CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MAUS TRATOS
Sumário

I – A prática de crime de injúria e difamação entre pessoas ligadas por alguma das relações elencadas nas alíneas do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal não configura necessariamente maus tratos psíquicos (nem a prática de agressões físicas entre essas pessoas configura necessariamente maus tratos físicos) e, por essa via, um crime de violência doméstica.
II - É certo que a prática de crimes de injúria e difamação se traduz sempre nalguma forma de atentado à dignidade da pessoa visada; mas a violação da dignidade humana ínsita no crime de violência doméstica é mais do que isso, representa, numa visão própria da conhecida fórmula de Kant, alguma forma de “coisificação” da pessoa, da sua degradação a objeto, da sua instrumentalização em função de fins do agente do crime.
II - Precisamente por isso, porque está em causa a “coisificação” da pessoa, e embora tal não constitua elemento do tipo de crime, a violência doméstica supõe normalmente (no plano sociológico e criminológico) uma relação assimétrica, uma “subordinação existencial” da vítima em relação ao agressor e não se coaduna bem com uma situação de reciprocidade de agressões.
IV – No caso em apreço, deve considerar-se não indiciado que a conduta da arguida tal como vem descrita no requerimento de abertura de instrução (inegavelmente reprovável a vários títulos) seja suscetível de, por si só, causar danos à saúde psíquica do assistente em termos de tal modo relevantes que afetem a sua dignidade como pessoa; nem se afigura que esteja em causa o “livre desenvolvimento da personalidade” do assistente.

Texto Integral

Proc. nº 429/20.8PHVNG.P1

Acordam os juízes, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto

I – O assistente veio interpor recurso do douto despacho do Juiz 4 do Juízo de Instrução Criminal do Porto do Tribunal Judicial da Comarca do Porto que não pronunciou AA pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b, do Código Penal

Da motivação deste recurso constam as seguintes conclusões:
«1ª Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória que não pronunciou a arguida nos presentes autos pela prática de um crime de violência doméstica.
2ª Apesar da prolação do acórdão de 6/4/22 deste Relação que ordenou que, entre o mais, se fizesse a indicação e exame crítico da prova produzida, por forma a concluir-se pela sua indiciação ou não indiciação, na decisão instrutória não levou a efeito.
3ª A não indiciação dos factos constantes do ponto 1 dos não indiciados colide frontalmente com os factos indiciados nos pontos 3 a 9 nos quais se descrevem factos que indiciam exactamente que «Durante a relação de namoro que existiu entre o assistente e a arguida no período de 05/07/2019 a 20 /06 /2020, a arguida injuriou o assistente” – dir-se-á até que injuriou e difamou o assistente.
4ª Por outro lado, na própria decisão instrutória concluiu-se que a relação do assistente com a arguida foi ciumenta de ambas as partes. Daí que, a factualidade do ponto 1 dos factos não indiciados, deve ser dada como indiciada.
5ª Mas, ainda que assim não se entenda é manifesta a contradição entre os factos indiciados e não indiciados que deve ser tida por insanável e que (a não se darem como indiciados tais factos) deveria dar lugar à constatação de que a decisão incorre em contradição insanável entre os factos indiciados e não indiciados (artº 410º nº2 al. b) do CPP).
6ª Por outro lado, deve também dar-se como indiciado que a arguida agrediu o assistente e que o tentou controlar, sendo que este último facto decorre dos restantes alegados no requerimento de abertura da instrução.
7ª O único meio de prova citado na decisão recorrida para além dos depoimentos prestados é a sentença proferida no Proc. nº 666/20.5PIPRT. No entanto, nem a referida sentença está transitada em julgado, nem pode substituir os meios de prova produzidos nos presentes autos, nem sobre a factualidade aí dada como provada ou não provada foi produzida qualquer prova, nem sequer os factos aí dados como provados colidem ou contradizem os alegados no requerimento de instrução.
8ª Por outro lado, o argumento de que relação entre Arguida e Assistente caracterizou-se como ciumenta de ambas as partes e, por outro lado, os comportamentos apurados e imputados à aqui Arguida surgiram, no essencial, na sequência de idênticos comportamentos assumidos pelo ora Assistente., poderia, eventualmente levar a que se concluísse pela existência de retorsão, mas de uma forma ou de outra, os factos teriam que ser dados como indiciados.
9ª Quanto aos factos referentes ao A... dados como não indiciados – pontos 2 e 3 dos factos não indiciados -, o depoimento do ofendido surge coonestado pela testemunha BB (cfr. fls. 99) que afirmou ter visto as marcas que o assistente ostentava após o episódio que este relata reportado ao A... de 4/10/19 e pela testemunha CC (cfr. depoimento de fls. 103).
10ª Assim, tal factualidade deveria ter sido dada como indiciada com base no depoimento do ofendido e das testemunhas BB e CC.
11ª Quanto aos factos ocorridos em Guimarães – ponto 4 dos factos não indiciados – estes foram afirmados pelo assistente na sua queixa e, no pressuposto da valoração da sentença proferida no Proc. nº 666/20, foram até dados como provados nos pontos 10) e 11) da matéria assente e admitidos pela própria arguida nesses autos, embora reportados a 2 dias antes, quando é certo que tais factos decorreram no dia 25/12.
12ª Por outro lado – e isto aplica-se a toda a factualidade dada como não indiciada -, o silêncio da arguida não pode ser valorado como um contra-indicio.
13ª De facto, a arguida nos presentes autos teve a maior das liberdades para declarar o que bem entendeu, sabendo que se encontrava obrigada a contraditar as imputações que lhe faziam, pelo que, se não o quis fazer especificadamente, sibi imputet.
14ª Não se pode pretender que as declarações do ofendido, coonestadas, quer por depoimento indirecto quer por depoimento directo pelas testemunhas arroladas, não tenham qualquer validade, pois que se o silêncio da arguida ou as suas declarações de simples negação não a podem desfavorecer, neste caso também não a podem beneficiar.
15ª Por outro lado, nenhuma razão existia para que o recorrente prestasse falsas declarações, tanto mais quanto a aspectos tão íntimos da relação que mantinha com a arguida, pelo que devem ser valoradas tais declarações e dados como indiciados os factos em causa.
16ª A prova dos factos 5 a 8 do rol dos factos não indiciados decorre concludentemente dos factos concernentes ao elemento objectivo do crime.
17ª Da prova produzida decorre que a arguida, com a sua conduta, injuriou o assistente por diversas vezes por escrito e verbalmente, difamou-o e agrediu-o, pretendendo humilhar, desrespeitar, achincalhar, desconsiderar, rebaixar e menosprezar o assistente, com o intuito de lhe causar prejuízo para a sua saúde, integridade física e psíquica, dignidade, honra e consideração pessoal.
18ª De facto, o dolo apesar de ser um fenómeno da vida psíquica, não sendo passível de apreensão directa, pode retirar-se das circunstâncias da infracção, pelo que os factos narrados no requerimento de abertura de instrução são passíveis de atingir a integridade física e psíquica e a dignidade do assistente, bem como a sua honra e consideração.
19ª Na verdade, quer as injúrias quer as imputações feitas a total despropósito perante terceiros, a estes afirmando que o assistente “ia comer” amigas suas e que tinha um pénis mais pequeno que o seu anterior namorado, quer as agressões que perpetrou são capazes de levar a que a arguida seja pronunciada pela prática de um crime de violência doméstica previsto e punido pelo artº 152º nº1 al. b) do Código Penal.
20ª Daí que deva dar-se por indiciada a factualidade dos pontos de facto 5 a 8 da matéria não indiciada, tal com o a restante factualidade alegada no requerimento de instrução.
21ª Por último sempre se dirá que o crime de violência doméstica consome todos os demais tipos legais, cujos factos se encontram alegados no requerimento de instrução in casu, designadamente os crimes de injúrias, e de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos respetivamente pelos artigos 181º nº1 e 143º nº1 do Código Penal, pelo que mesmo que fosse de entender que inexistem indícios da prática do crime de violência doméstica, sempre a decisão instrutória havia de apreciar os indícios relativamente a tais incriminações.
22º A decisão instrutória recorrida violou a norma do artº 308º nº1 do Código de Processo Penal e as normas descritas na motivação que aqui se dão por integralmente reproduzidas breviatis causa, não podendo, pois, manter-se, devendo, em consequência a arguida ser pronunciada pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b), do Código Penal.»

O Ministério Público junto do Tribunal de primeira instância apresentou resposta a tal motivação, pugnando pelo não provimento do recurso.

O Ministério Público junto desta instância apôs o seu visto.

Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora decidir.

II – As questões que importa decidir são, de acordo com as conclusões da motivação do recurso, as seguintes:
- saber se o despacho recorrido enferma de insuficiente fundamentação e contradição insanável da fundamentação;
- saber se dos autos resultam indícios suficientes da prática, pela arguida AA, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b), do Código Penal, devendo, por isso, ser esta pronunciada pela prática desse crime

III – É o seguinte o teor do douto despacho recorrido:

«Decisão do Tribunal da Relação do Porto de fls. 64 e seguintes do Apenso de Recurso.
Por decisão proferida pelo Tribunal da Relação do Porto, na sequência do recurso da decisão instrutória apresentado pelo Assistente DD, foi decidido julgar «verificada a irregularidade do artigo 123.º, n.º 2, por omissão dos reais fundamentos da decisão de não pronunciar a arguida pelos factos referenciados no requerimento de abertura de instrução, declara-se inválido o despacho de não pronúncia e todos os atos posteriores dele dependentes, devendo ser substituído por outro que se pronuncie sobre a existência ou não de indícios suficientes da prática dos factos individuais vertidos nos artigos 49.º e ss do requerimento de abertura da instrução e explicite e exteriorize no respetivo texto, ainda que de forma simples e breve, os fundamentos de facto [enumeração factual e concretos meios de prova atendidos ou não e em que moldes] e de direito que sustentam o respetivo juízo indiciário.».
Assim, na sequência do decidido e de acordo com o disposto no n.º 1 do artigo 4.º, da Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, impõe-se suprir o vício apontado.
Importa precisar que, declarada a irregularidade da decisão instrutória nos termos supra referidos, não vislumbramos qualquer imposição legal à realização de novo debate instrutório, pelo que de imediato passamos a corrigir a decisão instrutória proferida nos autos em conformidade com o decidido no acórdão em apreço:

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DECISÃO INSTRUTÓRIA

• Relatório.

Finda a fase do inquérito, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, veio o assistente DD requerer a abertura da instrução (cfr. fls. 159 e seguintes), no sentido de ser proferido despacho de pronúncia da arguida AA pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal.
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Foi ainda deduzida, a fls. 148 e seguintes, acusação particular pelo Assistente DD contra a arguida AA, imputando-lhe a prática de três crimes de injúria, previsto e punido pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de difamação, previsto e punido pelo artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal
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A fase da instrução foi declarada aberta por despacho judicial datado de 21/07/2021 e constante de fls. 211 dos autos.
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Não se tendo vislumbrado qualquer acto instrutório cuja prática revestisse interesse para a descoberta da verdade, nem tendo sido requerida a realização de mais algum, efectuou-se o debate instrutório, que decorreu em conformidade com o disposto nos artigos 298.º, 301.º e 302.º, todos do Código de Processo Penal.
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Foi proferida a decisão instrutória constante de fls. 262 e seguintes, que entendeu não pronunciar a arguida AA pela prática do imputado crime de violência doméstica.
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Interposto recurso daquela decisão instrutória, foi julgada verificada a irregularidade da mesma, por falta de fundamentação e determinada a sua correcção.
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Ouvidos os sujeitos processuais, todos concordaram em que a nova decisão instrutória fosse proferida pelo signatário e já não pela antecessora, autora da decisão revogada.
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Mantendo a instância a sua integral validade e regularidade, nada obstando a que se conheça do mérito, cumpre, nos termos do artigo 308.º do mesmo diploma legal, proferir decisão instrutória.
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• Questões a decidir.

Da conjugação do que se acaba de deixar escrito com tudo quanto vem alegado no requerimento de abertura da instrução, podemos afirmar que as questões a decidir na presente instrução serão as seguintes:
- (In)suficiência da prova produzida nos autos para sustentar a factualidade alegada pelo Assistente no requerimento de abertura da instrução;
- Qualificação jurídica dos factos que se vierem a ter por suficientemente indiciados e verificação dos requisitos legais para o preenchimento do tipo legal do crime imputado.
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• Do âmbito e objectivo da fase da instrução.

Começando, por uma questão de lógica interpretativa da presente decisão, por delimitar o âmbito da fase da instrução, importa referir que esta fase processual visa, segundo o que nos diz o artigo 286.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento». Configura-se assim como fase processual sempre facultativa – cfr. n.º 2 do mesmo dispositivo – destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida.
Como facilmente se depreende do citado dispositivo legal, a instrução configura-se no Código de Processo Penal como actividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respectivo enquadramento jurídico-penal.
Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe do artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, «se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia».
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de acto processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como deixamos dito, na suficiência de indícios, tidos estes como as causas ou consequências, morais ou materiais, recordações e sinais de um crime e/ou do seu agente que sejam captadas durante a investigação.
Depois, no n.º 2 deste mesmo dispositivo legal, remete-se, entre outros, para o n.º 2 do artigo 283.º, nos termos do qual «consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança».
Isto posto, para que surja uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final. Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento.
Todavia, como a simples sujeição de alguém a julgamento não é um acto em si mesmo neutro, acarretando sempre, além dos incómodos e independentemente de a decisão final ser de absolvição, consequências, quer do ponto de vista moral, quer do ponto de vista jurídico, entendeu o legislador que tal só deveria ocorrer quando existissem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado.
Assim sendo, para fundar uma decisão de pronúncia não é necessária uma certeza da infracção, mas serem bastantes os factos indiciários, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Neste sentido, segue-se Castanheira Neves, quando perfilha a tese segundo a qual na suficiência de indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final» apenas com a limitação inerente à fase instrutória, no âmbito da qual não são naturalmente mobilizados «os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação».
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• Da fundamentação de facto.

No requerimento de abertura da instrução que apresentou o Assistente imputa à Arguida a prática dos seguintes factos:
«1 – O assistente e a arguida começaram a namorar no dia 05/07/2019.
2 – Desde essa data, embora o assistente vivesse na Alemanha e a arguida vivesse em Matosinhos, mantiveram uma relação afectiva, mantendo relações de sexo, vivendo episodicamente juntos, fizeram viagens românticas, faziam juntos as suas refeições e em Janeiro de 2020 noivaram.
3 – Durante a relação de namoro que existiu entre o assistente e a arguida no período de 05/07/2019 a 20/06/2020, a arguida injuriou e agrediu o assistente, tentando controlá-lo, demonstrando ciúmes de forma exacerbada.
4 – No dia 14/08/2019, durante um jantar destinado a celebrar o aniversário da arguida, realizado no Restaurante ..., em Vila do Conde, a arguida afirmou falsamente perante todos os presentes que este se havia envolvido com duas amigas da mesma, dizendo-lhe: “Vai comê-las”.
5 – No dia 04/10/2019, a arguida deslocou-se à Alemanha, Munique, para estar com o assistente, tendo ambos se dirigido ao conhecido festival de cerveja A....
6 – Enquanto aí se encontravam, a arguida gerou uma discussão com o assistente, durante a qual o acusou falsamente de ter falado com outra mulher com intenção de ter relações sexuais com esta, tendo agarrado com força o pulso esquerdo do assistente, arranhando-o nesse mesmo pulso e causando-lhe dores.
7 – No dia 25/12/2019, durante a tarde, tendo o assistente se deslocado a casa dos pais da arguida, sita na Avenida ..., em Guimarães, para se encontrar com a arguida e estacionado o veículo perto de tal casa, a arguida, durante uma discussão por razões de ciúmes, dentro do veículo, desferiu-lhe um golpe profundo na mão esquerda, utilizando umas chaves e desferiu-lhe um soco na face direita.
8 – No dia 17/01/2020, quando a arguida e o assistente jantavam com amigos, esta dirigindo-se aos circunstantes afirmou: “o pénis do DD é mais pequeno que o do meu ex-namorado”.
9 – No dia 24/02/2020, a arguida dirigiu-se ao assistente em mensagem enviada através da rede social Instagram apelidando-o, por diversas vezes, de “monte de merda”.
10 – No dia 28/02/2020, pelas 14:34 horas, a arguida enviou uma mensagem pela rede social facebook à ex-namorada do assistente EE, na qual apelidou o assistente de “psicopata” e “manipulador”.
11 – Entre os dias 25/04 e 01/05/2020, a arguida enviou do seu telemóvel com o número 917.423.947, para o telemóvel do assistente, mensagens de texto nas quais dizia, entre o mais: “Palmas para ti, seu monte de merda/Farsa da sociedade. Desaparece seu lixo. (...) Continua a ler literatura avançada do teu Russel e já agora faz busca no Google dele com a palavra psycopath ... Aparece muita coisa. O teu ídolo também é um psicopata como tu ...” “Monte de merda” “Monte de merda não, a maior empreendedor do grande porto e arredores”.
12 – Em data que o assistente não pode precisar, mas situada entre 25/04 e 01/05/2020, a arguida devolveu o anel de noivado que o assistente lhe havia dado com um papel no qual escreveu: “Não o enfies no cú que ainda gostas, seu gayzolas reprimido”.
13 – No dia 16/06/2020, na sequência de uma discussão, a arguida enviou ao assistente três mensagens de áudio, uma mensagem escrita via whatsaap e uma mensagem de vídeo via youtube nas quais chamava ao assistente “mentiroso”, “traidor” e dizia que o mesmo não era uma pessoa séria.
14 – A arguida, com a sua conduta, pretendeu infligir ao assistente maus tratos, atingindo a sua dignidade enquanto pessoa, desta forma lhe causar humilhação e angústia.
15 – Com o comportamento descrito, a arguida pretendeu, de forma conseguida, molestar o corpo do assistente, causando-lhe dor e pretendendo humilhá-lo, mostrando-se indiferente pelo estado em que o deixava.
16 – A arguida proferiu as expressões injuriosas acima referidas com intenção de atingir o assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu.
17 – A arguida proferiu as referidas expressões, de conteúdo objetivamente ofensivo, em especial atendendo às circunstâncias em que foram proferidas, de viva voz, com a manifesta intenção de ofender a assistente na sua honra, integridade psíquica e dignidade.
18 - A arguida com a sua conduta pretendeu humilhar, desrespeitar, achincalhar, desconsiderar, rebaixar e menosprezar o assistente,
19 – Com o intuito de causar-lhe prejuízo da sua saúde, integridade física e psíquica, dignidade, honra e consideração pessoal.
20 – Agiu a arguida de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as apontadas condutas eram punidas e proibidas por lei.».
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Parte substancial dos factos em apreço nos presentes autos foram, directa ou indirectamente, objecto de discussão e prova no âmbito do processo n.º 666/20.PIPRT, que correu termos no Juízo Local Criminal do Porto – Juiz 4 – e cuja sentença se encontra junta aos presentes autos a fls. 118 e seguintes.
Da prova ali produzida resulta que a relação entre Assistente e Arguida caracterizou-se como ciumenta (de ambas as partes).
Mais se extrai dos autos que a denúncia que deu origem aos presentes autos foi apresentada pouco dias depois de ter sido deduzida acusação contra o Assistente, ali arguido, no âmbito do processo n.º 666/20.PIPRT – cfr. fls. 3, 38 e 47.
Quanto à prova produzida nos presentes autos, impõe-se duas ou três notas. O Assistente, quando inquirido a fls. 57 e seguintes, confirmou o teor da denúncia e juntou cópia de um conjunto de mensagens trocadas entre ambos – Assistente e Arguida.
Do teor dessas mensagens extrai-se, sem margem para dúvidas, a conclusão supra referida quanto à natureza da relação amorosa – veja-se ainda os teor das mensagens constantes de fls. 84 a 97.
Inquirido BB, amigo do Assistente, referiu a fls. 98 algumas situações que presenciou e em que a Arguida terá apelidado o Arguido de «cabrão, monte de lixo, porco, psicopata, mentiroso».
Inquirida FF, ex-namorada do Assistente, confirmou a fls. 100 a troca de mensagens com a Arguida e nada mais acrescentou de relevante.
CC, amigo do Assistente, disse a fls. 103 ter presenciado ao evento relacionado com a devolução do anel e ter lido a mensagem que acompanhava o embrulho, bem como ter visto o Assistente em Outubro de 2019 com marcas de unhas no pulso esquerdo, tendo este dito na altura que havia sido agredido pela Arguida.
A arguida AA, quando interrogada a fls. 110, referiu não pretender prestar declarações.
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Sendo esta a prova produzida nos presentes autos, cremos não poder ser afirmado que durante a relação de namoro que existiu entre o Assistente e a Arguida, esta tenha tentado controlar o Assistente, demonstrando ciúmes de forma exacerbada.
Aquilo que se afigura poder ser extraído dos autos é que Assistente e Arguida mantinha uma relação amorosa pautada por ciúmes mútuos, algo turbulenta ou mesmo conflituosa.
De igual forma não resulta suficientemente indiciado que a Arguida tenha agredido o Assistente, conforme referido no ponto 5 da acusação pública.
Por outro lado, na sequência do que acabamos de deixar dito e da análise conjugada de toda a prova recolhida nos autos, não se afigura a este Tribunal poder ser afirmado que a Arguida pretendeu infligir ao assistente maus tratos ao Assistente, atingindo-o na sua dignidade enquanto pessoa e causando-lhe humilhação e angústia, tanto mais que praticamente todos os comportamentos relevantes e infra tidos por suficientemente indiciados surgiram como resposta a idênticos ou até mais graves comportamentos assumidos pelo Assistente contra a Arguida.
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Diremos, pois e em síntese, quanto a este concreto segmento da decisão instrutória que a prova produzida nos autos permite ter por suficientemente indiciada a seguinte matéria de facto descrita no requerimento de abertura da instrução:
«1 – O assistente e a arguida começaram a namorar no dia 05/07/2019.
2 – Desde essa data, embora o assistente vivesse na Alemanha e a arguida vivesse em Matosinhos, mantiveram uma relação afectiva, mantendo relações de sexo, vivendo episodicamente juntos, fizeram viagens românticas, faziam juntos as suas refeições e em Janeiro de 2020 noivaram.
3 – No dia 14/08/2019, durante um jantar destinado a celebrar o aniversário da arguida, realizado no Restaurante ..., em Vila do Conde, a arguida afirmou falsamente perante todos os presentes que este se havia envolvido com duas amigas da mesma, dizendo-lhe: “Vai comê-las”.
4 – No dia 17/01/2020, quando a arguida e o assistente jantavam com amigos, esta dirigindo-se aos circunstantes afirmou: “o pénis do DD é mais pequeno que o do meu ex-namorado”.
5 – No dia 24/02/2020, a arguida dirigiu-se ao assistente em mensagem enviada através da rede social Instagram apelidando-o, por diversas vezes, de “monte de merda”.
6 – No dia 28/02/2020, pelas 14:34 horas, a arguida enviou uma mensagem pela rede social facebook à ex-namorada do assistente EE, na qual apelidou o assistente de “psicopata” e “manipulador”.
7 – Entre os dias 25/04 e 01/05/2020, a arguida enviou do seu telemóvel, com o número 917.423.947, para o telemóvel do assistente, mensagens de texto nas quais dizia, entre o mais: “Palmas para ti, seu monte de merda/Farsa da sociedade. Desaparece seu lixo. (...) Continua a ler literatura avançada do teu Russel e já agora faz busca no Google dele com a palavra psycopath ... Aparece muita coisa. O teu ídolo também é um psicopata como tu ... “Monte de merda não, a maior empreendedor do grande porto e arredores”.
8 – Em data que o assistente não pode precisar, mas situada entre 25/04 e 01/05/2020, a arguida devolveu o anel de noivado que o assistente lhe havia dado com um papel no qual escreveu: “Não o enfies no cú que ainda gostas, seu gayzolas reprimido”.
9 – No dia 16/06/2020, na sequência de uma discussão, a arguida enviou ao assistente três mensagens de áudio, uma mensagem escrita via whatsaap e uma mensagem de vídeo via youtube nas quais chamava ao assistente “mentiroso”, “traidor” e dizia que o mesmo não era uma pessoa séria.
10 – A arguida proferiu as expressões injuriosas acima referidas com intenção de atingir o assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu.
11 – A arguida proferiu as referidas expressões, de conteúdo objetivamente ofensivo, em especial atendendo às circunstâncias em que foram proferidas, de viva voz, com a manifesta intenção de ofender a assistente na sua honra, integridade psíquica e dignidade.
12 – Agiu a arguida de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as apontadas condutas eram punidas e proibidas por lei.».
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E por não indiciada a seguinte matéria de facto descrita no requerimento de abertura da instrução:
«1 – Durante a relação de namoro que existiu entre o assistente e a arguida no período de 05/07/2019 a 20/06/2020, a arguida injuriou e agrediu o assistente, tentando controlá-lo, demonstrando ciúmes de forma exacerbada.
2 – No dia 04/10/2019, a arguida deslocou-se à Alemanha, Munique, para estar com o assistente, tendo ambos se dirigido ao conhecido festival de cerveja A....
3 – Enquanto aí se encontravam, a arguida gerou uma discussão com o assistente, durante a qual o acusou falsamente de ter falado com outra mulher com intenção de ter relações sexuais com esta, tendo agarrado com força o pulso esquerdo do assistente, arranhando-o nesse mesmo pulso e causando-lhe dores.
4 – No dia 25/12/2019, durante a tarde, tendo o assistente se deslocado a casa dos pais da arguida, sita na Avenida ..., em Guimarães, para se encontrar com a arguida e estacionado o veículo perto de tal casa, a arguida, durante uma discussão por razões de ciúmes, dentro do veículo, desferiu-lhe um golpe profundo na mão esquerda, utilizando umas chaves e desferiu-lhe um soco na face direita.
5 – A arguida, com a sua conduta, pretendeu infligir ao assistente maus tratos, atingindo a sua dignidade enquanto pessoa, desta forma lhe causar humilhação e angústia.
6 – Com o comportamento descrito, a arguida pretendeu, de forma conseguida, molestar o corpo do assistente, causando-lhe dor e pretendendo humilhá-lo, mostrando-se indiferente pelo estado em que o deixava.
7 – A arguida com a sua conduta pretendeu humilhar, desrespeitar, achincalhar, desconsiderar, rebaixar e menosprezar o assistente,
8 – Com o intuito de causar-lhe prejuízo da sua saúde, integridade física e psíquica, dignidade, honra e consideração pessoal.».
*
• Fundamentação de direito.

Conforme supra referido, na sequência do despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público veio o Assistente requerer a abertura da instrução, no sentido de ser proferido despacho de pronúncia da Arguida pela prática de um crime de violência doméstica.
Em relação a este tipo legal de crime, estabelece o artigo 152.º do Código Penal, sob a epígrafe «Violência doméstica», que:
«1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;
É punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
É punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
3 - Se dos factos previstos no n.º 1 resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
4 - Nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
6 - Quem for condenado por crime previsto neste artigo pode, atenta a concreta gravidade do facto e a sua conexão com a função exercida pelo agente, ser inibido do exercício do poder paternal, da tutela ou da curatela por um período de um a dez anos.».
Na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que originou a Revisão do Código Penal introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, e a inclusão no texto legal do tipo legal do crime em apreço, menciona-se que entre as principais orientações se destacam «o reforço da tutela de pessoas particularmente indefesas, como as crianças, os menores e as vítimas de violência doméstica, maus tratos ou discriminação», salientando-se o seguinte: «Ainda em sede de crimes contra a integridade física, os maus tratos, a violência doméstica e a infracção de regras de segurança passam a ser tipificados em preceitos distintos, em homenagem às variações de bem jurídico protegido. Na descrição típica da violência doméstica e dos maus tratos, recorre-se, em alternativa, às ideias de reiteração e intensidade, para esclarecer que não é imprescindível uma continuação criminosa. No crime de violência doméstica, é ampliado o âmbito subjectivo do crime passando a incluir as situações de violência doméstica que envolvam ex-cônjuges e pessoas de outro ou do mesmo sexo que mantenham ou tenham mantido uma relação análoga à dos cônjuges. Introduz-se uma agravação do limite mínimo da pena, no caso de o facto ser praticado na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima, ainda que comum ao agente. À proibição de contacto com a vítima, cujos limites são agravados e pode incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho com fiscalização por meios de controlo à distância, acrescentam-se as penas acessórias de proibição de uso e porte de armas, obrigação de frequência de programas contra a violência doméstica e inibição do exercício paternal, da tutela ou da curatela.».
O bem jurídico protegido no crime de violência doméstica, então autonomizado do crime de maus tratos a que alude o artigo 152.º-A, do Código Penal, continua a ser plural, complexo, abrangendo a integridade corporal, saúde física e psíquica e a dignidade da pessoa humana, em contexto de relação conjugal ou análoga e, actualmente, mesmo após cessar essa relação.
Com efeito, apesar das alterações introduzidas em 2007, não se vê razão para alterar o entendimento, já sedimentado, sobre a natureza do bem jurídico protegido, como sendo a saúde, enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral. A dimensão de garantia que é corolário da dignidade da pessoa humana fundamenta a pena reforçada e a natureza pública, não bastando qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para preenchimento do tipo legal.
O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos.
Enquanto nos maus tratos físicos se incluem os castigos corporais e as ofensas corporais simples, nos maus tratos psíquicos compreendem-se, designadamente, humilhações, provocações, ameaças e curtas privações de liberdade de movimentos.
Na vigência do crime de maus tratos, na redacção dada ao artigo 152.º, do Código Penal, pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, esclarecia já o Supremo Tribunal de Justiça que não são todas as ofensas que cabem na previsão legal, «...mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade ou, dito de outra maneira, que fundamentalmente traduzam crueldade, ou insensibilidade, ou, até, vingança desnecessária por parte do agente».
O crime de violência doméstica visa, assim, proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher.
Acresce agora que, do texto do artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, resulta que o crime de violência doméstica pode ser praticado «…de modo reiterado ou não…».
Dito de outra forma, admite-se que um singular comportamento bastará para a verificação do crime de violência doméstica, sempre que assuma uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge ou das pessoas referidas naquele artigo.
O que importa saber é se a conduta do agente, pelo seu carácter violento ou pela sua configuração global de desrespeito pela pessoa da vítima ou de desejo de prevalência de dominação sobre a mesma, é susceptível de ser classificada como «maus tratos».
Por isso, a conduta do arguido que, embora penalmente relevante, surge no contexto de uma relação que apenas esporádica e negativamente se manifestava, não espelha uma situação de maus tratos da qual resulte ou seja susceptível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima.
De referir ainda que, o crime em causa exige o dolo, isto é, o conhecimento e vontade de realização da conduta antijurídica, com consciência da ilicitude.
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Revertendo ao caso dos autos, tendo por presente a matéria de facto descrita no requerimento de abertura da instrução e a supra tida por suficientemente indiciada/não indiciada, afigura-se-nos que, ainda que se possa entender tratar-se de uma situação limite, a conclusão há-de ser no sentido do não preenchimento do tipo legal do crime imputado à Arguida.
Com efeito, o conjunto factual invocado, apesar de desrespeitoso e atentatório da dignidade do Assistente, não se afigura atingir aquele patamar que permita afirmar uma conduta efectivamente maltratante que coloque em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos. Ou seja, fica, ainda assim, aquém do legalmente exigido para ser entendida como violência doméstica.
Sobressaem factos injuriosos/difamatórios, mas que constam já da acusação particular deduzida pelo Assistente nos autos.
Importa salientar que, nomeadamente de acordo com o apurado no processo n.º 666/20.5PIPRT, supra referido, que, por um lado, a relação entre Arguida e Assistente caracterizou-se como ciumenta de ambas as partes e, por outro lado, os comportamentos apurados e imputados à aqui Arguida surgiram, no essencial, na sequência de idênticos comportamentos assumidos pelo ora Assistente.
Em qualquer caso, e do que ora se discute nos presentes autos, reafirmamos o referido supra: o conjunto factual apurado, apesar de desrespeitoso e atentatório da dignidade do Assistente, não se afigura atingir aquele patamar que permita afirmar uma conduta efectivamente maltratante que coloque em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à sua degradação pelos maus-tratos. Ou seja, fica, ainda assim, aquém do legalmente exigido para ser entendido como violência doméstica.
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• Decisão.

Nestes termos, tendo em atenção tudo quanto acabo de deixar dito e sem necessidade de ulteriores considerações, decido negar total provimento ao requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente DD e, em consequência, não pronuncio a arguida AA pela prática do crime de violência doméstica que lhe vinha imputado no requerimento de abertura da instrução, ordenando, nesta parte, o oportuno arquivamento dos autos.
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Transitada em julgado a presente decisão, remeta os autos à distribuição para julgamento em processo comum, perante Tribunal Singular, para apreciação da acusação particular deduzida nos autos a fls. 148 e seguintes.»

IV 1. – Cumpre decidir.
Vem o assistente e recorrente alegar que o despacho recorrido enferma de insuficiente fundamentação (desrespeitando assim o que fora determinado por anterior acórdão deste Relação) e contradição insanável da fundamentação (porque os factos tidos por não indiciados e constantes do ponto 1 do elenco respetivo colidirão frontalmente com os tidos por indiciados e constantes dos pontos 3 a 9 do elenco respetivo),
Vejamos.
Como facilmente se evidencia da leitura do despacho recorrido, acima transcrito, este não deixa de satisfazer as exigências de fundamentação impostas por anterior acórdão desta Relação. São indicados discriminadamente os factos indiciados e não indiciados e são indicados os meios de prova (documental e testemunhal) em que se baseia essa decisão sobre a verificação, ou não verificação, desses indícios.
Quanto à alegada contradição entre os factos descritos no ponto 1 do elenco dos factos não indiciados («Durante a relação de namoro que existiu entre o assistente e a arguida no período de 05/07/2019 a 20/06/2020, a arguida injuriou e agrediu o assistente, tentando controlá-lo, demonstrando ciúmes de forma exacerbada») e os factos descritos nos pontos 3 a 9 do elenco dos factos indiciados (factos que configuram a prática de crimes de injúria e difamação), uma interpretação razoável dessa frase não leva a considerar que não se indicia qualquer prática de crimes de injúria, mas que não se indicia que através de injúrias e agressões a arguida tentou controlar o assistente demonstrando ciúmes de foram exacerbada. É isto que não se indicia. Nessa medida, não estamos perante alguma contradição.
Deverá, assim, ser negado provimento ao recurso quanto a estes aspetos.

IV 2. –
Vem o assistente e recorrente alegar que dos autos resultam indícios suficientes da prática, pela arguida AA, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, b), do Código Penal, devendo, por isso, ser esta pronunciada pela prática desse crime. Alega que deveriam considerar-se indiciados os factos referidos na queixa que apresentou e relativos aos episódios ocorridos em Munique e em Guimarães, com base nos depoimentos das testemunhas BB e CC (que afirmaram ter observado no assistente marcas das agressões físicas em causa) e nas suas próprias declarações (que devam considerar-se credíveis, sendo que em muitas situação de violência doméstica a prova se baseia apenas nas declarações do ofendido). Alega que estão verificados os elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de violência doméstica, pois a arguida, com a sua conduta, pretendeu e logrou «humilhar, desrespeitar, achincalhar, desconsiderar, rebaixar e menosprezar o assistente, com o intuito de lhe causar prejuízo para a sua saúde, integridade física e psíquica, dignidade, honra e consideração pessoal». Alega que, ainda que não se considere estarmos perante um crime de violência doméstica, sempre a arguida deveria ser pronunciada pela prática de crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
Vejamos.
Na verdade, a tese perfilhada no despacho de arquivamento do Ministério Público, contra o qual reagiu o assistente através do requerimento de abertura de instrução, e no despacho de não pronúncia em apreço é a de que estaremos perante crimes de injúrias ou difamação, mas não perante um crime de violência doméstica.
Assim, na análise desta questão, há que identificar um traço distintivo entre o crime de violência doméstica e os crimes de ofensas à integridade física, injúrias, ameaças, coação ou outros, praticados contra as potenciais vítimas desse crime.
Esse traço distintivo dependerá da perspetiva adotada a respeito do bem jurídico protegido através da incriminação em apreço. É à luz dessa perspetiva que deverá ser preenchido o conceito de “maus tratos” a que alude o citado artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal.
De acordo com Plácido Conde Fernandes, esse bem jurídico é «a saúde enquanto manifestação da dignidade da pessoa humana e da garantia da integridade pessoal contra os tratos cruéis, degradantes ou desumanos, num bem jurídico complexo que abrange a tutela da sua saúde física, psíquica, emocional e moral». Para que uma conduta integre o crime em questão, exige-se «uma intensidade do desvalor, da acção e do resultado, que seja apta e bastante a molestar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde física, psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana» (in «Violência doméstica – novo quadro penal e processual penal», Revista do CEJ, nº 8 (especial), 1º semestre de 2008, p. 304 a 308).
Para André Lamas Leite, «o fundamento último das acções abrangidas pelo tipo reconduz-se ao asseguramento das condições de livre desenvolvimento da personalidade de um indivíduo no âmbito de uma relação interpessoal próxima, de tipo familiar ou análogo» (in «A violência relacional íntima», Julgar, nº 12 (especial), Novembro de 2010, p. 49).
É de salientar que, como refere Nuno Brandão (in «A tutela penal especial da violência doméstica», Julgar, nº 12 (especial), novembro de 2010, p. 17 e 18), estamos perante um crime de perigo abstrato, que traduz uma tutela antecipada do bem jurídico protegido. Não é, pois, necessário, para que se verifique o crime em questão, que se tenham produzido efetivos danos na saúde psíquica ou emocional da vítima; basta que se pratiquem atos em abstrato sucetíveis de provocar tais danos.
A esta luz, afigura-se-nos que, mesmo que se considerassem indiciados todos os factos descritos no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente (quer os que configurarão crimes de injúria e difamação, quer os que configurarão crimes de ofensa à integridade física), não estaremos perante indícios da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º do Código Penal.
Na verdade, não podemos considerar que a prática de crime de injúria e difamação entre pessoas ligadas por alguma das relações elencadas nas alíneas do n.º 1 do artigo 152.º do Código Penal configura necessariamente maus tratos psíquicos (ou a prática de agressões físicas entre essas pessoas configura necessariamente maus tratos físicos) e, por essa via, um crime de violência doméstica.
É certo que a prática de crimes de injúria e difamação se traduz sempre nalguma forma de atentado à dignidade da pessoa visada. Mas a violação da dignidade humana ínsita no crime de violência doméstica é mais do que isso, representa, numa visão própria da conhecida fórmula de Kant, alguma forma de “coisificação” da pessoa, da sua degradação a objeto, da sua instrumentalização em função de fins do agente do crime.
Não nos parece que tal se verifique neste caso.
Precisamente por isso, porque está em causa a “coisificação” da pessoa, e embora tal não constitua elemento do tipo de crime (como alega o recorrente citando o acórdão da Relação de Évora de 26/972017, proc. n.º 518/14.8PCSTB.E1, relatado por António João Latas, acessível in www.dgsi.pt), a violência doméstica supõe normalmente (no plano sociológico e criminológico) uma relação assimétrica, uma “subordinação existencial” da vítima em relação ao agressor e não se coaduna bem com uma situação de reciprocidade de agressões. Ora, o caso em apreço situa-se mais num quadro de reciprocidade de agressões, mais do que de domínio e subordinação de um agressor em relação a uma vítima.
Também deve considerar-se não indiciado que a conduta da arguida tal como vem descrita no requerimento de abertura de instrução (inegavelmente reprovável a vários títulos) seja suscetível de, por si só, causar danos à saúde psíquica do assistente em termos de tal modo relevantes que afetem a sua dignidade como pessoa.
E também não se nos afigura que esteja em causa o “livre desenvolvimento da personalidade” do assistente.
Alega o assistente e recorrente que ainda que não se considere estarmos perante um crime de violência doméstica, sempre a arguida deveria ser pronunciada pela prática de crimes de injúria, p. e p. pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal e de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal.
No entanto, e nos que aos crimes de injúria e difamação diz respeito, crimes de natureza particular (cfr. artigo 188.º, n.º 1, do Código Penal), será a acusação particular (como foi efetivamente neste caso), não o despacho de pronúncia, a sede própria para submeter a arguida a julgamento.
Quanto à prática dos crimes de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, relativos aos factos descritos no requerimento de abertura de instrução como ocorridos em Munique e Guimarães, considerou o despacho recorrido, ao contrário do que considera o assistente e recorrente, que as declarações deste e os depoimentos de testemunhas que afirmam apenas ter visto no assistente marcas de agressões não são suficientes para considerar indiciada tal prática.
De qualquer modo, e estando excluída (pelas razões indicadas) a qualificação desses factos como integrando a prática de um crime de violência doméstica (de natureza pública), estará sempre vedada a pronúncia da arguida pela eventual prática desses crimes de ofensa à integridade física simples, pois estes têm natureza sem-pública (cfr. artigo 143.º, n.º 2, do Código Penal) e a queixa foi apresentada quando o direito respetivo já estava extinto, ou seja, mais de seis meses depois da prática desses factos (ver artigo 115.º, n.º 1, do Código Penal)
Assim, não merece reparo a não pronúncia da arguida, que se impõe à luz do disposto nos artigos 308.º, n.º 1, e 283.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Deverá, pois, ser negado provimento ao recurso.

O assistente e recorrente deverá ser condenado em taxa de justiça (artigo 515.º, n.º 1, b), do Código de Processo Penal e Tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais)

V – Pelo exposto, acordam os juízes da 1ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, mantendo o douto despacho recorrido.

Condenam o arguido e recorrente em 3 (três) UCs de taxa de justiça.

Notifique.

Porto, 13 de setembro de 2023
(processado em computador e revisto pelo signatário)
Pedro Vaz Pato
Paula Natércia Rocha
Maria do Rosário Martins [vencida nos termos da declaração de voto que se segue:
Declaração de voto vencida
Voto vencida pelas razões infra apontadas.
I- Quanto aos factos indiciados e não indiciados do elemento subjectivo
A decisão recorrida deu como indiciados os factos elencados sob os pontos 10 a 12.
Por sua vez, deu como não indiciados os factos descritos sob os pontos 5 a 8.
Com o devido respeito pelo entendimento do tribunal a quo afigura-se-me que estaremos desde logo perante uma contradição entre alguns estes factos.
Na verdade, por um lado, o tribunal a quo considerou estar suficientemente indiciado que a arguida “proferiu as expressões injuriosas acima referidas com intenção de atingir o assistente na sua honra e consideração social, o que conseguiu” e “proferiu as referidas expressões com a manifesta intenção de ofender a assistente na sua honra, integridade psíquica e dignidade” (factos indiciados sob os pontos 10 e 11) e, por outro lado, o mesmo tribunal a quo considerou não estar indiciado que a arguida “com a sua conduta atingiu a dignidade do assistente enquanto pessoa,…”, “a arguida com a sua conduta pretendeu … desrespeitar, desconsiderar, …o assistente”, “com o intuito de causar-lhe prejuízo … na sua … dignidade, honra e consideração pessoal” (parte dos factos não indiciados sob os pontos 5, 7 e 8).
Por sua vez, no crime de violência doméstica, o agente dos factos actua com o intuito assumido de desrespeitar os interesses juridicamente protegidos de natureza pessoal, não de qualquer sujeito, mas de uma pessoa (ofendido) que mantém – ou manteve – consigo um relacionamento e uma ligação de natureza emocional e com carácter de estabilidade, que determinou uma vivência comum, e assim um especial dever de respeito independentemente das circunstâncias em que, porventura, tal relacionamento haja cessado.
Ora, no caso dos autos, a arguida ao agir nos termos descritos nos factos indiciados sob os pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, atento o espaço temporal dos actos praticados pela arguida e o circunstancialismo verificado, não podia deixar de actuar com o propósito de “humilhar, achincalhar, rebaixar e menosprezar o assistente”, “atingir o assistente na sua dignidade como pessoa” e “de lhe causar prejuízo na sua integridade psíquica, honra e consideração pessoal” (ou pelo menos teria que representar como possível que a sua persistente conduta era apta a causar “humilhação, vexame, menosprezo no assistente”, a atingir “a dignidade do assistente como pessoa” e a afectar “a sua integridade psíquica, honra e consideração pessoal”, conformando-se com tal resultado).
Em suma, julgo que a factualidade indiciada valorada globalmente permite concluir que a arguida quis de facto actuar do modo descrito, insultando o ofendido, pretendendo assim humilhá-lo e afectá-lo, como afectou, a sua dignidade e integridade pessoal e psíquica.
Por fim, as condutas descritas nos factos indiciados sob os pontos 3, 4, 5, 6, 7, 8 e 9, no seu conjunto, são de facto susceptíveis de humilhar, achincalhar, rebaixar e menosprezar o assistente e de atingir a sua dignidade e integridade pessoal e psíquica, bem como de abalar a sua confiança na arguida.
Nestes termos, julgo que os factos não indiciados sob os pontos 5 a 8 deveriam ser considerados como factos indiciados com a seguinte redacção (expurgando-se as conclusões e repetições):
- Com o comportamento descrito, a arguida pretendeu, de forma conseguida, humilhar, desrespeitar, desconsiderar, achincalhar, rebaixar e menosprezar o assistente;
- A arguida agiu com o intuito, conseguido, de atingir a integridade física e psíquica e a dignidade enquanto pessoa, a honra e consideração pessoal do assistente.
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II- Quanto à qualificação jurídica dos factos indiciados
Salvo o devido respeito por diferente entendimento, afigura-se-me que os factos indiciados deveriam ter sido qualificados como crime de violência doméstica.
Explicando.
No que respeita ao bem jurídico protegido pela norma do art. 152º do C.P. não se cinge à protecção da saúde (nas suas vertentes física, psíquica e mental), da dignidade da pessoa humana, integridade pessoal, física e psíquica, liberdade pessoal, liberdade e autodeterminação sexual e honra e livre desenvolvimento da personalidade da vítima; se bem que tutele tais valores a título principal, protege ainda, a título reflexo ou secundário, uma especial relação de confiança e/ou de convivência, posta em perigo ou efectivamente lesada com a prática da conduta típica, tudo estando na capacidade dessa ofensa para pôr em causa a pacífica convivência familiar, parafamiliar ou doméstica, e abalar a confiança da vítima no seu agressor, razão pela qual, as condutas integradoras dos crimes simples, autónomos cedem perante a lei especial do art. 152º.
Por sua vez, da letra do tipo legal, não constam os requisitos a "gravidade”, a "intensidade”, a “crueldade” e a “brutalidade” da ofensa. Aliás, o requisito «intensidade» da ofensa, que constava da Proposta de Lei nº 109/X, e esteve na base da reforma de 2007 do Código Penal, não vingou na sua redacção final, dele tendo sido expurgado.
Acresce que não é elemento do tipo legal de violência doméstica que a vítima tenha uma posição de relação de “subordinação existencial” ou seja, uma posição de inferioridade, subjugação e/ou dependência com o agressor, pois apesar de constituir uma realidade sociológica presente em muitas das situações de violência doméstica previstas no art. 152º do C. Penal, isso não significa que as esgote ou que constitua elemento típico de cuja demonstração depende a responsabilidade penal do agente.
Além disso, a existência de um ambiente de conflitualidade traduzido em agressões recíprocas não permite, sem mais, desqualificar a conduta delitual do agressor como integrante da violência doméstica. A reciprocidade (a existir no caso dos autos), poderá eventualmente ser relevante quando no âmbito de discussões e agressões verbais, deixa de ser possível reconhecer quem é de facto o verdadeiro agressor, e ambos o são reciprocamente, realidade que neste momento não se afere de forma inequívoca dos factos indiciados sob os pontos 1 a 9 da decisão recorrida.
Nesta conformidade, não me revejo em algumas das considerações supra expendidas no presente acórdão, designadamente na parte em que expressamente refere que no crime de violência doméstica está em causa a “coisificação” da pessoa e que o mesmo não se coaduna com uma situação de reciprocidade de agressões.
Assim, o conjunto dos diversos e reiterados actos da arguida, o espaço temporal entre os mesmos decorrido e a natureza das ofensas, bem como o contexto em que foram praticados, sujeitando-o de forma inqualificável a humilhações e impropérios insultuosos, por vezes em jantares com amigos, outra vezes através de mensagens enviadas por intermédio de redes sociais ou para o seu telemóvel, ultrapassam os limites ao respeito pela dignidade devido ao assistente, levados a cabo pela arguida quer durante o relacionamento afectivo que manteve com o ofendido, quer após a ruptura dessa relação de namoro, limites esses que nunca deviam ter sido ultrapassados e que são claramente ofensivos da dignidade pessoal e individual do assistente e, nessa medida, são susceptíveis de afectar o bem estar psíquico e mental da vítima, bem como a consideração e honra pessoais que lhe são devidos, afectando de forma persistente a sua saúde psíquica, emocional ou moral.
Por isso, considero que os indiciados actos praticados pela arguida atingiu o bem jurídico protegido pela norma incriminadora em causa, não podendo deixar de se enquadrar como maus tratos para efeitos da materialidade descrita no artigo 152º, nº 1 do Código Penal.
Por todo o exposto, entendo com o devido respeito que o recurso em apreço deveria ter sido julgado procedente e revogada a decisão recorrida, pronunciando-se a arguida pelo crime imputado pelo recorrente no seu requerimento de instrução.
Consequentemente, teria que ficar sem efeito a acusação particular dada a relação de especialidade entre o crime de violência e os crimes de injúrias imputados na referida acusação.]