei n.º 64/2018, de 29/10, determinando-se o prosseguimento dos autos até final.»
*
Em contra-alegações a 2.ª ré respondeu ao recurso interposto pelos autores e requereu, subsidiariamente, a ampliação do âmbito do mesmo, concluindo assim:
«i. DO EFEITO DO RECURSO
A. Contrariamente ao que sustentam os Autores, o presente recurso não está sujeito ao artigo 647.º, n.º 3, alínea b), do CPC, dado que a ação, tal como configurada pelos Autores, não versa sobre qualquer uma das matérias previstas naquele preceito.
B. Rectius, a ação visa única e exclusivamente a determinação de um suposto “preço efetivo” de venda dos Imóveis, e a declaração de nulidade dos contratos de compra e venda dos Imóveis, os quais nem sequer contendem com os arrendamentos dos Autores (sendo ainda de referir que vários desses arrendamentos não têm sequer uma finalidade habitacional).
C. Pelo que se conclui que ao presente recurso de apelação deverá ser atribuído efeito meramente devolutivo, nos termos do artigo 647.º, n.º 1, do CPC.
ii. RESPOSTA AO RECURSO INTERPOSTO PELOS AUTORES
DA SUPOSTA NULIDADE DA SENTENÇA
D. A Sentença afigura-se válida e devidamente fundamentada, não enfermando de qualquer tipo de contradição que a torne obscura ou ininteligível. Pelo contrário, a mesma terá feito uma interpretação congruente dos conceitos de legitimidade processual e substantiva, que não se confundem.
E. Com efeito, uma coisa é os Autores descreverem na sua petição inicial que são titulares de um direito de preferência na venda dos Imóveis transacionados entre as Rés, caso em que o Tribunal – no âmbito do saneamento do processo – se pronunciará pela legitimidade processual das partes. Outra, bem distinta, é a de saber se os Autores são efetivamente titulares do direito de preferência a que se arrogam na sua petição inicial, questão que já implica um juízo sobre o mérito da causa, e que diz respeito à sua legitimidade substantiva.
F. Tratam-se, assim, de dois juízos distintos, que não encerram qualquer tipo de contradição ou ambiguidade que comprometa a validade da Sentença, pelo que deverá ser julgada improcedente a nulidade arguida pelos Autores.
DA IMPROCEDÊNCIA DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO
G. O motivo pelo qual os Autores não foram notificados para preferir na compra e venda dos Imóveis prende-se com o facto de aqueles não serem titulares de qualquer direito legal de preferência, com base nas disposições legais aplicáveis (nomeadamente o artigo 1091.º, n.º 1, do CC).
H. É que ao abrigo da lei em vigor à data em que os Imóveis foram transmitidos à 2.ª Ré (i.e., 29 e 31 de agosto de 2018), aos arrendatários de prédios não constituídos em propriedade horizontal – como é o caso dos Autores – não era reconhecido qualquer direito de preferência, quer relativamente à parcela do imóvel correspondente ao seu locado, quer sobre a totalidade do imóvel.
I. Esta era e continua a ser a orientação unânime dos nossos Tribunais superiores, a qual deverá ser reiterada no presente recurso. A tal não obstará, de resto, a circunstância de os Autores se proporem a adquirir conjuntamente os Imóveis, dado que (i) esse tipo de situação não constitui uma ressalva à orientação pacífica dos tribunais superiores; (ii) os Autores não ocupam sequer a totalidade do espaço locável dos Imóveis, e antes correspondem a uma minoria; (iii) ainda que se admitisse um suposto direito de preferência “conjunto” a favor dos Autores – o que não se concede – o mesmo sempre teria de ser exercido em relação a todo o portfólio imobiliário.
J. Noutro plano, constata-se que a Lei n.º 64/2018, e as soluções nela consignadas em matéria de direitos de preferência, não poderão em caso algum ser aplicadas à venda dos Imóveis.
K. Em primeiro lugar, constitui facto público e notório que o normativo em que os Autores fundam a sua pretensão – i.e., o artigo 1091.º, n.º 8, do CC, aditado pela Lei n.º 64/2018 – foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral pelo Tribunal Constitucional (cfr. Acórdão n.º 299/2020, de 18 de setembro), pelo que nunca poderia ser aplicável ao caso sub judice. A este respeito, entende-se ainda que o juízo do Tribunal Constitucional afetará também qualquer hipótese de aplicabilidade do artigo 1091.º, n.º 9, do CC, visto que tal aplicabilidade está intrinsecamente condicionada à vigência do artigo 1091.º, n.º 8 (na medida em que faz referência aos “direitos de preferência” que foram consagrados neste último preceito).
L. Fora isso, são vários os motivos que sempre afastariam a aplicação desta solução legal ao caso que se discute nos presentes autos, fazendo-se particular referência aos seguintes:
(i) O direito de preferência da Lei n.º 64/2018 apenas se aplicaria a arrendatários habitacionais, excluindo os autores cujos arrendamentos não têm essa finalidade;
(ii) Os contratos de compra e venda dos Imóveis produziram os seus efeitos translativos antes da entrada em vigor da Lei n.º 64/2018, pelo que não se poderão sujeitar a esse diploma legal (sendo antes regidos pela lei vigente à data em que as partes acordaram os seus termos e condições e celebraram o negócio);
(iii) A isto não obsta a circunstância de a venda ser una e indivisível, visto que tal natureza não contende com a natureza instantânea dos concretos atos de transmissão dos Imóveis, que ocorreram antes da entrada em vigor da Lei n.º 64/2018. Só este entendimento seria, aliás, consentâneo com os mais basilares princípios do Estado de Direito, que vedam a aplicação retroativa deste diploma a uma venda que já produziu o seu efeito translativo.
(iv) Por outro lado, mesmo que se pugnasse pela aplicação da Lei n.º 64/2018 a esta transação com fundamento na sua unicidade e indivisibilidade, tal implicaria que os Autores apenas poderiam preferir em relação à totalidade do portfólio imobiliário (e não apenas quanto aos Imóveis).
(v) Finalmente, é evidente que a Lei n.º 64/2018 não tem natureza interpretativa (mas sim inovatória), porquanto veio consagrar um direito de preferência totalmente novo a favor de arrendatários de locados inseridos em prédios não constituídos em propriedade total (direito esse que não existia antes dessa solução legal, como se reconhece na própria exposição de motivos que presidiu à sua elaboração).
iii. AMPLIAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
M. Embora a ação tenha sido julgada totalmente improcedente e as Rés Recorridas absolvidas do pedido, a 2.ª Ré pretende acautelar a hipótese – que não se concede e que apenas por cautela de patrocínio se equaciona – de o Tribunal ad quem julgar procedentes as questões suscitadas no recurso interposto pelos Autores.
N. Assim, a título subsidiário, ao abrigo do artigo 636.º, n.º 1, do CPC, a 2.ª Ré vem ampliar o objeto do recurso interposto pelos Autores para requerer a V. Exas. que conheçam de um fundamento de defesa que não foi atendido pelo Tribunal a quo, a saber, a exceção de falta de legitimidade ativa e interesse em agir dos Autores, que sempre conduziria à absolvição das Rés da instância.
O. Com efeito, para além de se mostrar pacífico que aos Autores não assiste qualquer direito de preferência na venda dos Imóveis, haverá que ter em conta que, no dia 26 de maio de 2022, ocorreu um novo facto que determina que quaisquer eventuais direitos de preferência que os Autores pudessem vir a sustentar se encontram irremediavelmente perdidos, por caducidade do direito de ação.
P. Trata-se, pois, do trânsito em julgado do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 4527/19.2T8LSB.L1.S1, que rejeitou a revista do acórdão proferido pela Relação de Lisboa, a qual, mantendo a decisão de 1.ª instância, julgou procedente a caducidade do direito de ação, e absolveu as ora (e aí) Rés do pedido, por falta de depósito do preço.
Q. Ora, o facto de existir esta ação de preferência anterior – em sede da qual transitou em julgado uma decisão de mérito que decretou a caducidade do direito de ação dos Autores (e absolveu as Rés do pedido) – constitui pressuposto essencial no caso sub judice e impõe-se como autoridade de caso julgado, maxime porque a titularidade desse direito de ação foi configurada pelos Autores como fundamento da sua legitimidade ativa nestes autos (cfr. artigo 33.º da petição inicial), e, portanto, questão prejudicial que não podia ser desconsiderada pelo Tribunal de 1.ª instância.
R. Pelo contrário, o que o Tribunal a quo deveria ter concluído é que, com o trânsito em julgado e consolidação na ordem jurídica da decisão de caducidade do direito de ação, os Autores deixaram de poder obter qualquer utilidade com a procedência da presente demanda, pelo que são partes ilegítimas e desprovidas de interesse em agir.
S. Salvo melhor opinião, qualquer entendimento contrário violaria o princípio do caso julgado e os mais elementares valores de segurança jurídica, na medida em que o trânsito em julgado de uma decisão de mérito que julgue procedente a exceção de caducidade de direito de ação dos Autores (seja qual for o motivo) sempre terá de implicar a extinção irremediável desse direito de ação, precludindo a possibilidade de os Autores virem de novo a juízo tentar fazer valer um suposto direito de preferência venda dos Imóveis.
T. Por fim, refira-se que a Sentença do douto Tribunal a quo – tendo, por um lado, julgado improcedentes as exceções aduzidas pela 2.ª Ré, e, por outro, declarado que os Autores não são titulares de qualquer direito de preferência – incorreu numa incongruência que só dá razão à tese da ilegitimidade ativa e falta de interesse em agir. Com efeito, de nada servirá viabilizar a instauração de novas ações de preferência por parte dos Autores, para depois, na mesma decisão, se sustentar que estes não gozam de qualquer direito de preferência.
U. O Tribunal a quo desconsiderou que a própria autoridade de caso julgado da sua própria decisão sempre obrigaria a que, no quadro de uma nova ação de preferência, aos Autores não fosse reconhecido qualquer direito de preferência (porquanto só assim se evitaria uma contradição de julgados).
V. Em face do exposto, deverá ser alterada a decisão recorrida, na parte que julgou improcedente a exceção de ilegitimidade ativa e falta de interesse em agir, e, consequentemente, devem as RR. ser absolvidas da instância.»
Remata assim:
«Termos em que, (...), deve:
a) Ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto pelos Recorrentes, mantendo-se a douta Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância;
Subsidiariamente, e sem conceder,
b) Ser admitida e julgada procedente a ampliação do objeto do recurso requerida pela 2.ª Ré, devendo julgar-se procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa e, em consequência, serem as RR. absolvidas da instância.
Assim se se fazendo a costumada justiça.»
*
A 1.ª ré declarou aderir, na íntegra, às contra-alegações da 1.ª ré e aderiu à ampliação do objeto do recurso.
Remata assim:
«Nestes termos, e nos mais de Direito (...), deve o recurso interposto pelos Recorrentes ser rejeitado, mantendo-se a douta Sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.
Mais se requer seja admitida e julgada procedente a ampliação do objeto do recurso requerida pelas Rés Recorridas, devendo julgar-se procedente a exceção dilatória de ilegitimidade ativa e, em consequência, serem as RR. absolvidas da instância.
Só assim se fazendo JUSTIÇA.»
***
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal “ad quem” possa ou deva conhecer “ex officio”, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art. 639.º, n.º 1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art. 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art. 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, “ius novarum”, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal “a quo” (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art. 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art. 608.º, n.º 2, “ex vi” do art. 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
a) da nulidade do despacho saneador-sentença;
b) do direito de preferência:
- dos Autores I na aquisição do primeiro dos imóveis acima identificados;
- dos Autores II na aquisição do segundo dos imóveis acima identificados;
c) subsidiariamente, relativamente à questão enunciada em b),
- da exceção dilatória consistente na ilegitimidade ativa dos autores para os termos da ação.
***
III - FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
O saneador-sentença recorrido considerou provado que:
«1. Os AA I (n.ºs 1 a 5) são o conjunto de inquilinos dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Rua do FT, n.ºs ____, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ____ da Freguesia de A, Concelho de Lisboa, o qual é, hoje, propriedade da N, após o ter adquirido à F por escritura outorgada no dia 29/08/2018.
2. Os AA II (n.ºs 6 a 12) são o conjunto de inquilinos dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Av.ª MM, n.º __, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ___ da Freguesia do A, Concelho de Lisboa, o qual é, hoje, propriedade da N, após o ter adquirido à F por escritura outorgada no dia 31/08/2018.
3. Os dois imóveis supra identificados encontram-se em regime de propriedade total (não constituídos em regime de propriedade horizontal), sendo constituídos por andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, as quais se encontram locadas aos AA.»[5].
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3.2 – Fundamentação de direito:
3.2.1 – Da nulidade do saneador-sentença recorrido:
Afirmam os apelantes que o saneador-sentença recorrido «julgou improcedente o pedido formulado pelos AA, em virtude de estes não serem titulares de direito de preferência sobre a alienação dos imóveis dos autos, segundo a redacção dada ao art.º 1091.º CC pela Lei n.º 6/2006, de 27/02, que considerou ser a aplicável, pelo que não lhes assistiria o direito de demandar as RR com vista a ver apurado o preço efectivo da transacção daqueles imóveis (cfr. pág. 22 da douta Sentença recorrida).
Embora colocada sob as vestes de uma decisão do mérito da causa, o que esta apreciação feita pela douta Sentença recorrida opera é uma apreciação da qualificação jurídica dos AA, perante o objecto da causa, com vista a apurar se são titulares de direito que possa ser acautelado nestes autos, o que constitui questão atinente à verificação da legitimidade processual dos AA, como definida pelo art.º 30.º CPC.
Além de os AA serem, de facto, titulares do direito que visam acautelar e por isso lhes ser útil a procedência desta acção, facto é que os aspectos relacionados com a legitimidade das Partes já antes haviam sido decididos por esta mesma douta Sentença recorrida, designadamente na sua pág. 14, onde se considerou verificada a legitimidade das Partes, pelo que ocorre oposição frontal entre a primeira decisão e os fundamentos expostos para a segunda decisão, que torna a douta Sentença recorrida obscura e ininteligível, para os efeitos do disposto no art.º 615.º, n.º 1 c) CPC.
Com efeito, não faz qualquer sentido dizer, simultaneamente, que os AA têm interesse directo em demandar, porque da procedência da acção podem retirar a utilidade que prosseguem e que não têm o direito de demandar as RR para obter o que peticionam.
À data da prolacção da douta Sentença recorrida, das duas uma, ou os autos revelavam uma certa posição dos AA face ao objecto da causa, que lhes permitisse dispor da situação jurídica que prosseguem e obter vantagem da procedência da acção, o que os torna Parte legítima como se decidiu a pág. 14, ou nem sequer são titulares de direito que lhes confira alguma posição face ao objecto da causa, pelo que nem podem prosseguir a situação jurídica que expõem, como se decidiu a pág. 22, e então, afinal, não seriam Parte legítima e a relação jurídica processual nem se poderia ter constituído, por falta desse pressuposto.»
Nos termos da 2.ª parte da al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, «é nula a sentença quando (...) ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível.»
Conforme esclarecidamente ensinava Alberto dos Reis, «a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer, no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos.»[6].
Também de forma clara, afirma Remédio Marques que «a ambiguidade da sentença exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos», e «a obscuridade, de acordo com a jurisprudência e doutrinas dominantes, traduz os casos de ininteligibilidade da sentença.»[7].
Idêntico entendimento é o sufragado por Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, ao referirem que «o pedido de aclaração tem cabimento sempre que algum trecho essencial da sentença seja obscuro (por ser ininteligível o pensamento do julgador) ou ambíguo (por comportar dois ou mais sentidos distintos)»[8].
Uma leitura ainda que superficial e oblíqua do saneador-sentença recorrido, facilmente permite concluir que:
- o mesma não padece de qualquer ambiguidade ou obscuridade que a tornem ininteligível;
- é evidente o equívoco em que os autores (tal como as rés, aliás, na ampliação que fazem do âmbito do recurso) laboram acerca do conceito de ilegitimidade ativa.
Dispõe o art. 30.º:
«1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.»
Como é sabido, no direito substantivo, o conceito de legitimidade reporta-se à relação entre o sujeito e o objeto do ato jurídico, postulando em regra a coincidência entre o sujeito do ato jurídico e o titular do interesse por ele posto em jogo.
Uma vez invocada no âmbito do próprio processo, a legitimidade substantiva é analisada a posteriori, como questão controvertida, constituindo, por conseguinte, um requisito de procedência do pedido formulado pelo autor na petição inicial e esgrimido pelo réu na sua contestação[9].
Uma decisão do tribunal que incida sobre a falta de legitimidade substantiva determinará a absolvição do réu do pedido; de outra forma dizendo, a decisão judicial que venha a ser proferida sobre a existência ou não de legitimidade substantiva constituirá uma decisão de mérito da causa e não uma decisão formal. Como pressuposto processual geral, ou condição necessária à prolação de decisão de mérito, no direito adjetivo o mesmo conceito exprime a relação entre a parte no processo e o objeto deste (a pretensão e o pedido) e, portanto, a posição que a parte deve ter para que possa ocupar-se do pedido, deduzindo-o ou contradizendo-o.
Tal como no direito substantivo, haverá que aferir, em regra, pela titularidade dos interesses em jogo (no processo), de acordo com o critério enunciado nos n.ºs 1 e 2 do art. 30.º, ou seja, em função do interesse direto (e não indireto ou derivado) em demandar, expresso pela vantagem jurídica que resultará para o autor da procedência da ação, e do interesse direto (e não indireto ou derivado) em contradizer, expresso pela desvantagem jurídica que resultará para o réu da sua perda (ou, considerado o caso julgado material formado pela absolvição do pedido, pela vantagem jurídica que dela resultará para o réu)[10].
Ainda dentro da regra enunciada nos referidos n.ºs 1 e 2 do art. 30.º, a titularidade do interesse em demandar e do interesse em contradizer apura-se, sempre que o pedido afirme (ou negue) a existência duma relação jurídica, pela titularidade das situações jurídicas (direito, dever, sujeição, etc.) que a integram.
Há muito tempo que foi posto termo à clássica discussão no nosso direito processual civil, entre Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães, sobre se a averiguação da titularidade dos interesses (ou das situações jurídicas integradas na relação material afirmada ou negada em juízo) deve, para o apuramento da legitimidade processual, fazer-se em termos objetivos, isto é, abstraindo apenas da efetiva existência do direito ou interesse material, ou em termos subjetivos, isto é, com abstração também da sua efetiva titularidade.
Se é verdade que o legislador perfilhou a segunda tese, também cumpre referir, na esteira de Lopes do Rego[11], que o Professor Barbosa de Magalhães nunca considerou que a legitimidade das partes tenha de ser aferida sempre e apenas pelo que o autor alegue na petição que formula - mas que, na medida em que a legitimidade deva ser determinada apenas em função da titularidade da relação material controvertida, esta deve ser tomada com a configuração que lhe foi dada unilateralmente na petição inicial.
De acordo com a tese prevalecente, como bem sintetizam Lebre de Freitas / Isabel Alexandre[12], ao apuramento da legitimidade interessa apenas a consideração do pedido e da causa de pedir, independentemente da prova dos factos que integram a última[13].
A legitimidade deve, assim, ser aferida e determinada pela utilidade ou prejuízo que da procedência ou improcedência da ação possa derivar para as partes, face aos termos em que o autor configura o direito invocado e a posição que elas, considerando o pedido e a causa de pedir, assumem na relação jurídica controvertida, tal como a apresenta o autor.
O julgador, para aferir da legitimidade das partes, tem apenas que atentar na relação material controvertida tal como o autor a apresenta na petição inicial para, em face dela, verificar se ele e o réu são sujeitos com interesse direto, o primeiro em demandar, e o segundo em contradizer.
Não importa:
- saber se essa relação é verídica ou não;
- indagar da posição que o réu sobre ela venha a assumir;
- considerar a relação que tenha resultado da discussão da causa, pois que esta vai interessar antes para o conhecimento de mérito[14].
Perante isto, face à relação material controvertida tal como os autores a configuraram na petição inicial, é evidente a sua legitimidade (processual) para os termos da presente causa.
O que carece de todo e qualquer fundamento é o agora afirmado pelos apelantes de que o saneador-sentença, sob as vestes de uma decisão de mérito, o que faz é apreciar «legitimidade processual dos AA, como definida pelo art.º 30.º CPC.»
Uma tal afirmação, na verdade, apenas pode ficar a dever-se a confusão dos apelantes quanto à definição e alcance do pressuposto processual da legitimidade, confusão de que as rés igualmente comungam, como se constata pela ampliação que fazem do âmbito do recurso em sede de contra-alegações.
Por outras palavras, é manifesta a confusão entre legitimidade processual e mérito da causa, sendo certo que em lado algum se diz, «simultaneamente, que os AA têm interesse directo em demandar, porque da procedência da acção podem retirar a utilidade que prosseguem e que não têm o direito de demandar as RR para obter o que peticionam.»
O que no saneador-sentença se afirma, não obscuramente, mas com limpidez e clareza, de modo absolutamente inteligível, é:
- «Termos em que se considera que, face à redação do art.º 1091º nº 1 al. a) do CC em vigor à data do ato de disposição, os aqui AA. não eram titulares do direito legal de preferência na venda de todo o prédio, não constituído em propriedade horizontal, e no qual se situam os locados.»;
- «Tudo visto, é mister concluir que os AA. não podem, porque não são interessados no sentido atribuído pelo art.º 286º do CC, invocar a nulidade do contrato de compra e venda, e vê-la judicialmente declarada.»
- «Por não serem titulares do direito de preferência, não o podendo exercer judicialmente, não lhes assiste outrossim o direito de demandar as RR. com vista a ver apurado o preço efetivo da venda dos imóveis.»
Isto, como é evidente, tem a ver com o mérito da causa, e não com o pressuposto processual da legitimidade.
Improcede, pelos fundamentos expostos, porventura extensos em demasia, face à evidente falta de razão dos apelantes, a arguição de nulidade do saneador-sentença recorrido.
3.2.2 – Do direito de preferência dos autores:
Afirma-se no saneador-sentença recorrido:
«Atenta a factualidade dada como provada, não há dúvidas de que os AA. são, à data de alienação dos imóveis referidos em 1. e 2., arrendatários de espaços locados sitos nos mesmos.
Na qualidade de arrendatários, entendem os AA. ter direito de preferência na venda da totalidade dos respetivos prédios, nos termos previstos no art.º 1091º nº1 al. a), 1410º e 416º a 418º do CC. Defendem, portanto, que o facto de não terem sido notificados para preferir constitui violação dos aludidos normativos, cuja natureza imperativa determina a nulidade dos atos de venda. Mais entendem que, na qualidade de arrendatários preferentes, têm direito a ver determinado o efetivo preço de venda, com vista a exercer judicialmente o direito de preferência.
Vejamos se assim é.
À data do ato de alienação dos imóveis referidos em 1. e 2., (29 e 31 de agosto de 2018), era a seguinte, a redação do artigo 1091º em vigor e, portanto, aplicável ao caso, (art.º 12º do CC):
“Artigo 1091.º Regra geral
1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º
4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º”
Trata-se da redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, conhecida como NRAU.
É reconhecido ao arrendatário (não se distinguindo entre arrendatário habitacional, comercial, ou para profissão liberal) o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento, quando a relação locatícia subsista há mais de três anos.
No entanto, estabelece a referida al. a) do art.º 1091º nº 1 que o direito de preferência se constitui em relação ao local arrendado, ou seja, o arrendatário apenas pode preferir quando esteja em causa a venda ou dação em cumprimento do local arrendado.
Como resultou provado, os locais arrendados são “diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Rua do FT, n.ºs ____, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ____ da Freguesia de A, Concelho de Lisboa”; e “dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Av.ª MM, n.º __, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ___ da Freguesia do A, Concelho de Lisboa”.
Mais resultou provado que os prédios onde se situam os locados não se encontram constituídos em propriedade horizontal, e que as vendas relativamente às quais os AA. pretendem exercer o direito de preferência foi de todo o prédio, na sua totalidade.
Há então que saber se, face à redação do art.º 1091º vigente, o arrendatário de uma parte definida ou delimitada de prédio não constituído em propriedade horizontal goza do direito legal de preferência na venda do prédio.
Entende-se que a resposta não pode deixar de ser negativa, pelo que se passa a expor.
Conforme defende o Conselheiro Abrantes Geraldes, em acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2018[15] a cuja argumentação se adere totalmente (e para cuja exposição sobre a evolução do direito de preferência do arrendatário na legislação precedente se remete):
“(…) a determinação legal do objeto da preferência fixou-se, como se salientou, no “local arrendado”, abandonando-se a referência ao “prédio urbano” ou a “sua fração autónoma” e, mais ainda, desaparecendo a norma que resolvia o litígio decorrente da frequente concorrência, na preferência, entre arrendatários de partes não autónomas de prédio não constituído em propriedade horizontal [mediante licitação].
O legislador utilizou a expressão «local arrendado» no art. 1067º do CC, a respeito do «fim do contrato», estabelecendo no nº 2 que «quando nada se estipule o local arrendado pode ser gozado no âmbito das suas aptidões»: aqui, é igualmente claro que o «local arrendado» é o objeto físico do contrato de arrendamento, como também já entendido naquele artigo.
Portanto, o sentido a extrair do disposto no art.º 1091º, nº 1, do CC, na versão vigente em 2015, é o de que o direito de preferência do arrendatário está limitado ao local arrendado, objeto do contrato de arrendamento, se se tratar de bem jurídico autónomo; caso o prédio vendido não tenha sido constituído em propriedade horizontal, o arrendatário de parte dele, sem autonomia jurídica, não tem direito de preferência nem sobre essa parte (sem autonomia jurídica), nem sobre a totalidade do prédio, em caso de venda ou dação em cumprimento deste último.
O direcionamento da preferência para a alienação do “local arrendado” (elemento gramatical) e a simultânea eliminação da regra cuja aplicabilidade pressupunha a concorrência da preferência de arrendatários de partes não autónomas de prédio não constituído em propriedade horizontal, levaram a maioria da doutrina e a jurisprudência mais recente a considerar que o legislador pretendeu restringir o direito de preferência a titulares de arrendamentos cujo objeto coincidisse com o da alienação.”
Poderia, fazendo-se apelo ao previsto no art.º 417º nº 1 do CC, defender que, sendo os locais arrendados vendidos juntamente com o prédio e por um preço global, que o direito poderia ser exercido em relação àquele, pelo preço que lhe fosse proporcionalmente atribuído.
Entende-se que não, na esteira do doutamente defendido no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.01.2016[16].
Neste aresto, aliás vastamente citado no já referido acórdão de 18.10.2018, defende o Conselheiro Tavares de Paiva que:
“(…) A previsão legal exige a venda de uma coisa juntamente com outra ou outras.
Portanto, no mínimo, a venda tem de abranger duas coisas. Em concreto, tal não aconteceu.
Apenas foi vendido uma coisa, o prédio urbano.
Ainda que existisse autonomia física do andar arrendado, inserido nesse mesmo prédio urbano, ele não tinha autonomia jurídica ante o conceito de coisa definido pelos artigos 202.º e 203.º, ambos do CC.
A autonomia jurídica só seria alcançada se o prédio fosse constituído em propriedade horizontal – artigos 1414.º e 1415.º, ambos do CC.”
A posição a que se adere e subscreve tem sido, aliás, maioritária na mais recente jurisprudência dos tribunais superiores, como são exemplo os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 26.03.2015[17], 08.02.2018[18] e 15.11.2018[19]; e ainda do Tribunal da Relação de Guimarães de 19.10.2017[20] e o recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26.02.2019[21].
Termos em que se considera que, face à redação do art.º 1091º nº1 al. a) do CC em vigor à data do ato de disposição, os aqui AA. não eram titulares do direito legal de preferência na venda de todo o prédio, não constituído em propriedade horizontal, e no qual se situam os locados.
*
Defendem, porém, os AA. a aplicabilidade aos negócios de compra e venda em causa da atual redação do art.º 1091º do CC, com as alterações introduzidas pela Lei nº 64/2018, de 29 de outubro, porquanto o pagamento do preço de um dos imóveis foi deferido para 31.12.2018.
Não se acompanha tal posição, pelo que se passa a expor.
Atento o disposto no art.º 879º do CC, a compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito, a obrigação de entregar a coisa e de pagar o preço. Ou seja, a transmissão da propriedade dá-se por mero efeito do contrato; a dilação no pagamento do preço ou na entrega da coisa poderá constituir cumprimento defeituoso ou incumprimento, mas não destrói o efeito de transmissão do direito. Dado tal entendimento, a lei aplicável é aquela em vigor à data da celebração do negócio, e não as alterações introduzidas pela Lei nº64/2018, de 29 de outubro, que entrou em vigor em 30 de outubro de 2018 (cf. respetivo art.º 3º), portanto, após celebração dos contratos de compra e venda em crise.
Conclui-se, portanto, que a redação do art.º1091º aplicável aos negócios de compra e venda em causa nestes autos é a que resulta das alterações introduzidas pela Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, (art.º12º do CC).
Se, por mera hipótese, ainda assim se não entendesse, sempre haveria que levar em consideração que o normativo em que os AA. fundam a sua pretensão, o nº 8 do art.º 1091º, aditado pela Lei nº 64/2018, de 29 de outubro, foi declarado inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Ac. TC nº 299/2020 de 18/09. Ora a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral de uma norma produz efeitos desde a entrada em vigor da norma declarada inconstitucional, e determina a repristinação das normas que, eventualmente, tenha revogado, (art.º 282º, nº 1 da CRP); pelo que nunca seria aplicável, ao caso, o disposto no referido nº 8 do art.º 1091º.
Entendem e defendem os AA. ser também aplicável o nº 9 do art.º 1091º, que institui o direito de preferência, a exercer em conjunto por arrendatários de prédio não constituído em propriedade horizontal, sobre a totalidade do imóvel em compropriedade, na devida proporção. Tal possibilidade, todavia, apenas se colocaria se as vendas tivessem sido realizadas após a entrada em vigor das alterações introduzidas pela Lei nº 64/2018, de 29 de outubro o que, como já se verificou, não sucedeu.
*
Tudo visto, é mister concluir que os AA. não podem, porque não são interessados no sentido atribuído pelo art.º 286º do CC, invocar a nulidade do contrato de compra e venda, e vê-la judicialmente declarada.
Por não serem titulares do direito de preferência, não o podendo exercer judicialmente, não lhes assiste outrossim o direito de demandar as RR. com vista a ver apurado o preço efetivo da venda dos imóveis.
Improcede, portanto, o pedido.»
Consequentemente, a decisão recorrida concluiu assim:
«Destarte, julga-se não procedente o pedido, dele se absolvendo as rés.»
Trata-se de uma decisão clara, bem estruturada e fundamentada, com cujo enquadramento jurídico se concorda inteiramente, não merecendo, por isso, qualquer censura, pelo que a fundamentação acima transcrita, poderia perfeitamente ser aqui ser dada como integralmente reproduzida para efeitos de decisão da presente apelação.
Importa, no entanto, face às alegações e conclusões do recurso interposto pelos autores, aditar alguns considerandos.
Afirmam os apelantes que:
- «A douta Sentença recorrida assenta a sua apreciação de inexistência, na esfera jurídica dos AA, do direito de preferência que se arrogam, sobre a premissa de ser esse o sentido da redacção da alínea a) do n.º 1 do art.º 1091.º CC vigente à data da outorga das escrituras de compra e venda e de a esse negócio ser inaplicável o estatuído pela Lei n.º 64/2018, de 29/10, apesar de ainda estar em curso o cumprimento da obrigação de pagamento do preço, aquando da entrada em vigor desta Lei, uma vez que o efeito de translação da propriedade já ocorrera na data da referida outorga das escrituras.»
- «Tendo em conta que a execução desse mesmo negócio (seja na outorga de escrituras de compra e venda ou no pagamento dos respectivos preços, como decorre do declarado no Doc. 5 da PI e nas próprias escrituras de compra e venda, juntas posteriormente) ainda estava pendente, pelo menos, no dia 30/10/2018, então esse negócio cai sob a alçada do estatuído pela Lei n.º 64/2018, de 29/10, designadamente a alteração da redacção do art.º 1091.º do CC por ela introduzida, que expressamente afasta a aplicabilidade do disposto na parte final do n.º 1 do art.º 417.º do CC, nos termos pretendidos pelas RR, e consagra o direito de preferência de inquilino habitacional em imóvel sob o regime de propriedade total.»
É, uma vez mais, flagrante o equívoco em que os apelantes laboram, carecendo de todo e qualquer fundamento a peregrina tese que aqui apresentam.
O art. 874.º do CC define contrato de compra e venda como «o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço», estatuindo, por sua vez, n.º 1 do art. 408.º do mesmo diploma que «a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as exceções previstas na lei.»
No dizer de Pedro Romano Martinez «(...) a compra e venda é um contrato real quoad effectum, pois, por via da regra, a transferência do direito, designadamente real, objecto do negócio jurídico dá-se por mero efeito do contrai (art. 408.º, n.º 1 CC). Por exemplo, no momento em que se celebra a escritura de venda de um prédio, independentemente da sua entrega, transfere-se a propriedade para o comprador.
(...) a transferência da propriedade (...) é sempre consequência do contrato de compra e venda, não dependendo de subsequente acto de disposição.
Normalmente, a compra e venda corresponde a um contrato de execução instantânea (...).».
De facto, na maioria das situações, os efeitos do contrato de compra e venda esgotam-se num só momento; o efeito translativo é imediato e, depois, há a ter em conta os momentos da entrega da coisa e do pagamento do preço.»[22].
A transferência da propriedade é, pois, sempre consequência do contrato de compra e venda.
Mais adiante, o mesmo Autor vinca que «nos termos do disposto na alínea a) do art. 879.º CC, a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito é um dos efeitos essenciais da compra e venda e opera automaticamente, por mero efeito do contrato (art. 408.º, n.º 1 CC).
Com o Código Civil de Seabra (art. 1544.º), por influência do Código Civil Francês, no Direito Português, os efeitos derivados da compra e venda passaram a produzir-se, por via da regra, aquando da celebração do contrato; assim sendo, a transmissão ou constituição de direitos reais, opera por mero efeito do contrato de compra e venda. A expressão “mero efeito do contrato”, constante do n.º 1 do art. 408.º CC, implica que a transferência ou constituição de direitos reais não está na dependência da tradição da coisa»[23]. Nem, obviamente, do imediato pagamento do preço, acrescentamos nós.
No que tange às possíveis interpretações da expressão «mero efeito do contrato», escreve Raul Ventura que «o art. 408.º, n.º 1, não é claro em vários aspectos. Em primeiro lugar, exige que o interprete supra a omissão do legislador quanto à espécie de contrato a que se refere. Como inverteu a ordem de redacção do art. 1376.º italiano, “contrato” aparece sem qualquer outra qualificação, mas tem de se entender tratar-se de contratos cujo objecto consista na constituição ou transferência de direito reais sobre coisa determinada.
Em segundo lugar, o adjectivo “mero”, que por sua vez influencia o entendimento da ressalva final. Se tomarmos o adjectivo “mero” como um simples reforçativo, termos que a constituição ou transferência de direitos reiais dá-se por efeito do contrato e as excepções ressalvadas são aqueles casos em que a constituição ou transferência não se dá por efeito do contrato, ou seja, que um contrato cujo objectivo consista na constituição ou transferência de direito rela sobre coisa determinada pode não produzir, comos eu efeito, tal constituição ou transferência, casos esses em que logicamente será necessário um outro acto constitutivo ou translativo (hipótese, por exemplo, de da venda obrigacional, no seu estricto sentido).
Se, pelo contrário, tentarmos dar ao adjectivo “mero” algum significado útil, ele servirá para vincar que nos contratos com o referido objecto, a regra é a constituição ou transferência do direito unicamente por efeito do contrato, de modo que a excepções podem consistir em o referido efeito ser produzido pelo contrato mas não só por ele, isto é, não será efeito mero do contrato, mas será efeito do contrato, acompanhado por algum outro acto ou facto.
O adjectivo “mero” já vem do art. 715.º do antigo Código, mas aí contrapunha-se à dependência de tradição ou de posse. Mantida a palavra “mero” no art. 408.º, n.º 1, mas desaparecida a referência à tradição ou posse, ou aceitamentos que ela se manteve com a antiga função, apesar de a necessidade de a necessidade de tradição ou posse já não ocorrer no espírito de ninguém, ou lhe damos uma função actual consistente em liga-la com o n.º 2 do mesmo artigo, o qual especifica os momentos de transferência de coisas de características especiais: Como no n.º 2 havia de dizer quando, nessas hipóteses especiais, se verifica a transferência, o n.º 1 introduz essas excepções, em que necessário é algo mais que o contrato. E note-se que o n.º 2 tem o cuidado de evitar a ligação genética da transferência aos factos ele previstos; quando a coisa for adquirida ou determinada e no momento da colheita ou separação são expressões temporais, não impeditivas de que a criação do efeito se reporte ao contrato.
Perante os citados textos do actual Código Civil justifica-se a convicção com que a moderna doutrina afirma a natureza real do contrato de compra e venda.
Designadamente a categórica afirmação do art. 879.º no sentido de a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito constituir efeito essencial da compra e venda acarreta, em primeiro lugar, não serem qualificáveis como compra e venda os contratos em que tal transmissão não constitua objecto da vontade contratualmente manifestada; em segundo lugar mostra que a transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito é um efeito do contrato.»[24].
A execução específica de um contrato de compra e venda, opera, assim, os seus efeitos translativos do contrato (arts. 874.º e 879.º, do CC), ficando o negócio a produzir os seus efeitos independentemente de não haver simultaneidade entre o pagamento do preço e a entrega dos títulos[25].
Como bem salienta Pedro de Albuquerque, «(...) não há margem no nosso Direito civil para uma venda perfeita que não resulte, como efeito do contrato, a transmissão da propriedade (...).»[26].
Esclarecedoras são, em definitivo, as palavras de Nuno Manuel Pinto Oliveira quando afirma que o art. 879. do CC completa a definição legal do contrato de compra e venda expressa no art. 874.º, «enunciando os três efeitos essenciais da compra e venda: o primeiro caracteriza-se na transmissão da propriedade ou da titularidade do direito [al. a)]; o segundo e o terceiro concretizam-se na constituição da obrigação de entrega da coisa [al. b)] e na constituição da obrigação de pagamento [al. c)].
(...) O texto das als. b) e c) do art. 879.º carece de um esclarecimento (ou de uma correcção): a constituição dos deveres (principais) de entrega da coisa e de entrega (de pagamento) do preço não é um efeito essencial do contrato.»[27].
E mais adiante escreve que «o sistema jurídico português de constituição e transmissão de direitos reais enquadra-se entre os sistemas de título, “exigindo-se e bastando para que o jus in re se transmita ou constitua sobre a coisa o acto pelo qual se estabelece a vontade dessa transferência ou constituição[28].
(...)
O sistema de título tem como corolários os princípios da causalidade e da consensualidade: o primeiro, o princípio da causalidade, diz-nos que a constituição ou modificação de um direito depende a existência, da validade e da procedência da causa jurídica das alterações na ordenação das coisas (ou, para empregarmos os sugestivos termos de Orlando de Carvalho: “no mundo jurídico-real”); o segundo, o princípio da consensualidade, diz-nos que a constituição ou modificação de direitos reais se dá “por mero efeito do contrato” (art. 408.º, n.º 1, do Cód. Civil).
O contraste entre os princípios da causalidade e da consensualidade tornar-se-á talvez mais nítido se os enunciarmos nos seguintes termos: o princípio da causalidade determina que a existência, a validade e a eficácia do contrato sejam condições necessárias da constituição ou modificação de direitos reais; o princípio da consensualidade determina que a existência, a validade e a eficácia do contrato sejam condições suficientes de tal constituição ou modificação; o art. 879.º, al. a), confirma-os no caso particular da compra e venda: o contrato tem eficácia real, concretizada em regra na transmissão do direito de propriedade sobre a coisa»[29].
Ainda segundo o mesmo Autor, «embora os princípios da causalidade e da consensualidade conduzam à regra da eficácia imediata da compra e venda, o Código Civil admite a dissociação entre o momento da conclusão do contrato e o momento da constituição ou transmissão do direito real nos seguintes casos:
(...) Compra e venda de coisa indeterminada: o direito real só se transfere quando a coisa for “determinada com o conhecimento de ambos os contraentes” (art. 408.º, n.º 1, 1.ª parte). Exceptuam-se os casos das obrigações alternativas e das obrigações genéricas: nas obrigações alternativas o direito real transfere-se com a escolha; nas obrigações genéricas, com a concentração.
(...) Compra e venda de coisa futura: o direito real só transfere “quando a coisa for adquirida pelo alienante” (art. 408.º, n.º 2).
(...) Compra e venda de frutos pendentes: o direito real só se transfere quando os frutos forem colhidos (art. 408.º, n.º 2).
(...) Compra e venda de partes componentes ou de partes integrantes: o direito real só se transfere quando as partes componentes ou integrantes forem separadas (art. 408.º, n.º 2).
(...) Compra e venda com reserva de propriedade: o direito real transfere-se quando o pacto previsto se verifique (art. 409.).
(...) Compra e venda de coisa alheia: o direito real transferir-se-á (e se) o vendedor adquirir por algum modo a propriedade da coisa ou do direito vendido (art. 895.º).»[30]
Os contratos de compra e venda referidos em 1. e 2. dos factos provados não se enquadram, como é óbvio, em nenhuma das descritas exceções.
A entrega da coisa e o pagamento do preço respeitam aos efeitos obrigacionais da compra e venda.
A respeito da obrigação de pagamento do preço, escreve ainda Nuno Manuel Pinto Oliveira que«o preço deve ser pago no momento e no lugar da entrega da coisa (art. 885.º, n.º 1): “se por estipulação das partes ou por força dos usos o preço não tiver de ser pago no momento da entrega, o pagamento será efectuado no lugar do domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento” (art. 885.º, n.º 2, em ligação com o art. 774.º, do Cód. Civ.).
(...)
Enquanto o n.º 2 do art. 801.º atribui ao credor o direito potestativo de resolução do contrato bilateral sinalagmático na hipótese de não cumprimento definitivo imputável ao devedor, o art. 886.º recusa ao vendedor o direito potestativo de resolução do contrato de compra e venda, na hipótese de não cumprimento definitivo da obrigação de pagamento do preço por causa imputável ao comprador: “[t]ransmitida a propriedade da coisa, ou o direito sobre ela, e feita a sua entrega, o vendedor não pode, salvo convenção em contrário, resolver o contrato por falta de pagamento do preço”. O texto da lei esclarece que a aplicação da regra (supletiva) do art. 886.º pressupõe o preenchimento cumulativo de dois requisitos: o primeiro consiste na transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito; o segundo, na entrega da coisa. O direito de resolução do contrato não é assim completamente excluído: “primeiro, porque [o art. 886.º] admite convenção em contrário do regime (supletivo) fixado; segundo, porque a recusa de resolução só tem lugar depois de efectuada a entrega da coisa: Se o vendedor a não tiver entregue e o comprador se recusar a pagar o preço no momento devido nada impede que […] ele possa vir a obter a resolução da venda”[31].».
Com o excurso que antecede crê-se ter ficado demonstrada a total ausência de razão dos apelantes na afirmação de que os negócios de compra e venda dos imóveis identificados em 1. e 2. dos factos provados ainda se encontravam em execução em 30 de outubro de 2018, datada da entrada em vigor da Lei n.º 64/2018, de 29.10, o que faz com que este diploma seja aplicável à situação sub judice.
Não é, evidentemente, assim!
Os contratos de compra e venda em causa nestes autos foram celebrados:
- o primeiro, no dia 28 de agosto de 2018, tendo por objeto o prédio sito na Rua do FT, n.º ____, Lisboa;
- o segundo, no dia 31 de agosto de 2018, tendo por objeto o prédio sito na Av.ª MM, n.º __, em Lisboa.
O efeito real decorrente daqueles contratos, ou seja, a transferência do direito de propriedade sobre cada um daqueles imóveis, da esfera jurídica da 1.ª ré para a 2.ª ré, ocorreu na data da celebração de cada um deles.
Simplificando:
- no dia 28 de agosto de 2018, a 2.ª ré tornou-se proprietária do prédio sito na Rua do FT, n.º ____, Lisboa;
- no dia 31 de agosto de 2018, a 2.ª tornou-se proprietária do prédio sito na Av.ª MM, n.º __, em Lisboa.
Por conseguinte, manifestamente, a Lei n.º 64/2018, de 29.10, que, nos termos do seu art. 3.º, entrou em vigor «no dia seguinte ao da sua publicação», ou seja, 30 de outubro de 2018, é inaplicável à situação a que se reportam os presentes autos.
Posto isto, importa agora verificar se, à luz do quando legal vigente à data da celebração de cada um daqueles negócios, assistia:
- aos Autores I, o direito de preferência na aquisição do imóvel identificado em 1. dos factos provados;
- aos Autores II, o direito de preferência na aquisição do imóvel identificado em 2. dos factos provados.
E a resposta é aquela que já consta da sentença recorrida: não lhes assiste tal direito.
Está provado que «os dois imóveis supra identificados encontram-se em regime de propriedade total (não constituídos em regime de propriedade horizontal), sendo constituídos por andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, as quais se encontram locadas aos AA.»[32].
Dispunha o art. 1091.º do CC, com a redação que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2006, de 27.07, a aplicável à situação sub judice:
1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;
b) Na celebração de novo contrato de arrendamento, em caso de caducidade do seu contrato por ter cessado o direito ou terem findado os poderes legais de administração com base nos quais o contrato fora celebrado.
2 - O direito previsto na alínea b) existe enquanto não for exigível a restituição do prédio, nos termos do artigo 1053.º;
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º.
4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º.
Conforme refere Menezes Leitão, com esta redação do art. 1091.º do CC, «(...) a lei deixou de fazer menção ao arrendatário do prédio ou fracção autónoma, para passar a fazer referência apenas à alienação do local arrendado, o que reforçou a tese de que o arrendatário parcial de um prédio tinha deixado de ter direito de preferência na venda do mesmo. A jurisprudência foi progressivamente aderindo a esta posição, tendo o Tribunal Constitucional se pronunciado no sentido de que a mesma não envolvia violação do princípio constitucional da igualdade.»[33].
Esclarecedoras são, a este propósito, as palavras de Menezes Cordeiro[34]:
«Coloca-se o problema de o local arrendado ser apenas parte de um prédio, que não esteja em propriedade horizontal. A jurisprudência divide-se: nuns casos, entende-se que o locatário de parte do prédio tem o direito de preferir na compra do conjunto, havendo vários direitos de preferência concorrentes, na hipótese de surgirem diversos arrendatários dos distintos fogos do prédio (teoria expansionista); noutros, decidiu-se que a preferência só operava perante o conceito “local arrendado”, ficando afastado caso tal local não pudesse ser autonomamente transacionado (teoria do local).
Esta posição, perante as coordenadas atuais (pós-L 31/2012) do arrendamento urbano é a preferível. Vamos ver.
(...) A letra da lei: o art. 1117.º, versão original, dava preferência na venda do “prédio arrendado”. retomando o 66.º/1 da L 2023; ora o RAU de 1990 ((47.º) limitou a preferência à venda “do local arrendado”, numa locução mantida pel L 6/2006, vertida no art. 1091, hoje em vigor.[35]. Ora, devemos presumir que o legislador escolheu as sua palavras com critério, dizendo o que quis dizer (9.º/3): designadamente o de 2006, que já conhecia o alcance prático da polémica.
(...) o elemento teleológico, sempre decisivo, diz-nos que a lei, ao atribuir a preferência aos arrendatários, visou facultar-lhes o acesso à habitação ou instalações próprias, pondo termo ao arrendamento. Ora, admitir a preferência para além do locar arrendado é interferir no mercado, dando uma vantagem ao arrendatário que transcende o fim da lei. Transformar o inquilino de um fogo em dono do prédio (só) porque este não estava em propriedade horizontal, é uma operação de todo fora do objeto legal, que apenas visaria lucrativos fins imobiliários.
(...) A ponderação das consequências mostra que a tese expansionista pode conduzir a resultados inaceitáveis. A multinacional que arrende um telhado para nele instalar um painel publicitário adquire, por isso, uma preferência na venda do edifício? Nenhuma valoração arrendatícia justificaria, jamais, semelhante resultado: a teoria expansionista é inconveniente.»[36].
Na jurisprudência e quanto a esta questão, é esclarecedor, a todos os títulos, o Ac. do S.T.J. de 13.10.2022, Proc. n.º 3391/08.1TVLSB.L1.S1 (Manuel Capelo), in www.dgsi.pt, que vamos passar a acompanhar, e onde é feita uma elucidativa resenha história no tocante ao direito de preferência dos arrendatário:
«O direito de preferência é uma faculdade que foi originalmente consagrada, no domínio do arrendamento, no primeiro quartel do século passado, não em relação a todas as categorias de arrendatários, mas apenas em benefício do arrendatário comercial ou industrial - este direito foi reconhecido àqueles arrendatários pelo art. 11.º da Lei n.º 1662, de 04-09-1924 sendo que esta faculdade foi estabelecida num momento em que a figura da propriedade horizontal ainda não era reconhecida no nosso ordenamento jurídico pelo que não se levantavam problemas quanto à situação jurídica do locado para efeitos de exercício da prelação. Decorridos quase vinte e cinco anos desde esse momento inaugural este direito legal deixou de se restringir àqueles arrendamentos, para abarcar, também, as situações de arrendamento para o exercício de profissão liberal, as quais passaram a ser-lhe equiparadas – cfr. o art. 22.º da Lei n.º 2030, de 22 de junho de 1948, diploma em que o direito de preferência do arrendatário passaria a ser assim designado, deixando de estar sob a denominação de um “direito de opção” - Contudo, o alargamento do âmbito de aplicação desta preferência legal manteve à margem os arrendamentos urbanos para fins habitacionais, situação que se manteve após a entrada em vigor do novo Código Civil - O Código Civil de 1966 acolheu, em termos limitados, o direito de preferência do arrendatário, enquadrando no art. 1117 as situações de arrendamento para comércio e indústria e operando no art. 1119.º operou uma remissão para as normas daqueles arrendamentos, sempre que em causa estivesse o arrendamento para o exercício de profissões liberais.
Com a Lei n.º 63/77 de 25 de agosto o direito de preferência do arrendatário habitacional encontrou a sua primeira expressão entre nós, pretendendo-se, com a concessão desta faculdade aos arrendatários, “contribuir (....) ainda que em grau reduzido” para a política de acesso à habitação própria que havia sido salvaguardada na novíssima Constituição de 1976 - A concessão do direito de preferência ao arrendatário em caso de transmissão onerosa do local arrendado não é uma exclusividade do ordenamento jurídico português, tendo sido introduzido no direito alemão em 1993 -. Este diploma que foi o instrumento determinante da concessão daquela faculdade ao arrendatário habitacional, já tinha sido antecedido de esforços infrutíferos no sentido de conferir-lhe esse direito, no sentido de fazer proceder à equiparação entre arrendatários comerciais e arrendatários habitacionais prevendo, desta forma, a concessão da prelação a estes arrendatários - Sobre esta iniciativa vd. Januário Gomes in Arrendamentos Comerciais, 2ª ed., Coimbra, Almedina, 1991, p. 202; e Brandão Proença in “Para uma leitura restritiva da norma (art. 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, 941-942.
Em termos mais recentes, a outorga do direito de preferência ao arrendatário habitacional foi reafirmada no art. 47 do RAU com a seguinte redação:
“1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano;
2. Sendo dois ou mais os preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.”.
Esta norma, que replicou no essencial o art. 1º da Lei 63/77, teve a finalidade de uniformizar “em secção própria” a matéria respeitante à preferência do arrendatário que, com o passar do tempo, passou a divergir consoante a finalidade do arrendamento que estivesse em causa. Posteriormente, o Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU), aprovado pela Lei nº 6/2006, de 27 de fevereiro, manteve a preferência do arrendatário na compra e venda ou dação em cumprimento, repondo em vigor, no seu art. 3º, o art. 1091º, do CCivil, com a seguinte redação:
“1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;
(…)
3 - O direito de preferência do arrendatário é graduado imediatamente acima do direito de preferência conferido ao proprietário do solo pelo artigo 1535.º
4 - É aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º.”.
Estas referências cronológicas devem ser acrescentadas com a indicação de o direito de preferência ter sido previsto e estabelecido num contexto que temporalmente se situa na sequência do primeiro conflito mundial, no qual, o princípio geral da autonomia privada em matéria de arrendamento foi substituído por um regime que restringia a liberdade das partes na conformação do contrato de arrendamento entendidos estes como vinculísticos.
Arrendamentos caracterizados pelo pouco espaço de liberdade à autonomia privada, fazendo-se prevalecer os interesses dos arrendatários em detrimento dos senhorios, reduzindo a margem de manobra das partes para “ajustar regimes contratuais adequados” - vd. Brandão Proença “Para uma leitura restritiva da norma (art. 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, p. 940; António Sequeira Ribeiro in “Renda e encargos no contrato de arrendamento urbano”, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Inocêncio Galvão Telles, vol. III, Direito do Arrendamento Urbano, Coimbra 2002, cit., p. 87-s e António Menezes Cordeiro in “O Novo Regime do Arrendamento Urbano: dezasseis meses depois, a ineficácia económica do direito”, in O Direito (139), 2007, V, p. 950-951. Porém, nos últimos anos que antecedem e incluem o do estabelecimento da disciplina normativa do NRAU, um conjunto de fatores indicadores da vontade de desenvolver o mercado de arrendamento liberalizado e uma releitura da realidade, pregressa e atual, voltou a centrar a liberdade contratual das partes e manifestou a inequívoca vontade de eliminar os elementos vinculísticos - vd. António Menezes Cordeiro in “A modernização do Direito português do arrendamento urbano”, in revista O Direito, ano 136.º (2004), II-III. p. 235-s.
Temos por importante sublinhar este enquadramento temporal e axiomático na leitura dos diferentes diplomas, em que se contém o direito de preferência no arrendamento, porque estas referências são tópicas das questões que sempre estiveram presentes nas interpretações dos normativos que foram regulando a matéria desde a Lei 63/77. É assim que Menezes Cordeiro - in “O Novo Regime do Arrendamento Urbano: dezasseis meses depois, a ineficácia económica do direito”, in O Direito (139), 2007, V, p. 950-951 - sustenta a completa eliminação, no nosso ordenamento jurídico, desta prerrogativa do arrendatário, considerando que “A preferência desvaloriza o domínio e mantém vínculos fora de época”, do mesmo modo que Brandão Proença - in “Para uma leitura restritiva da norma (art. 1091.º do Código Civil) relativa ao direito de preferência do arrendatário”, in Estudos em Honra do Professor Doutor José de Oliveira Ascensão, vol. II, Coimbra, Almedina, 2008, p. 946 - defende que a manutenção da prelação em matéria de arrendamento significa um entrave à autonomia privada e que esta faculdade do arrendatário se torna especialmente problemática num sistema como o nosso, em que por força da política legislativa, vigora um princípio geral de autonomia da vontade. Também Rute Teixeira aborda a problemática para sublinhar que o legislador tem revelado uma expressão e vontade no sentido de “(re)garantir um maior espaço para o funcionamento da autonomia privada”, pelo que a manutenção do direito de prelação do arrendatário parece estar em “contraponto com o sentido geral da reforma” - in “O direito de preferência do arrendatário no ocaso do vinculismo – breves reflexões à luz da reforma de 2012”, in Cadernos de Direito Privado, CEJUR, 2013 (42), p. 14.
Descrito o quadro geral de evolução normativa e assente, sem sombra interpretativa, que existe direito de preferência por parte do arrendatário na compra do arrendado, as questões suscitam-se (e em verdade sempre se suscitaram) nos casos em que o locado não tem autonomia – quando o prédio não está sujeito ao regime da propriedade horizontal - , isto é, nas situações em que o arrendamento incide apenas sobre parte de um prédio não constituído em propriedade total. Nestas situações, o prédio composto por várias partes suscetíveis de utilização autónoma e independente, só pode ser encarado na sua globalidade, como sendo uma coisa única onde o locado não tem qualquer autonomia jurídica, sendo uma parte integrante e não cindível e autonomizável do prédio. São casos em que não existe, pois, qualquer coincidência entre o objeto do arrendamento - a parte do prédio indiviso locada - e o objeto a que respeita o direito de propriedade que se pretende adquirir através do exercício da prelação.
Nas situações em que o objeto do arrendamento coincide com a totalidade de um edifício – v.g. uma moradia unifamiliar – e naqueles em que o prédio se encontre em regime de propriedade horizontal não se suscitam dúvidas sobre o exercício da preferência, este incide sempre sobre a parte do prédio que é objeto de locação, sobre o local arrendado. É nos outros casos, naqueles em que o arrendamento incide apenas sobre parte de um prédio não constituído em propriedade horizontal que a circunstância de o locado não ter qualquer autonomia jurídica sendo, uma parte integrante da coisa única que é o prédio, é nestes casos dizíamos, que a descoincidência entre o objeto do arrendamento – a parte do prédio indiviso – e o objeto a que respeita o direito de propriedade que se pretende adquirir através do exercício da prelação, polariza as questões interessantes ao objeto desta presente revista.
No conhecimento do mérito do recurso, centrado exclusivamente na apreciação do direito de preferência do arrendatário de prédio urbano com diversos espaços de locação, mas sem estar constituído em propriedade horizontal, deixamos expresso ser entendimento unânime, nomeadamente neste STJ, que a lei reguladora do direito de preferência é a vigente à data da celebração do ato de alienação, pois o direito legal de preferência configura uma faculdade que integra o conteúdo do direito do arrendatário que só a prática do negócio translativo da propriedade[37], sem que o senhorio lhe tenha oferecido a preferência, o transforma em direito potestativo - cf., entre outros, o ac. Acs. STJ de 05.05.1994, in BMJ 437-477; de 09.03.1995, CJ, STJ, II, 1, 118-II; de 28.01.1997, processo n.º 87557 e 12.11.2009, processo n.º 1842/04.3TVPRT.S1, ambos in www.dgsi.pt.; de 21.01.2016, proc. nº 9065/12.1TCLRS.L1.S1 e o de 7-11-2019 desta mesma secção no proc. 14276/18.3T8PRT.P1.S2, in dgsi.pt.
No caso em decisão, à data da outorga da escritura pública de compra e venda (28.6.1984) estava em vigor a lei 63/77 de 25 de agosto cuja redação dos três primeiros artigos se transcreve:
“Artigo 1º
1. O locatário habitacional de imóvel urbano tem o direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento do mesmo.
2. O locatário habitacional de fração autónoma de imóvel urbano também goza do direito de preferência na compra e venda ou dação em cumprimento da respetiva fração.
Artigo 2.º
1. Quando mais de um locatário habitacional exercer o direito de preferência, abrir-se-á entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante.
2. Quando num imóvel urbano existirem um ou mais locatários habitacionais e um ou outros de diferente natureza, também com direito de preferência, proceder-se-á nos termos do número anterior.
Artigo 3.º
Ao direito de preferência previsto nesta lei é aplicável, com as necessárias adaptações, o disposto nos artigos 416.º a 418.º e 1410.º do Código Civil.”.
Na vigência destes preceitos, a jurisprudência maioritária dos tribunais superiores entendia que, quando não se achasse instituído o regime de propriedade horizontal e o direito de preferência existisse a favor dos locatários, habitacionais ou para comércio ou indústria, o arrendatário duma parte ou os arrendatários coligados podiam exercer o direito de preferência em relação à totalidade do prédio vendido onde se situe o local arrendado; se a propriedade horizontal estivesse constituída, o direito de preferência limitar-se-ia à fração respetiva – cf. acs. STJ de 26.09.1981, BMJ 409-779, de 10.04.1986, BMJ 356-333, de 03.10.1989, BMJ 390-408, e de 28.01.1997, in CJ, STJ, T I, ano I, pág. 77, Acs. da RP de 25.07.1985, CJ X-4-241, de 16.06.1988, BMJ 378-785, de 04.7.1989, BMJ 389-646.
Os argumentos avançados blasonavam a finalidade de a preferência concretizar a política de acesso à habitação própria, com consagração constitucional, como evidenciado no preâmbulo do diploma; o eventual afrontamento da lei no caso de se acolher o sentido contrário; e, a consagração de licitação entre vários preferentes que, não podendo ocorrer entre arrendatários de frações autónomas de prédio constituído em propriedade horizontal, teria o seu campo de aplicação aos arrendatários de partes de prédios não constituídos em propriedade horizontal com direito de preferência relativamente à totalidade do prédio.
Como antes aludimos e agora repetimos, o D.L. n.º 321-B/90, de 15 de outubro, que aprovou o Regime de Arrendamento Urbano (RAU), confrontado com a existência de regimes não coincidentes de preferências comerciais e habitacionais no Código Civil e naquele diploma, revogou-os e uniformizou a matéria nos seguintes termos:
Artigo 47.º (Direito de Preferência)
1. O arrendatário de prédio urbano ou de sua fração autónoma tem o direito de preferência na compra e venda ou na dação em cumprimento do local arrendado há mais de um ano.
2. Sendo dois ou mais preferentes, abre-se entre eles licitação, revertendo o excesso para o alienante”
O confronto desta redação com a redação daqueles artigos 1117.º do Código Civil e 1.º e 2.º da Lei n.º 63/77, de 25 de Agosto, evidencia que o legislador mantendo o essencial não reproduziu totalmente os textos anteriores: por um lado, ao invés de continuar a falar no direito de preferência do prédio arrendado ou do imóvel urbano passou a referir do local arrendado; por outro lado, no preâmbulo afirmou que “Nessa tarefa codificadora, teve-se sempre a preocupação de valorar os textos anteriores perante a jurisprudência dos tribunais de Portugal (…) Nesta linha e na medida do possível foram mantidos os textos anteriores quando, sobre eles, houvesse já uma concretização jurisprudencial que importasse conservar” e manteve consagrado a licitação entre dois ou mais preferentes.
A jurisprudência e doutrina maioritárias, na interpretação deste preceito, seguiram o entendimento anterior: o arrendatário de parte indivisa tem direito de preferência na venda da totalidade do prédio urbano – cf. Acs. de 26.09.1991, BMJ 409.º - pag. 779, de 08.10.1992, BMJ 420.º- pag. 502; de 28.01.1997, CJ, STJ. T.V, ano I, pag. 77; de 13.02.1997, CJ, STJ, T.V, ano I, pag. 104; de 10.12.1997, BMJ – 472.º-454; de 30.04.1997, processo n.º 885/96 , 2.ª secção, Cons. Pereira da Graça; de 02.06.1999, Co. Ac. STJ, VII, 2.º, 129; de 22.10.1999, BMJ, 490-270; de 13.01.2000, revista n.º 991/99 – 2.ª secção; de 29.04.2003, revista n.º 706/2003 – 6.ª secção, de 06.07.2004, proc. 07B1554 e de 31.05.2007, processo n.º 07B1554, in www.dgsi.pt, ; de 20.10.2009, revista n.º 563/2001.S1, de 22.10.2009, revista n.º 446/09.9YFLSB, de 12.11.2009, revista n.º 1842/04.3TVPRT.S1, de 25.03.2010, revista n.º 5541/03.5TBVFR.P1.S1, de 12.01.2012, revista n.º 72/2001.L1.S1; Aragão Seia, Arrendamento Urbano, 6.ª Edição, Almedina, 2002, pag. 314; Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, 3.ª Edição, Almedina, pags. 639 e 640; Romano Martinez, Direito das Obrigações, Parte Especial, Contratos, 1.ª Edição, 2000, pág. 247, nota 1; Pires de Lima/Antunes Varela, CCAnot, II, cit. anot. 8 ao art. 47.º RAU; Luís Miguel Monteiro, Direito e Obrigações Legais de Preferência no Novo Regime Jurídico do Arrendamento Urbano, Lisboa, 1992, AAFDL; Agostinho Cardoso Guedes, o Direito de Preferência (2006), 172-208.
Os argumentos subjacentes a este entendimento eram: o alargamento do direito de preferência a todos os arrendamentos urbanos vinculísticos (que não apenas os destinados a comércio, indústria, profissões liberais ou habitação) e a consagração de novos direitos de preferência, designadamente a favor dos titulares de novo arrendamento e do senhorio em caso de trespasse; a manutenção das designações de “prédio urbano” e “fração autónoma”, o que implicaria que a limitação ao local arrendado apenas diria respeito aos casos de venda de prédio já constituído em propriedade horizontal; a manutenção da norma que mandava proceder à licitação em caso de concurso de preferente, que ficaria sem campo de aplicação caso não se perfilhasse o entendimento de que estes poderiam preferir na totalidade do prédio e o teor do preâmbulo do diploma.
Todavia, não só a alteração da redação assinalada, mas sobretudo ela, tornou mais destacável o entendimento contrário, ou seja, o de o inquilino duma fração de um prédio não constituído em propriedade horizontal não ter direito de preferência no caso de o senhorio pretender vender o prédio todo – cf. Ac. STJ de 30.04.1997, BMJ 466º - 501 e de (cf. o Ac. de 17-12-98, 99B466, e na doutrina M. Januário Gomes, in Arrendamentos Comerciais, 2.ª ed. P. 204 e Oliveira Ascensão, Subarrendamento e Direitos de Preferência no Novo Regime de Arrendamento Urbano, in R.O.A., ano 51.º, I, 1991, p.68. e em Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Inocêncio Galvão Telles, III vol., p. 255.
Esta posição fundou-se na argumentação de a lei contemplar com relevância preferencial a fração autónoma ou o prédio urbano, pelo que, se o arrendamento tem por objeto a fração autónoma e ela é vendida, ou se tem por objeto o prédio urbano e ele é vendido, existe nestes casos direito de preferência do arrendatário; a lei não contempla no seu texto o direito de preferência de arrendatário de parte alíquota sobre a totalidade do prédio urbano indiviso, pelo que defendê-lo não teria arrimo legal e contrariaria a própria lei; a regra da licitação entre os preferentes tem aplicação no caso de o prédio ou a fração poder ter vários arrendatários e cada um deles pretender exercer o respetivo direito; a expressão “local arrendado” constitui um explicação relativamente à legislação precedente - vd. em recensão dos argumentos o ac. STJ de 21 janeiro de 2016 no proc. 9065/12.1TCLRS. L1.S1.
Observando a Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, que reescreveu o art. 1091.º do Código Civil, acima transcrito, este obteve como redação que:
“1 - O arrendatário tem direito de preferência:
a) Na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos;”
(...)
Perante esta redação, aqueles que já antes defendiam a inexistência de direito de preferência para os arrendatários de partes integrantes do prédio não constituído em propriedade horizontal mantiveram essa posição reforçando - como antes demos nota - que a própria existência de preferência do arrendatário está destituída de sentido e que essencial é ser-se arrendatário do concreto espaço da locação. Pelo que passou a ser unânime na jurisprudência deste tribunal o entendimento segundo o qual atento o teor do artigo 1091.º, n.º1, al. a), do CC, na redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de fevereiro, o direito de preferência conferido ao arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento, o qual, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado não tendo o arrendatário de parte do prédio não constituído em propriedade horizontal, direito de preferência sobre a totalidade do prédio, nem sobre a parte arrendada[38] – vd. por todos ac. STJ de 7-11-2019 no proc. 14276/18.3T8PRT.P1.S2 desta mesma secção; de 25-3-2021 no proc. 10307/16.0T8PRT.P2.S1 e de 18-10-2018 no proc. 3131/16.1T8LSB.L1.S1.»
No referido Ac. do S.T.J. de 25.03.2021, Proc. n.º 2899/18.5T8ALM.L1.S1 (Fernando Samões), in www.dgsi.pt, decidiu-se que «o art.º 1091.º, n.º 1, al. a), do Código Civil, na redação dada pela Lei n.º 6/2006, de 27/2, não atribui o direito de preferência legal ao arrendatário de parte específica de prédio urbano indiviso ou não constituído em propriedade horizontal», sendo que «esta interpretação não viola os princípios constitucionais da igualdade e de acesso à habitação própria, consagrados, respectivamente, nos art.ºs 13.º, n.º 1, e 65.º, n.ºs 1 e 3, ambos da Constituição», conforme, vem sendo entendimento do Tribunal Constitucional[39].
Retornando ao caso concreto, e para rematar, estando provado que os dois identificados prédios se encontram-se em regime de propriedade total, ou seja, não constituídos em regime de propriedade horizontal, sendo constituídos por andares ou divisões suscetíveis de utilização independente, as quais se encontram locadas aos autores, sufragando o entendimento da doutrina e jurisprudência que vimos de citar, concluímos, tal como o fez o saneador-sentença recorrido, que os demandantes não são, efetivamente, titulares do direito de preferência de que se arrogam.
A circunstância de:
- os Autores I serem «o conjunto de inquilinos dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Rua do FT, n.º ____, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ____ da Freguesia de A, Concelho de Lisboa, o qual é, hoje, propriedade da N, após o ter adquirido à F por escritura outorgada no dia 29/08/2018»;
- os Autores II serem «o conjunto de inquilinos dos diversos espaços locados que integram o imóvel sito na Av.ª MM, n.º __, inscrito na matriz predial urbana sob o art.º ___ da Freguesia do A, Concelho de Lisboa, o qual é, hoje, propriedade da N, após o ter adquirido à F por escritura outorgada no dia 31/08/2018»,
em nada contraria aquele entendimento, pois, como decidido no citado Ac. do S.T.J. de 13.10.2022, Proc. n.º 3391/08.1TVLSB.L1.S1 (Manuel Capelo), in www.dgsi.pt:
- o direito de preferência conferido a cada arrendatário está confinado ao andar ou à parte do prédio que constitui o objeto concreto do contrato de arrendamento;
- esse objeto, para ser transacionável, deve estar juridicamente autonomizado,
pelo que não estando nenhum daqueles prédios constituído em propriedade horizontal, não têm os respetivos arrendatários, no seu conjunto, direito de preferência sobre a totalidade do respetivo prédio.
Acompanhar o entendimento dos autores seria caminhar ao arrepio do que foi vontade do legislador ao reescrever, por via da Lei n.º 6/2006, de 27.07, a al. a) do n.º 1 do art, 1091.º do CC.
O recurso não merece, pois, provimento, devendo, por conseguinte, subsistir a bem fundamentada e estruturada decisão recorrida.
*
Considerando a improcedência da apelação interposta pelos autores / recorrentes, fica prejudicado o conhecimento da ampliação do objeto do recurso subsidiariamente suscitada pelas rés/recorridas.
***
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação improcedente, mantendo-se, em consequência, o saneador-sentença recorrido.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargos dos recorrentes (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2, do CPC).
Lisboa, 12 de julho de 2023
José Capacete
Cristina Coelho
Edgar Taborda Lopes
_______________________________________________________ [1] Doravante referida apenas por 1.ª ré. [2] Doravante referida apenas por 2.ª ré. [3] Na petição inicial indicaram como valor da ação, € 30.000,01. [4]Manual do Recurso Civil, Volume I, AAFDL Editora, Lisboa, 2020, p. 293. [5] A decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto não foi objeto de impugnação. [6]Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Reimpressão, 3ª Ed., 1952, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 151. [7]Ação Declarativa À Luz Do Código Revisto, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2011, p. 667. [8]Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 1985, p. 693. [9] Neste sentido, cfr. João Paulo Remédio Marques, A Acção Declarativa à Luz do Código Revisto, Coimbra Editora, 3.ª Ed., p. 375. [10] Cfr. Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1.º, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2014, pp. 70-71. [11]Comentários ao Código de Processo Civil, 2.ª Edição, Almedina, 2004, p. 59. [12]Ob. e Loc. Cit. [13] Cfr. Ac. da R.C. de 12.06.2011, Proc. n.º 1223/10.0TBTMR.C1 (Carlos Querido), in www.dgsi.pt, do qual, nesta parte, se transcreveram alguns excertos. [14] Cfr. Ac. da R.L. de 12/10/2009, Proc. n.º 29306/03.5YXLSB-A.L1-6 (Pereira Rodrigues), in www.dgs.pt. [15] «Assim sumariado: “I. Em face do art. 1091º do CC, na versão vigente em 2015, o arrendatário comercial de uma parte de um prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não goza do direito legal de preferência na venda do prédio, direito apenas reconhecido ao arrendatário de todo o prédio urbano ou fração autónoma do mesmo prédio objeto de venda ou de dação em cumprimento. (…)”». [16] «Sumário: “Na vigência do artigo 1091.º do CC, introduzido pela Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência, sobre a parte arrendada ou a totalidade, na compra e venda ou na dação em cumprimento desse mesmo prédio.» [17] «À luz do novo regime do arrendamento urbano, decorrente do art.º 1091.º, n.º 1, alínea a), do C. Civil, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro, o direito de preferência atribuído ao arrendatário coincide e está limitado ao local arrendado, enquanto bem jurídico autónomo, pelo que sendo arrendatário de parte do imóvel não sujeito ao regime de propriedade horizontal não beneficia desse direito relativamente ao locado, por não constituir um bem jurídico autonomizável, nem em relação a todo o imóvel, em caso de venda ou dação em cumprimento.» [18] «O arrendatário de parte não autónoma de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal não tem direito de preferência na venda da totalidade do prédio.» [19] «(…)I II-Com a entrada em vigor da Lei 06/2006 de 27/02, que aprovou o NRAU, passou a dispor-se no art.º 1091 nº 1 a) do C.C. o direito de preferência do arrendatário na compra e venda ou dação em cumprimento do local arrendado há mais de três anos, eliminando-se neste artigo a referência a prédio urbano ou fracção autónoma, bem como a possibilidade de licitação entre dois ou mais locatários preferentes. IV-Face à redacção deste preceito legal, apenas o locatário de fracção autónoma em propriedade horizontal, tem direito de preferência na venda da sua fracção e não sobre a totalidade do prédio.» [20] «I. Na vigência da actual redacção do art. 1091º, nº 1, al. a), do C.C. (dada pela Lei nº 6/2006, de 27 de Fevereiro), o arrendatário, há mais de três anos, de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal, não tem direito de preferência - sobre a parte arrendada, ou sobre a totalidade desse mesmo prédio - na respectiva compra e venda, ou na sua dação em cumprimento. II. Inexiste qualquer violação dos princípios constitucionais da igualdade e da proporcionalidade, na interpretação feita do art. 1091º, nº 1, al. a) do C.C., por a distinção do regime legal se mostrar plenamente justificada pela diferença dos respectivos pressupostos fácticos, e em medida razoável.» [21] «I - À luz do regime consagrado pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, os arrendatários de parte de imóvel não constituído em propriedade horizontal não gozam de direito de preferir na venda da totalidade do prédio. II - A expressão “local arrendado” ínsita na alínea a) do n.º1 do artigo 1091.º do Código Civil, introduzida pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, terá de ser encarada como uma restrição relativamente ao regime anterior do RAU, atento o propósito que lhe esteve subjacente de incrementar regras por forma a promover o mercado de arrendamento. Nessa medida, a preferência do arrendatário passou a ser perspectivada, tão só, em facultar o acesso à habitação própria. III - O disposto no n.º1 do artigo 417.º do Código Civil, aplicável ao direito de preferência do arrendatário por força do n.º 4 do artigo 1091.º do mesmo Código, não tem aplicação nas situações em que o objecto do negócio realizado incidiu apenas quanto a um único prédio (em autonomia jurídica e não física). IV - A interpretação do artigo 1091.º, n.º 1, alínea a), do Código Civil, no sentido de não atribuir ao arrendatário de parte de imóvel não constituído em propriedade horizontal o direito de preferir na venda da totalidade do prédio, não viola o princípio constitucional da protecção da confiança previsto no artigo 2.º, da Constituição da República Portuguesa.» [22]Direito das Obrigações - (Parte Especial) – Contratos, Almedina, 2000, pp. 26-27. [23]Direito das Obrigações, cit., pp. 31-32. [24]O Contrato de Compra e Venda no Direito Civil, in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 43, 1987, Tomo III, pp. 593-594. [25] Ac. do S.T.J. de 21.03.2017, Proc. n.º 427/13.8TVLSB.L1.S1 (Fonseca Ramos), in www.dgsi.pt. [26]Venda Real e (alegada) venda obrigacional no Direito civil, no Direito Comercial e no âmbito do Direito dos valores mobiliários, in Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Ano LXII, 2021, N.º 2, p. 681. [27]Contrato de Compra e Venda – Noções Fundamentais, Almedina, 2007, pp. 12- [28]«Orlando de Carvalho, Direito das coisas (Do direito das coisas em geral), Centelha, Coimbra, 1977, pág. 274.» [29]Contrato…, cit., pp. 36-37. [30]Contrato…, cit., pp. 37-39. [31]«Cf. Fernando Andrade Pires de Lima/João de Matos Antunes Varela, Código Civil anotado, Vol. II, cit., pág. 183.» [32] A decisão do tribunal a quo sobre a matéria de facto não foi objeto de impugnação. [33]O novo regime do direito de preferência do arrendamento urbano, in Código Civil – Livro do Cinquentenário, Coordenação de António Menezes Cordeiro, Vol. II. CIDP – Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, Almedina, 2019, pp. 278-279. [34]Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, pp. 262-263. [35] Importa ter presente que o texto remonta a 2014, logo, a referência ao art. 1091.º do CC reporta-se à redação do preceito anterior à Lei n.º 64/2018, de 29.10. [36]Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, Almedina, 2014, p. 262. [37] O destacado a negrito é da nossa autoria. [38] O destaco a negrito é, uma vez mais, da nossa autoria. [39] Veja-se o Ac. do TC n.º 583/2016 (Teles Pereira), onde, aliás, são referidos outros acórdãos daquele Tribunal no mesmo sentido.