TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
DETENÇÃO PELA MARINHA EM ALTO MAR
PRAZO 48H
ACESSO DA DEFESA EM TEMPO ÚTIL A DOCUMENTO ESSENCIAL
PEDIDO DECISÃO PREJUDICIAL
PRISÃO PREVENTIVA
Sumário

I- O conceito constitucional e processual penal de "detenção" deve ser entendido como toda e qualquer privação de facto da liberdade física de locomoção da pessoa humana à ordem de qualquer autoridade judiciária ou entidade policial subsequente a flagrante delito (tal como este é definido pelo artigo 256.º do CPP), por crime punível com pena de prisão, nos termos do artigo 255.º, n.º 1, alínea a), do CPP (com as condicionantes dos seus n.ºs 3 e 4), ou fora de flagrante delito por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público ou das autoridades de polícia criminal (estas tal como são consideradas na alínea d) do art.º 1.º, do CPP), por iniciativa própria, nos termos e condições do artigo 257.º do CPP, ou ainda em flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, por qualquer pessoa que pode proceder à detenção se uma autoridade judiciária ou entidade policial não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil, nos termos e condições do artigo 255.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CPP.
II - Detenção que é, portanto, efetuada: “a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção; ou b) Para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, do detido perante a autoridade judiciária em acto processual”, como é estabelecido, enquanto suas finalidades, pelo artigo 254.º do CPP.
III - Ficam, deste modo, fora, e para lá, desse quadro de "detenção" as medidas de coação de prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação judicialmente aplicadas, ou de pena de prisão, medida de segurança privativa da liberdade ou de internamento decretadas no seguimento de decisão condenatória transitada em julgado. Bem como, igualmente ficam fora dessa "detenção" os casos de constrangimento da liberdade física de locomoção da pessoa humana decorrentes de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição, como o que presentemente vivemos, perante a situação epidemiológica de pandemia causada pelo novo coronavírus, em que há um dever geral de recolhimento domiciliário para a maioria da população, enormes restrições de circulação pessoal para os maiores de 70 anos, os imunodeprimidos e os portadores de doença crónica considerados de risco, todos eles sujeitos a um dever especial de proteção, e mesmo de confinamento obrigatório, seja individual, em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde, dos doentes com COVID-19, dos infetados com SARS-Cov2 e dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa, seja de confinamento obrigatório coletivo no caso das cercas sanitárias impostas a determinados locais (vd. Decretos n.ºs 2-A/2020, de 20 de março, 2-B/2020, de 2 de abril, e 2-C/2020, de 17 de abril).
IV - O prazo máximo de detenção de 48 horas, a que aludem os artigos 28.º, n.º 1, da CRP e 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, conta-se desde que o visado é fisicamente impedido de se movimentar livremente, ficando assim privado do seu jus ambulandi. No caso concreto, a partir o momento em que a Marinha Portuguesa obriga a tripulação do veleiro e este a seguir rota rumo à Base Naval de Lisboa, impedindo os dois únicos ocupantes de se encaminharem para muito bem entendessem, bem como de conduzirem a sua embarcação em livre circulação pelo oceano, sem que lhes restasse qualquer alternativa. Na realidade, importava à Marinha Portuguesa não só assegurar que a carga ilícita de estupefacientes transportada no veleiro fosse apreendida como garantir que os responsáveis pelo seu transporte fossem levados perante a justiça, para responderem criminalmente pela prática do crime que estavam a cometer em flagrante delito (artigo 256.º do CPP). Daí que, seguramente, mesmo que os tripulantes ora arguidos, se tivessem lançado ao mar, em balsa de salvamento, para se furtarem à ação da justiça, a Marinha Portuguesa alcançá-los-ia evitando a sua fuga. Os ora arguidos, que desde alto mar e até ao Alfeite apenas e só tinham a qualidade de suspeitos, encontravam-se factualmente na situação de verdadeira detenção porquanto não tinham liberdade de locomoção. Não faz qualquer sentido afirmar que os recorrentes "estavam confinados ao espaço da embarcação" que "conduziram, ainda que a contragosto" e que isso, por si, “não permite considerar que se encontrassem detidos para efeitos processuais e constitucionais".
V - Estiveram, portanto, ambos completamente privados da sua liberdade de circulação e de livre disposição das suas pessoas desde dia 19 de janeiro de 2020 e até serem presentes à Meritíssima Juíza de Instrução, do Juízo de Instrução Criminal de Almada, em 27 de janeiro de 2020, para o primeiro interrogatório judicial de arguido detido a que alude o art.º 141.º do CPP. Destarte, tendo decorrido oito dias entre os dois apontados e relevantes eventos, claramente se patenteia ter sido manifestamente excedido, e em muito, o referido prazo de 48 horas a que aludem os artigos 28.º, n.º 1, da CRP e 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP. Perante tal constatação, o que se impõe é verificar se concorreram ou não circunstâncias justificativas para que não tivesse sido possível cumprir aquele prazo máximo de 48 horas. Apreciando as concretas circunstâncias do caso afigura-se-nos ser completamente irrealista que tal prazo pudesse ser respeitado.
VI - O Tribunal Europeu de Direitos Humanos em casos similares ao dos presentes autos, isto é, de detenção em alto mar, a longínqua distância de costa, de tripulantes de embarcações, que transportavam cocaína das Américas para a Europa, com a sua subsequente apresentação no continente a juiz para validar tais detenções, já se pronunciou em pelo menos três ocasiões, tendo considerado razoável e plenamente justificado, que essas comparências perante autoridade judicial, só tenham ocorrido passados respetivamente, dezasseis, treze e dezoito dias, e sem que com isso se tenha violado o disposto no parágrafo 3 do artigo 5.º da CEDH. À luz desta jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, este Tribunal da Relação de Lisboa considera que, tendo em conta as circunstâncias inteiramente excecionais do presente caso, não se pode concluir que o prazo de oito dias decorrido entre o momento da detenção em alto mar dos arguidos e ora recorrentes (19 de janeiro de 2020) e o da sua apresentação à Meritíssima Juíza de Instrução em Almada (a 27 de janeiro de 2020) excedeu a prontidão (rapidez temporal), tal como esta está concebida no parágrafo 3 do artigo 35.º da CEDH, de "apresentação imediata", pois esse período de oito dias está completamente justificado, dada a considerável distância das muitas centenas de milhas náuticas que por via marítima se impunha percorrer (cerca de pelo menos 1000 km já que mesmo em mar a aberto a navegação – fruto dos ventos, correntes e ondulação, com o consequente abatimento – não se faz em linha recta contínua), com as inerentes condições meteorológicas à navegação por se estar em pleno Inverno no hemisfério Norte, e sem que houvesse outras exequíveis alternativas para que tal prazo tivesse sido reduzido, tudo constituindo uma real impossibilidade material de levar os dois tripulantes do veleiro fisicamente perante juiz de instrução, dentro de um espaço de tempo mais curto, para a realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido a que alude o art.º 141.º do CPP.
VII - A falta de defensor aos suspeitos que ainda não haviam sido constituídos arguidos aquando da busca não constitui qualquer nulidade, designadamente aquela a que alude al. c), art.º 119.º, do CPP.
VIII - A intervenção do Tribunal de Justiça da União Europeia para decidir, a título prejudicial, nos termos do mecanismo de reenvio previsto no art.º 267.º do TFUE, sobre a validade e interpretação de actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União, só deve ou tem de ser requerida para os que tenham natureza vinculativa, como sucede com Regulamentos e Decisões, mas não para aqueles que não a tenham como é o caso de Diretivas, Recomendações e Pareceres.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9a Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. No processo de Inquérito n.º 18/20.7JELSB, por despacho judicial, da Mmª Juíza do Juízo de Instrução Criminal de Almada do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, proferido em 29 de janeiro de 2020, foi determinada a prisão preventiva dos arguidos AA, filho de xxx e de xxx, natural da República Federal da Alemanha, de nacionalida alemã, nascido a xxx 1966, no estado civil de xxx, com a profissão de engenheiro de máquinas e domicílio em xxx Alemanha, e BB, filho de xxx e de xxx, natural da Bósnia-Herzegovina, de nacionalidade bósnia, nascido a xxx 1968, no estado civil de xxx, com a profissão de engenheiro mecânico e domicílio em xxx Alemanha.

2. Os arguidos AA e BB, inconformados com a mencionada decisão, interpuseram recurso, extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"1.º Por despacho preferido em 29 de janeiro de 2020 (cf. fls. 231 dos autos de inquérito), os RECORRENTES foram sujeitos às medidas de coacção de prestação de TIR e de prisão preventiva, nos termos do disposto nos art.ºs 191º a 196.º e 202º, n.º 1, als. a) a c), todos do CPP.
2.º Fundamenta-se esta decisão na alegada forte indiciação pela prática, em co-autoria material e em concurso real e efetivo, de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, punido e previsto pelos artigos 21.º, n.º 1 e 24.º, e), do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma, e ainda um crime de associação criminosa punida e previsto peio artigo 28.º, n.º 1 e n.º 2 do mesmo diploma legal (cfr. fls. 239-244 dos autos de inquérito).
3ª A decisão recorrida incorreu em erro, ao considerar que a detenção dos Recorrentes não ocorreu no alto-mar no dia 19 de janeiro de 2020, mas sim quando aportaram em Portugal Continental no dia 26 de Janeiro de 2020.
4.º Foram violados os artigos 141.º n.º 1 e 254.º, n.º 1 al. a), ambos do CPP, tendo o arguido sido sujeito a detenção ilegal, não podendo proceder-se à validação da detenção, razão por que a detenção terá que ser declarada como ilegal restituindo-se os Recorrentes à Liberdade.
5.º Deve ser desaplicado o art.º 194.º, n.º 8, do CPP, na medida em que permite vedar o acesso a elementos dos autos ao arguido durante o interrogatório e prazo para interposição de recurso da medida de coacção, por violação do art.º 7.º n.º 1, da Directiva 2012/13/UE, e declarar a nulidade do processo a partir do momento da detenção dos Recorrentes, nos termos do artigo 86.º, e 1, do CPP, ordenando o imediato acesso integral aos autos com decurso de novo praz para interposição de recurso.
6.º Deve ser declarada a nulidade das buscas e actos subsequentes nos termos do artigo 3.º da Directiva 2013/48/UE, bem como do art.º 64.º, n.º 1, al. d), e o art.º 119.º, al. c), ambos do CPP.
7.º O art.º 28.º, n.º 1, da CRP, impõe a submissão a autoridade judicial no prazo máximo de 48 horas do arguido detido e o conceito constitucional de "detenção" o da privação de facto da livre locomoção de qualquer pessoa — se alguém não pode livremente locomover-se por força da acção das autoridades, essa pessoa encontra-se detida para efeitos do art.º 28.º, n.º 1, da CRP.
8.º Qualquer interpretação normativa dos artigos 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, segundo a qual seja permitida normativamente a validação da detenção do suspeito depois de ultrapassadas as 48 horas após a privação da liberdade é manifestamente inconstitucional por violação do artigo 28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante abreviadamente apelidada de CRP).
9.º É igualmente inconstitucional, pelos mesmos motivos, a interpretação normativa extraída dos art.ºs 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al, a), ambos do CPP, segundo a qual uma abordagem efectuada por via marítima nos termos dos art.º 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, no sequência da qual os visados sejam forçados pelas autoridades a conduzir a mesma, sem poder decidir o seu destino, não constitua detenção à luz do disposto no art.º 28.º, n.º 1, da CRP.
10.º Finalmente, a interpretação em causa viola o art.º 5.º da CEDH, bem como o art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, pelos mesmos motivos supra invocados, já que também destes instrumentos decorre que qualquer privação da liberdade tem de ser realizada de acordo com a lei — o que não sucedeu no caso — e que a pessoa privada da liberdade tem de ser imediatamente presente a um juiz que avalie a existência de motivos fundados e a licitude da sua detenção.
11.º A única interpretação que pode considerar-se clara, relativamente aos instrumentos de direito da União Europeia invocados, é a de que os Recorrentes estavam detidos desde o dia 19 de Janeiro de 2020, e que, como tal, foram violados os direitos referidos na motivação.
12.º No entanto, e à cautela, desde já se requer que quaisquer dúvidas interpretativas que por hipótese o Tribunal ad quem tenha sobre o teor dos instrumentos normativos de direito da União Europeia suscitados devem ser dirimidas através de submissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia de um pedido de decisão prejudicial, nos termos do art.º 267.º do TFUE, porquanto inexistente decisões deste Tribunal sobre as referidas questões jurídicas e as mesmas são essenciais para a resolução das questões suscitadas. Mais, o reenvio é obrigatório para o Tribunal ad quem, por ser a última instância. Sendo ordenado o mesmo, este deve ser precedido de audição contraditória do Ministério Público e dos Recorrentes quanto à formulação das questões prejudiciais.
13.º Por cautela de patrocínio, caso seja entendido que a detenção de 19 de Janeiro de 2020 (e nunca de 26 de janeiro de 2020) é válida e, por isso, a aplicação da medida de coacção também, cumpre esclarecer que os fundamentos da aplicação da medida são, concretamente, o "perigo de continuação de atividade criminosa", o "perigo de perturbação do inquérito, e para aquisição, conservação e veracidade da prova", e o "perigo de fuga objectivado nas nacionalidades dos arguidos”, não se encontram preenchidos.
14.º Isto, porque, independentemente da forte indicação que se possa verificar, por dever de ofício sufragamos sempre a necessidade de elevar o padrão de fundamentação do preenchimento do pressupostos de medidas de coacção detentivas, já que, não bastará indicar que pelo facto de o crime ser grave e os Recorrentes serem de nacionalidade estrangeira, estão automaticamente verificados os perigos previstos no artigo 243.º do CPP.
15.º Atendendo às especiais circunstâncias do caso, nem sequer é possível configurar, muito menos estão cabalmente demonstrados, quaisquer perigos de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito e de fuga.
16.º Ainda assim, admitindo, sem conceder, a hipótese contrária, até pela simples e exclusiva ponderação dos princípios ínsitos no artigo 193.º do CRP se concluiria que a prisão preventiva deve ser revogada, sem que para tal fosse necessário invocar a sua natureza absolutamente excepcional e subsidiária, a qual só pode ser aplicável quando nenhuma outra medida de coacção do catálogo garanta as necessidades cautelares concretas que comprovadamente se fazem sentir.
17.º Assim, a simples caução e — no limite — a obrigação de apresentação periódica perante as autoridades judiciais ou policiais dos países de origem afiguram-se mais que suficientes para garantir todas as finalidades cautelares e a presença dos Recorrentes em eventual diligência judicial, eliminando-se qualquer alegado perigo de fuga,
Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas. sempre suprirão, os RECORRENTES requerem que V. Exas. se dignem:
a) declarar a ilegalidade da detenção nos termos dos artigos 141.º n.º 1 e 254.º, n.º 1 al. a), ambos do CPP, e actos subsequentes, ordenando a libertação dos Recorrentes ou, no limite, consignar como o dia 19 de Janeiro de 2020 o dia da detenção dos Recorrentes para efeitos de cômputo da privação da liberdade ao abrigo destes autos;
b) desaplicar o art.º 194.º, n.º 8, do CPP, na medida em que permite vedar o acesso a elementos dos autos ao arguido durante o interrogatório e prazo para interposição de recurso da medida de coacção, por violação do art.º 7.º, n.º 1, da Directiva 2012/13/UE, e declarar a nulidade nos termos do artigo 86.º, n.º 1, do CPP, ordenando o imediato acesso integral aos autos com decurso de novo prazo para interposição de recurso;
referida Directiva 2013/48/UE, bem como do art.º 64.º, n.º 1, al. d), e o art.º 119.º, al. c), ambos do CPP[1];
d) conceder provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e a medida de coacção mantida aos Recorrentes — prisão preventiva — por não se verificarem, em concreto, as circunstâncias em que o Tribunal a quo fundamentou a sua aplicação e,
e) em sua substituição, proferir nova decisão que determine a aplicação de medida alternativa, no limite caução ou obrigação de apresentações periódicas no pais de residência, nos termos da Lei n.º 36/2015, de 04 de Maio,
assim se fazendo a habitual JUSTIÇA" (fim de transcrição).

3. Respondeu o Ministério Público extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
"1. A detenção foi legal, porquanto, a Marinha Portuguesa abordou a embarcação onde se faziam transportar os Recorrentes, nos termos do direito de visita em alto mar previsto no art.º 18º da Lei n.º 34/2006, de 28 de Julho (Actividades de fiscalização e exercício do direito de visita), e da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, Montego Bay, 1982, aprovada pela Resolução da Assembleia da República nº. 6Q-B/97, publicada no DR 238/97, Serie I-A, 1º Suplemento, de 14 de Outubro de 1997, designada Convenção sobre o Direito do Mar), nomeadamente nos termos do art.º 17º, 27º, 28º, 108º e 110º e ainda do art.º 17º, n.º 10 da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas de 1988» (art.º 49.º, als. a) e b), do DL 15/93 e 20 do CPP), tendo uma actuação legitima.
2. O navio da Marinha Portuguesa poderia, pois, entrar no interior da embarcação, e encaminhá-la para águas portuguesas e porto português, local onde veio a ser detectada a prática do crime de que ora nos ocupamos, nos termos do Decreto Regulamentar n.º 86/2007 de 12 de Dezembro (vigilância e fiscalização dos espaços marítimos), no seu art.º 5º.
3. Em conformidade, o cumprimento do mandado de busca à embarcação foi efectuado, tal como claramente documentado no processo, pela Polícia Judiciária, e em Portugal e, por isso, só nesse momento se verificou a detenção dos arguidos.
4. Até esse momento os arguidos estiveram sob a alçada da Marinha Portuguesa a coberto do direito de visita do mar o qual não poderá ser confundido, nem em termos nacionais, nem internacionais, com a detenção e privação dos arguidos; cumpriram-se, pois, todas as formalidades legais, inexistindo qualquer vicio que cumpra apreciar.
5. Ainda que existisse qualquer vício, o mesmo consubstanciaria uma mera irregularidade, nos termos do art.º 123º do CPP, a qual não foi alegada no prazo legal, sanando-se.
6. Não foi violado qualquer princípio do contraditório nem o direito de defesa.
7. A Directiva 2012/13/EU não foi transposta para Portugal,
8. Ainda assim o seu espírito está em consonância com o Código de Processo Penal Português.
9. No caso de submissão de inquérito a segredo de justiça, o que a Directiva exige é que ao detido e ao seu advogado seja dada informação sobre os motivos genéricos que motivaram a detenção pela polícia e após, quando seja presente ao MP e/ou JIC, para por exemplo, submissão a interrogatório judicial de arguido detido, aí sim, tenha acesso completo aos documentos que fundamentam a detenção ou prisão e ao inquérito, devendo ser dada, com detalhes suficientes, uma descrição dos factos constitutivos do acto criminoso de que as pessoas sejam suspeitas ou acusadas de terem cometido, incluindo, caso se conheça, a hora e o local, e a eventual qualificação jurídica da alegada infração, tendo em conta a fase do processo penal em que essa descrição for dada, a fim de salvaguardar a equidade do processo e permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa, trata-se apenas de informações e não necessariamente de acesso ao inquérito, terá sempre de se dizer ao suspeito/arguido os motivos da detenção, os factos e provas existentes, com resumo dos factos, o que não é o mesmo que entregar cópia do inquérito ou alguma documentação policial.
10. Em sede de interrogatório judicial não resulta que tenha sido solicitada pela defesa a consulta física dos autos, nem de quaisquer elementos probatórios juntos aos autos, pelo que nesta parte inexiste qualquer vício que cumpra apreciar.
11. No âmbito do interrogatório judicial de arguido detido, a Mma PC "a quo" deu cumprimento ao disposto no art.º 141º do CPP, enunciando os factos indiciados e ainda os meios de prova nos quais tais indícios se mostram suportam, resultando da acta da diligência realizada que os arguidos foram confrontados com os elementos probatórios, para cabal cumprimento dos preceitos acima referidos.
12. É certo que pese embora tenham sido requerido o acesso aos autos no dia 31 de Janeiro de 2020, tal só foi autorizado no dia 21 de Fevereiro de 2020, mas apenas quanto aos elementos referidos no art.º 194º, n.º 8 do CPP, tal decorreu por força das vicissitudes várias associadas à competência do Juiz de instrução Criminal (Almada/Lisboa) e com a necessidade de remessa dos autos aos serviços do Ministério Público que tem realizado a investigação- 1º Secção de Lisboa do DIAP), ainda assim, atendendo à forma como apresentado o articulado do recurso, afigura-se que o mesmo respondeu às necessidades da defesa e ainda houve tempo útil para elaborar a peça processual, sendo que no caso dos autos, sempre a defesa poderia invocar, para efeitos de interrupção do prazo, a existência de justo impedimento, previsto no art.º 140º do CPC, aplicável "ex vi" art.º 4º do CPP, o que não sucedeu, inexiste qualquer violação ou vicio que cumpra apreciar.
13. Os arguidos estão fortemente indiciados da prática em co-autoria material e na forma consumada da prática do crime de tráfico de estupefacientes agravado, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1 e 24º, al. c) do DEC-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro por referência à Tabela I-B anexa a este diploma e ainda um crime de associação criminosa p. e p. pelo art.º 28º, n.º 1 e 2 do mesmo diploma legal.
14. Verifica-se em concreto perigo de fuga, continuação da actividade criminosa e de alarme social, nos termos do art.º 204º do CPP.
15. Mostrando-se que apenas a medida de coacção de prisão preventiva é a única medida de coacção exequível, adequada e proporcional ao caso vertente.
16. O douto despacho recorrido deve ser mantido.
DEVE ASSIM NEGAR-SE TOTALMENTE PROCEDÊNCIA AO PRESENTE RECURSO E, CONSEQUENTEMENTE, MANTER A DECISÃO RECORRIDA, UMA VEZ QUE SÓ ASSIM SE FARÁ A COSTUMADA JUSTIÇA." (fim de transcrição).

4. Foi proferido despacho judicial admitindo o recurso, como se alcança de fls. 353 dos autos principais.

5. Subidos os autos, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação apôs o seu “Visto” e emitiu parecer, pronunciando-se, no que ora importa, nos seguintes termos:
“No caso em apreço as questões suscitadas pelos recorrentes dirigem-se à legalidade da detenção, à respectiva validade conferida pelo douto despacho recorrido ao arrepio daquilo que consideram ser o prazo para a sua apresentação a juízo e às consequências a retirar da ilegalidade da detenção. Mas, também, questionam a competência dos tribunais portugueses, como questionam a validade da busca levada a cabo nos autos. Sem conceder, insurgem-se contra a medida de coacção porquanto consideram inverificados os pressupostos de aplicação da medida decretada.
A digna Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância respondeu ao recurso dos arguidos defendendo a manutenção do decidido.
Analisados os fundamentos do recurso acompanhamos a correcta e muito bem fundamentada argumentação da digna magistrada do Ministério Público na resposta oferecida ao recurso dos arguidos, resposta essa que, integralmente, subscrevemos.
Como flui do recurso interposto, os recorrentes consideram que a detenção ocorreu no dia 19 de Janeiro e não no dia 26 de janeiro do corrente ano. Isto porque tendo sido abordados pela Marinha Portuguesa, nas circunstâncias descritas nos autos, a bordo da embarcação "CC" foram encaminhados para a Base Naval do Alfeite, aqui se dando cumprimento a mandado de busca, já no dia 26 de Janeiro, seguida de ordem de detenção face à confirmação de que transportavam elevada quantidade de produto estupefaciente.
Aderindo à fundamentação constante no douto despacho recorrido e às alegações da digna Magistrada do Ministério Público junto da 1ª instância dir-se-á que o facto da embarcação ter sido conduzida, ainda que coercivamente, nos termos da legislação indicada no douto despacho recorrido, não confere aos arguidos / recorrentes a qualidade de detidos pois que a detenção tem um intuitu personae, é dirigida a uma pessoa, tem carácter pessoal e não se confunde com a abordagem efectuada no âmbito do Direito de Visita em Alto Mar e com o facto da embarcação em que os recorrentes se encontravam ter sido escoltada pelo meio naval português até território nacional. A condução dos recorrentes pela Marinha Portuguesa no barco onde se transportavam, aliás em alto mar, não consubstancia, nem integra, o conceito de detenção nos termos pretendidos na motivação de recurso.
Por isso, bem andou o douto tribunal recorrido ao considerar que tendo os arguidos sido escoltados pela Marinha Portuguesa até território nacional só após a realização da busca levada a cabo na referida embarcação mediante a qual se confirmou o transporte de elevada quantidade de estupefacientes, ou seja, no dia 26 de janeiro de 2020 foram os recorrentes detidos. É que a detenção é um conceito legal dirigido a uma pessoa singular, tem carácter pessoal e individual, nos termos sobreditos.
Aliás, importa, também, atender ao momento e ao acto de intercepção da Marinha Portuguesa, em alto mar, desconhecendo-se, ainda, o que se iria encontrar dentro da embarcação e, designadamente, se o que os sacos continham era mesmo produto estupefaciente.
Nas mencionadas circunstâncias poder-se-á dizer que os arguidos / recorrentes estavam confinados ao espaço da embarcação, a esta, mas esse facto, aliado à circunstância de se manterem dentro da embarcação que conduziram, ainda que a contragosto, não permite considerar que se encontrassem detidos para efeitos processuais penais e constitucionais.
E seria exigível outra actuação, como aquela que é sugerida nas motivações dos arguidos, designadamente que fossem transportados de avião para apresentação a primeiro interrogatório judicial ao Excelentíssimo Juiz de Instrução antes da realização do teste rápido ao produto que transportavam e antes do flagrante delito?
Não se mostra, pois, fáctiva e normativamente ancorada a posição dos recorrentes que defendem que a detenção ocorreu em alto mar, no dia 19 de Janeiro do corrente ano.
E, a ser assim como é, carece de fundamento legal a pretensão dos recorrentes ao sustentarem que a detenção não deveria ter sido validada por excesso de prazo para apresentação ao Excelentíssimo Juiz de Instrução.
Contrariamente ao defendido não incorreu o douto tribunal a quo em qualquer erro de direito, neste particular, como não violou os artigos 141º, nº1 e 254, nº1, al. a) ambos do C.P.P.
De qualquer modo, tal como foi tão bem sustentado no douto despacho recorrido, o excesso de prazo na apresentação dos arguidos a primeiro interrogatório judicial não impediria a aplicação da medida de coacção que foi determinada pois que esta se não confunde, como bem se sabe, com a detenção. Detenção e medida de coacção de prisão preventiva são realidades absolutamente distintas e a invalidade daquela não obstaculiza à aplicação desta.
Os recorrentes questionam, também, a legalidade da busca levada a cabo nos autos dizendo na conclusão nº 6 que deve ser declarada a nulidade das buscas e actos subsequentes nos termos do artigo 3º da Directiva 2013/48/UE, bem como do artigo 64º, nº 1, al. d) e artigo 119º, al. c), ambos do C.P.P.
Defendem os recorrentes que teriam o direito de ser assistidos por advogado durante as buscas que foram realizadas à embarcação em que se fizeram transportar já que tal busca não foi por si (arguidos) autorizada, convocando os preceitos acima mencionados.
O artigo 64º nº 1 al. d) do CPP estabelece a obrigatoriedade de assistência em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída.
Não sendo os arguidos de nacionalidade portuguesa a norma em apreço não tem a abrangência que estes lhes pretendem dar porque a realização de uma busca não é um acto processual, tal como delineado sobredito preceito, mas medida cautelar e de polícia, a esta entidade competindo praticar actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
E essa mesma busca ocorre, no caso, num momento processual em que os recorrentes ainda não haviam sido constituídos como arguidos.
Ora, o preceito legal trazido à colacção pelos recorrentes e que impõem a presença de defensor não se aplica aos suspeitos, àqueles que ainda não são arguidos.
Nem a interpretação legal, nem tão pouco a interpretação constitucional, impõem a interpretação abrangente levada a cabo pelos recorrentes.
A falta de defensor aos suspeitos que ainda não haviam sido constituídos arguidos (aquando da referida busca) não constitui qualquer nulidade, contrariamente ao defendido.
Por isso, também neste particular, improcederão as pretensões dos recorrentes.
Relativamente às demais questões suscitadas no recurso convocamos tudo o que foi dito, e muito bem dito, pela digna magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo.
E a medida de coacção aplicada nenhuma censura merecerá, certamente.
Com efeito, a decisão recorrida decretou a prisão preventiva de acordo com os normativos processuais que a preveem, sendo esta a única medida de coacção adequada às exigências cautelares que o caso requer, por proporcional à gravidade dos factos fortemente indiciados e em presença dos requisito gerais discriminados nas als) a), b) e c) do art.º 204º do C.P.P. assim respeitando os princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade.
São termos em que, sem necessidade de outros considerandos, por despiciendos, se emite parecer no sentido da improcedência do recurso.” (fim de transcrição).

6. Foi cumprido o preceituado no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), tendo os recorrentes reiterado a posição assumida no recurso, como consta da sua resposta que antecede e aqui se dá por integralmente reproduzida, que terminam nos seguintes termos:
“53. Desta forma, reitera-se que qualquer interpretação normativa dos artigos 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, segundo a qual seja permitida normativamente a validação da detenção do suspeito depois de ultrapassadas as 48 horas após a privação da liberdade é manifestamente inconstitucional por violação do artigo 28:3, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante abreviadamente apelidada de CRP).
54. E que é igualmente inconstitucional, pelos mesmos motivos, a interpretação normativa extraída dos art.ºs 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, segundo a qual uma abordagem efectuada por via marítima nos termos dos art.ºs 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substancias Psicotrópicas, na sequência da qual os visados sejam forçados pelas autoridades a conduzir a mesma, sem poder decidir o seu destino, não constitua detenção à luz do disposto no art.º 28.º, n.º 1, da CRP.
55. Tema diferente será a decisão sobre as consequências da violação das normas constitucionais contidas nos art,º 27.º, n.º 1, 2 e 3, e no art.º 28.º, n.º 1, da CRP, bem como na lei ordinária, nos art.ºs 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP (como decorre do pedido dos RECORRENTES de que seja declarada a ilegalidade da detenção e actos subsequentes, ordenando a libertação dos RECORRENTES ou, no limite, consignar como o dia 19 de Janeiro de 2020 o dia da detenção dos RECORRENTES para efeitos de cômputo da privação da liberdade ao abrigo destes autos).
Termos que, devem ser conhecidas as questões de facto, e de direito, inclusivamente as questões de constitucionalidade invocadas, e decretado provimento ao recurso apresentado, com as legais consequências.” (fim de transcrição).

7. Efetuado o exame preliminar foi considerado não haver razões para a rejeição do recurso.

8. Colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.


II – Fundamentação

1. Conforme entendimento pacífico dos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto dos recursos que àqueles são submetidos, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer (cfr., entre outros, os Acs. do STJ de 16.11.95, de 31.01.96 e de 24.03.99, respetivamente, nos BMJ 451.º - pág. 279 e 453.º - pág. 338, e na Col (Acs. do STJ), Ano VII, Tomo 1, pág. 247, e cfr. ainda, art.ºs 403.º e 412.º, n.º 1, do CPP).
As questões suscitadas pelos recorrentes AA e BB, que deverão ser apreciadas por este Tribunal Superior, sem prejuízo do conhecimento de alguma ficar prejudicado pela solução dada àquela que a antecede, são, em síntese, as seguintes:
- A detenção dos arguidos ora recorrentes foi ilegal, porque foi ultrapassado o prazo legal das quarenta e oito horas desde que privados da sua liberdade (que deve ser considerada como tendo ocorrido a 19 de Janeiro de 2020) até ao momento da sua apresentação à Mmª Juíza de Instrução Criminal a quo;
- Deve ser declarada a nulidade da busca e actos subsequentes nos termos do artigo 3.º da Directiva 2013/48/UE, bem como do art.º 64.º, n.º 1, al. d), e o art.º 119.º, al. c), ambos do CPP;
- Foi violado o art.º 7.º, n.º 1, da Directiva 2012/13/EU e, em consequência os princípios da igualdade de armas e do contraditório, em virtude de não ter sido concedido acesso total aos autos quando da realização do interrogatório judicial de arguido nem no prazo para a interposição de recurso;
- A prisão preventiva é ilegal, inadequada e desproporcional, por violação do disposto nos art.ºs 193.º, 202.º e 204.º do CPP, pugnando assim pela sua libertação e pela aplicação de medidas de coacção não detentivas.


2. Vejamos se assiste razão aos recorrentes.

2.1. Comecemos pela primeira questão por estes suscitada.
Recordemos que, a este propósito, os recorrentes alegam, em síntese, que qualquer interpretação normativa dos artigos 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, segundo a qual seja permitida normativamente a validação da detenção do suspeito depois de ultrapassadas as 48 horas após a privação da liberdade é manifestamente inconstitucional por violação do artigo 28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, sendo igualmente inconstitucional, pelos mesmos motivos, a interpretação normativa extraída dos art.ºs 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al, a), ambos do CPP, segundo a qual uma abordagem efectuada por via marítima nos termos do art.º 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, na sequência da qual os visados sejam forçados pelas autoridades a conduzir a mesma, sem poder decidir o seu destino, não constitua detenção à luz do disposto no art.º 28.º, n.º 1, da CRP. A interpretação em causa viola o art.º 5.º da CEDH, bem como o art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, já que também destes instrumentos decorre que qualquer pessoa privada da liberdade tem de ser imediatamente presente a um juiz que avalie a existência de motivos fundados e a licitude da sua detenção. A única interpretação que pode considerar-se clara, relativamente aos instrumentos de direito da União Europeia invocados, é a de que os recorrentes estavam detidos desde o dia 19 de Janeiro de 2020, e que, como tal, foram violados os acima mencionados direitos.

Transcreve-se, antes de mais, a que na decisão recorrida se expendeu a este propósito:
"Em sede de primeiro interrogatório de arguidos detidos o Il. Mandatário dos arguidos suscitou a questão de, em seu entender, aqueles se encontrarem privados da sua liberdade desde o dia 19.01.2020 apenas tendo sido presentes a juiz de instrução criminal no dia 27.01.2020 pelo que, em consequência, não poderá ser validada a detenção dos mesmos por força de ter sido excedido o prazo de 48 horas a que alude o art.º 141º, nº 1 do CPPenal.
A Digna Procuradora da República pugnou pela validação da detenção dos arguidos porquanto foi observado o prazo a que alude o art.º 141º, n 1 do CPPenal.
Cumpre, pois, apreciar e decidir.
Com relevância para a decisão da questão a dirimir resulta provado que:
- por despacho proferido em 16.01.2020 pelo Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi autorizada a busca à embarcação "CC", de tipo veleiro, com a referência de registo DDD e MMSI EEE - cfr. fls. 19 e seguinte;
- em 16.01.2020 foram emitidos os competentes mandados de busca e apreensão - cfr. fls. 20;
- pelas 06 horas e 30 minutos do dia 19.01.2020, nas coordenadas geográficas 42º20,91N, 018º07,53W, a embarcação "CC" foi abordada por elementos da Marinha Portuguesa, não apresentando a mesma qualquer bandeira, os quais constataram que aí seguiam os arguidos sendo visíveis no interior daquela vários sacos desportivos contendo no seu interior placas de uma substância suspeita de ser estupefaciente e, por força de tal, foi determinado que os mesmos fossem presentes a autoridade policial em território nacional - cfr. fls. 165 e seguintes;
- em 26.01.2020, na Base Naval do Alfeite, foi dado cumprimento aos mandados de busca e apreensão oportunamente emitidos - cfr. fls. 38-verso - e, nessa sequência, pelas 10 horas e 40 minutos desse mesmo dia foi lavrado "Auto de busca e apreensão" - cfr. fls. 40 a 43;
- pelas 10 horas e 45 minutos do dia 26.01.2020 foi lavrado nas instalações da PJ, sitas em Lisboa, "Auto de notícia por detenção em flagrante delito'', o qual se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, dele constando "(...) sob detenção em flagrante delito os indivíduos acima identificados, os quais foram detidos em 26.01.2020, pelas 10 horas e 45 minutos, aquando da realização do teste rápido a produto suspeito de ser estupefaciente, que se encontrava no interior da embarcação denominada "CC", sem bandeira e porto de registo Martinica (...)
Com efeito, no passado dia 19.01.2020, pelas 06 horas e 30 minutos, nas coordenadas geográficas 42º20,91 N, 018º07.53 W, foi abordada pela Marinha de Guerra Portuguesa a embarcação supra referida.
De imediato, os elementos daquela marinha constataram que a bordo da mesma se encontravam dois indivíduos que identificaram como AA, de nacionalidade alemã, e BB, de nacionalidade bósnia.
Mais constataram que a bordo da embarcação se encontravam vários sacos, contendo no seu interior placas de uma substância que poderia ser estupefaciente, mais concretamente cocaína.
A referida abordagem foi levada a cabo pela Marinha Portuguesa no âmbito do Direito de Visita em Alto Mar, consagrado no art.º 170º da Convenção das Nações Unidos sobre o Direito do Mar, uma vez que a embarcação não apresentava nacionalidade.
Atendendo ao circunstancialismo descrito, a embarcação foi escoltada pelo meio naval português, que se encontrava no local, até território nacional, por forma a desencadear as ulteriores e necessárias diligências policiais.
Assim, já no decurso do dia de ontem, dia 25.01.2020, pela 23 horas e 56 minutos, a embarcação "CC", escoltada pelo aludido meio naval da marinha portuguesa, entrou em mar territorial português (...) tendo-se dirigido para a Base Naval de Lisboa, em Almada, onde viria a atracar pelas 10 horas e 40 minutos no Cais 6.
Imediatamente após a embarcação atracar, deu-se início ao cumprimento do mandado de busca (...) detectando-se 82 sacos desportivos de várias cores, os quais continham no seu interior várias placas de uma substância em pó de cor branca, com um peso total bruta e aproximado de 1.820,80 Kgs, que submetida a teste rápido reagiu positivamente para cocaína (...)"- cfr. fls. 100 a 103;
Em 26.01.2020 foi elaborado "Auto de teste rápido e pesagem" o qual acusou positivo para a substância cocaína - cfr. fls. 107;
Em 26.01.2020, nas instalações da PJ, sitas em Lisboa, pelas 10 horas e 40 minutos, os arguidos AA e BB foram detidos na sequência de flagrante delito pela prática de um crime de tráfico de produtos estupefacientes, p. e p. pelos art.ºs 21º, nº 1 e 24º, al. c), ambos do Dec-Lei nº 15/93, de 22.01.
Sendo esta a (actualidade relevante cumpre, agora, cuidar de apurar se foi respeitado o prazo de 48 horas a que alude o art.º 141º, º 1 do CPPenal e o art.º 28º, nº 1 da CRPortuguesa.
No que ora releva, dispõe o art.º 92º, nº 1 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 10.12.1982, aprovada pela Resolução da Assembleia da República 60/B/97, de 03.04.1997 "1- Os navios devem navegar soba bandeira de um só Estado e, salvo nos casos excepcionais previstos expressamente em tratados internacionais ou na presente Convenção, devem submeter-se, no alto mar, à jurisdição exclusivo desse Estado. Durante uma viagem ou em porto de escala, um navio não pode mudar de bandeira, a não ser no caso de transferência efectiva da propriedade ou da mudança de registo".
Cumpre assinalar que em 19.01.2020 os arguidos, um deles de nacionalidade alemã e um outro de nacionalidade bósnia, tripulavam a embarcação "CC" a qual navegava nas coordenadas geográficas 42º20,91 N, 018º07,53 W do Oceano Atlântico sem exibir qualquer pavilhão tendo, por força de tal, sido considerado pela Marinha Portuguesa como uma embarcação sem nacionalidade.
Ora, o local onde tal embarcação foi primeiramente abordada pelo meio naval da Marinha Portuguesa pelas 06 horas e 30 minutos do dia 19.012020 insere-se na chamada ZEE (Zona Económica Exclusiva) - a qual se situa entre as coordenadas geográficas 42,9764219 no seu limite norte; 29,2493701 no seu limite sul; -35,5783837 no seu limite oeste e -7,2499999 no seu limite este - podendo ler-se no preâmbulo do Dec-Lei nº 43/2002 de 02.03 "As novas realidades e os novos desafios que se apresentam à segurança marítima, acompanhados pela evolução da regulamentação técnica internacional, comunitária e nacional, fizeram incidir a atenção dos Estados em matéria de segurança marítima, em geral, e de protecção do ecossistema marinho, em particular. Estas circunstâncias determinaram, ao longo do tempo, a necessidade de aperfeiçoamento e desenvolvimento dos conhecimentos e competências técnicas dirigidas, prioritariamente, ao combate à criminalidade por via marítima e ao tráfico de estupefacientes, à salvaguarda da vida humana no mar e à defesa e preservação do meio marinho. Consideradas a extensão da costa portuguesa, cuja vigilância importa assegurar de forma eficaz e a situação estratégica de Portugal, que corresponde à confluência das mais importantes e movimentadas rotas marítimas internacionais, é exigível uma atenção acrescida tendo em vista a prevenção de situações potencialmente lesivas do interesse nacional e comunitário. Por outro lado, Portugal dispõe da segunda maior zona económica exclusiva da Europa, o que igualmente postula a existência de instrumentos susceptíveis de responder capazmente aos desafios daí resultantes".
De acordo com as disposições da Convenção dos Nações Unidas sobre o Direito do Mar, Portugal goza de direitos soberanos e de jurisdição sobre uma zona económica exclusiva de 200 milhas marítimas contadas desde a linha de base a partir da qual se mede a largura do mar territorial - cfr. Declaração 3.º de Portugal relativamente à CNUDM, aprovada, por ratificação, pela Resolução 60-B/97 da Assembleia da República.
De notar que para além de se considerarem "espaços marítimos sob soberania nacional" as águas territoriais, o mar territorial e a plataforma continental (art.º 4.1 do Dec-Lei nº 43/2002 de 02.03) é considerada "espaço marítimo sob jurisdição nacional" (nela se incluindo os poderes do Estado no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar) a chamada Zona Económica Exclusiva (n.º 2) podendo ler-se "Na zona económica exclusiva, o Estado costeiro tem: a) Direitos de soberania (...); Jurisdição (...); c) Outros direitos e deveres previstos na presente Convenção" (art.º 56º, nº 1 da CNUDM).
Acresce que ''todos os Estados devem cooperar para a repressão do tráfico ilícito de estupefacientes e substâncias psicotrópicas praticado por navios no alto mar com violação das convenções internacionais" (art.º 108º, nº 1 da aludida Convenção).
De qualquer modo, a lei penal portuguesa - para efeitos do Dec-Lei nº 15/93 - é também aplicável a factos cometidos fora do território nacional por estrangeiros e a factos "praticados a bordo de navio contra o qual Portugal tenha sido autorizado a tomar as medidas previstas no art.º 17.º da CNU contra o TIESP de 1988" (art.º 49º do aludido Dec-Lei).
Por fim, assinala-se o art.º 5º, nº 2 do CPenal manda aplicar a lei penal portuguesa "a factos cometidos fora do território nacional que o Estado português se tenha obrigado a julgar por tratado ou convenção internacional" como sucede com a repressão do tráfico de produtos estupefacientes sendo que "Cada Parte pode adoptar as medidas necessárias para estabelecer a sua competência em relação às infracções que tipificar (...) quando se trate de uma infracção estabelecida de acordo com a alínea c), iv), do n.º I do art.º 3.º [(78)] e for cometida fora do seu território com vista à prática, no seu território, de uma infracção estabelecida de acordo com o n.º 1 do art.º 3.º" (art.º 4º, nº 1, al. b.) iii) da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas).
Aqui chegados, cumpre assinalar que no dia 19.01.2020 quando a embarcação "CC" foi abordada pela Marinha Portuguesa o foi na ZEE Portuguesa e no âmbito do Direito de Visita em Alto Mar, consagrado no art.º 110º, nº 1, al. d) da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, uma vez que a embarcação não exibia qualquer bandeira ou pavilhão e que, na sequência do que ali foi constatado, designadamente, a existência de inúmeros sacos de desporto contendo diversas placas de uma substância que, desde logo, se suspeitou ser produto estupefaciente foi tal embarcação escoltada até território nacional, por forma a desencadear as ulteriores e necessárias diligências policiais, designadamente, de molde a ser dado cumprimento ao mandado de busca e apreensão oportunamente emitido.
Oro, sem prejuízo de desde o dia 19.01.2020 até ao dia 26.01.2020, data em que os arguidos foram detidos, os mesmos terem sido escoltados pela Marinha Portuguesa, a solicitação desta, no circunstancialismo supra descrito, até território nacional o certo é que os mesmos, apenas após a realização de teste rápido à substância apreendida, que acusou positivo para cocaína, foram detidos, ou seja, pelas 10 horas e 45 minutos do último dos dias supra referidos, pelo que, tendo-nos sido os mesmos presentes no dia 27.01.2020 forçoso é que se conclua que o foram com observância do prazo de 48 horas a que alude o art.º 141º, nº 1 do CPPenal e 28º, nº 1 da CRPortuguesa.
Bem sabemos que o direito à liberdade pessoal - liberdade ambulatória- é um direito fundamental da pessoa, proclamado em instrumentos legislativos internacionais e na generalidade dos regimes jurídicos dos países apodados de civilizados, mas, de igual modo, por vezes pode o mesmo ser legitimamente comprimido como sucedeu no caso objecto dos presentes autos.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos "considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça (...)" no art.º III proclama a validade universal do direito à liberdade individual acrescentando no art.º IX que ninguém pode ser arbitrariamente detido ou preso.
No artigo XXIX admite que o direito à liberdade individual sofra as "limitações determinados pela lei" visando assegurar o devido reconhecimento e respeito dos direitos e liberdades de outrem e de satisfazer as justas exigências da ordem pública.
O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no seu artigo 9º dispõe "Todo o indivíduo tem direito à liberdade" pessoal e proíbe a detenção ou prisão arbitrárias, estabelecendo que "ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos" acrescentando que "toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal".
A Convenção Europeia dos Direitos do Homem (Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais) no art.º 5º reconhece que "toda a pessoa tem direito à liberdade" ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal reconhecendo, assim, que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos enfatizou desde logo que o artigo 5 consagra um direito humano fundamental, a saber, a proteção do indivíduo contra a interferência arbitrária do Estado no seu direito à liberdade. O texto do artigo 5º deixa claro que as garantias nele contidas se aplicam a "todos". As alíneas (a) a (f) do Artigo 5 §1 contêm uma lista exaustiva de razões permissíveis sobre as quais as pessoas podem ser privadas de sua liberdade. Nenhuma privação de liberdade será compatível com o artigo 5.º, n.º 1, a menos que seja abrangida por um desses motivos ou que esteja prevista por uma derrogação legal nos termos do artigo 15.º da Convenção (cfr., entre outros, Irlanda v. Reino Unido, 18.01.1978, § 194, série A n.º. 25, e A. e Others v. O Reino Unido, citado acima, §§ 162 e 163) onde interpreta referindo "no que diz respeito à "legalidade" da detenção, a Convenção refere-se essencialmente à legislação nacional e estabelece a obrigação de observar as suas normas substantivas e processuais. Este termo exige, em primeiro lugar, que qualquer prisão ou detenção tenha uma base legal no direito interno". Assim, a "regularidade" exigida pela Convenção pressupõe o respeito não só do direito interno mas também - o artigo 18.º confirma - da finalidade da privação de liberdade autorizada pelo artigo 5.º, n.º 1, alínea a) (Bozano v. França , em 18.12.1986, § 54, Série A n º 111, e Semanas v. Reino Unido, 2 de Março de 1987 § 42, Série A n º 114).
No entanto, a preposição "depois" não implica, neste contexto, uma simples sequência cronológica de sucessão entre "condenação" e "detenção": a segunda também deve resultar da primeira, ocorrer "a seguir e como resultado"- ou "em virtude" - "desta". Em suma, deve haver uma ligação causal suficiente entre elas (Van Droogenbroeck, citado acima, §§ 35 e 39, e Weeks, citado acima, § 42).
Por sua vez a Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia reconhece, no art.º 6º, o direito à liberdade pessoal.
A CRPortuguesa reconhece e garante, no art.º 27º, n.º 1, o direito à liberdade individual, à liberdade física e à liberdade de movimentos.
Assim, o direito a não ser detido, preso ou total ou parcialmente privado da liberdade não é um direito absoluto.
À semelhança da CEDH, a CRPortuguesa, no aludido art.º 27º, n.º 2, admite expressamente que o direito à liberdade pessoal possa sofrer restrições como sucedeu, frisa-se no caso objecto dos presentes autos.
Ora, após a abordagem na ZEE da embarcação "CC" pela Marinha Portuguesa, a qual não exibia qualquer bandeira ou pavilhão, ao abrigo do disposto no art.º 17º da Convenção das Nações Unidas contra o tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, tendo resultado indiciado, pela presença de inúmeros sacos de desporto contendo produto suspeito de ser estupefaciente, era lícito àquela adoptar as medidas necessárias e adequadas em relação à embarcação; pessoas e carga que se encontravam a bordo, ao abrigo do disposto no art.º 49, al. b) do Dec-Lei nº 15/93, de 22.01 sublinhando-se que apenas após ter sido efectuado teste rápido ao produto que acusou positivo para cocaína foi dada voz de detenção aos arguidos pelas 10 horas e 40 minutos do dia 26.01.2020 e, posteriormente, foram os mesmos conduzidos às instalações da PJ em Lisboa onde lhes vieram a ser lavrados os respectivos TIR.
Há, pois, que distinguir entre a intercepção do navio, ocorrida no dia 19.012020 que foi depois conduzido à Base Naval do Alfeite onde, em 26.01.2020, se deu cumprimento ao Mandado de Busca e Apreensão oportunamente emitido, na sequência do que os arguidos foram detidos não tendo sido ultrapassado o prazo de 48 horas para os mesmos serem presentes a autoridade judiciária na medida em que o foram no dia seguinte àquele, a saber, no dia 27.01.2020.
Mas ainda que assim se não entendesse, o desrespeito do prazo de 48 horas configuraria apenas e tão só uma mera irregularidade - cfr. neste sentido Ac da RE de 04.01.2000 relatado por Manuel Nabais in CJ Tomo I - não tendo como consequência a libertação imediata dos arguidos e/ou a impossibilidade de aplicação de medidas de coacção aos mesmos - cfr. neste sentido o citado Ac. da RE e o Parecer da PGR nº 111/90, de 16.12.199 (não publicado), citado por Vinício Ribeiro in "CPP - Notas e Comentários", Coimbra Ed, 2ª Ed, 2011, pág. 678 e seguinte que conclui "(...) 16º O juiz pode fixar ao detido, apesar da declaração de ilegalidade da detenção, verificado o respectivo condicionalismo, a necessária e adequada medida de coacção, incluindo a prisão preventiva" e, no mesmo sentido, Prof. Germano Marques da Silva in "Curso de Processo Penal", vol. II, Editorial Verbo, 2008, pág. 278 "(...)Pensamos que uma coisa é a ilegalidade do excesso do prazo, outra bem diversa é a da aplicação da medida de coacção. Assim, independentemente das consequências do excesso de prazo, nada impede que o juiz aplique ao arguido uma medida de coacção".
À guisa de conclusão sublinhamos que a prisão dos arguidos se mostra legal porquanto efectuada em flagrante delito e após buscas devidamente autorizadas pela autoridade judiciária competente.
Face ao exposto, julgo válidas as detenções efectuadas, tendo as mesmas sido efectuadas em flagrante delito, ao abrigo das disposições conjugadas e com cumprimento do disposto nos art.ºs 254 º, nº 1, al. a); 255º; 256º; 257º, nºs 1 e 2 e 258º, todos do CPP, sendo os arguidos apresentados a autoridade judiciária com observância do prazo previsto no art.º 141º, nº 1 do mesmo diploma legal e 28º, nº 1 da CRPortuguesa.” (fim de transcrição).

Tal como se lavrou no despacho recorrido, também tem este tribunal ad quem, compulsados os autos, considera que:
“Com relevância para a decisão da questão a dirimir resulta provado que:
- por despacho proferido em 16.01.2020 pelo Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa foi autorizada a busca à embarcação "CC", de tipo veleiro, com a referência de registo DDD e MMSI EEE - cfr. fls. 19 e seguinte;
- em 16.01.2020 foram emitidos os competentes mandados de busca e apreensão - cfr. fls. 20;
- pelas 06 horas e 30 minutos do dia 19.01.2020, nas coordenadas geográficas 42º20,91N, 018º07,53W, a embarcação "CC" foi abordada por elementos da Marinha Portuguesa, não apresentando a mesma qualquer bandeira, os quais constataram que aí seguiam os arguidos sendo visíveis no interior daquela vários sacos desportivos contendo no seu interior placas de uma substância suspeita de ser estupefaciente e, por força de tal, foi determinado que os mesmos fossem presentes a autoridade policial em território nacional - cfr. fls. 165 e seguintes;
- em 26.01.2020, na Base Naval do Alfeite, foi dado cumprimento aos mandados de busca e apreensão oportunamente emitidos - cfr. fls. 38-verso;
- e, nessa sequência, pelas 10 horas e 40 minutos desse mesmo dia foi lavrado "Auto de busca e apreensão" - cfr. fls. 40 a 43;
- pelas 10 horas e 45 minutos do dia 26.01.2020 foi lavrado nas instalações da PJ, sitas em Lisboa, "Auto de notícia por detenção em flagrante delito'', o qual se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, dele constando "(...) sob detenção em flagrante delito os indivíduos acima identificados, os quais foram detidos em 26.01.2020, pelas 10 horas e 45 minutos, aquando da realização do teste rápido a produto suspeito de ser estupefaciente, que se encontrava no interior da embarcação denominada "CC", sem bandeira e porto de registo”. (fim de transcrição).

A que este tribunal ad quem mais acrescenta a seguinte factualidade, que igualmente resulta dos autos, designadamente das fls. supra indicadas e ainda de fls. 1 a 4 e 106:
- De acordo com o constatado pela Marine Traffic e registado no sistema de localização/identificação denominado AIS (Automatic Identification System) a embarcação "CC" saiu de Fortaleza, no Brasil, no dia 17 de novembro de 2019, sendo observado que a 25 de dezembro de 2019 navegava, no Oceano Atlântico, à velocidade de 2,2 nós (cerca de 4 km/h), e no dia 13 de janeiro de 2020 navegava, já na zona do Arquipélago dos Açores, à velocidade de 5,6 nós (cerca de 10 km/h);
- O veleiro "CC", onde os arguidos ora recorrentes seguiam, foi pela Maritime Analysis and Operations Centre (Narcotics)[2], em sede de análise de risco, sinalizado como suspeito (designadamente, por navegar a maior do tempo com sistema de localização/identificação AIS desligado e por não ter feito paragem nos Açores, para reabastecimento e descanso da tripulação, o que é atípico para este tipo de embarcação de recreio e travessia, que já então, sem escala, durava há dois meses), e solicita a intervenção da Polícia Judiciária Portuguesa a qual nessa sequência encetadas diversas diligências a partir do dia 16 de janeiro de 2020, perante o que se sucede o mais acima descrito, mormente a que, nas indicadas coordenadas geográficas e no dia 19 de Janeiro de 2020, a embarcação “CC” tenha sido abordada pela Marinha Portuguesa e conduzida diretamente pela mesma à Base Naval do Alfeite, em Almada, onde aportou e acostou no dia 26 de Janeiro de 2020.

Traçada esta cronologia dos factos, importa prosseguir.
Quer a Meritíssima Juíza de Instrução, na decisão ora recorrida, quer o Ministério Público, primeiro na sua resposta ao recurso em primeira instância, depois no seu parecer nesta segunda instância, convocam, na sua argumentação, três normas legais, a serem conjugadas entre si, a saber:

- o artigo 49.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, que aprovou o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas;

- o artigo 108.º, n.º 1, da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, concluída em Montego Bay em 1982, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 60-B/97, publicada no Diário da República n.º 238/97, Serie I-A, 1º Suplemento, de 14 de outubro de 1997, e

- o artigo 17.º da Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e de Substâncias Psicotrópicas, concluída em Viena em 1988, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 29/91, de 6 de setembro, e ratificada pelo Decreto do Presidente da República n.º 45/91, de 6 de setembro de 1991, publicada no Diário da República n.º 205/91, Serie I-A, de 6 de setembro de 1991.

A que o Ministério Público na sua resposta ao recurso acrescenta os artigos 16.º e 18.º da Lei n.º 34/2006, de 28 de julho, relativos às "Actividades de fiscalização e exercício do direito de visita" e "Direito de visita no alto mar" no âmbito das atribuições da Marinha Portuguesa e ainda “o art.º 16.º/1/b do Regulamento Geral das Capitanias (…), tal como estabelecido nos termos do art.º 13.º/2/k do DL n.º 44/2002, de 2 de março, sobre as competências do capitão do porto.”

Se porventura são pertinentes para legitimar a intervenção da Marinha Portuguesa no apresamento do veleiro “CC”, desprovido de pavilhão identificativo da sua nacionalidade (a bandeira francesa estava expirada) e suspeito de estar carregado de cocaína, em pleno alto mar, no Oceano Atlântico, em coordenadas que o colocam na ZEE (zona económica exclusiva) de Portugal, pelas 06h30 do dia 19 de janeiro de 2020, e na condução forçada da embarcação e seus ocupantes até às instalações navais do Alfeite, onde atracou, no Cais 6, pelas 10h40 do dia 26 de janeiro de 2020, e detenção dos seus dois tripulantes, os ora arguidos AA e BB, é matéria que os recorrentes não impugnam, como não sendo verídica, nem contestam ser ilegal, pelo que sobre o teor daquela legislação nacional, nesta matéria, e sobre daqueles dois instrumentos internacionais multilaterais aqui não nos deteremos.
Aquilo com que verdadeiramente se indignam os recorrentes – e com razão, como a seguir veremos – é que eufemisticamente, dizemos nós, se considere que a sua detenção ocorreu apenas já em terra, pela Polícia Judiciária às 10h45 do dia 26 de janeiro de 2020, nas instalações navais do Alfeite, e que todo o período de tempo (sete dias) da sua condução forçada deste alto mar até aí não foi de detenção mas de mera “escolta” como entendem a Meritíssima Juíza a quo e o Ministério Público.
Ministério Público que na sua resposta ao recurso refere a dado-passo: “Entendimento idêntico, de conformidade legal, em situação semelhante, teve este Tribunal da Relação de Lisboa, no Acórdão a 22 de março de 2018, proferido no processo n.º 394/17.9JELSB e consultável em, no qual, tendo o arguido recorrente sido intercetado no dia 27 de Outubro de 2017 e apresentado a interrogatório judicial no dia 30 de Outubro de 2017, decorridas mais de 48 horas, se decidiu ter de se distinguir entre a intercepção do navio no mar alto - que foi depois conduzido para o porto de Lisboa, onde se deu cumprimento ao mandado de busca, na sequência do que o arguido foi detido — e a detenção do arguido, realizada em terra, pelo que não fora ultrapassado o prazo de 48h”. (fim de transcrição).
(…) Mas dito isto, avancemos.
Estabelece o art.º 28.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP), que “A detenção será submetida, no prazo máximo de quarenta e oito horas, a apreciação judicial, para restituição à liberdade ou imposição de medida de coacção adequada, devendo o juiz conhecer das causas que a determinaram e comunicá-las ao detido, interrogá-lo e dar-lhe oportunidade de defesa.”
E, no respeito por essa norma fundamental, preceitua o art.º 141.º, n.º 1, do CPP, que “O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.”
Sendo que , o conceito constitucional e processual penal de "detenção" deve ser, por um lado, quanto a nós, com o devido respeito e salva melhor opinião, entendido, como toda e qualquer privação de facto da liberdade física de locomoção da pessoa humana à ordem de qualquer autoridade judiciária ou entidade policial subsequente a flagrante delito (tal como este é definido pelo artigo 256.º do CPP), por crime punível com pena de prisão, nos termos do artigo 255.º, n.º 1, alínea a), do CPP (com as condicionantes dos seus n.ºs 3 e 4), ou fora de flagrante delito por mandado do juiz ou, nos casos em que for admissível prisão preventiva, do Ministério Público ou das autoridades de polícia criminal (estas tal como são consideradas na alínea d) do art.º 1.º, do CPP), por iniciativa própria, nos termos e condições do artigo 257.º do CPP, ou ainda em flagrante delito, por crime punível com pena de prisão, por qualquer pessoa que pode proceder à detenção se uma autoridade judiciária ou entidade policial não estiver presente nem puder ser chamada em tempo útil, nos termos e condições do artigo 255.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CPP.Ver jurisprudência
Detenção que é, portanto, efetuada: “a) Para, no prazo máximo de quarenta e oito horas, o detido ser apresentado a julgamento sob forma sumária ou ser presente ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial ou para aplicação ou execução de uma medida de coacção; ou b) Para assegurar a presença imediata ou, não sendo possível, no mais curto prazo, mas sem nunca exceder vinte e quatro horas, do detido perante a autoridade judiciária em acto processual”, como é estabelecido, enquanto suas finalidades, pelo artigo 254.º do CPP.
Ficam, deste modo, fora, e para lá, desse quadro de "detenção" as medidas de coação de prisão preventiva ou obrigação de permanência na habitação judicialmente aplicadas, ou de pena de prisão, medida de segurança privativa da liberdade ou de internamento decretadas no seguimento de decisão condenatória transitada em julgado.
Bem como, igualmente ficam fora dessa "detenção" os casos de constrangimento da liberdade física de locomoção da pessoa humana decorrentes de estado de sítio ou de estado de emergência, declarados na forma prevista na Constituição, como o que presentemente vivemos, perante a situação epidemiológica de pandemia causada pelo novo coronavírus, em que há um dever geral de recolhimento domiciliário para a maioria da população, enormes restrições de circulação pessoal para os maiores de 70 anos, os imunodeprimidos e os portadores de doença crónica que, de acordo com as orientações da autoridade de saúde devam ser considerados de risco, designadamente os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos, todos eles sujeitos a um dever especial de proteção, e mesmo de confinamento obrigatório, seja individual, em estabelecimento de saúde, no respetivo domicílio ou noutro local definido pelas autoridades de saúde, dos doentes com COVID-19, dos infetados com SARS-Cov2 e dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa, seja de confinamento obrigatório coletivo no caso das cercas sanitárias impostas a determinados locais (vd. Decretos n.ºs 2-A/2020, de 20 de março, 2-B/2020, de 2 de abril, e 2-C/2020, de 17 de abril).
A Marinha e a Polícia Marítima estão integradas na Autoridade Marítima Nacional (AMN), entidade que constitui o topo hierárquico da sua administração e coordenação sob o comando, por inerência, do Almirante Chefe do Estado-Maior da Armada. No entanto, são entidades distintas, com missões e competências diferenciadas, sendo que só a Polícia Marítima “é um órgão de polícia e de polícia criminal que garante, e fiscaliza, o cumprimento das leis e regulamentos nos espaços integrantes do Domínio Público Marítimo (DPM), em áreas portuárias e nos espaços balneares, bem como em todas as águas interiores sob jurisdição da AMN e demais espaços marítimos sob soberania e jurisdição nacional” (vd. https://www.amn.pt/PM/Paginas/MissaoCompetencias.aspx). Não sendo a Marinha (que é ramo das Forças Armadas portuguesas) órgão de polícia criminal e tendo sido esta que no caso concreto, segundo a posição que se tem vindo a defender, procedeu à detenção dos ora arguidos AA e BB fê-lo em flagrante delito do crime de tráfico de estupefacientes, que tem natureza pública e é punível com pena de prisão, nos termos, condições e para os efeitos do artigo 255.º, n.ºs 1, alínea b), e 2, do CPP, isto é para que fossem entregues imediatamente a qualquer autoridade judiciária (tal como esta é definida na alínea b) do art.º 1.º, do CPP) ou entidade policial e seguidamente presentes ao juiz competente para primeiro interrogatório judicial.Ver jurisprudência
Por outro lado, face ao exposto, afigura-se a este tribunal ad quem que, com o devido respeito e salva melhor opinião, teremos de aceitar que o prazo máximo de detenção de 48 horas, a que aludem os artigos 28.º, n.º 1, da CRP e 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, se conta desde que o visado é fisicamente impedido de se movimentar livremente, ficando assim privado do seu jus ambulandi.

Destarte, revertendo ao caso concreto, temos de considerar que houve detenção, nos termos e para os efeitos dos artigos 28.º, n.º 1, da CRP e 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP, a partir o momento em que a Marinha Portuguesa obriga a tripulação do veleiro “CC” e este a seguir rota rumo à Base Naval de Lisboa, em Almada, impedindo AA e BB de se encaminharem para muito bem entendessem, bem como de conduzirem a sua embarcação em livre circulação pelo oceano, sem que lhes restasse qualquer alternativa. Na realidade, importava à Marinha Portuguesa não só assegurar que a carga ilícita de estupefacientes transportada no “CC” fosse apreendida como garantir que os responsáveis pelo seu transporte fossem levados perante a justiça, para responderem criminalmente pela prática do crime que estavam a cometer em flagrante delito (artigo 256.º do CPP). Daí que, seguramente, mesmo que os tripulantes, os ora arguidos AA e BB, se tivessem lançado ao mar, em balsa de salvamento, para se furtarem à ação da justiça, a Marinha Portuguesa alcançá-los-ia evitando a sua fuga.
Os ora arguidos AA e BB, que desde alto mar e até ao Alfeite apenas e só tinham a qualidade de suspeitos, encontravam-se factualmente na situação de verdadeira detenção porquanto não tinham liberdade de locomoção. Encontravam-se, não é demais sublinhá-lo, factualmente na situação de detidos por privados do jus ambulandi, coartada que estava a sua liberdade física de movimentação. Neste mesmo sentido pode ver-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de julho de 2010, proferido no processo n.º 112/10 (habeas corpus) e consultável na JusNet.
Assim, com o devido respeito, não faz qualquer sentido afirmar, como o faz a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer, que os recorrentes "estavam confinados ao espaço da embarcação" que "conduziram, ainda que a contragosto" e que isso, por si, “não permite considerar que se encontrassem detidos para efeitos processuais e constitucionais". (fim de transcrição).
Como doutamente se expendeu na decisão recorrida: “O Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, no seu artigo 9º dispõe "Todo o indivíduo tem direito à liberdade" pessoal e proíbe a detenção ou prisão arbitrárias, estabelecendo que "ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos" acrescentando que "toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal".” (fim de transcrição).
Ora, parece olvidar a decisão recorrida, resultar também do art.º 9.º do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (concluído, em Nova Iorque em 16 de Dezembro de 1966, pela Assembleia Geral das Nações Unidas, que Portugal assinou naquela cidade em 7 de Outubro de 1976 e pela Lei n.º 29/78 foi aprovado para ratificação em 5 de maio de 1978, promulgada em 5 de junho de 1978 pelo Presidente da República e publicado no Diário da República n.º 133, Série I - 1º Suplemento, de 12 de junho de 1978), conforme decorre do Comentário geral n.º 35, do Comité de Direitos Humanos das Nações Unidas, relativo aquele artigo 9.º, adotado na sua 112.ª sessão (7 a 31 de outubro de 2014), que consta do Doc. CCPR/C/GC/35, publicado a 16 de dezembro de 2014 e também disponível em http://hrlibrary.umn.edu/crc/gencom35.pdf, o seguinte, que ali se expendeu (transcrição, com tradução do ora relator para português, a partir da língua inglesa do original, com recurso aos volumes I e II de “LAW TERMINOLOGY in English, French and Spanish” da “Terminology and Technical Documentation Section” do “Languages Service” das Nações Unidas - Genebra):
“2. O Artigo 9.º reconhece e protege a liberdade e a segurança da pessoa. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, o artigo 3.º proclama que todos têm direito à vida, liberdade e segurança da pessoa. Esse é o primeiro direito substantivo protegido pela Declaração Universal, que indica a profunda importância do artigo 9.º do Pacto, tanto para os indivíduos como para a sociedade como um todo. A liberdade e a segurança da pessoa são preciosas por si mesmas, e também porque a privação da liberdade e a segurança da pessoa têm sido historicamente os principais meios para prejudicar o gozo de outros direitos.
3. A liberdade da pessoa diz respeito ao não confinamento do seu corpo e não à liberdade geral de ação. (…) [Liberty of person concerns freedom from confinement of the body, not a general freedom of action.]
5. A privação de liberdade envolve uma mais severa restrição de movimentos dentro de um espaço mais estreito do que nos casos de mera interferência com a liberdade de movimentos nos termos do artigo 12.º.[3] Exemplos de privação de liberdade incluem custódia policial, medida de coação de obrigação de permanência na habitação, prisão preventiva, prisão após condenação cumprida em estabelecimento prisional, pena de prisão executada em regime de permanência na habitação, detenção administrativa, hospitalização não voluntária, medida tutelar educativa de internamento de menor e confinamento numa área restrita de um aeroporto, bem como ser transportado contra a sua própria vontade. [Deprivation of liberty involves more severe restriction of motion within a narrower space than mere interference with liberty of movement under article 12. Examples of deprivation of liberty include police custody, arraigo, remand detention, imprisonment after conviction, house arrest, administrative detention, involuntary hospitalization, institutional custody of children and confinement to a restricted area of an airport, as well as being involuntarily transported.]
6. A privação da liberdade pessoal dá-se sem livre consentimento.” (fim de transcrição/tradução com negritos e sublinhados nossos).

Estiveram, portanto, AA e BB completamente privados da sua liberdade de circulação e de livre disposição das suas pessoas desde dia 19 de janeiro de 2020 e até serem presentes à Meritíssima Juíza de Instrução, do Juízo de Instrução Criminal de Almada, em 27 de janeiro de 2020, para o primeiro interrogatório judicial de arguido detido a que alude o art.º 141.º do CPP. Destarte, tendo decorrido oito dias entre os dois apontados e relevantes eventos, claramente se patenteia ter sido manifestamente excedido, e em muito, o referido prazo de 48 horas a que aludem os artigos 28.º, n.º 1, da CRP e 141.º, n.º 1, e 254.º, n.º 1, al. a), ambos do CPP.
Perante tal constatação, o que se impõe agora verificarmos é se concorreram ou não circunstâncias justificativas para que não tivesse sido possível a ultrapassagem daquele prazo máximo de 48 horas. 
Apreciando as concretas circunstâncias do caso afigura-se-nos ser completamente irrealista que tal prazo pudesse ser respeitado.
Só vislumbramos duas situações que permitiriam que tal prazo máximo de 48 horas não tivesse porventura sido postergado.
A primeira seria a da Marinha Portuguesa se ter feito acompanhar na sua saída para alto mar desde terra – e no pressuposto que foi isso que sucedeu – de um Juiz de Instrução que de imediato, a bordo do meio naval nacional, ouvisse os arguidos em primeiro interrogatório.
Mas essa solução, ainda que fosse humana e materialmente exequível, esbarrava logo com uma séria de patentes dificuldades práticas e legais. É que para o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a que alude o art.º 141.º do CPP, é presidido pelo juiz, mas nele têm de também necessariamente participar outros intervenientes processuais. Com efeito, estabelece o art.º 141.º, n.º 1, do CPP, que “O interrogatório é feito exclusivamente pelo juiz, com assistência do Ministério Público e do defensor e estando presente o funcionário de justiça.”, acrescendo ainda, no caso concreto, a necessidade de intérprete ou intérpretes, porventura de línguas que nem se saberiam quais (preceitua o art.º 94.º do CPP que: “2 - Quando houver de intervir no processo pessoa que não conhecer ou não dominar a língua portuguesa, é nomeado, sem encargo para ela, intérprete idóneo, ainda que a entidade que preside ao acto ou qualquer dos participantes processuais conheçam a língua por aquela utilizada.Ver jurisprudênciaVer formulários 3 - O arguido pode escolher, sem encargo para ele, intérprete diferente do previsto no número anterior para traduzir as conversações com o seu defensor.”).
Com efeito, antes de abordagem marítima, em situações como a dos autos, não se pode com exatidão conhecer o número de pessoas a bordo da embarcação suspeita de estar a transportar produto estupefaciente, sua nacionalidade e línguas em que se expressam.
Acresce que, os próprios traficantes após serem detidos e constituídos arguidos e ao serem levados perante juiz para o primeiro interrogatório de arguido detido, a que alude o art.º 141.º do CPP, podem não querer ser assistidos por defensor oficioso mas ser tão-só defendidos por advogado(s), da sua escolha e confiança, conferindo-lhe(s) mandato para o efeito, como aliás sucedeu com os ora recorrentes AA e BB, como se alcança de fls. 205 e 207 dos autos.
Ao que igualmente acresce que, como vimos, o arguido pode escolher, sem encargo para ele, intérprete, diferente do nomeado pelo tribunal, para traduzir as conversações com o seu defensor.
A segunda solução, para evitar a ultrapassagem do prazo máximo de 48 horas sem controlo judicial, seria a de após o apresamento do os seus tripulantes terem de imediato sido constituídos arguidos e transportados via aérea para Portugal.
Estando-se em alto mar a única hipótese seria a do recurso a helicópteros do tipo recuperadores-salvadores ou aptos a missão de resgate marítimo.
 Vejamos então a exequibilidade desta alternativa.
A Marinha Portuguesa, facto que é público e notório (cfr. https://www.marinha.pt/pt/os_meios/helicopteros/Paginas/default.aspx), dispõe de uma frota de 5 helicópteros Westland Lynx Mk95, aeronaves que tem como missões a luta anti-submarina, luta anti-superfície, interdição marítima, combate à pirataria, evacuações médicas, transporte logístico e busca e salvamento, e foram desenhados especificamente para operar a partir das fragatas das classes Vasco da Gama e Bartolomeu Dias. Estes helicópteros têm um alcance de ​​​​​​​​528 km.
Por seu turno, a Força Aérea Portuguesa, imaginando-se um cenário em que fosse envolvido o seu contributo operacional[4], dispõe, facto que é público e notório (cfr. https://www.emfa.pt/aeronaves), do seguinte tipo de helicópteros:
- SUDAVIATION - SE 3160 ALOUETTE III, da Esquadra 552 - "ZANGÕES", sita na Base Aérea n.º 1, em Beja. Trata-se de um helicóptero muito manobrável e extremamente versátil que lhe permite ser utilizado para ações de assalto, salvamento, evacuação sanitária, resgate no mar, patrulhamento, observação, transporte, apoio no combate a incêndios e instrução de voo. Tem um alcance máximo de 460 Km;
- Uma frota de doze EH-101 MERLIN, em três variantes distintas para três tipos de missões diferentes: 6 de variante SAR (Busca e Salvamento), 2 de variante SIFICAP (Sistema de Fiscalização das Pescas) e por 4 de variante CSAR (Busca e Salvamento em Combate). A Esquadra 751 - "PUMAS", que opera 24 horas por dia, 365 dias por ano, com tripulações e aeronaves e em alerta permanente na Base Aérea N.º 6, Montijo, no AM3 Porto Santo e na Base Aérea N.º 4, Lajes, tem por missão executar operações de apoio tático e de busca e salvamento com este tipo de helicóptero que tem um alcance máximo de 740 Km;
- AW119MKII "KOALA", helicópteros que têm por missões: instrução básica e avançada de voo, busca e salvamento, evacuação sanitária, patrulhamento e observação e apoio ao combate aos incêndios rurais. Têm um alcance máximo de 990 Km.

Logo, estando a embarcação “CC”, no momento da sua intercetação, nas coordenadas geográficas 42º20.91N, 018º07.53W, seria necessário percorrer, sem reabastecimento, uma distância de ida e volta nunca inferior a cerca de 1600 km, sendo que nenhum helicóptero das forças armadas ou de autoridade portuguesa teria autonomia para transportar os ora arguidos diretamente desde a sua posição em alto mar até terra, fosse para Portugal Continental (Lisboa estava a cerca de 900 km de distância, e o ponto nacional mais próximo, Viana do Castelo, a aproximadamente 770 km), fosse para as suas regiões autónomas sitas nos arquipélagos dos Açores (a ilha de São Miguel, a mais próxima, distava 780 km) ou da Madeira (a ilha de Porto Santo, a mais próxima, distava 1040 km), fosse ainda e porventura via outros países, todos eles bem mais distantes, em qualquer dos pontos cardeais, colaterais e subcolaterais da rosa dos ventos [aproximadamente 730 km para Espanha (Cabo Finisterra, na Corunha) e cerca de 1200 km para os pontos de costa mais próximos de França, Irlanda e Reino Unido], tudo sendo, quando às distâncias mencionadas, facto público e notório a partir do dado das referidas coordenadas geográficas, que não vêm impugnadas, e do recurso a qualquer mapa ou carta náutica.
Assim, esta alternativa de evacuação aérea também não era exequível.

Estabelece a artigo 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (doravante CEDH), concluída em Roma em 4 de novembro de 1950 e aprovada para ratificação pela Assembleia da República pela Lei n.º 65/78, de 13 de outubro, que:
“1. Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança.
Ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal:
a) Se for preso em consequência de condenação por tribunal competente;
b) Se for preso ou detido legalmente, por desobediência a uma decisão tomada, em conformidade com a lei, por um tribunal, ou para garantir o cumprimento de uma obrigação prescrita pela lei;
c) Se for preso e detido a fim de comparecer perante a autoridade judicial competente, quando houver suspeita razoável de ter cometido uma infracção, ou quando houver motivos razoáveis para crer que é necessário impedi-lo de cometer uma infracção ou de se pôr em fuga depois de a ter cometido;
d) Se se tratar da detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância, ou da sua detenção legal com o fim de o fazer comparecer perante a autoridade competente;
e) Se se tratar da detenção legal de uma pessoa susceptível de propagar uma doença contagiosa, de um alienado mental, de um alcoólico, de um toxicómano ou de um vagabundo;
f) Se se tratar de prisão ou detenção legal de uma pessoa para lhe impedir a entrada ilegal no território ou contra a qual está em curso um processo de expulsão ou de extradição.
2. Qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela.
3. Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. A colocação em liberdade pode estar condicionada a uma garantia que assegure a comparência do interessado em juízo.
4. Qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal.
5. Qualquer pessoa vítima de prisão ou detenção em condições contrárias às disposições deste artigo tem direito a indemnização.” (fim de transcrição).

Para o que ora nos é trazido apreciar, importam sobremaneira a alínea c), do parágrafo 1 e os parágrafos 3 e 4. Sendo que, como daqueles resulta – bem como do demais aí preceituado – não é estabelecido um prazo máximo em horas ou dias para uma pessoa detida, suspeita da prática de um crime, “comparecer perante a autoridade judicial competente” (leia-se Juiz de Instrução no caso nacional e sub iudice), “a fim de que este se pronuncie sobre a legalidade da sua detenção”, bem como ao seu “direito a ser julgada” e ao “direito a recorrer”, mas tão-só faz alusões genéricas a “deve ser apresentada imediatamente a um juiz”, “num prazo razoável” e “em curto prazo de tempo”, cabendo ao aplicador do direito interpretar e integrar no concreto tais normas em branco. 
No âmbito nacional não encontrámos na jurisprudência hermenêutica relativa ao disposto na alínea c), do parágrafo 1 em conjugação com o parágrafo 3, ambos do artigo 5.º da CEDH. Contudo, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos em casos similares ao dos presentes autos, isto é, de detenção em alto mar, a longínqua distância de costa, de tripulantes de embarcações, que transportavam cocaína das Américas para a Europa, com a sua subsequente apresentação no continente a juiz para validar tais detenções, já se pronunciou em pelo menos três ocasiões, tendo considerado razoável e plenamente justificado, que essas comparências perante autoridade judicial, só tenham ocorrido passados respetivamente, dezasseis, treze e dezoito dias, e sem que com isso se tenha violado o disposto no parágrafo 3 do artigo 5.º da CEDH.

Vejamos, mais em detalhe e cronologicamente, essa jurisprudência firmada em Estrasburgo pelo Tribunal Europeu de Direitos Humanos (doravante TEDH),

Comecemos pelo Acórdão de 12 de janeiro de 1999 proferido no processo n.º 37388/97, designado por “Caso Rigopoulos contra Espanha”, decisão que pode ser consultada no site institucional do TEDH em http://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-44286, onde, no que ora releva, se expendeu (transcrição, com tradução do ora relator para português, a partir da língua francesa do original do aresto, que é a disponível no acima indicado endereço):
“O requerente queixou-se de ter sido apresentado à autoridade judicial somente após dezasseis dias de detenção em alto mar e alegou a violação do artigo 5, § 3, da Convenção, que tem a seguinte redação:
“Qualquer pessoa presa ou detida nas condições previstas no parágrafo 1, alínea c), do presente artigo deve ser apresentada imediatamente a um juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada num prazo razoável, ou posta em liberdade durante o processo. (...)"
O Governo demandado alega que os requisitos do artigo 5, § 3, da Convenção não podem ser aplicados abstratamente. No presente caso, toda a operação ocorreu sob a supervisão da autoridade judicial: as investigações preliminares, o apresamento do navio, e a detenção do requerente. Além disso, o requerente foi devidamente informado dos seus direitos e das decisões judiciais que lhe dizem respeito. Por outro lado, não foi submetido a nenhum interrogatório até ser presente ao tribunal em Madrid. O governo esclarece que, se o Archangelos foi apresado em 23 de janeiro de 1995, foi somente em 26 de janeiro de 1995, data em que o chefe das máquinas foi detido, que o navio retomou a navegação por razões de segurança. Na chegada a Las Palmas, tudo estava pronto para recebê-los e transferi-los para Madrid o mais rápido possível, para serem presentes ao juiz de instrução. (…)
No que diz respeito à existência de outras possibilidades permitisse ser o requerente apresentado ao juiz dentro de um período mais curto, o Governo sublinha que, supondo que isso fosse possível, uma transferência mais rápida também deveria ter afetado os treze outros detidos que tinham os mesmos direitos que o requerente. A esse respeito, argumenta o Governo espanhol que o contato via rádio com o juiz de instrução era tecnicamente mais do que problemático, dado o número de detidos, suas nacionalidades, a nomeação de advogados etc. Quanto ao transporte do juiz ao navio, o governo específica que o Petrel I tinha um poiso para helicópteros, mas é óbvio que, tendo em atenção a distância a que se encontrava o Archangelos havia restrições técnicas à utilização deste meio de transporte, essa possibilidade era praticamente impraticável.
O recorrente, referindo-se ao acordo assinado entre a Espanha e o Reino Unido para a supressão do tráfico ilícito de estupefacientes, considera que poderia ter sido solicitado a assistência desse país para o apresamento do Archangelos, porquanto a ilha de Ascensão está localizada a aproximadamente 890 milhas náuticas do ponto de apresamento. De qualquer modo, entende o requerente que o prazo de dezasseis dias para a transferência por via marítima não pode, em nenhum caso, apresentar-se como constituindo um prazo "normal", na aceção do artigo 5, § 3, da Convenção. Argumenta que o período de três dias durante o qual os Archangelos foram incapazes de navegar não corresponde à realidade. De facto, de acordo com o diário de bordo do Petrel I, esse atraso foi de apenas quarenta e três horas e não setenta e duas, conforme alegado pelo governo. Calcula que, considerando a velocidade média do Petrel I (catorze nós), este poderia ter percorrido as 3.000 milhas até chegar ao porto espanhol em apenas nove dias.
Quanto ao controle da autoridade judicial, (…) nenhuma comunicação foi estabelecida, ou mesmo por rádio, entre o juiz de instrução e ele durante sua detenção no Petrel I. O requerente alega que não foi informado de seus direitos como detido nas formas legais previstas em lei até à sua chegada ao porto de Las Palmas. Além disso, não pode o recorrente reconhecer nenhum caráter probatório às breves indicações reportadas no diário de bordo do Petrel I (…). Em conclusão, considera que o facto de ter sido privado durante dezasseis dias de todas as informações sobre os procedimentos legais que lhe diziam respeito constituem uma violação do artigo 5, § 3, da Convenção.
O Tribunal reitera a importância do parágrafo 3 do artigo 5 que, juntamente com o parágrafo 1 alínea c), oferece garantias contra a privação arbitrária da liberdade. A exigência de "prontidão", em particular, protege os indivíduos de detenções prolongadas nas mãos das autoridades policiais ou administrativas.
Recorda também que o artigo 5, § 3, da Convenção impõe ao juiz ou a qualquer outro magistrado a obrigação de examinar as circunstâncias que militam a favor ou contra a detenção, para se pronunciar, segundo critérios jurídicos, sobre a existência de razões que a justifiquem e, na sua ausência, ordenar a libertação do detido. A norma também impõe a obrigação de ouvir pessoalmente a pessoa que lhe foi apresentada (acórdão Schiesser v. Suíça, de 4 de dezembro de 1979, série A no 34, p. 13, § 31). (…)
O Tribunal relembra, no entanto, que é necessário examinar cada caso individualmente, de acordo com suas características particulares, para determinar se as autoridades cumpriram o requisito de prontidão (acórdãos Jong, Baljet e van den Brink contra Países Baixos de 22 de maio de 1984, série A no 77, pp. 24-25, § 52; Brogan e outros v. Reino Unido, de 28 de novembro de 1988, série A no 145-B, p. 32, § 59). Recorda também que circunstâncias excecionais podem justificar um período mais longo antes de serem apresentadas à autoridade judicial (cf. caso Jong, Baljet e van den Brink contra os Países Baixos acima citado, relatório Comm. de 11.10.82, série A, nº 77, p. 36, § 89).
No caso em apreço, não há dúvida de que o requerente foi privado de sua liberdade, ficou retido no navio pertencente ao serviço de alfândegas espanhol por um período de dezasseis dias sem ter sido "apresentado imediatamente" perante o juiz de instrução e que, sem dúvida, a privação se enquadra no âmbito do artigo 5 da Convenção. Surge, portanto, a questão de saber se essa privação de liberdade cumpriu as condições estabelecidas no artigo 5, § 3, da Convenção.
O Tribunal reitera que a questão de saber se a condição de celeridade estabelecida no artigo 5, § 3, da Convenção se encontra ou não preenchida deve ser apreciada em primeiro lugar à luz das disposições legais em vigor no país em apreço (caso McGoff v. Suécia, Relatório de 15 de julho de 1983, Série A, n.º 83, p. 31, § 28). (…)
Não obstante, considera o Tribunal que, à primeira vista, o período de dezasseis dias não parece ser reconciliável com o conceito de "apresentação imediata" estabelecido no artigo 5, § 3, da Convenção. Consequentemente, apenas circunstâncias inteiramente excecionais poderiam justificar esse atraso. Consequentemente, deve examinar se, no presente caso, estamos diante de tais circunstâncias excecionais.
O Tribunal, a este respeito, observa que a detenção do requerente se prolongou por dezasseis dias, sob o argumento de que o apresamento do navio que ele comandava estava zona de alto mar do Oceano Atlântico, a uma distância considerável do território espanhol, mais de 5500 km, e levou menos de dezasseis dias para chegar ao porto de Las Palmas (Grande Canária). A este respeito, o próprio requerente admite que, devido a atos de resistência por parte de certos membros da tripulação, o Archangelos só pode retomar caminho quarenta e três horas após o seu apresamento. Ora, este atraso não pode ser imputado às autoridades espanholas. Por fim, foram todas essas circunstâncias que impediram que o requerente fosse apresentado mais cedo ao juiz de instrução. Tendo em conta o que precede, o Tribunal considera que havia, portanto, uma impossibilidade material de levar o requerente fisicamente ao juiz de instrução dentro de um prazo mais curto. O Tribunal observou a este respeito que, após chegar a Las Palmas, o requerente foi transferido para Madrid de avião e que no dia seguinte foi levado à autoridade judicial. Acresce que, o Tribunal considera pouco realistas as observações do requerente relativas à possibilidade de as autoridades espanholas solicitarem assistência às autoridades britânicas para que o Archangelos fosse desviado para a Ilha de Ascensão, a qual se encontrava, de qualquer modo, a cerca de 890 milhas náuticas, ou seja, a aproximadamente 1600 km do local de apresamento.
Nestas circunstâncias, o Tribunal considera que, tendo em conta as circunstâncias completamente excecionais do presente caso, não se pode concluir que o prazo decorrido entre o momento da detenção do requerente e o da sua apresentação ao juiz de instrução excedeu a prontidão (rapidez temporal), tal como esta está concebida no parágrafo 3 do referido artigo. Daqui resulta que o restante do pedido deve ser julgado manifestamente infundado, em conformidade com o artigo 35, § 3, da Convenção.
Por estas razões, o Tribunal por unanimidade,
DECLARA INADMISSÍVEL O DEMAIS DO PETICIONADO” (fim de transcrição).

Passemos a atentar no Acórdão de 29 de março de 2010 proferido no processo n.º 3394/03, designado por “Caso Medvedyev e outros contra França”, decisão que pode ser consultada no site institucional do TEDH em http://hudoc.echr.coe.int/fre?i=001-97988, onde, no que ora releva, se expendeu (transcrição, com tradução do ora relator para português, a partir da língua francesa do original do aresto, que é a disponível no acima indicado endereço):
“127. O Tribunal observou que a prisão e detenção dos requerentes começaram com a intercetação do navio no alto mar em 13 de junho de 2002. Os requerentes só foram colocados sob custódia policial em 26 de junho de 2002, após a sua chegada a Brest. (…)
128. A apresentação aos juízes de instrução, os quais são seguramente suscetíveis de serem qualificados como “juiz ou outro magistrado habilitado pela lei para exercer funções judiciais” na aceção do artigo 5, § 3, só ocorreu treze dias após a detenção.
129. Ora o Tribunal relembra que, no caso Brogan e outros (citado acima, § 62), considerou que um período de custódia policial de quatro dias e seis horas sem controlo judicial ultrapassava os limites estritos de tempos fixados no Artigo 5 § 3, mesmo quando tenha por objetivo proteger a comunidade como um todo contra o terrorismo. O Tribunal igualmente julgou contrário ao artigo 5 § 3 um período de sete dias antes da apresentação perante um juiz (no caso Öcalan, citado acima, §§ 104-105).
130. O Tribunal recorda, no entanto, que já admitiu, na sua decisão Rigopoulos (já referida), que dizia respeito à intercetação em alto mar pela polícia aduaneira espanhola, no contexto de uma investigação judiciária relativa a tráfico internacional de estupefacientes, de um navio com pavilhão do Panamá, e a detenção da sua tripulação pelo tempo necessário ao seu transporte até um porto espanhol, que um período de dezesseis dias não era incompatível com o conceito de "apresentação imediata" contido no Artigo 5, § 3, da Convenção, levando em consideração a existência de "circunstâncias inteiramente excecionais" que justificaram esse prazo. Nessa sua decisão, o Tribunal observou que a distância a ser percorrida era "considerável" (o navio estava a 5.500 km do território espanhol no momento de sua intercetação) e que um atraso de quarenta e três horas, causado por atos de resistência por parte da tripulação "não podem ser atribuídos às autoridades espanholas". Deduziu daí que "havia uma impossibilidade material de levar o requerente fisicamente ao juiz de instrução dentro de um período mais curto", levando em consideração o facto de que, ao chegar em solo espanhol, o requerente foi imediatamente transferido para Madrid de avião e, no dia seguinte, levado à autoridade judicial. Por fim, O Tribunal julgou "pouco realista" a possibilidade levantada pela requerente de que, em vez de ser transportado para a Espanha, o navio fosse desviado para a ilha britânica de Ascensão, por força causa do acordo firmado entre Espanha e o Reino Unido tendente à repressão do tráfico ilícito de estupefacientes, estando este a aproximadamente 1.600 km do local da intercetação.
131. No presente caso, o Tribunal observa que, no momento de sua intercetação, o Winner também estava em alto mar, ao largo das ilhas de Cabo Verde e, portanto, longe da costa francesa, a uma distância deles da mesma ordem que a discutida no caso Rigopoulos. Além disso, nada indica que a sua viagem de encaminhamento até França tenha demorado mais tempo do que o necessário, tendo especialmente em conta as condições meteorológicas e o estado de degradação do Winner, o que impossibilitou uma navegação mais rápida. Acresce que, os requerentes não alegam que seria possível entregá-los às autoridades de um país mais próximo do que a França, onde pudessem ter sido rapidamente apresentados a uma autoridade judicial. Quanto à hipótese de uma transferência para um navio da Marinha Francesa para um repatriamento mais rápido, não cabe ao Tribunal avaliar a viabilidade de tal operação nas circunstâncias do caso.
132. O Tribunal, finalmente, constata que os requerentes foram colocados sob custódia policial em 26 de junho de 2002 às 8:45 da manhã e que sua apresentação efetiva a um juiz de instrução nas instalações do Comissariado de Brest ocorreu, à luz dos autos apresentados pelo governo, das 17h05 às 17h45 no que respeitou ao primeiro juiz de instrução e em horários desconhecidos em relação ao segundo juiz de instrução (ver parágrafo 19 acima), mas não sendo contestado pelos recorrentes que os interrogatórios presididos por este último foram concomitantes. Consequentemente, a duração da detenção dos requerentes antes de serem apresentados a um juiz foi de apenas oito a nove horas após a sua chegada à França.
133. Somos forçados a constatar que esse período de oito a nove horas é compatível com o conceito de "apresentação imediata" estabelecido no artigo 5.º, n.º 3, e na jurisprudência do Tribunal.
134. Consequentemente, não houve violação do artigo 5, § 3, da Convenção.” (fim de transcrição).

Ou ainda e finalmente, o Acórdão de 27 de junho de 2013, proferido no processo n.º 62736/2009, designado por “Vassis e outros contra França”, decisão que pode ser consultada no site institucional do TEDH em http://hudoc.echr.coe.int/eng?i=001-121566, caso em que o navio Junior, na sequência de “operação de intercetação planeada, suspeito de estar envolvido no tráfico internacional de estupefacientes (havia sido objeto de vigilância especial desde Janeiro de 2008, nomeadamente por parte da DEA[5], e depois do OCRTIS[6]) (in ponto 60), é também intercetado pelas competentes autoridades francesas “em alto mar, ao largo da costa da África Ocidental, a milhares de quilômetros da costa francesa”, tendo sido encaminhado, com os seus nove tripulantes detidos, para o porto de Brest em França, onde chegou dezoito dias depois do seu apresamento, considerando o THDE que “não há nada que indique que sua viagem até França levou mais tempo do que o necessário, principalmente porque o Junior é um navio inicialmente projetado para cabotagem ao longo da costa e não para longas distâncias” (in ponto 55) e onde “O Tribunal recorda que já admitiu, na sua decisão Rigopoulos (já referida) e no seu acórdão Medvedyev e outos (já acima referido), que a detenção de uma tripulação durante o seu encaminhamento a um porto do Estado demandado, por dezasseis e treze dias, respetivamente, não era incompatível com o conceito de "apresentação imediata" estabelecido no artigo 5, § 3, da Convenção, levando em consideração a existência de "circunstâncias inteiramente excecionais" que justificassem uma tal prazo.” (in ponto 54) Nessa decisão o TJHE refere ainda, no seu ponto 55, que “os requerentes limitam-se a aludir à proximidade da costa do Senegal em 11 de fevereiro de 2008 e à existência de um acordo de cooperação judicial entre a França e o Senegal, sem acompanhar essas suas observações com nenhum desenvolvimento a esse respeito”.

À luz desta jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos, este Tribunal da Relação de Lisboa considera que, tendo em conta as circunstâncias inteiramente excecionais do presente caso, que acima ficaram descritas, não se pode concluir que o prazo de oito dias decorrido entre o momento da detenção em alto mar dos arguidos e ora recorrentes (19 de janeiro de 2020) e o da sua apresentação à Meritíssima Juíza de Instrução em Almada (a 27 de janeiro de 2020) excedeu a prontidão (rapidez temporal), tal como esta está concebida no parágrafo 3 do artigo 35.º da CEDH, de "apresentação imediata", pois esse período de oito dias está completamente justificado, dada a considerável distância das muitas centenas de milhas náuticas que por via marítima se impunha percorrer (cerca de pelo menos 1000 km já que mesmo em mar a aberto a navegação – fruto dos ventos, correntes e ondulação, com o consequente abatimento – não se faz em linha recta contínua), com as inerentes condições meteorológicas à navegação por se estar em pleno Inverno no hemisfério Norte [verificamos que durante os sete dias de navegação a velocidade média terá sido de cerca de 3,2 nós (cerca de 6 km/h), o que é consentâneo com a velocidade do “CC” registada em 25 de dezembro de 2019 e 13 de janeiro de 2020, que acima assinalámos), e sem que houvesse outras exequíveis alternativas para que tal prazo tivesse sido reduzido, tudo constituindo uma real impossibilidade material de levar AA e BB fisicamente perante juiz de instrução, dentro de um espaço de tempo mais curto, para a realização do primeiro interrogatório judicial de arguido detido a que alude o art.º 141.º do CPP.
Termos em que, contrariamente ao alegado pela defesa, não foi violado o disposto no parágrafo 3 do artigo 35.º da CEDH.

Uma última nota só para referir que quanto à Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, proclamada solenemente pelo Parlamento Europeu, o Conselho e a Comissão (publicada em língua portuguesa no Jornal Oficial da União Europeia de 7 de junho 2016, de C 202/389 a 405, texto que retoma, adaptando-a, a Carta proclamada em 7 de dezembro de 2000 e substitui-a a partir da data de entrada em vigor do Tratado de Lisboa), instrumento comunitário que os recorrentes também trazem à colação, nada esclarece nesta matéria relativa ao prazo em que um arguido detido deve ser presente a juiz.
Com efeito, no seu preâmbulo refere que: “Os povos da Europa, estabelecendo entre si uma união cada vez mais estreita, decidiram partilhar um futuro de paz, assente em valores comuns. Consciente do seu património espiritual e moral, a União baseia-se nos valores indivisíveis e universais da dignidade do ser humano, da liberdade, da igualdade e da solidariedade; assenta nos princípios da democracia e do Estado de direito. Ao instituir a cidadania da União e ao criar um espaço de liberdade, segurança e justiça, coloca o ser humano no cerne da sua ação. (…) A presente Carta reafirma, no respeito pelas atribuições e competências da União e na observância do princípio da subsidiariedade, os direitos que decorrem, nomeadamente, das tradições constitucionais e das obrigações internacionais comuns aos Estados-Membros, da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais, das Cartas Sociais aprovadas pela União e pelo Conselho da Europa, bem como da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia e do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem.”
Estabelecendo depois no seu art.º 4.º (contido no TÍTULO I relativo à Dignidade do ser humano), o único que a defesa alega ter sido violado, que “Ninguém pode ser submetido a tortura, nem a tratos ou penas desumanos ou degradantes.” Sendo que, quanto a nós, para os autos, mais releva o preceituado no seu art.º 6.º (contido no TÍTULO II relativo às Liberdades), onde ainda assim apenas se consignou que: “Toda a pessoa tem direito à liberdade e segurança.” (que a decisão recorrida não olvidou de mencionar), bem como o art.º 45.º (in TÍTULO V referente a Cidadania), onde se consagrou que “1. Qualquer cidadão da União goza do direito de circular e permanecer livremente no território dos Estados-Membros. 2. Pode ser concedida liberdade de circulação e de permanência, de acordo com os Tratados, aos nacionais de países terceiros que residam legalmente no território de um Estado-Membro.” e ainda todos os artigos do TÍTULO V (47.º a 50º) atinentes a Justiça, embora sem também neles se encontrar qualquer referência ao prazo em que um arguido detido deve ser presente a juiz mas tão-só de que: “Toda a pessoa tem direito a que a sua causa seja julgada de forma equitativa, publicamente e num prazo razoável, por um tribunal independente e imparcial, previamente estabelecido por lei. Toda a pessoa tem a possibilidade de se fazer aconselhar, defender e representar em juízo.”
O mesmo se passa – ausência de menção a qualquer prazo para um arguido detido ser presente a juiz – relativamente à Declaração Universal dos Direitos Humanos, instrumento multilateral que o despacho revidendo não olvidou, sendo que quanto ao Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, instrumento internacional que quer a decisão recorrida quer os recorrentes igualmente invocaram, este tão-só refere que tal condução perante juiz deve ocorrer prontamente. Com efeito, estabelece o Pacto, no n.º 3 do seu art.º 9.º, que: “Todo o indivíduo preso ou detido sob acusação de uma infracção penal será prontamente conduzido perante um juiz ou uma outra autoridade habilitada pela lei a exercer funções judiciárias e deverá ser julgado num prazo razoável ou libertado.
Mas ainda que assim se não entendesse, e aqui concordamos com a decisão recorrida, “o desrespeito do prazo de 48 horas configuraria apenas e tão só uma mera irregularidade, não tendo como consequência a libertação imediata dos arguidos e/ou a impossibilidade de aplicação de medidas de coacção aos mesmos” pois “uma coisa é a ilegalidade do excesso do prazo, outra bem diversa é a da aplicação da medida de coacção. Assim, independentemente das consequências do excesso de prazo, nada impede que o juiz aplique ao arguido uma medida de coacção" - cfr. neste sentido a doutrina e jurisprudência de segunda instância citada no despacho revidendo, a que acrescentamos o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de julho de 2010, proferido no processo n.º 112/10 (habeas corpus) e consultável na JusNet, onde se expendeu: “Não obstante o Juiz de instrução ter julgado ilegal a detenção do arguido, é legal a aplicação da prisão preventiva, por julgar verificados os respectivos pressupostos e não haver qualquer impedimento à aplicação dessa medida de coacção pelo facto de a precedente detenção ser ilegal.”.

Na defluência do exposto, improcede o recurso neste segmento, salvo no que respeita a termos de considerar que a detenção dos arguidos AA e BB ocorreu no dia 19 de Janeiro de 2020, para efeitos de cômputo da privação da liberdade ao abrigo destes autos.

2.2. Apreciemos agora a segunda questão que é a relativa à nulidade da busca.
Na sua na sua conclusão nº 6 os recorrentes consignaram: “Deve ser declarada a nulidade das buscas e actos subsequentes nos termos do artigo 3.º da Directiva 2013/48/UE, bem como do art.º 64.º, n.º 1, al. d), e o art.º 119.º, al. c), ambos do CPP.”
O teor dessa conclusão nº 6 do recurso tem de ser concatenada com o que os recorrentes, a este respeito, alegaram em sede de motivações, daí se retirando que os recorrentes defendem que teriam de ser assistidos por advogado durante as buscas que foram realizadas à embarcação em que se fizeram transportar, já que tal busca não foi por si (arguidos) autorizada, convocando os preceitos acima mencionados.
Vejamos.
O artigo 64.º, nº 1, alínea d), do CPP, estabelece que “ É obrigatória a assistência do defensor em qualquer acto processual, à excepção da constituição de arguido, sempre que o arguido for cego, surdo, mudo, analfabeto, desconhecedor da língua portuguesa, menor de 21 anos, ou se suscitar a questão da sua inimputabilidade ou da sua imputabilidade diminuída”.
Com o devido respeito, não concordamos inteiramente com a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta nesta Relação quando no seu parecer, para afastar in casu a aplicabilidade da norma em apreço, defende que “a realização de uma busca não é um acto processual, tal como delineado sobredito preceito, mas medida cautelar e de polícia, a esta entidade competindo praticar actos cautelares necessários e urgentes para assegurar os meios de prova.
Como claramente resulta do CPP, as buscas são inequivocamente “meios de obtenção da prova.” Pode, no entanto, não se consumar (a busca) no quadro de um “acto processual” se for efetuada, antes da existência de inquérito e sem mandado judicial, por iniciativa de órgão de polícia criminal, como medida cautelar, necessária e urgente, a assegurar meios de prova, nos casos previstos nas diversas alíneas do n.º 5 do art.º 174.º do CPP.
Porém, não foi isso que se passou no presente caso, pois a busca foi executada pela Polícia Judiciária a 26 de janeiro de 2020, no cumprimento de mandados de busca e apreensão que haviam sido emitidos a 16 de janeiro de 2020, na sequência de despacho, proferido, nessa mesma data, pelo Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Lisboa do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, autorizando-a à embarcação "CC", e no âmbito de inquérito já registado como tal e a que coube o NUIPC 18/20.7JELSB (cfr. fls. 1 a 4, 19 e seg. e 40 a 43 dos autos principais e certidão junta aos presentes autos de recurso em separado).

Todavia, já tem razão aquela Exma. magistrada do Ministério Público quando, no seu mencionado parecer, defende que “o preceito legal trazido à colacção pelos recorrentes e que impõem a presença de defensor não se aplica aos suspeitos, àqueles que ainda não são arguidos”, e que no caso presente a busca ocorreu “num momento processual em que os recorrentes ainda não haviam sido constituídos como arguidos” pelo que “Nem a interpretação legal, nem tão pouco a interpretação constitucional, impõem a interpretação abrangente levada a cabo pelos recorrentes. A falta de defensor aos suspeitos que ainda não haviam sido constituídos arguidos (aquando da referida busca) não constitui qualquer nulidade, contrariamente ao defendido.”.
Com efeito, pese embora considerarmos, como se viu em II-2.1. supra, que os recorrentes ficaram impedidos de exercer o seu jus ambulandi a partir de 19 de janeiro de 2020 e que perante tal privação de liberdade física, que lhe foi imposta pela Marinha Portuguesa ainda em alto mar, devem desde essa data ser considerados como indivíduos sobre “detenção”, a constituição como arguidos de AA e BB só ocorreu a 26 de janeiro de 2020, pelas 10h45, em momento posterior ao da busca executada nesse mesmo dia pela Polícia Judiciária alguns minutos antes e de que foi lavrado o "Auto de busca e apreensão" constante de fls. 40 a 43 dos autos principais e de que consta certidão junta aos presentes autos de recurso em separado, quando apenas e tão-só tinham a qualidade de suspeitos, como também acima entendemos ao tratar da primeira questão que era colocada a este tribunal ad quem (vd. I-2.1. supra).
Assim sendo, a falta de defensor aos suspeitos que ainda não haviam sido constituídos arguidos aquando da referida busca não constitui, contrariamente ao alegado pelos recorrentes, qualquer nulidade, designadamente aquela a que alude al. c), art.º 119.º, do CPP, por aqueles invocada.
Perante isto, fica prejudicada a peticionada nulidade dos actos subsequentes à busca.
Quanto à invocada pelos recorrentes violação artigo 3.º da Diretiva 2013/48/EU, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 22 de outubro de 2013, não tendo sido a mesma transposta para Portugal, por o nosso país, enquanto Estado-membro da União Europeia, o ter entendido por desnecessário (como resulta do que consta no site institucional da UE em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/NIM/?uri=celex:32013L0048), remetemos aqui para o que a propósito da sua aplicabilidade (que não é de efeito direto nos ordenamentos jurídicos nacionais, motivo pelo qual em termos literais não há uma obediência expressa a tal Diretiva a que os Tribunais Portugueses estejam vinculados) se dirá no ponto que se segue (II-2.3.), apenas aqui se mencionando que a Diretiva 2013/48/EU diz respeito “ao direito de acesso a um advogado em processo penal e nos processos de execução de mandados de detenção europeus, e ao direito de informar um terceiro aquando da privação de liberdade e de comunicar, numa situação de privação de liberdade, com terceiros e com as autoridades consulares” e está publicada, em língua portuguesa, no Jornal Oficial da União Europeia de 6 de novembro de 2013 sob a refª. L294/1.
Termos em que, igualmente neste particular, o recurso não pode lograr provimento.

2.3. Apreciemos agora a questão suscitada pelos recorrentes relativa ao acesso aos autos.
A este respeito alegam os recorrentes que foi violado o estipulado no art.º 7.º da Diretiva 2012/13/EU, vendo, assim, limitado o seu direito de defesa constitucionalmente consagrado, porquanto só foi facultado o acesso parcial aos autos apenas e tão só em data próxima do termo do prazo de 30 dias para a interposição de recurso e não antes, porquanto o pedido foi feito no dia 31 de janeiro de 2020 e só no dia 21 de fevereiro de 2020 foi proferido o despacho de deferimento e, considerando que se tratava de uma sexta-feira, só foi possível a consulta pela defesa na segunda-feira seguinte, a saber, dia 24 de fevereiro de 2020 e foi apenas autorizada a consulta dos elementos referidos no art.º 194.º, n.º 8, do CPP, e não a consulta na íntegra dos autos.
Vejamos.
Antes de mais, recordemos aqui que o artigo 194.º do CPP, estabelece, no seu n.º 8, que: “Sem prejuízo do disposto na alínea b) do n.º 6, o arguido e o seu defensor podem consultar os elementos do processo determinantes da aplicação da medida de coação ou de garantia patrimonial, à exceção do termo de identidade e residência, durante o interrogatório judicial e no prazo previsto para a interposição de recurso.”
Ou seja, “sempre que a sua comunicação não puser gravemente em causa a investigação, impossibilitar a descoberta da verdade ou criar perigo para a vida, a integridade física ou psíquica ou a liberdade dos participantes processuais ou das vítimas do crime” pois é isso que estabelece a alínea b) do n.º 6 do artigo 194.º do CPP.
Preceituando o n.º 7 do artigo 194.º do CPP “Sem prejuízo do disposto na alínea b) do número anterior, não podem ser considerados para fundamentar a aplicação ao arguido de medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção do termo de identidade e residência, quaisquer factos ou elementos do processo que lhe não tenham sido comunicados durante a audição a que se refere o n.º 3.”, isto é “Durante o inquéritoin casu após o primeiro interrogatório judicial de arguido detido a que alude o art.º 141.º do CPP.
Dito isto, avancemos.
Estipula o art.º 7.º da Diretiva 2012/13/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 22 de maio de 2012, “relativa ao direito à informação em processo penal” (está publicada, em língua portuguesa, no Jornal Oficial da União Europeia de 1 de junho de 2012 sob a refª. L142/1), que os ora recorrentes invocam, que:
"1. Caso uma pessoa seja detida e presa em qualquer fase do processo penal, os Estados-Membros asseguram que sejam facultados aos detidos, ou aos seus advogados, os documentos relacionados com o processo específico que estejam na posse das autoridades competentes e que sejam essenciais para impugnar eficazmente, nos termos do direito nacional, a legalidade da detenção ou prisão.
2. Os Estados-Membros asseguram que seja dado acesso aos suspeitos ou acusados, ou aos seus advogados, a pelo menos toda a prova material que se encontre na posse das autoridades competentes, seja ela a favor ou contra os suspeitos ou acusados, de modo a salvaguardar a equidade do processo e a preparar a defesa.
3. Sem prejuízo do n.º 1, o acesso aos elementos a que se refere o n.º 2 deve ser dado atempadamente para permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa e, pelo menos, aquando da apresentação da fundamentação da acusação à apreciação de um tribunal. Caso as autoridades competentes obtenham prova material adicional, deve ser dado atempadamente acesso à mesma para permitir a sua consideração.
4. Em derrogação dos n.ºs 2 e 3, e na condição de não prejudicar o direito a um processo equitativo, pode ser recusado o acesso a certos elementos se esse acesso for suscetível de constituir uma ameaça grave para a vida ou os direitos fundamentais de outra pessoa ou se a recusa for estritamente necessária para salvaguardar um interesse público importante, como nos casos em que a concessão de acesso poderia prejudicar uma investigação em curso ou comprometer gravemente a segurança nacional do Estado-Membro em que corre o processo penal. Os Estados-Membros asseguram que, de acordo com os procedimentos previstos no direito nacional, a decisão de recusa de acesso a certos elementos, nos termos do presente número, seja tomada por uma autoridade judicial ou pelo menos seja sujeita ao controlo jurisdicional.
5. O acesso a que se refere o presente artigo é gratuito." (fim de transcrição).

Em primeiro lugar, como doutamente expendeu o Ministério Público na sua resposta ao recurso, há que considerar a natureza de uma Diretiva em comparação com os demais instrumentos jurídicos existentes na União Europeia.
Assim, o regulamento tem carácter geral, é obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros.
A diretiva vincula o Estado-Membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. A decisão é obrigatória em todos os seus elementos. Quando designa destinatários, só é obrigatória para estes.
As recomendações e os pareceres não são vinculativos.
As Diretivas têm, assim, de ser transpostas/implementadas nos ordenamentos jurídicos nacionais, vinculando os Estados membros, deixando-lhes, no entanto, a escolha quanto à forma e meios para atingir os objetivos das Diretivas, não possuem efeito direto.
Portugal, a propósito da temática em apreço, conforme informação oportunamente prestada à Comissão Europeia, entendeu que a legislação portuguesa processual penal já os garantia, não procedendo, assim formalmente, e por o entender desnecessário, à transposição da Diretiva supramencionada (como resulta do que consta no competente site institucional da União Europeia em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/NIM/?uri=celex:32012L0013), motivo pelo qual em termos literais não há uma obediência expressa a tal Diretiva a que os Tribunais Portugueses estejam vinculados.
Não obstante não haver, então, uma aplicação formal dos objetivos da Diretiva, um efeito que deverá ter é aquele que se pode denominar de efeito indireto ou de princípio de interpretação conforme, em que os tribunais nacionais têm de interpretar a sua legislação nacional no máximo possível em conformidade com os objetivos da Diretiva, princípio firmado no Acórdão do TJUE, de 10 de abril de 1984, Sabine von Colson e Elisabeth Kamann contra Land Nordrhein-Westfalen (consultável em https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/?uri=CELEX:61983CJ0014), e, daí em diante, por muitos outros.
E isto será válido, quer no caso de Diretivas não transpostas (mas devendo ser transpostas), mal transpostas ou não transpostas por a legislação nacional já prever aqueles direitos.
Uma vez que assim é de facto, compulsado o CPP, garantístico já de origem em articulação com o art.º 7.º da Diretiva sobre o direito de acesso aos elementos do processo, cumpre apurar o conceito de documentos referido no seu n.º 1. Por documentos deve ter-se um entendimento abrangente, não só incluindo documentos propriamente ditos (mormente, queixas, autos de notícia, inquirições, interrogatórios de outros acusados/suspeitos, perícias, exames, ofícios com respostas a pedidos concretos e informações de serviço, policiais ou não), mas também tudo o que estiver no processo com relevo para a defesa (e para a acusação), seja incriminatório ou não (a favor ou contra), como sejam, designadamente, fotografias, registos áudio e vídeo, objetos e extratos de contas, devendo tais elementos serem facultados aos suspeitos, acusados, defensores oficiosos ou advogados constituídos o mais tardar antes de uma autoridade judicial competente ser chamada a decidir da legalidade da detenção ou prisão nos termos do artigo 5.º, n.º 4, da CEDH, e, em tempo útil, para permitir o exercício efetivo do direito a impugnar a legalidade da detenção ou prisão.
O Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 110/2011, de 2 de março de 2011, publicado no Diário da República n.º 68/2011, Série II de 6 de abril de 2011 e também disponível no seu site institucional em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20110110.html, lembra e anota que "a lei processual penal adopta uma noção ampla de documento, considerando como tal toda a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico nos termos da lei penal (artigo 164.º do CPP). Esta remissão integrativa para a lei penal significa que se considera documento qualquer “declaração corporizada em escrito, ou registada em disco, fita gravada ou qualquer outro meio técnico, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas, que, permitindo conhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer à generalidade das pessoas ou a um certo círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta” [artigo 255.º, alínea a), do CP].
Porém, documentos há, como aquele cuja valoração está em causa, que se limitam a conter a narrativa de actos processuais ou do inquérito. O “objecto elaborado pelo homem” em que consistem (artigo 362.º do Código Civil) visa traduzir ou reproduzir o que ocorreu numa determinada diligência do inquérito ou do processo. Não são incorporados no processo para comprovar um facto externo, mas sim elaborados e integrando necessariamente o processo como instrumento destinado a fazer fé quanto aos termos em que se desenrolaram os actos processuais ou de inquérito. Não deixando de ser em sentido genérico documentos, em sentido material são autos (artigo 99.º do CPP). Ora, perante tais documentos, pelo menos quando a narrativa que contêm do que ocorreu em determinada diligência está indissoluvelmente ligada a um resultado que se destinou a preparar e que é expressamente invocado como meio de prova, o sujeito processual não pode ignorar a sua existência e aptidão probatória. A invocação probatória do resultado consequente é suficiente para assegurar que o arguido, patrocinado por advogado, possa defender-se do auto que documenta uma diligência que é um antecedente necessário à determinação desse resultado contra ele invocado, em termos de dispor e poder usar todos os instrumentos processuais necessários e adequados para defender a sua posição e contrariar a acusação.” (fim de transcrição).

Decorre deste entendimento, em síntese, que a omissão de notificação de um documento constante dos autos não implica — só por si — uma afetação intolerável do direito de defesa, na sua dimensão de direito ao contraditório, não violando, assim, quer a exigência de que o processo penal assegure todas as garantias de defesa (n.º 1 do artigo 32.º da Constituição) quer o princípio do contraditório na produção de prova (n.º 5 do artigo 32.º da Constituição).
Tudo dependerá, enfim, das circunstâncias em que o documento surge no processo e se articula com a decisão, podendo assumir relevância nesta ponderação, por exemplo, fatores como a natureza do documento; a sua centralidade ou carácter decisivo na formação da convicção do tribunal ou na construção decisória em geral; ter ou não sido expressamente indicado por algum dos sujeitos processuais ou sinalizado pelo tribunal como prova; a possibilidade de consulta dos autos, a sua dimensão; o tempo decorrido entre actos processuais; a assistência por advogado.
Uma outra questão que surge interligada, ainda perante a redação do n.º 1 do art.º 7.º da Diretiva 2012/13/EU, é o que devemos entender por documentos essenciais, bem como quem define essa essencialidade.
Ora, neste âmbito, afigura-se a este tribunal ad quem que essa essencialidade não pode ser aferida do ponto de vista do Ministério Público ou do Juiz de Instrução, mas sim da ótica da defesa.
Atente-se que a norma comunitária em apreço alude a “documentos relacionados com o processo específico que estejam na posse das autoridades competentes e que sejam essenciais para impugnar eficazmente, nos termos do direito nacional, a legalidade da detenção ou prisão”, acrescentando no seu n.º 2 in fine “de modo a salvaguardar a equidade do processo e a preparar a defesa”.
Com efeito, enquanto responsável pela investigação e acusação, por indiferente ou aparentemente inócuo, poderá ser importante para o suspeito/acusado, por si só ou conjugado com provas existentes ou a requerer e/ou a juntar.
Daí que a aferição da essencialidade da documentação tenha de ser efetuada por quem tem a defesa a seu cargo, não podendo ficar na dependência do Ministério Público ou sequer do Juiz.
O que não quer dizer que essa alegada essencialidade não possa ou não deva ser contestada pelo Ministério Público ou afastada pelo Juiz quando assim é, por, designadamente, o teor desse documento, em essência, estar já contido em declarações de testemunhas a que o arguido teve acesso e nada requereu oportunamente, ou esse documento espelha um facto irrelevante, redundante, inócuo ou supérfluo, face ao que está a ser decidido em concreto, tendo em conta os elementos/documentos/provas existentes já nos autos.
Sem esquecer que o acesso a certos elementos e documentos essenciais para que a defesa possa preparar e impugnar eficazmente a legalidade da detenção ou prisão também pode ser negado pelo Juiz de Instrução, “na condição de não prejudicar o direito a um processo equitativo”, “se esse acesso for suscetível de constituir uma ameaça grave para a vida ou os direitos fundamentais de outra pessoa ou se a recusa for estritamente necessária para salvaguardar um interesse público importante, como nos casos em que a concessão de acesso poderia prejudicar uma investigação em curso ou comprometer gravemente a segurança nacional do Estado-Membro em que corre o processo penal” Isto, “em derrogação dos n.ºs 2 e 3” expressamente consignada no n.º 4 do art.º 7.º da Diretiva 2012/13/EU.
Porém, na dúvida e nada havendo por parte da investigação a garantir ou salvaguardar (interesse da investigação e proteção de vítimas e sujeitos processuais), deve ser dado acesso a esse documento tido por essencial pela defesa.
E essa documentação terá de ser acessível a tempo e deverá ser dado algum tempo, por forma a poder contestar a legalidade ou oportunidade da detenção/prisão, sendo que saber qual o tempo necessário para preparação da defesa estará necessariamente relacionado com as idiossincrasias do processo (problemas levantados, dimensão e complexidade), devendo esse prazo, em princípio, ser estabelecido de comum acordo entre a defesa e decisor dessa matéria, ouvido o Ministério Público, na falta de disposição legal expressa sobre esses prazos.
E esta questão, de ser concedido um prazo razoável para a defesa analisar documentação junta aos autos, não é despicienda em nenhuma das diversas fases do processo penal, designadamente, no caso que ora nos é trazido apreciar, para a interposição de recurso da decisão que sujeita arguido a prisão preventiva na sequência do primeiro interrogatório judicial de arguido detido a que alude o art.º 141.º do CPP.
Pela sua oportunidade e pertinência convocamos aqui o que expendemos a este propósito no nosso acórdão prolatado, em 26 de setembro de 2019, no processo n.º 1500/15.3PGALM.L1, então com referência ao conhecimento do conteúdo dos autos por parte de novo defensor em fase de julgamento, mas que aqui vale mutatis mutandis:
“a presença de defensor, a que alude a alínea c) do artigo 119.º do CPP, é um direito material e não meramente formal que se consubstancia não só com a sua mera presença do defensor na sala de audiências mas com a oportunidade que lhe tem de ser dada, real e efetiva, de conhecer o processo, daí a possibilidade, oficiosamente concedida pelo tribunal ou proporcionada a seu requerimento, de conferenciar com o arguido e examinar os autos, no caso em que, por via de substituição, é nomeado em plena audiência ou logo no seu início. Pode, é certo, o defensor não exercer esse direito, mas solicitandoVer jurisprudência, conferenciar com o arguido e examinar os autos, como sucedeu no presente caso, tal prazo, no caso concreto, em que o arguido, estava acusado, por diversos factos dispersos no tempo, da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, passível de ver ser-lhe aplicada uma pena entre um e cinco anos de prisão, e que, como a própria Senhora Juíza reconheceu no seu despacho, tinha complexidade e dimensão, atenta a prova documental e testemunhal neles carreada, conceder à ilustre Defensora Oficiosa acabada de nomear, como o fez, um prazo de 20 minutos para preparação da defesa, é, quanto a nós e salvo melhor opinião, manifestamente exíguo e como tal apenas se estaria a ficcionar um direito essencial da defesa, que na prática se estava a incompreensivelmente restringir para lá do razoável, assim se postergando direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, mormente a um processo justo e equitativo. Em apoio desta nossa posição, convocamos aqui, mutatis mutandis, o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 428/2013, proferido em 15 de julho de 2013 no processo 403/13, no qual foi julgada inconstitucional a aplicação do processo sumário aos detidos em flagrante delito por crime cuja pena máxima abstratamente aplicável seja superior a cinco anos de prisão, perante caso em que o Ministério Público requereu o julgamento de arguido acusado da prática, como autor material, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, nº 1, 132.º, nºs 1 e 2, alínea a), 22.º e 23.º do Código penal, sob a forma de processo sumário, de harmonia com o disposto no artigo 381.º, nº 1 do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro, e onde, a dado-passo, doutamente se expendeu “Ora, todos têm direito a que uma causa em que intervenham sejam objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo (artigo 20º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa CRP). O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (artigo 32º, nº 1, CRP). Será perante as circunstâncias concretas de cada caso que se devem estabelecer os concretos conteúdos dos direitos de defesa, sendo que uma ampla e efetiva defesa não respeita apenas à decisão final, mas a todas as que impliquem restrições de direito ou possam condicionar a solução definitiva do caso (Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada Tomo I, pág. 354).” e, mais adiante, consignaram os Preclaros Conselheiros: “Nos termos do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido», o que engloba indubitavelmente «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4ª edição, Coimbra, pág. 516). (…) As exigências de celeridade processual não podem, por conseguinte, deixar de ser articuladas com as garantias de defesa, sendo que a Constituição, por força do mencionado n.º 2 do artigo 32º, valora especialmente a proteção das garantias de defesa em detrimento da rapidez processual.” (fim de transcrição).

Ora, tendo sido a decisão ora recorrida (a que determinou a sua prisão preventiva na sequência do primeiro interrogatório judicial de arguido detido a que alude o art.º 141.º do CPP) proferida em 29 de janeiro de 2020 e dispondo do prazo de 30 dias para a interposição de recurso daquela, mesmo só tendo tido a 21 de fevereiro de 2020 despacho de deferimento para acesso aos autos, de pedido por feito pela defesa no dia 31 de janeiro de 2020, e considerando que aquele dia 21 foi uma sexta-feira, pelo que só foi possível a consulta dos autos pela defesa na segunda-feira seguinte, ou seja, a 24 de fevereiro de 2020, ainda assim dispôs de uma semana inteira para apreciar do conteúdo que lhe foi disponibilizado e interpor recurso, a que sempre acresceriam mais três dias (com multa), o que perante um processo que não era nem extenso, nem complexo, de apenas dois arguidos, foi, com o devido respeito e contrariamente ao que defendem os arguidos e ora recorrentes AA e BB, tempo mais que razoável e suficiente para o efeito.
Acresce que, como doutamente explicou e afirmou o Ministério Público na sua resposta ao recurso:
“É um facto que os autos em referência desde o seu início tem assumido vicissitudes várias associadas à competência do Juiz de Instrução Criminal (Almada/Lisboa) e com a necessidade de remessa dos autos aos serviços do Ministério Público que tem realizado a investigação (1ª Secção de Lisboa do DIAP).
Ainda assim, atendendo à forma como apresentado o articulado do recurso, afigura-se que o mesmo respondeu às necessidades da defesa e ainda houve tempo útil para elaborar a peça processual, sendo que no caso dos autos, sempre a defesa poderia invocar, para efeitos de interrupção do prazo, a existência de justo impedimento, previsto no art.º 140º do CPC, aplicável "ex vi" art.º 4.º do CPP e não o fez.” (fim de transcrição).

O que a Diretiva que temos vindo a apreciar exige é que ao detido e ao seu advogado seja dada informação sobre os motivos genéricos que motivaram a detenção pela polícia e após, quando seja presente ao Ministério Público para o primeiro interrogatório não judicial de arguido detido, a que alude o art.º 143.º do CPP, ou para os subsequentes interrogatórios do inquérito feitos pelo Ministério Público ou feitos por órgão de polícia criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização (art.º 144.º do CPP), ou quando seja presente ao juiz de instrução, seja para submissão ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido, a que alude o art.º 141.º do CPP, e aplicação da medida de coação de prisão preventiva ou outra cerceadora da sua liberdade individual (como sucede no direito interno com a obrigação de permanência na habitação com ou sem vigilância eletrónica – art.º 201.º do CPP), seja para prestar declarações em sede de instrução, tenha acesso completo aos documentos que fundamentam a detenção ou prisão e ao inquérito, sem prejuízo de o inquérito ser colocado sobre segredo de justiça e sem prejuízo das exceções previstas no artigo 7.º, n.º 4, da Diretiva, as quais se encontram previstas também no direito interno.
Neste caso, deverá ser dado, com detalhes suficientes, uma descrição dos factos constitutivos do acto criminoso de que as pessoas sejam suspeitas ou acusadas de terem cometido, incluindo, caso se conheça, a hora e o local, e a eventual qualificação jurídica da alegada infração, tendo em conta a fase do processo penal em que essa descrição for dada, a fim de salvaguardar a equidade do processo e permitir o exercício efetivo dos direitos de defesa.
Trata-se apenas de informações e não necessariamente de acesso ao inquérito.
In casu, perante estes conceitos teóricos voltemos ao caso dos autos.
Alegam os recorrentes que em momento prévio ao interrogatório não lhes foi facultado o acesso aos autos.
Com efeito, desde 16 de janeiro de 2020 foi pedido o segredo de justiça (cfr. fls. 15), a qual foi judicialmente validada nesse mesmo dia (cfr. fls. 19).
Ora, partindo deste pressuposto e em sede de interrogatório judicial não resulta que tenha sido solicitada pela defesa a consulta física dos autos, nem de quaisquer elementos probatórios juntos aos autos, pelo que nesta parte inexiste qualquer vício que cumpra apreciar.
Por outro lado, em sede de interrogatório judicial de arguido detido, a Mmª JIC a quo deu cumprimento ao disposto nos n.ºs 3 e 4, alíneas a) e e) do art.º 141.º do CPP, designadamente, informando, ambos e cada um dos arguidos e ora recorrentes AA e BB, dos direitos referidos no n.º 1 do artigo 61.º, explicando-lhe os mesmos; de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestasse poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova; dos motivos da detenção; dos factos que lhe eram concretamente imputados, incluindo, as circunstâncias de tempo, lugar e modo; e dos elementos do processo que indiciavam os factos imputados, Ver jurisprudênciatudo, como se alcança do respetivos autos de interrogatório, onde todas aquelas informações ficaram a constar, como resulta de fls. 205 a 208 e 214 a 221, o que foi traduzido aos arguidos e ora recorrentes AA e BB, pelo intérprete presente, nas línguas alemã e inglesa, por eles falada.
Em articulação com este último preceito, diz o art.º 27.º, n.º 4, da CRP "toda a pessoa privada da liberdade deve ser informada imediatamente e de forma compreensível das razões da sua prisão ou detenção e dos seus direitos".
O Tribunal Constitucional no seu Acórdão n.º 416/2003, de 24 de setembro de 2003, publicado no Diário da República n.º 82/2004, Série II, de 6 de abril de 2004, e também disponível em fonte aberta quer no site institucional daquela alta instância, quer em www.dgsi.pt, pronunciou sobre esta problemática afirmando que:
“surge como crucial a comunicação ao arguido dos factos que lhe são imputados.
Face às disposições paralelas do artigo 5.º, n.ºs 2 e 4, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem - que, respectivamente, estipulam que "qualquer pessoa presa deve ser informada, no mais breve prazo e em língua que compreenda, das razões da sua prisão e de qualquer acusação formulada contra ela", e que "qualquer pessoa privada da sua liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal" -, refere Régis de Gouttes (em Louis-Edmond Pettiti e outros, La Convention Européenne des Droits de l'Homme - Commentaire article par article, ed. Economica, Paris, 1995, pp. 203-210), que "o direito de saber porque se foi detido é indubitavelmente um dos direitos primordiais do indivíduo", pois "saber que não se pode ser detido sem conhecer as respectivas razões é a primeira condição da segurança pessoal, é o teste de que se vive numa sociedade democrática e num verdadeiro Estado de Direito". Por outro lado, "conhecer os motivos da detenção é também a condição sine qua non de uma verdadeira 'igualdade de armas': para se poder defender, para se poder prevalecer das garantias de um processo equitativo, é preciso primeiro saber as razões pelas quais se foi detido", sob pena de "não apenas ser negado o princípio da presunção de inocência mas também a faculdade de a pessoa detida contestar o bem fundado das suspeitas que pesam sobre ela e de recorrer para um tribunal superior a fim de ser apreciada a legalidade da sua detenção".
Por seu turno, Ireneu Cabral Barreto (A Convenção Europeia dos Direitos do Homem Anotada, 2.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pp. 102-103), sintetizando a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, recorda que "o detido deve saber a razão de ser da sua privação da liberdade" (Acórdão Fox, Campbell e Hartley, série-A, n.º 182, p. 19, § 40), conjugando-se o n.º 2 com o n.º 4 deste artigo 5.º, pois "quem tem o direito de introduzir um recurso sobre as condições da sua privação de liberdade, só poderá utilizar eficazmente este direito se lhe forem comunicados, no mais curto prazo, os factos e as regras jurídicas invocadas para o privar dessa liberdade" (Acórdão X/Reino Unido, série-A, n.º 46, p. 27, § 66, e Acórdão van der Leer, série-A, n.º 170-A, p. 13, § 28). Embora a obrigação de informação prescrita no n.º 2 deste artigo 5.º seja menos estrita que a referida no artigo 6.º, n.º 3, alínea a) (relativa à comunicação da acusação), e não seja exigível que, no próprio momento da detenção, seja comunicada uma descrição completa das suspeitas que pesam sobre o detido, os factos comunicados devem, contudo, permitir-lhe contestar o bem fundado das suspeitas, sendo o grau de exigência de pormenorização variável consoante o conhecimento que a pessoa detida já tenha, devido a anteriores participações em actos processuais, do conteúdo dessas suspeitas.
Na comunicação dos factos, não se pode partir da presunção da culpabilidade do arguido, mas antes da presunção da sua inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP). Assim, o critério orientador nesta matéria deve ser o seguinte: a comunicação dos factos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico-criminal, por forma a que lhe seja dada "oportunidade de defesa" (artigo 28.º, n.º 1, da CRP).
(…) Relativamente ao segredo de justiça interno, aqui em causa, não se ignora que a alínea a) do n.º 4 do artigo 86.º do CPP veda, em regra, a "tomada de conhecimento do conteúdo de acto processual a que [os participantes processuais] não tenham o direito [...] de assistir" e que o n.º 2 do artigo 89.º só lhes consente o "acesso a auto na parte respeitante a declarações prestadas e a requerimentos e memoriais por eles apresentados, bem como a diligências de prova a que pudessem assistir". Trata-se, porém, de uma proibição não absoluta, como o n.º 5 do artigo 86.º, para que também remete o n.º 2 do artigo 89.º, evidencia, e que parte significativa da doutrina não tem hesitado em qualificar de inconstitucional sempre que dela derive uma limitação desproporcionada dos direitos de defesa do arguido.
Como refere Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, III vol., 2.ª edição, Editorial Verbo, 2000, p. 101), "relativamente aos actos jurisdicionais atinentes à aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial importa que sejam públicos e que o arguido tenha efectivamente meios de se defender, o que passa pelo conhecimento das provas contra ele carreadas e que na perspectiva da acusação justificam a aplicação de medidas de segurança". É que, como se lê no II volume da mesma obra (1993, p. 223), "uma medida de coacção representa sempre a restrição da liberdade do arguido e por isso só na impossibilidade ou em circunstâncias verdadeiramente excepcionais deve ser aplicada sem que antes se tenha dado a possibilidade ao arguido de se defender, ilidindo ou enfraquecendo a prova dos pressupostos que a podem legitimar".
Subscrevendo essas críticas, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão ("O segredo de justiça em processo penal", Estudos Comemorativos do 150.º Aniversário do Tribunal da Boa-Hora, Ministério da Justiça, Lisboa, 1995, pp. 223-234, em especial pp. 228-229) sublinha que "não conhecendo os indícios contra si reunidos, a defesa resulta extremamente dificultada, impossível muitas vezes", sustentando que "na hipótese de serem aplicadas ao arguido medidas de coacção, especialmente no caso de ser determinada a prisão preventiva, impunha-se que lhe fossem logo comunicados os elementos de prova já recolhidos nos autos, para que ele pudesse defender-se, quer apresentando provas, quer requerendo diligências de investigação em ordem a ilidir ou enfraquecer os indícios da sua responsabilidade", sob pena de "esta limitação do direito do arguido à informação corre[r] o risco de atentar contra o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição".
A conjugação entre o direito de defesa do arguido e o segredo de justiça foi objecto de tratamento por este Tribunal Constitucional, no Acórdão n.º 121/97 (Diário da República, 2.ª série, n.º 100, de 30 de Abril de 1997, p. 5148; Boletim do Ministério da Justiça, n.º 464, p. 146; e Acórdãos do Tribunal Constitucional, 36.º vol., p. 313), embora o recurso onde esse aresto foi proferido respeitasse já à fase de interposição de recurso do despacho determinativo da prisão preventiva (sobre o tema, cf. Maria da Assunção E. Esteves, "A jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa ao segredo de justiça", em O Processo Penal em Revisão - Comunicações, Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, 1998, pp. 123-131, republicado em Estudos de Direito Constitucional, Coimbra Editora, Coimbra, 2001, pp. 145-154).
Após exposição da evolução do regime legal sobre segredo de justiça e de relevantes elementos de direito comparado, esse Acórdão n.º 121/97 consigna:
"10 - O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no caso Lamy/Reino da Bélgica veio julgar, através de Acórdão de 30 de Março de 1989, tirado por unanimidade, que não era respeitada a igualdade de armas se o arguido ou o seu advogado, que pretendesse impugnar a decisão que lhe impusera a prisão preventiva, não tivesse acesso às peças processuais onde estavam os elementos que serviram para fundamentar tal decisão, ao passo que o Ministério Público delas tinha conhecimento e delas se servia para defender a manutenção da prisão preventiva. Ao não ser respeitada a igualdade de armas entre a acusação e a defesa, daí resultava, segundo a mesma decisão, que o processo penal não era verdadeiramente contraditório, pelo que era violado o artigo 5.º, n.º 4, daquela Convenção (acórdão integralmente publicado em Sub judice - Justiça e Sociedade, Novos Estilos, n.º 11, Novembro de 1994, pp. 201 a 208, e também parcialmente na Revue Universelle des Droits de l'Homme, vol. 1, 1989, pp. 124 e seguintes).” (fim de transcrição).

Em suma, tudo visto e ponderado, afigura-se a este tribunal ad quem que efetivamente os ora recorrentes AA e BB foram durante os seus primeiros interrogatórios judiciais de arguidos detidos, a que alude o art.º 141.º do CPP, confrontados quer com os factos que lhes eram imputados quer com os elementos probatórios que lhes serviam de suporte indiciário, penal (cfr. fls. 215 a 221), bem como ulteriormente foi facultado à sua defesa o acesso aos autos em prazo e circunstâncias mais que razoáveis e suficientes ao bom exercício do direito a deles conhecerem, exercendo contraditório (cfr. fls. 293 e segs.), em vista à interposição de recurso (o presente) da decisão que, na sequência daqueles primeiros interrogatórios judiciais de arguidos detidos, os sujeitou à medida de coacção de prisão preventiva, tudo no cabal cumprimento dos preceitos legais que se impunha serem respeitados e acima detalhadamente foram por nós referidos, inexistindo neste domínio qualquer violação ou vício que importe nulidade (in)sanável ou pertinente irregularidade.
Para que dúvidas não restem, claramente se consigna que não vemos que tenha de ser, como pretendem os recorrentes, desaplicado o art.º 194.º, n.º 8, do CPP, por violação do art.º 7.º, n.º 1, da Diretiva 2012/13/UE, nem que tenha sido violado o artigo 86.º, do CPP, relativo à publicidade do processo e segredo de justiça, como igualmente alegam os recorrentes, ou, finalmente, que se imponha, declarar a nulidade do processo a partir do momento da detenção dos recorrentes, incluindo a nulidade das buscas, como defendem, com decurso de novo prazo para interposição de recurso.
Deste modo improcede o recurso nestoutra parte.

Na sua na sua conclusão n.º 12 os recorrentes consignaram:
“No entanto, e à cautela, desde já se requer que quaisquer dúvidas interpretativas que por hipótese o Tribunal ad quem tenha sobre o teor dos instrumentos normativos de direito da União Europeia suscitados devem ser dirimidas através de submissão ao Tribunal de Justiça da União Europeia de um pedido de decisão prejudicial, nos termos do art.º 267.º do TFUE, porquanto inexistente decisões deste Tribunal sobre as referidas questões jurídicas e as mesmas são essenciais para a resolução das questões suscitadas. Mais, o reenvio é obrigatório para o Tribunal ad quem, por ser a última instância. Sendo ordenado o mesmo, este deve ser precedido de audição contraditória do Ministério Público e dos Recorrentes quanto à formulação das questões prejudiciais.”

Vejamos.
Estabelece o art.º 267.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (doravante TFUE) que:
“O Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial:
a) Sobre a interpretação dos Tratados;
b) Sobre a validade e a interpretação dos actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União.

Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada perante qualquer órgão jurisdicional de um dos Estados-Membros, esse órgão pode, se considerar que uma decisão sobre essa questão é necessária ao julgamento da causa, pedir ao Tribunal que sobre ela se pronuncie.
Sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal.
Se uma questão desta natureza for suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional relativamente a uma pessoa que se encontre detida, o Tribunal pronunciar-se-á com a maior brevidade possível.” (fim de transcrição).

Da globalidade do recurso e no contexto resulta claro para este Tribunal ad quem que os instrumentos normativos de direito da União Europeia, invocados pelos recorrentes e que pretendem seja obrigatoriamente por nós suscitado, enquanto última instância nacional de recurso no caso concreto, seja a sua interpretação objeto de pedido de decisão prejudicial ao Tribunal de Justiça da União Europeia, nos termos do art.º 267.º do TFUE, tendo por objeto a sua interpretação, são o art.º 4.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, que como vimos e do teor do mesmo se alcança nada tem que ver matéria em apreço nestes autos, e as Directivas 2013/48/UE e 2012/13/EU.
Ora, afigura-se a este tribunal ad quem, que esses tratados, a que se refere a alínea a) do artigo 267.º do TFUE, são os constitutivos, modificativos e de adesão, estando, por ordem cronológica do mais recente ao mais antigo, entre os do primeiro grupo o Tratado de Fusão – Tratado de Bruxelas (1965), os Tratados de Roma – Tratados CEE e EURATOM (1957) e o Tratado que institui a Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (1951), no segundo grupo o Tratado de Lisboa (2007), Tratado de Nice (2001), Tratado de Amesterdão (1997) e o Tratado da União Europeia – Tratado de Maastricht (de 1992, na sua versão consolidada em 2016) e no terceiro grupo:  Tratado de Adesão da Croácia (2012), Tratado de Adesão da República Checa, da Estónia, de Chipre, da Letónia, da Lituânia, da Hungria, de Malta, da Polónia, da Eslovénia e da Eslováquia (2003), Tratado de Adesão da Áustria, da Finlândia e da Suécia (1994), Tratado de Adesão da Espanha e de Portugal (1985), Tratado de Adesão da Grécia (1979) e o Tratado de Adesão da Dinamarca, da Irlanda e do Reino Unido (1972).
A par destes tratados existem outros instrumentos internacionais de igual valor como é o caso de alguns protocolos, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia (2016), do Acto Único Europeu (1986), do Acto que altera o Protocolo relativo aos Estatutos do Banco Europeu de Investimento e autoriza o Conselho, de Governadores a instituir um Fundo Europeu de Investimento (1993) e de Convenções, de que aqui se destaca a de Schengen (1985).
Quanto aos actos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União, a que alude a alínea b) do art.º 267.º do TFUE, entendemos que a intervenção do Tribunal de Justiça da União Europeia para decidir, a título prejudicial, sobre a sua validade e a interpretação, só deve ou tem de ser requerida para os que tenham natureza vinculativa, como sucede com Regulamentos e Decisões, mas não para aqueles que não a tenham como é o caso de Directivas, Recomendações e Pareceres.
Pelo exposto, não se lança mão do mecanismo de reenvio previsto no art.º 267.º do TFUE.

2.4. Passemos a analisar a última questão que importa ser considerada no presente recurso que é atinente à aplicação aos arguidos AA e BB da prisão preventiva, que os recorrentes consideram ser ilegal, inadequada e desproporcional, por violação do disposto nos artigos 193.º, 202.º e 204.º do CPP, ao não se verificarem, em concreto, as circunstâncias em que o Tribunal a quo fundamentou a sua aplicação, pugnando assim pela sua libertação e pela aplicação de medidas de coacção alternativas não detentivas, no limite caução ou obrigação de apresentações periódicas no país de residência, nos termos da Lei n.º 36/2015, de 4 de maio.

Transcreve-se, antes de mais, a que na decisão recorrida se expendeu a este propósito:
“Cotejados os elementos probatórios carreados até ao momento para os presentes autos, designadamente, do teor da prova testemunhal, a saber, FF, Inspector da P.J.; GG, Inspector Chefe da P.J.; HH, Inspector da P.J. e da prova documental, Informação de serviço de fls. 162; Auto de notícia de fls. 100-104; Auto de apreensão de fls. 99; Auto de busca e de apreensão de 2.40-43; Fotografias de fls. 6; Reportagens fotográficas de fls. 83-98, 108-123; Docs. de fls. 5, 33, 35-36, 44-82, 405-106, 128­134, 139-148; Teste rápido de 2.107; CRC dos arguidos de fls.181, 182, resulta suficientemente indiciado, a prática por banda dos arguidos, dos seguintes factos:
FACTOS IMPUTADOS AOS ARGUIDOS
1.º Os arguidos, actuando de forma concertada com outros indivíduos ainda não totalmente identificados, integram uma organização que se dedica à aquisição e venda de elevada quantidade de cocaína, do Brasil para a Europa, passando por território nacional, por via marítima.
2.º Dentro da referida rede de narcotráfico, os arguidos estão incumbidos de efectuar o transporte do estupefaciente, no interior de uma embarcação marítima, por eles conduzida.
3.º Assim, de acordo com plano previamente delineado por membros da referida organização, a que ambos os arguidos aderiram, de forma a proceder ao transporte do referido produto, no dia 07 de Agosto de 2019, o arguido AA adquiriu em Martinica, nas Antilhas Francesas, uma embarcação de recreio, tipo Ketch (veleiro com dois mastros), denominado "CC", com 18,8 metros de comprimento e com o número de registo DDD, MMSI EEE, pelo valor de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros).
4.º Em Setembro de 2019, a embarcação "CC", na qual vinham os arguidos, zarpou da Guiana Francesa, tendo aí declarado que pretendiam navegar até à Martinica, pese embora nunca fosse essa a sua intenção, pois pretendiam rumar ao Brasil.
5.º Durante o período compreendido entre os dias 06 e 08 de Novembro de 2019, a embarcação, navegou pelo largo da cidade de Fortaleza, no Brasil.
6.º Aí, os arguidos adquiram cerca de 1.820,800Kg de cocaína (mil oitocentos e vinte quilos e oitocentos gramas).
7.º Após, dissimularam a cocaína no interior de sacos desportivos de várias cores e transportaram-na para o interior da embarcação "CC".
8.º No dia 12 do mesmo mês de Novembro, os arguidos desligaram o sistema de localização/identificação denominado AIS (Automatic Identification System), da embarcação,
9.º Tendo, apenas, voltado a ligar este sistema, no dia 25 de Dezembro de 2019, quando se encontravam em plena travessia atlântica, (coordenadas 20.42053ºN, -043.06265ºW).
10.º No dia 13 de Janeiro de 2020, a embarcação encontrava-se a navegar entre a Ilha de Santa Maria e a Ilha de S. Miguel, no arquipélago dos Açores (coordenadas 37.23201ºN, - 24,9119ºW), a uma velocidade de 5.6 nós marítimos, adoptando um rumo de 049º.
Nessa altura, foi activado o Protocolo de Cooperação com a Marinha e Força Aérea portuguesas, tendo-se iniciado de imediato as diligências operacionais necessárias.
Foram desenvolvidos contactos junto das Autoridades Francesas, visto que a embarcação ostentava a bandeira deste país, no sentido de, ao abrigo do disposto no artigo 17º da Convenção das Nações Unidas Contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, se obter autorização para proceder à abordagem e inspecção em alto mar da mesma.
Contudo, as autoridades francesas informaram que a certidão do pavilhão da embarcação CICIO havia já caducado.
11.º No dia 18 de janeiro de 2020, pelas 13:06, a embarcação "CC", navegava nas coordenadas 41º58.5N, 018º41.9W, rumo 036ºT, à velocidade 04 nós marítimos, estando a aproximadamente 500 milhas náuticas de território nacional.
12.º No dia 19 de Janeiro de 2020, pelas 06:30, quando se encontrava nas coordenadas geográficas 42º20.91N, 018º07.53W, a embarcação “CC” foi abordada por elementos da Marinha de Guerra Portuguesa, no âmbito das suas competências, com a finalidade de se proceder à sua identificação completa.
13.º Aquando da entrada na embarcação, elementos da Marinha Portuguesa verificaram que a mesma não apresentava bandeira, tendo sido apenas encontrada documentação relativamente ao pavilhão que hasteara até Setembro de 2019, da Martinica, França.
14.º Verificou-se, igualmente, que, pese embora tivesse hasteada uma bandeira da República Federal Alemã, a embarcação não se encontrava registada nesse país, constatando-se, assim, que a embarcação navegava sem pavilhão efectivo, ou seja, sem nacionalidade.
15.º Atendendo à factualidade verificada, a embarcação foi conduzida para território nacional, pela Marinha Portuguesa.
16.º Assim, no dia 26 de Janeiro de 2020, pelas 00:16 horas, a embarcação "01:10", escoltada por um meio naval da marinha portuguesa, entrou em mar territorial português, mais concretamente nas coordenadas geográficas 38º33.31 N, 009º40.00W, tendo-se dirigido para a Base Naval de Lisboa, em Almada, onde viria a atracar pelas 10:40, no Cais 6 Norte.
17.º Após a embarcação atracar, Inspectores da P.J. deram ao cumprimento ao Mandado de Busca emitido para a mesma.
18.º No decurso da busca, pelas 10h45, foram encontrados e apreendidos:
- um total de 82 (oitenta e dois) sacos desportivos de várias cores, os quais continham no seu interior várias placas de cocaína, com um peso total de 1.820,800Kg (mil oitocentos e vinte quilos e oitocentas gramas), dissimulados nos compartimentos à proa da embarcação, cujo acesso é efectuado pela zona comum do veleiro.
19.º Foram, ainda, encontrados e apreendidos:
Na zona comum da embarcação:
- Um disco externo de cor azul, da marca Seagate, com o número de série xxxxxx; -Um disco externo de cor preta, da marca Seagate, com o número de série xxxxxx:
- Um telemóvel da marca Samsung, de cor preta, com o IMEI xxxxxx, contendo inserido no seu interior um cartão SIM da operadora 02, com o número de série 0 xxxxxx, e um cartão de memória de 8gb de capacidade, pertencente a BB;
- Um telemóvel da marca Apple, modelo Iphone, de cor preta, acondicionado numa capa de cor branca, sem cartão SIM inserido, pertencente a AA;
Um localizador GPS de emergência, de cor laranja e preto, com a inscrição "SPOTGen3";
-Um computador portátil da marca Lenovo, modelo 81FE, com o número de série xxxxxx, pertencente a AA, com respectivo carregador;
Na cabine da ponte:
Um tablet, da marca Apple, modelo lpad, de cor cinzenta, com o número de série xxxxxx, acondicionado numa capa de cor castanha, pertencente a AA;
-Um leitor multimédia da marca Apple, modelo (P00, com o número de série xxxxxx, de cor cinzenta;
-Aparelho GPS da marca "inReach Explorer", de cor laranja e preto, com o IME/ xxxxxx;
-Telefone satélite, da marca "Iridium", de cor preta, com o WH xxxxxx, inserido um cartão SiM da operadora "lridium", com o número de série xxxxxx, com respectivo manual de instruções;
Um aparelho de navegação GPS da marca "Garmin", modelo GPS 73, com o número de série xxxxxx;
-Uma máquina fotográfica digital, da marca Nikon, contendo inserido um cartão de memória da marca Samsung, com 64Gb de capacidade, uma bateria. Ainda na bolsa em que a máquina se encontrava acondicionada, um cartão de memória da marca Samsung, com 64Gb de capacidade e 5 baterias extra;
Um telemóvel da marca Apple, modelo lphone Xs, com número de série xxxxxx, contendo inserido um cartão SIM sem operadora visível, com o número xxxxxx, acondicionado em capa de cor preta e pertencente a AA
No camarote da popa, utilizado pelo arguido AA:
-Um telemóvel da marca Apple, modelo lphone Xs plus, dourado, acondicionado numa capa de cor castanha, sem cartão SIM inserido;
-Um boarding pass da transportadora aérea TAP, relativo ao voo TP567, com origem em Hamburgo e destino a Lisboa, no dia 09/11/2019, em nome de AA e voo de ligação TP035, com origem em Lisboa e destino a Fortaleza, no mesmo dia e em nome do mesmo indivíduo;
-Um talão da transportadora aérea KLM, de 02/11/2019, contendo no verso anotações manuscritas;
-Recibo da "Saint Lucia Air and Seaport Authority", datado de 25/05/2019;
-02 talões de abastecimento de gasóleo, efectuados em Fortaleza, Brasil;
-03 recibos da marina de Iracema Parque em nome de AA, relativos aos meses de Setembro, Outubro e Novembro de 2019;
-Um pedaço de uma folha com um número de contacto manuscrito;
-2 Recibos de estadia em hotel "xxxxxx Hotel", em Fortaleza, em nome de AA,e ntre os dias 14 e 16 de Novembro de 2019;
-Uma factura de abastecimento de gasóleo, com data de 12/09/2019, em xxxxxx, Guiana Francesa;
-Documentação vária, relativa à embarcação "CC" -29 (vinte e nove) folhas;
-a quantia monetária de 170,00 reais brasileiros (cento e setenta reais brasileiros).
-Um tablet da marca Apple, modelo lpad, de cor cinzenta, com o número de série xxxxxx;
-A quantia monetária de €210,00 (duzentos e dez) euros em notas do Banco Central Europeu;
-Um tablet, da marca Apple, modelo lpad, de cor cinzenta, com o número de série xxxxxx (password xxxx);
-Um computador portátil da marca Acer, modelo 1\176C3, de cor preta, com o número de série xxxxxx;
-Um caderno de folhas quadriculadas, com a menção "Quarto Platin", com várias anotações manuscritas.
No camarote utilizado pelo arguido BB:
-Um livro de notas de cor castanha, com várias anotações manuscritas.
-Um telemóvel da marca Samsung, modelo A40, de cor preta, com os IMEI xxxxxx e xxxxxx, contendo inserido no seu interior um cartão SIM sem operadora identificada, com o nº xxxxxx.
20.º Os arguidos conheciam a natureza e as características estupefacientes da cocaína que lhes foi apreendida, bem sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização deste produto eram proibidos e punidos por lei.
21.º Os arguidos integravam uma organização constituída e dirigida nos termos referidos, destinada a operações de importação e exportação de elevadas quantidades de cocaína com vista à colocação no mercado europeu, aceitando colaborar nos termos supra referidos.
22.º A cocaína apreendida destinava-se a ser entregue a outros membros da organização a que os arguidos pertenciam, e que lhes fosse indicada, e a ser comercializada com vista a auferirem elevada compensação económica,
23.º Tendo, assim, ambos, agido, ainda, em conjugação de vontades e esforços com indivíduos ainda não identificados, com o propósito concretizado de receber e carregar consigo a cocaína, cujas características, natureza e quantidade conheciam, Brasil para a Europa, sabendo que a tal produto se destinava à venda a terceiros, a troco de quantias monetárias.
24.º De facto, atento o peso e a quantia por que tal produto é normalmente vendido (não inferior à quantia de €48,00 a grama), visavam os arguidos obter com a introdução e comercialização do produto em Portugal quantia muito superior a um milhão de euros.
25.º As quantias monetárias apreendidas aos arguidos tinham sido obtidas com os proventos resultantes de transacções de cocaína efectuadas.
26.º Os telemóveis e cartões telefónicos apreendidos aos arguidos eram por estes usados nos contactos necessários à comercialização do referido produto e tinham sido adquiridos com proventos daí resultantes.
27.º Os arguidos actuaram de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Assim, da conjugação da prova carreada para os autos até ao presente momento é possível extrair do teor da mesma que, efectivamente, os arguidos se mostram fortemente indiciados pela prática, em co-autoria material e em concurso real e efectivo, de um crime de tráfico estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.ºs 21.º, n.º 1 e 24.º, al. c), do Dec. Lei n.º 15/93 de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma, e ainda de um crime de Associação Criminosa, p. e p. pelo art.º 28.º, n.º 1 e n.º 2, do mesmo diploma legal. Vejamos, senão, porquê.
Na ponderação conjugada dos elementos de prova supra referenciados resulta, para nós de forma inequívoca, que os autos evidenciam a forte indiciação da prática, por bando dos arguidos, da factualidade supra elencada, pelo que, temos por preenchido o requisito dos "fortes indícios" a que alude o nº 1 do art.º 202º do CPPenal.
O actual CPPenal, no art.º 283º, nº 2 considera "(...) suficientes os indícios sempre que deles resultar a possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por forca deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança".
A definição do que deve entender-se por suficientes indícios contida neste preceito, bem como no art.º 308º, nº 1 do CPPenal é idêntica à que, no âmbito do CPPenal de 1929, havia sido colhida pela jurisprudência e pela doutrina, que por indícios suficientes entendia vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações, suficientes e bastantes, para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.
Porém, para a pronúncia, não é preciso uma certeza da existência da infracção. mas os factos indiciários devem ser suficientes e bastantes, por forma que, logicamente relacionados e conjugados, formem um todo persuasivo de culpabilidade do arguido, impondo um juízo de probabilidade do que lhe é imputado.
Por outro lado, e como é sabido, a prova tem por função a demonstração da realidade dos factos (art.º 341º, nº 1 do CCivil) e é, normalmente, apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do tribunal (art.º 127º do CPPenal).
Ela não pressupõe, como vem afirmando a melhor jurisprudência que aqui se segue de perto, uma certeza absoluta, lógico-matemática ou apodíctica nem, por outro lado, a mera probabilidade de verificação de um facto mas antes assenta na certeza subjectiva, relativa ou histórico-empírica do facto ou, dito de outro modo:
a) No alto grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida (cfr. Manuel de Andrade, in "Noções Elementares de Processo Civil", pág. 191 e Antunes Varela, in "Manual de Processo Civil", pág. 421);
b) No grau de certeza que as pessoas mais exigentes da vida reclamariam para dar como verificado o facto respectivo (Anselmo de Castro, in "Direito Processual Civil Declaratório", pág. 345);
c) Na consciência de um elevado grau de probabilidade - convicção - assente no raciocínio lógico do juiz e não em meras impressões (Castro Mendes, in "Do Conceito de Prova em Processo Civil" págs. 306 e 325);
d) Na convicção - objectivável, raciocinada (baseada na intuição e na reflexão e motivável - para além de toda a dúvida razoável, não qualquer dúvida, mas apenas a dúvida fundada em razões adequadas (Figueiredo Dias, in "Direito Processual Penal", I, pág. 205). Assim, pode concluir-se que a ausência de dúvida razoável pressuposta na condenação, consiste na exclusão da verosimilhança da inocência: não há motivos afirmativos da inocência ou, havendo-os, são afastados pelo julgador por falta de credibilidade racional. Divide-se actualmente a doutrina entre duas posições sobre o que são indícios suficientes; por um lado, a que entende que o juiz deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que tenha cometido o crime do que não o tenha feito e que. portanto, a lei não impõe a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento bastando-se com um juízo de indiciação (Germano Marques da Silva); por outro, a que equipara a convicção de quem acusa ou pronuncia com a convicção de quem julga e condena (Carlos Adérito Teixeira).
Não nos comprometendo nós com uma tomada de posição definitiva sobre esta questão adoptamos, para já, a primeira daquelas posições, isto é, a de que existem indícios suficientes quando é maior a probabilidade de o arguido vira ser condenado do que a de vir a ser absolvido.
Contrariamente ao que possa parecer, os fortes indícios exigidos para a aplicação de prisão preventiva não são, necessariamente, mais fortes do que os indícios suficientes que acabamos de referir.
Na verdade, estes conceitos referem-se a fases processuais distintas e por isso não estão numa relação hierárquica entre si.
Assim, para este efeito, fortes indícios hão-de ser os que sejam sólidos e inequívocos tendo em conta a fase processual em que são apreciados.
No presente caso, os indícios já existentes nos autos mostram-se suficientes, designadamente, o facto de terem sido apreendidos no interior da embarcação que os arguidos tripulavam 1.820,800 quilogramas de produto estupefaciente, acondicionado em 82 sacos de desporto espalhados no interior daquela e sem serem alvo de qualquer dissimulação.
Em sede de primeiro interrogatório judicial de arguidos detidos os mesmos silenciaram.
No tocante ao crime de tráfico de produtos estupefacientes a actuação dos dois detidos, cabe, em varias das locuções do art.º 21º e surge agravada, não só por terem conhecimento da elevada quantidade de estupefaciente que transportavam (despudoradamente e em 82 sacos de desporto espalhados pela embarcação em que navegavam sem se encontrarem minimamente dissimulados) mas também de que a quantidade de produto estupefaciente concretamente transportado, a saber, 1.820,800 quilos de cocaína, embora dependendo do seu grau de pureza, poderia facilmente, por via de corte, ser tal quantidade, pelo menos duplicada o que, atento o facto público, notório e do conhecimento comum, ou pelo menos da comunidade jurídica e judiciária, que a grama de cocaína é neste momento transaccionada em Portugal, em valores próximos dos €30.000 o quilograma é bom de ver o elevadíssimo valor económico do produto estupefaciente apreendido aos arguidos e do lucro avultado que poderia ser gerado pela sua disseminação em muitos milhares de doses "individuais ".
Nestes termos, resulta para nós evidente que se indicia fortemente nos presentes autos que os arguidos comparticiparam na prática do referido crime, como co-autores, nos precisos termos em que se acham indiciados no despacho de apresentação.
Aqui chegados cumpre, neste momento, cuidar de apurar que medida ou medidas de coação será(ão) de aplicar aos arguidos.
A lei permite que, em certas condições, se imponham medidas restritivas ou limitativas da liberdade individual, mas acentuando exigências de legalidade/tipicidade e dos modos de intervenção na esfera da liberdade de quem é arguido no processo.
Assim, as medidas de coação admissíveis são as previstas nos art.ºs 196º e seguintes do CPPenal, as quais vão num crescendo de gravidade, a saber, termo de identidade e residência; caução; obrigação de apresentação periódica; suspensão do exercício de funções; proibição de permanência, de ausência e de contactos; obrigação de permanência na habitação e prisão preventiva.
A taxatividade/tipicidade das medidas, obstando a aplicação de outras não expressamente previstas, conforma-se com o princípio da legalidade previsto no art.º 191º, do CPPenal segundo o qual a liberdade das pessoas só pode ser limitada, total ou parcialmente, em função de exigências processuais de natureza cautelar, pelas medidas de coação e de garantia patrimonial previstas na lei.
As medidas de coação, enquanto medidas cautelares restritivas de direitos fundamentais estão sujeitas, na sua aplicação, aos princípios da legalidade, da necessidade, da adequação e da proporcionalidade (artºs. 191º e 193º, do CPPenal).
Pelo princípio da proporcionalidade em sentido restrito ou princípio do "justa medida" cuida-se de indagar e avaliar, mediante um juízo de ponderação, se o meio utilizado é ou não proporcionado em relação ao fim. O mesmo é dizer, se no sopeso entre as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins, ocorre um equilíbrio ou, ao invés, são "desmedidas" (excessivas) as desvantagens dos meios em relação às vantagens do fim ou fins.
Peio princípio da exigibilidade ou da necessidade (também conhecido pelo princípio da menor ingerência possível) coloca-se a tónica na ideia de que o cidadão tem direito à menor desvantagem possível, exigindo-se, por isso, de quem toma a medida, a prova de que, para a obtenção de determinados fins não é possível adoptar outro meio menos oneroso para o cidadão.
Finalmente pelo princípio da conformidade ou da adequação controla-se a relação de adequação da medida à prossecução do fim ou fins que lhe estão subjacentes. Resulta deste princípio que a medida de coação a aplicar deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso e, por isso, há-de ser escolhida em função da finalidade a que se destina.
Assim, constitui condição geral de aplicação de qualquer medida de coação a constituição prévia de arguido (art.º 192º, do CPPenal), o que se verifica no caso objecto dos presentes autos relativamente a ambos os arguidos.
Acresce que, nenhuma mediada de coação, com excepção do termo de identidade e residência pode ser aplicada se, em concreto, não se verificar algum ou alguns dos requisitos elencados no art.º 204º do CPPenal, a saber:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.
Com efeito, a medida de coação deve ser idónea para satisfazer as necessidades cautelares do caso, sendo escolhida em função da finalidade a que se destina, isto é, como resulta do nº 1 do art.º 193º "deve ser adequada às exigências cautelares que o caso requerer" (princípio da adequação).
Como refere o Professor Germano Marques da Silva, in "Curso de Processo Penal" II, pág. 270, uma medida de coação é adequada "se com a sua aplicação se realiza ou facilita a realização do fim pretendido e não o é se o dificulta ou não tem absolutamente nenhuma eficácia para a realização das exigências cautelares".
O art.º 202º do CPPenal sob a epígrafe "prisão preventiva" estatui, no que ora releva:
“1. Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo  superior a cinco anos;
b) Houver fortes indícios de prática de crime doloso que corresponda a criminalidade violenta;
c) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de terrorismo ou que corresponda a criminalidade altamente organizada punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
d) Houver fortes indícios de prática de crime doloso de ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, receptação, falsificação ou contrafacção de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos:
e) Houver fortes indícios da prática de crime doloso de detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, puníveis com pena de prisão de máximo superior a 3 anos;
f) Se tratar de pessoa que tiver penetrado ou permaneça irregularmente em território nacional, ou contra a qual estiver em curso processo de extradição ou de expulsão.» (sublinhado nosso).
 
Com a expressão "fortes indícios" quer-se inculcar a ideia de factos de relevo, bastantes para se concluir que o arguido vai ser acusado e com toda a probabilidade vai ser condenado.
Por outro lado, importa acentuar que o objecto da prova tanto pode incidir sobre os factos probandos (prova directa), como pode incidir sobre factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com o auxílio das regras da experiência, uma ilação quanto a este (prova indirecta ou indiciaria).
De notar que o carácter subsidiário da prisão preventiva e da obrigação de permanência na habitação é acentuado no nº 2 do art.º 193.º do CPPenal o qual dispõe "A prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação só podem ser aplicadas quando se revelarem inadequadas ou insuficientes as outras medidas de coação.", pelo que, condição necessária à aplicação da medida de coação de prisão preventiva é, pois, a inadequação ou insuficiência das demais medidas de coação, a saber, termo de identidade e residência (art.º 196.º); caução (art..º 197.º); obrigação de apresentação periódica (art.º 198.º); suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos (art.º 199.º); proibição de permanência, ausência e de contactos (art.º 200.º): e obrigação de permanência na habitação (art.º 201.º).
Como bem observa o Prof. Germano Marques da Silva, "a lei estabelece uma certa progressão da gravidade das diversas medidas cuja diversa gravidade deve ser sempre tida em conta pelo juiz no momento da escolha da que julgue mais idónea a salvaguardar as exigências cautelares de cada caso." - cfr. "Curso de Processo Penal", li, ed. Verbo, 1993, pág. 219.
A aplicação da medida de prisão preventiva - que é a mais gravosa das medidas de coação - como da generalidade das medidas de coação depende, para além dos requisitos especiais da própria medida, da verificação, em concreto, de requisitos ou condições gerais enunciadas no art.º 204.º do CPPenal, ou seja:
“a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.».
Estes requisitos ou condições gerais enumerados taxativamente nas alíneas a), b) e c) do art.º 204.º do CPPenal são alternativos, bastando que exista algum deles para que, conjuntamente com os especiais previstos na medida de coacção, essa medida possa ser aplicada.
O perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, deve ter-se como verificado quando em concreto se possa concluir que em plena liberdade o arguido desenvolverá uma actividade no sentido de prejudicar a investigação.
O requisito de perigo de continuação da actividade criminosa, a que alude a alínea c), do art.º 204.º do CPPenal será de ter como verificado quando, atentas as circunstâncias do crime ou o personalidade do arguido, for de recear que este continue a praticar o crime ou crimes pelos quais está indiciado sendo que, para tal efeito, torna-se necessário efectuar um juízo de prognose de perigosidade social do arguido atendendo às circunstâncias anteriores ou contemporâneas à sua indiciado actividade delituosa.
Quanto ao perigo de perturbação da ordem e tranquilidade públicas o mesmo resulta, designadamente, do alarme social gerado no seio da comunidade onde os factos ocorrem e nos demais cidadãos por força da propalação de tais notícias através dos meios de comunicação social.
Sem embargo e consignando-se expressamente que o juízo indiciado e de aplicação de medidas de coacção nesta sede efectuado tem apenas por base os elementos de prova apresentados aos arguidos e nos exactos termos subsumidos à nossa consideração pela Digna Magistrada do Ministério Público assinala-se que, o silêncio daqueles quanto aos factos que lhes são imputados se os não pode desfavorecer, até por imposição constitucional, também não os pode beneficiar.
No art.º 32º do CRP concentram-se os mais importantes princípios materiais do processo penal, Ora, entre estas garantias de defesa conta-se o direito ao silêncio (artºs 61º, nº 1, d); 141º, nº 4, a) e 343º, nº 1, todos do CPPenal) que se traduz na faculdade que assiste ao arguido de não responder a perguntas feitas sobre os factos que lhe são imputados e sobre o conteúdo das declarações que sobre eles prestar portanto e no direito de não colaborar com as autoridades para a descoberta da verdade, sem que o respectivo exercício possa redundar em prejuízo seu, isto é, possa ser interpretado como conformação com o facto, como presunção de culpa.
No âmbito do primeiro interrogatório judicial de arguido detido, onde rege o art.º 141º, nº 4, a), do CPPenal, conjugado com o art.º 61º, nº 1, do mesmo diploma legal, o arguido pode recusar prestar declarações sobre os factos indiciados que, para tanto, lhe devem ser comunicados e também não tem o dever de responder sobre o conteúdo das declarações que entenda fazer, sem que tal comportamento possa ser valorado em seu prejuízo.
Porém, como nota o Prof. Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, pág. 185) é evidente que se o arguido não esclarece os factos que lhe são imputados, ilidindo as provas que dos autos constem, serão apenas estas que serão apreciadas, o que significa que, se o exercício do direito ao silêncio, até porque do exercício de um direito se trata, não o pode prejudicar, o que pode suceder e que também o não beneficie, como sucede inelutavelmente no caso ora em apreço.
O que aqui se pondera é a natureza dos factos indiciados e o exercício do direito ao silêncio que não prejudicou os arguidos embora, de igual modo, os não beneficie pois que, poderiam, a título meramente exemplificativo, cuidar de apurar quem são e que papel têm nos factos em investigação nos presentes autos os ora arguidos.
Atende-se ainda, para se perceber a nossa convicção, que dúvidas inexistem para nós que os arguidos tinham que saber o que transportavam pois que se tratava de produto estupefaciente dividido por 82 malas de desporto espalhadas na embarcação que tripulavam, sem estar, de qualquer modo, dissimulado.
De notar que se verifica, para nós de forma inequívoca:
- o perigo de continuação da actividade criminosa na medida em que nenhum dos arguidos assumiu o desvalor da respectiva conduta o que, associado aos avultados proventos que iriam obter espelha o aludido perigo;
- o perigo de perturbação do inquérito e para aquisição, conservação ou veracidade da prova pois que, ao lançarem mão do direito ao silêncio têm interesse em que se não faça prova dos crimes que terão praticado, bem como em proteger outro ou outros que, eventualmente, estejam acima de si;
- o perigo de fuga objectivado nas nacionalidades dos arguidos, na ausência de ligações dos mesmos ao território nacional; o ser de crer que terão contactos com uma organização com extensão (humana e territorial) considerável, sofisticação e meios financeiros avultados pois que viajaram desde a República Federativa do Brasil, num veleiro, transportando uma elevadíssima quantidade de cocaína – art.º 204º, als. a), b) e c) do CPPenal.
Conjugando todo o exposto, verificando-se os perigos de fuga, de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito e para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, a conjugação e intensidade destes, leva-nos a concluir, lançando mãos dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade das medidas de coação às exigências cautelares, sopesada a gravidade dos ilícitos criminais fortemente indiciados e as penas hipoteticamente aplicáveis, que os sobreditos perigos apenas poderão ser acautelados com a sujeição dos arguidos à mais gravosa das medidas de coação, a saber, a prisão preventiva até porque, sendo os mesmos cidadãos estrangeiros que nem sequer residem em território nacional nem se consegue sopesar a eventual aplicação aos mesmos da medida de coacção de obrigação de permanência na habitação.
Pelo exposto, pelos fundamentos de facto e de direito supra explanados, nos termos do disposto nos art.ºs 191º: 192º; 193º; 194º; 195º; 196º; 202º, nº 1, als. a), b) e c) e 204º, als. b) e c), todos do CPPenal, em obediência aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, decide-se sujeitar os arguidos AA e BB às seguintes medidas de coação:
- o já prestado TIR;
- prisão preventiva;
Passe os competentes mandados de condução dos arguidos ao EP.
Notifique e comunique.
Cumpra o disposto no artigo 194º, nº. 10, do C.P.P. em relação aos arguidos.
Extraia e entregue certidão nos termos requeridos pela Digna Procuradora da República.
Remeta os autos ao DIAP da Comarca de Lisboa por ser o territorialmente competente para os tramitar consignando-se que apenas assegurámos o primeiro interrogatório judicial dos arguidos detidos, sem prejuízo de considerarmos não ser o Juízo de Instrução Criminal de Almada - Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Almada o territorialmente competente para tal (uma vez que o local onde primeiro houve notícia do crime foi na área territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa em nada relevando que a embarcação tenha sido trazida para a Base Naval do Alfeite para efeitos de fixação da competência) porquanto o prazo máximo de apresentação dos arguidos a juiz de instrução criminal, caso nos tivéssemos declarados incompetentes em razão do território poderia não ter sido respeitado." (fim de transcrição).

Vejamos.
Dentro do leque de medidas de coação previstas na lei, o juiz deve escolher, em cada caso concreto que é submetido à sua apreciação, a (ou as) adequada(s) e proporcionada(s), tendo em atenção as exigências contidas no artigo 193.º do CPP e o limite estabelecido no art.º 194.º, n.º 2, do mesmo Código.
É sabido que a prisão preventiva tem natureza excecional e que não deve ser decretada nem mantida sempre que possa ser aplicada caução ou outra medida mais favorável prevista na lei, como consagra o art.º 28.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP).
E é lógico que se acentue a validade desse mesmo princípio quando está em causa o coartar da liberdade a alguém com todo o rol de consabidos inconvenientes.
Este princípio constitucional tem, de resto, um desdobramento naqueles outros que estão consagrados no CPP, como os da proporcionalidade, da adequação, da subsidiariedade (art.º 191.º, n.ºs 1 e 2) e da necessidade (art.º 204.º).
A preservação da liberdade tem de ser articulada "em binómio, com a segurança e a repressão do crime".
Refira-se ainda que a gravidade dos factos indiciados interessa, não só no âmbito da aplicação das medidas de coação em geral — que terão necessariamente que obedecer ao princípio constitucional da adequação e proporcionalidade — mas em particular à medida de prisão preventiva, indicada por lei como de carácter excecional ou subsidiário (vd. artigos 18.º e 28.º n.º 2, ambos da CRP e 193.º, n.º 2, e 196.º e segs. estes do CPP, bem como "As medidas de Coação e de Garantia Patrimonial no Novo Código de Processo Penal", José António Barreiros).
Nos termos do art.º 27.º da CRP, todos têm direito à liberdade e à segurança, excetuando-se deste princípio, a privação da liberdade, pelo tempo e nas condições que a lei determinar, os casos previstos nas diversas alíneas do seu n.º 3.
A prisão preventiva, por ser a mais gravosa das medidas de coação constitui a "ultima ratio", dependendo a sua aplicação, da inadequação ou insuficiência, em concreto, das restantes medidas de coação previstas na lei, sendo necessário que tal aplicação seja feita em função de exigências processuais de natureza cautelar (vd. art.º 193.º do CPP).
Como vimos, o carácter excecional da prisão preventiva tem consagração constitucional no art.º 28.º, da CRP. E os princípios que regem a sua aplicação são uma emanação do princípio jurídico-constitucional da presunção de inocência constante no art.º 32.º, n.º 2, da CRP.
Assim, se considerar inadequadas ou insuficientes as medidas de coação de liberdade provisória, desde o simples TIR, passando pela caução, obrigação de apresentação periódica, suspensão do exercício de funções, de profissão e de direitos, proibição de permanência de ausência e de contactos e obrigação de permanência na habitação com ou sem vigilância eletrónica (quando esta for possível) – art.ºs 196.º, 197.º 198.º, 199.º, 200.º e 201.º do CPP – o juiz pode impor a prisão preventiva desde que:
- existam fortes indícios da prática de crime doloso e que o crime indiciado corresponda a criminalidade violenta ou seja punível com pena de prisão de máximo superior a 5 anos ou, tratando-se de crime de terrorismo, criminalidade altamente organizada, ofensa à integridade física qualificada, furto qualificado, dano qualificado, burla informática e nas comunicações, recetação, falsificação ou contrafação de documento, atentado à segurança de transporte rodoviário, detenção de arma proibida, detenção de armas e outros dispositivos, produtos ou substâncias em locais proibidos ou crime cometido com arma, nos termos do regime jurídico das armas e suas munições, seja punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos. (art.º 202º, nº 1, al. a) do CPP
- e se verifiquem singular ou cumulativamente os requisitos do art.º 204.º do CPP: - fuga ou perigo de fuga; perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação grave da ordem e da tranquilidade públicas ou de continuação da atividade criminosa (art.º 204.º, alíneas a), b) e c), do CPP).
No que concerne ao primeiro dos enunciados requisitos, a lei exige a verificação de fortes indícios, ao contrário do que acontece em várias outras situações, em que se aplicam preceitos onde se fala de "indícios suficientes". Significando fortes indícios, um conjunto de elementos que relacionados e conjugados persuadem da culpabilidade do agente, fazendo ressaltar a convicção de que o arguido virá a ser condenado pela prática dos ilícitos típicos por que foi indiciado.
Sendo que, existem nos autos fortes indícios da prática pelos arguidos AA e BB, em coautoria material e em concurso real e efetivo, de um crime de tráfico estupefacientes agravado, p. e p. pelos art.ºs 21.º, n.º 1, e 24.º, al. c), ambos do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, com referência à tabela I-B, anexa a este diploma, e ainda de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo art.º 28.º, n.ºs 1 e 2, do mesmo diploma legal, ambos punidos com penas de prisão de 5 a 15 anos, cometidos nas circunstâncias acima descritas, que aqui de novo se dão por integralmente reproduzidas (vd. transcrição supra), pelo que se mostra preenchida a primeira condição (pressuposto legal de carácter específico) para aplicação da prisão preventiva.
A prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção, nos termos do art.º 127.º do CPP. Este princípio, não pode deixar de ser considerado na formulação de juízos que ao longo do processo alicerçam decisões como a da privação liberdade, em função de exigências de natureza cautelar.
Atentemos, agora, nos perigos a que o art.º 204º, do CPP, alude nas suas alíneas a), b) e c), sendo que a Mm.ª Juíza a quo considerou, como demos conta, existirem todos, ou seja de fuga, de continuação da atividade criminosa, de perturbação do decurso do inquérito e de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas.
Quanto ao perigo de fuga este deve fundar-se, além do mais, na ponderação das circunstâncias em que o arguido se encontra, a fim de se concluir pela sua capacidade e facilidade, ou não, de se colocar em fuga, Não sendo necessário que existam actos que denotem tentativa de fuga, mas tão-só que as faculdades e possibilidades objetivas existam com elevado grau de probabilidade. Como se tem vindo pacificamente a considerar em termos doutrinários e jurisprudenciais "A existência do perigo de fuga não pode ser aferida meramente em termos hipotéticos, nem inferida só da mera gravidade do crime. Então, que elementos objectivos do receio de fuga serão esses que a doutrina exige? Não pode deixar de ser um juízo de avaliação da realidade hipotética com base nas suas manifestações que, por recorrentemente repetidas, se instilaram no consciente colectivo como regras. Não há outro modo de avaliar. Trata-se de um juízo de valor que se ajuste ao senso comum sem o distorcer, nem na sobrevalorização dos perigos, nem na sua ignorância ou desvalorização. Neste domínio, ensinava já o Prof. Cavaleiro Ferreira que não é de exagerar, ampliando-o, o perigo de fuga. É um perigo real, mas sempre “relativo”, que aqui importa. Quanto ao perigo, ele deve ser real e iminente, não meramente hipotético, virtual ou longínquo, e resultar da ponderação de factores vários, como sejam toda a factualidade conhecida no processo e a sua gravidade, bem como quaisquer outros, como a idade, saúde, situação económica, profissional e civil do arguido, bem como a sua inserção no contexto social e familiar. Em nossa opinião, primordial é averiguar-se, em face do circunstancialismo concreto do caso, se a pessoa em causa tem ou não, ao seu dispor, meios ou condições, designadamente a nível económico e social, para se subtrair à acção da justiça e às suas responsabilidades criminais ou se existe um sério perigo que tal venha a suceder, independentemente da gravidade dos crimes indiciariamente cometidos.” (cfr., entre outros, os Acórdãos das Relações de Évora de 11 de dezembro de 2007, proferido no processo n.º 2963/07-1 e de Coimbra de 19 de janeiro de 2011, proferido no processo n.º 2221/10.9PBAVR-A.C1, ambos disponíveis em fonte aberta em www.dgsi.pt).
No caso concreto, temos, como bem se salientou na decisão recorrida, que o perigo de fuga está objectivado nas nacionalidades dos arguidos, ambos cidadãos estrangeiros, sendo BB extracomunitário; na ausência de ligações familiares, profissionais ou quaisquer outras estáveis dos mesmos ao território nacional; o ser de crer que terão contactos com uma organização criminal com extensão (humana e territorial) considerável, sofisticação e meios financeiros avultados pois que viajaram desde a República Federativa do Brasil, num veleiro, transportando uma elevadíssima quantidade de cocaína, quase duas toneladas, mais exatamente 1.820,800 quilos, estupefaciente que, como anota a Mmª Juíza a quo, “é neste momento transaccionada em Portugal, em valores próximos dos €30.000 o quilograma”, pelo que pode chegar a valer aproximadamente 55.000.000,00€ (cinquenta e cinco milhões de euros); elevadíssima disponibilidade económica que o arguido AA também denota ao ter adquirido, cinco meses antes, a embarcação "CC pelo valor de €240.000,00 (duzentos e quarenta mil euros); disponibilidade económica que também permite a sua grande facilidade de circulação ao nível global, por via aérea e marítima, como aliás, o tem sucedido, pois há indícios de que AA terá estado em Santa Lúcia em maio de 2019, na Martinica (Antilhas Francesas) em agosto de 2019, na Guiana Francesa em Setembro de 2019 e em Hamburgo e Lisboa em Novembro de 2019 e fortes indícios de que ambos os arguidos estiveram, em Fortaleza, no Brasil, em, pelo menos, Novembro de 2019 e, em Janeiro de 2020, já se encontravam na Europa (na ZEE de Portugal); acresce que as profissões que declararam ser as suas, engenheiro de máquinas e engenheiro mecânico, a par das suas manifestadas aptidões de velejadores, permitem-lhes viver e trabalhar em qualquer ponto de mundo, assim subsistindo e escondendo-se das autoridades, se necessário; acresce ainda que, perante o seu silêncio, desconhece-se quais sejam os seus propósitos no futuro imediato, mas segundo a experiência comum, mesmo que só venham a ser condenados por um dos crimes e no limite mínimo da moldura penal (o que é pouco realista face à quantidade de droga apreendida e à jurisprudência firmada) nunca passaram menos de cinco anos em prisão, o que certamente condicona qualquer ser humano que em princípo almeja permanecer em  liberdade, e como parece ser o caso dos arguidos, de viajar e dos grandes espaços abertos, que um confinamento em reclusão carcerária não permite.
Quanto ao perigo de continuação da atividade criminosa, como doutamente assinalou a Mmª Juíza a quo, este existe quer na medida em que nenhum dos arguidos assumiu o desvalor da respetiva conduta, quer associado aos avultados proventos que iriam seguramente obter.
É certo que ao presente o perigo de perturbação do decurso do inquérito bem como da conservação da veracidade da prova é quase inexistente, mas o silêncio dos arguidos é revelador, como referiu a Mmª Juíza a quo, de que “têm interesse em que se não faça prova dos crimes que terão praticado, bem como em proteger outro ou outros que, eventualmente, estejam acima de si”, ou seja também não possibilita a recolha de outras informações de investigação que permitissem alcançar terceiros, nomeadamente os seus parceiros nesta atividade ilícita em investigação.
No entanto, a verificação de um evento como aquele em apreço (tráfico de estupefacientes), gera um sentimento de insegurança nas populações (nacionais e estrangeiras), perturbando assim a ordem e a tranquilidade das mesmas, só pelo facto de os presumíveis envolvidos circularem em liberdade.
Com efeito, existe perigo de grave perturbação da ordem e tranquilidade públicas, atendendo à natureza dos ilícitos em causa e à visibilidade social que a prática dos mesmos implica, considerando o aumento de toda a criminalidade associada ao tráfico e inerente/ subsequente consumo de estupefacientes. Na realidade, quanto a este último referido perigo, verifica-se alarme social advindo da natureza do crime em causa, enorme quantidade de cocaína apreendida e malefícios sociais conexos, quer para a saúde de toxicodependentes, quer porquanto os locais de tráfico final e consumo são muitas vezes assolados por crimes contra o património e pessoas por parte dos consumidores dependentes.
Como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de setembro de 2017, proferido no processo n.º 4029/15.6TDLSB.L1.S1 e acessível em www.dgsi.pt: “O bem jurídico que a proibição das acções tipificadas na norma do artigo 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro pretende salvaguardar é a indemnidade ou protecção da saúde pública, pela nocividade que as substâncias elencadas nas tabelas anexas são susceptíveis de provocar no equilíbrio físico-psíquico dos indivíduos e reflexamente, na comunidade onde esses indivíduos se integram incubadora dos malefícios induzidos por comportamentos desviados dos padrões comummente aceites e tidos por relevantes pelo legislador penal.
(…)  o tráfico de estupefacientes concita uma necessidade ingente de combate permanente pela danosidade social que comporta. (…)
Partindo da configuração de um tipo, modelo ou nuclear, o previsto no artigo 21º do DL nº 15/93, de 22 de Janeiro, o legislador português exasperou-o no artigo 24º, em face das repercussões económicas, sociais, financeiras que uma actividade, em exclusivo e de grandes dimensões acarreta, e doseou-o, de acordo com a intensidade da acção objectiva, a reduzida penetração e disseminação no tecido social e diminutos efeitos danosos que poderiam percutir nomeio onde se desenvolve um tráfico de cingido espectro no artigo 25º e, finalmente, com a qualidade e motivação subjectiva do agente no artigo 26º.
(…) Seja-nos permitido socorrermo-nos, data venia, do doutrinado no acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 17 de Abril de 2013, relatado pelo Conselheiro Pires da Graça em que se escreveu que (sic): “O crime de tráfico de estupefaciente abarca todas as condutas não autorizadas previstas no art.º 21º do Dec-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro: “cultivar, produzir, fabricar, exportar, preparar, oferecer, puser a venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III.
À sua consumação é-lhe indiferente a intenção lucrativa, ou o destino do produto estupefaciente, desde que não para consumo, sendo, porém, relevante, a quantidade total do produto integrante da acção proibida.
O crime de tráfico como crime de perigo abstracto, centraliza-se na perigosidade da acção, uma vez que o perigo, não sendo elemento do tipo, se apresenta como “motivo da proibição”, sem que disso resulte qualquer violação do princípio constitucional da presunção de inocência – (cfr. AC Tribunal Constitucional de 02-04-1992, “in” BMJ 411, p. 56).
Nos termos do art.º 24.º do Dec- Lei n.º 15/93, a pena prevista no art.º 21.º é aumentada de um terço nos seus limites mínimo e máximo, pela verificação de alguma das circunstâncias ali descritas.
(…) A jurisprudência deste Tribunal tem-se efectivamente pronunciado no sentido de que a avultada compensação remuneratória que se obteve ou se procurava obter pode não resultar directamente da prova do efectivo lucro conseguido ou a conseguir, mas de certos factos provados (como a quantidade de estupefaciente envolvida e as quantias monetárias implicadas pela transacção), combinados com as regras da experiência comum, não dependendo de uma análise contabilística de lucros/encargos, irrealizável, pelas características clandestinas da actividade.
(…), veja-se o Acórdão de 15-04-2010, Proc. n.º 631-03.7GDLLE.S1, da 5.ª Secção, relatado pelo Conselheiro Arménio Sottomayor: Para o preenchimento do conceito legal do conceito de "avultada compensação remuneratória", não é absolutamente necessário conhecer o valor mais ou menos exacto do montante pecuniário de tal compensação; como seus elementos concretizadores deverão considerar-se a quantidade e qualidade da droga e a relação entre ela e o agente - tudo em conexão com a notoriedade, com o conhecimento geral do valor da droga no mercado, especialmente na venda a consumidores - para além, obviamente, da diferença entre o preço da compra e o da venda.»
(…) O crime de tráfico de estupefacientes, para além dos efeitos deletérios e erosivos do vivenciar social e pessoal, induz e desencadeia a produção de outra criminalidade, não só rotineira, com furtos, roubos, violência doméstica, etc., como criminalidade mais violenta e sofisticada, como seja o financiamento de terrorismo, o branqueamento de capitais, a corrupção, homicídios (assassinatos), subversão da ordem social e da organização administrativa burocrática (veja-se o que acontece em países como o México (cidades como Culiacán, por exemplo, totalmente tomada pelos grupos de narcotraficantes (Sinaloa) e Juárez (cartel de Juarez), a Colômbia e mais perto na Itália, mormente em cidades como Nápoles e na Sicília).”. (fim de transcrição).

A tipificação do crime de tráfico de estupefacientes visa pois, proteger a vida e a integridade física das pessoas, a liberdade individual, a sua capacidade de autodeterminação, a estabilidade e harmonia familiar e social mas também a economia dos Estados, afetadas por negócios paralelos e subterrâneos levados a cabo por verdadeiras redes tentaculares e com forte carácter organizado.
Neste mesmo sentido, expendeu-se no acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 28 de setembro de 2010, proferido no processo n.º 514/09.7JELSB.L1 e igualmente disponível em www.dgsi.pt, que:
O tráfico de droga é, actualmente, a actividade mais importante do crime organizado ao nível internacional, afirmando-se como o 2º maior negócio do mundo, a seguir ao das armas. Na imputação do crime de tráfico tem-se em vista a protecção de diversos bens jurídicos (a vida, a integridade física, a liberdade de determinação dos consumidores de estupefacientes, entre outros) que podem, no entanto, ser englobados no dever geral de protecção de saúde pública. Tal faz com que o crime de tráfico seja um crime de perigo comum e abstracto, porquanto a norma protege uma multiplicidade de bens jurídicos, não se exigindo o dano nem o perigo concreto e bastando-se a incriminação com a mera perigosidade da acção. Sendo certo que a legislação portuguesa não estabelece um critério de gravidade relativa das drogas, ou seja, de distinção entre drogas duras e drogas leves, é médica e cientificamente reconhecido que os efeitos das ditas drogas duras (a cocaína e (…) heroína) são bem mais perniciosos, nomeadamente pela habituação e dependência que provocam.
A droga transportada pelo arguido é uma droga dura, com efeitos reconhecidamente devastadores na saúde dos consumidores. (…) Para que uma organização de tráfico de estupefacientes se estabeleça, ou mesmo, para que o comércio de tais produtos possa ultrapassar fronteiras e desenvolver-se em latitudes bem mais vastas dos meros territórios em que se produzem, é absolutamente indispensável a angariação de pessoas que se disponham a transportá-los (…) e de outras que assumam a tarefa de os distribuir pelas rotas e mercados oportunamente escolhidos. Só assim se conseguem criar os núcleos de comércio que tornem a actividade de tráfico de estupefacientes tão criminosamente apetecivel, atentos os enormes lucros por si gerados.” (fim de transcrição).

Estão, portanto, presentes, de forma consistente e relevante, os perigos previstos nas alíneas a), b) e c) do art.º 204.º do CPP, afigurando-se-nos que tais perigos só serão afastados de forma aceitável para a ordem jurídica e para a comunidade com a aplicação, como o foi, da medida de coação de prisão preventiva a ambos os arguidos e ora recorrentes AA e BB.
Em realidade, apesar de a prisão preventiva ser uma medida de coação de aplicação excecional e residual, ela é a única adequada ao presente caso, tendo em conta as elevadas exigências cautelares que ressaltam dos autos (art.ºs 191.º a 196.º, 202.º, n.º 1, alínea a), 204.º, alíneas a), b) e c), do CPP, e 28.º, n.º 2, da CRP).
Assim sendo, e ponderando a gravidade dos crimes, por que se encontram indiciados AA e BB, a elevada ilicitude e as necessidades de natureza cautelar, que se fazem sentir, entende-se, que a única medida que se revela adequada e proporcional é a medida de prisão preventiva prevista no art.º 202.º do CPP, e não qualquer outra. Na verdade, em nossa opinião, e importa sublinhá-lo, mesmo a aplicação da medida de obrigação de permanência na habitação com recurso a mecanismos de vigilância eletrónica não salvaguardaria o referido perigo de continuação da atividade criminosa com o inerente perigo de perturbação da tranquilidade pública, uma vez que não impediria que os arguidos nelas continuassem a de algum modo dar o seu contributo ao tráfico de droga, dada a partilha de tarefas que as redes de narcotráfico necessariamente implicam, podendo algumas ser desempenhadas a partir da residência, por meio da internet ou de comunicações telefónicas (os arguidos dispunham de meios informáticos, bem como de quatro telemóveis e telefone satélite) ou delas se viessem a ausentar para concretizar outros semelhantes intentos.
Assim, a nosso ver, apenas a medida de prisão preventiva é capaz de assegurar a satisfação das necessidades cautelares que se fazem sentir relativamente aos arguidos AA e BB. Nem muito menos e por maioria de razão, seria de submeter os arguidos a outra medida de coação, como sejam apresentações periódicas e/ou caução (vd artigos do 196.º a 200.º do CPP).
Portanto, não há qualquer censura a fazer à Mmª Juíza de Instrução Criminal quando conclui que a prisão preventiva é a medida de coação que se revela suficiente e, sobretudo, necessária, adequada e proporcional ao caso concreto, atentas as circunstâncias que descreveu e elementos de prova de que os autos dispõem.
Concluindo-se então que, não foram violados os preceitos legais do Código de Processo Penal invocados pelos recorrentes, quer ainda, da Constituição da República Portuguesa ou de instrumentos internacionais de que Portugal seja Estado-parte e se encontrem vigentes no nosso ordenamento jurídico interno.
Termos em que, também neste particular, o recurso não pode lograr procedência e, em consequência, deve ser mantida a decisão recorrida.

III – Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder parcial provimento ao recurso interposto pelos arguidos AA e BB, em conformidade com o que decidem considerar que a sua detenção ocorreu no dia 19 de janeiro de 2020, para efeitos de cômputo da privação da liberdade ao abrigo destes autos, confirmando-se em tudo o mais a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique nos termos legais.
(o presente acórdão, integrado por setenta e oito páginas, foi processado em computador pelo relator, seu primeiro signatário, e integralmente revisto por si e pelo Exmo. Juiz Desembargador Adjunto – art.º 94.º, n.º 2 do Cód. Proc. Penal).

Lisboa, 23 de abril de 2020 (durante o estado de emergência, por se tratar de processo de natureza urgente e tendo em atenção o disposto no n.º 7 do art.º 7.º, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, que aprova medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, na redação que lhe foi dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril)

Calheiros da Gama
Abrunhosa de Carvalho com a seguinte declaração de voto:
(Concordamos com o sentido da decisão, mas tal como fizemos no citado acórdão que relatámos no proc. 394/17.9JELSB.L1, entendemos que a detenção, para efeitos do disposto no art.º 254º/1-a) do CPP, só ocorreu à chegada, em 26/01/2020, à na Base Naval do Alfeite, altura em que foi dado cumprimento aos mandados de busca e apreensão oportunamente emitidos.
O confinamento anterior, que a fundamentação considera detenção, é, quanto a nós, enquadrável no disposto no art.º 255º/1-b) do CPP, que tem como conceito operativo de “entrega imediata” e não o de “prazo de 48 horas” (e será na confusão destes dois conceitos operativos que reside a nossa divergência).
Antes da chegada à Base do Arsenal do Alfeite, quem deteve os Arg. estava obrigado a “entregá-los imediatamente” a qualquer autoridade judiciária ou entidade policial (os militares da Marinha Portuguesa não são nem autoridades judiciárias, nem entidades policiais), que a devia comunicar nos termos do art.º 259º do CPP e tinha o prazo de 48 horas para os apresentar ao JIC.
Fazendo-se este enquadramento, já tem plena aplicação a jurisprudência do TEDH citada no acórdão, que lida com o conceito operativo de “entrega imediata”).

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[1] Sic, parecendo faltar algo nesta alínea, que deveria ser a c), mas que não vem como tal identificada. No entanto, o pedaço de texto é omisso pelos próprios apresentantes, como claramente resulta do processado e não da falta de qualquer folha ou de deficiente digitalização/introdução no Citius, porquanto as folhas em causa estão em sequência, quer no processo (346-347) quer no fax recebido do Escritório de Advogados “Carlos Pinto Abreu Ass.” (028/029-029/029). Acresce, não ser necessário determinar o completar de tal frase, pois tal omissão é irrelevante por ser e facilmente entendível o alcance do peticionado perante o conteúdo da sexta conclusão, que será tida em devida consideração na apreciação do recurso sub iudice.
[2] O MAOC-N, em português “Centro de Análise e Operações Marítimas”, tem a sua sede em Lisboa e é uma agência internacional criada para coordenar as acções de combate ao tráfico de drogas de vários Estados da União Europeia, com apoio financeiro do Programa de Prevenção contra o Crime da União Europeia.
[3] Onde se preceitua: “1. Toda a pessoa que se encontre legalmente no território de um Estado terá direito de nele circular e aí residir livremente. 2.Toda a pessoa terá direito de sair livremente de qualquer país, inclusivamente do próprio. 3. Os direitos anteriormente mencionados não poderão ser objecto de restrições, salvo quando estas estejam previstas na lei e sejam necessárias para proteger a segurança nacional, a ordem pública, a saúde ou a moral pública, bem como os direitos e liberdades de terceiros, que sejam compatíveis com os restantes direitos reconhecidos no presente Pacto. 4. Ninguém pode ser arbitrariamente privado do direito de entrar no seu próprio país.”
[4] Atente-se que a vigilância da ZEE portuguesa é exercida pela Marinha Portuguesa, Força Aérea Portuguesa, pela Autoridade Marítima Nacional, Polícia Marítima e Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos, que através de meios próprios executam missões designadamente de deteção e controlo de atividades ilícitas.
[5] Acrónimo de Drug Enforcement Administration, órgão de polícia federal do Departamento de Justiça dos Estados Unidos da América encarregado da repressão e controle de estupefacientes.
[6] Sigla do Departamento Central para a Repressão ao Tráfico Ilícito de Estupefacientes da Polícia Judiciária francesa.