Não constitui minimamente fundamento para recusa de Juiz Desembargador relator em recurso no Tribunal da Relação a prolação por este, após intervenção em acórdão que negou provimento ao recurso, de despacho tardio em processo de arguido preso e em que o Sr Juiz, decidindo desfavoravelmente requerimento singelo da defesa do arguido (sem menção expressa no mesmo requerimento pretender-se reclamação para Conferência) a pedir a invalidade de acórdão em que aquele interveio como relator, alude e escreve como “questão prévia, que de despachos do relator se reclama para a conferência(…)” e que o arguido interpretou para fundar incidente de recusa, que suscitou de seguida, como sendo uma falta de respeito.
Processo 60/20.8PJLRS
Incidente de recusa de Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa
(Dr. AA)
Relator: Agostinho Torres
Juízes adjuntos: 1º- Leonor Furtado; 2º - António Latas;
Recusa de Juiz por prolação tardia de despacho em processo de arguido preso e uso no mesmo de terminologia alusiva a despacho do relator e não a acórdão.
Acordam em Conferência os Juízes na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça.
1.
BB, arguido no processo, deduziu incidente de recusa do Exmº Senhor Juiz Desembargador AA, titular e relator no processo 60/20.8PJLRS (recurso) pendente no Tribunal da Relação de Lisboa,
nos seguintes termos e em síntese:
- O arguido encontra-se preso preventivamente à ordem do presente processo.
- A 7 de junho de 2023 foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Lisboa
- Em 9 de junho de 2023, o arguido, recorrente no que a tal acórdão respeita, invocou vício daquela decisão, requerendo que fosse declarada a respetiva invalidade.
- A 12 de junho de 2023, foi lavrado termo de abertura de conclusão.
- A 4 de julho de 2023, pelo visado foi proferido despacho sobre a pretensão do arguido, dizendo:
“Como questão prévia, haverá que observar que a forma de reagir contra despachos do relator é mediante a apresentação de reclamação para a conferência. - cfr., artigo 417.º n.º 8 do Código Processo Penal”.
-Mais do que nunca, quando todos reconhecem a importância da confiança na justiça, é necessário estar muito atento às aparências.
-Para o observador externo, a aparência que fica é a de que o magistrado visado ficou mal colocado.
-Num processo cujo arguido se encontra preso preventivamente, perante uma peça processual em que se invoca a invalidade de um acórdão, o visado toma a decisão, tanto tempo depois de ser lavrado termo de abertura de conclusão, começando por dizer que a forma de reagir contra despachos do relator é mediante a apresentação de reclamação para a conferência.
-O arguido fala de um acórdão.
-O visado fala de despachos do relator.
-É uma falta de respeito, estando-se quase perante uma conduta que roça a atitude de desconversar, desviar-se do assunto, fugir da matéria, mudar de tema, estar com rodeios, misturar temáticas sem nexo, descarrilar do que é submetido à apreciação, descambar para algo diverso, mencionando “despachos do relator” quando se está perante um acórdão.
A norma constante do nº 1 do artigo 43º do CPP contraria o nº 4 do artigo 20º e o nº 1 do artigo 32º da constituição, quando interpretada no sentido de que não deve ser recusando o magistrado que, perante uma peça de processual em que se invoca a invalidade de um acórdão, toma a decisão dizendo que a forma de reagir contra despachos do relator é mediante a apresentação de reclamação para a conferência.
Assim, as questões que o arguido pretende ver decididas pelo Tribunal da Relação são as seguintes:
- Este circunstancialismo significa que se corre um risco?
- O risco é o de que seja considerada suspeita a intervenção do magistrado?
- Existe motivo adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do magistrado?
- Tal motivo é sério?
- Reveste gravidade?
- Verifica-se inconstitucionalidade?”
Termos em que deverá ser julgado procedente o incidente de recusa”
2. Em resposta ao pedido de recusa, o Exº Sr Juiz Desembargador visado emitiu a sua posição, de acordo com o previsto no artigo 45.º n.º 3 do Código Processo Penal, nos termos que se seguem:
“O Juiz recusando é o juiz titular do processo n.º 60/20.8PJLRS-C.L1SB.
Neste processo de recurso foi proferido acórdão anterior à apresentação do pedido de recusa. O acórdão foi tempestivamente impugnado por recurso extraordinário de fixação de jurisprudência. Salvo melhor opinião, o requerimento de recusa em questão é completamente destituído de fundamento. Com efeito, não é invocado qualquer fundamento válido ou mesmo inválido que possa colocar em causa a imparcialidade ou a seriedade do juiz titular em causa. E, assim, se dão por concluídos os esclarecimentos tidos por relevantes pelo juiz visado.”
3. Após consulta do processo, verifica-se a seguinte sequência de intervenção do Sr Juiz visado e a narrativa processual pertinente ao longo da linha de tempo que importa considerar para contextualização, apreciação e decisão do incidente:
a) O Sr Juiz Desembargador recusando é o titular do processo de recurso na … Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
b) O recurso em causa visava a seguinte temática:
“No processo instrução com n.º 60/20.8PJLRS, foi proferido despacho a 17/03/2023 pelo Juiz ... do Juízo de Instrução Criminal de ... do Tribunal Judicial da comarca de Lisboa norte que decidiu rejeitar “o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos autos pelo arguido BB com fundamento na sua inadmissibilidade legal, de acordo com as disposições conjugadas dos arts. 286.º, nº 1, 287.º nº 1 al. A) e nº2 a contrario sensu e nº 3 todos do Código de Processo Penal”.
c) Inconformado, o arguido recorreu para o Tribunal da Relação requerendo a revogação do despacho recorrido e que fosse declarada aberta a instrução.
d) Não foi dado provimento ao recurso por acórdão em que interveio como relator aquele Sr Juiz desembargador recusando, acórdão esse datado de 7/6/2023.
e) No dia 9 de Junho de 2023 o arguido apresentou simples requerimento pedindo a declaração de invalidade do acórdão com fundamento no facto de não ter sido notificado do parecer do MPº que o antecedeu.
f) Fê-lo assim:
“(…) BB, arguido recorrente, nos termos consentidos pelos artigos 98.º e 63.0 do CPP, expõe e requer:
Foi expedida notificação eletrónica relativa ao acórdão de 7 de junho de 2023.
O mesmo encontra-se afetado por vício que acarreta a sua invalidade, o que aqui expressamente se invoca: n.°s 1 e 2 do artigo 118.º; n.°s 1 e 2 do artigo 122.º; n.° 1 do artigo 123o, todos do CPP.
Diz-se no relatório do acórdão:
Estabelece o n.º 2 do artigo 417.º do CPP: “Se, na vista a que se refere o artigo anterior, o Ministério Público não se limitar a apor o seu visto, o arguido e os demais sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso são notificados para, querendo, responder no prazo de 10 dias”.
O arguido não foi notificado do referido parecer.
(…)
As regras contidas nos n.ºs 1 e 2 do artigo 118.º, nos n.ºs 1 e 2 do artigo 122.º, no n.º 1 do artigo 123º e nos n.ºs 1 e 2 do artigo 417.º do CPP são inconstitucionais se forem interpretadas no sentido de que é válido o acórdão proferido após ser colhido visto do Ministério Público sem que ao arguido recorrente seja comunicado o teor da posição colhida junto do Ministério Público e lhe seja conferida a faculdade de responder. Violam o n.º 4 do artigo 20.º e os n.ºs 1 e 5 do artigo 32.º da lei fundamental. Em sede de primeira instância, ao Ministério Público é atribuída a prerrogativa de responder à motivação do recurso interposto pelo arguido e, posteriormente, a de se pronunciar na sequência de o processo subir ao tribunal superior. Se ao arguido for subtraída a possibilidade de replicar a esta última tomada de posição, não se respeita o princípio da igualdade de armas, ofende-se o direito ao contraditório e não se observam as exigências de um processo equitativo.
Termos em que, declarada a correspondente invalidade, deve ser ordenada a notificação do arguido em conformidade.
(…)”
g) Aberta conclusão no processo a 12.6.23, o Sr Juiz relator, apenas a 4 de Julho (e só nessa data por razões que não constam no processo nem o arguido as indica e, por isso, se desconhece quais fossem), proferiu o seguinte despacho (o qual veio dar origem ao pedido de recusa suscitado pelo arguido):
“Nos presentes autos de recurso, o recorrente veio suscitar a invalidade do acórdão proferido nesta instância por não ter sido notificado do parecer apresentado pelo Ministério Público, nos termos do artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal. Cumpre apreciar e decidir.
Como questão prévia, haverá que observar que a forma de reagir contra despachos do relator é mediante a apresentação de reclamação para a conferência. (itálico e negrito nossos)
- cfr., artigo 417.º n.º 8 do Código Processo Penal. O que não foi observado pelo recorrente que reage através de mero requerimento, suscitando uma invalidade processual que não qualifica. Este circunstancialismo processual obviaria, desde logo, à apreciação da pretensão do recorrente. No entanto, sempre se dirá que ao recorrente não assiste razão.
Com efeito, dispõe o n.º 2 do artigo 417.º do Código Processo Penal que: "Se, na vista a que se refere o artigo anterior, o Ministério Público não se limitar a apor o seu visto, o arguido e os demais sujeitos processuais afectados pela interposição do recurso são notificados para, querendo, responder no prazo de 10 dias".
O parecer emitido pelo Ministério Público tem o seguinte teor: (…)
Neste Tribunal da Relação de ... não é prática o Ministério Público se limitar a apor um simples "visto".
Com efeito, na grande maioria dos casos, em que, no entendimento do Ministério Público, não existe razão para divergir da posição apresentada pelo Ministério Público no tribunal a quo, é junto um parecer com termos semelhantes ao transcrito e que manifesta concordância com posição anteriormente apresentada pelo Ministério Público.
Este parecer não apresenta um conteúdo inovatório que imponha a activação do princípio do contraditório.
Com efeito, não teria qualquer utilidade processual ouvir o recorrente discorrer sobre a posição assumida pelo Ministério Público no tribunal a quo. Tanto mais, se nisso existisse interesse processual, seria admitida ao recorrente na 1.ª instância tal actividade processual. O que a lei processual penal não admite.
E, se tal não é admissível no tribunal a quo, também não o será no tribunal ad quem. Razão pela qual, não foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º n.º 2 do Código Processo Penal. E, desta forma, não foi cometida nenhuma invalidade. Processual. Nos termos e pelos fundamentos expostos, indefiro o requerido.
(…)”
h) Perante este despacho de dia 4 de Julho, veio a 10 de Julho o arguido requerer (por via de 3 requerimentos, autónomos em relação a cada matéria:
- A recusa do Sr Juiz Desembargador relator nos termos já supra transcritos.
-Recurso (daquele acórdão de 7/6/23) extraordinário para fixação de jurisprudência ( e que veio a ser admitido por despacho de 11 de agosto de 23).
- Reclamação do despacho de 4/7/23 do relator que indeferiu o requerimento de arguição de invalidade do acórdão por falta de notificação do parecer do MPº.
i) Entretanto, por acórdão de 11 de agosto de 23, em que ainda interveio como relator o sr juiz recusando, foi indeferida a reclamação apresentada a 10/07/23 contra aquele seu despacho de 4 de Julho (e que, já vimos, indeferiu o pedido de invalidade do acórdão de 7/6/23, suscitado com base no fundamento da violação do contraditório por falta de notificação prévia do parecer do MPº)
3. Inexistindo necessidade de prova complementar e tendo-se tido previamente acesso ao processo principal para consulta directa, o incidente de recusa foi a vistos e para conferência , desta resultando a seguinte deliberação.
Assenta o “alegado” motivo invocado pelo requerente arguido para recusa do Sr Juiz Desembargador no seguinte elenco de razões aqui nuclearmente em resumo:
“(…) Estando o arguido preso preventivamente, perante uma peça processual em que se invoca a invalidade de um acórdão, o visado toma a decisão, tanto tempo depois de ser lavrado termo de abertura de conclusão, começando por dizer que a forma de reagir contra despachos do relator é mediante a apresentação de reclamação para a conferência. O arguido fala de um acórdão. O visado fala de despachos do relator. É uma falta de respeito, estando-se quase perante uma conduta que roça a atitude de desconversar, desviar-se do assunto, fugir da matéria, mudar de tema, estar com rodeios, misturar temáticas sem nexo, descarrilar do que é submetido à apreciação, descambar para algo diverso, mencionando “despachos do relator” quando se está perante um acórdão. (…)”
E nada mais é invocado.
4. São pressupostos gerais da recusa de um juiz:
“Em matéria de garantias de imparcialidade do juiz, na previsão dos art.39.º, 40º e 42º do Código de Processo Penal, surgem os impedimentos, taxativamente enumerados na lei; - a recusa, desencadeada pelo Ministério Público, arguido, assistente ou pelas partes civis e a escusa, da iniciativa do próprio juiz. No caso dos impedimentos , ex lege, as circunstâncias que os determinam assentam nos artigos 39.º e 40.º do Código de Processo Penal.
Complementarmente, prevê a lei a categoria das suspeições, nas modalidades de recusas e de escusas- art.43.º do Código de Processo Penal.
Neste dispõe-se o seguinte:
«1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do art.40.º.
(3…)
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos n.ºs 1 e 2.».
O princípio do juiz natural - que encontra expressão no art.32.º, n.º 9 da C.R.P.: «Nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior» - no confronto com a exigência da imparcialidade do juiz (e do tribunal), só deve ser quebrado em função da verificação de circunstâncias sérias, ponderosas, graves, não compatíveis com a superficialidade de uma apreciação mesmo na aparência, e de forte impacto para a justificação da formulação de um juízo de desconfiança,“…irrefutavelmente denunciadoras de que o juiz natural deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.” Ac STJ de 5.4.200 in Cf. CJ, ano VIII, 2.º, pág. 243.
No entanto, não é necessário demonstrar uma efetiva falta de isenção e imparcialidade do juiz peticionante da escusa, bastando, atentas as particulares circunstâncias do caso, um receio objetivo de que, vista a questão sob a perspetiva do cidadão comum, o juiz possa ser alvo de uma desconfiança fundada quanto às suas condições para atuar de forma imparcial. A jurisprudência dos nossos tribunais tem sido constante no sentido de se exigir a alegação de factos concretos que constituam motivo de especial gravidade e que possam gerar desconfiança, não se bastando com simples generalidades. ( Cf. entre outros, os acórdãos do STJ de 5 de abril de 2000, já citado, e de 29 de Março de 2006, in C.J., n.º 189, e o acórdão da Relação de Coimbra, de 2 de dezembro de 1992, in C.J., ano XVII, 5.º,pág. 92.)
Os fundamentos de recusa enunciados, como resulta do seu contexto, devem ser interpretados nos termos n.º1 do mesmo preceito, isto é, só são caso de recusa se dos mesmos resultar em concreto motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz. (cfr. também o acórdão do STJ de 27 de maio de 1995, in CJ, ASTJ, ano VII, 2.º, pág. 217.)
Na interpretação deste art.43.º do C.P.P. importa atender ainda ao art.6.º, § 1.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem que estatui o direito a que a causa seja decidida por um tribunal imparcial. Sendo, aliás, jurisprudência sólida do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, a imparcialidade deve apreciar-se segundo critérios subjetivos e objetivos (vide acórdão de 13 de novembro de 2012, no caso Hirschhorn c. Roménia, Queixa n.º 29294/02 e do acórdão de 26/07/2007, caso De Margus c. Croácia, Queixa n.º 4455/10), posição esta acolhida pelo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente nos acórdãos de 6 de setembro de 2013 (proc. n.º 3065/06) e de 13 de fevereiro de 2013 (proc. n.º 1475/11.8TAMTS.P1-A.S1).-In www.dgsi.pt)
Independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis podem autorizar a suspeitar da sua imparcialidade. E, embora nesta matéria, mesmo as aparências possam revestir-se de alguma importância, entrando em linha de conta a ótica do arguido ou do acusado, sem, todavia, desempenhar um papel decisivo, o elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem considerar-se objetivamente justificadas. O que conta é a natureza e extensão da posição tomada pelo juiz. É necessário indicar, com a devida precisão, factos verificáveis que autorizem a suspeita.
O TEDH, e por unanimidade (segundo cremos) o Supremo Tribunal de Justiça, têm entendido que a imparcialidade se presume até prova em contrário. (Cf. acórdão do TEDH de 21 de dezembro de 2000, no caso Wettstein c. Suíça e citado acórdão do STJ de 10 de julho de 2008, in www.dgsi.pt)
De um modo geral, pode dizer-se que a causa da suspeição há de reportar-se a um de dois fundamentos: uma especial relação do juiz com alguns dos sujeitos processuais, ou algum especial contacto com o processo. Enquanto os motivos de impedimento mencionados nos artigos 39.º e 40.º do C.P.P. afetam sempre a imparcialidade do juiz, que deve declará-lo imediatamente nos autos por despacho irrecorrível, ficando-lhe vedada a intervenção no processo, no caso de escusa/recusa tudo depende das concretas razões de suspeição invocadas pelo ou contra o juiz que admite o risco do não reconhecimento público da sua imparcialidade no processo.
A independência dos tribunais, consagrada constitucionalmente no art.203.º, implicando a sujeição dos juízes apenas à lei, bem como a inamovibilidade e a irresponsabilidade, com as exceções previstas na lei, é complementada com a imparcialidade dos juízes, pois só assim fica assegurada a confiança geral na objetividade da jurisdição. O princípio da imparcialidade, na realização da justiça, postulando uma intervenção equidistante, desprendida e descomprometida, repudia o exercício de funções judiciais no processo por quem tenha ou se possa objetivamente recear que tenha uma ideia pré-concebida sobre a responsabilidade penal do arguido; bem como por quem não esteja em condições ou se possa objetivamente temer que não esteja em condições de as desempenhar de forma totalmente desinteressada. [Neste sentido, Figueiredo Dias e Nuno Brandão, in “Sujeitos Processuais Penais: O Tribunal” , Texto de apoio ao estudo curricular de Direito e Processo Penal do Mestrado Forense da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2015/2016), Coimbra, 2015, e Mouraz Lopes, in “A Tutela da Imparcialidade Endoprocessual no Processo Penal Português”, Coimbra Ed. , 2005, págs. 66 e segs.
Como assertivamente esclarece Cavaleiro de Ferreira não importa que, na realidade das coisas, o juiz permaneça imparcial, mas sobretudo considerar se na relação com o processo poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados [Cf. “Curso de Processo Penal”, Reimpressão da Univ. Católica, Lisboa, 1981, pág.237]
5. Voltando agora ao caso concreto.
A questão é simples.
Do contexto de todo o processado não existe a mínima das razões para se haver suscitado, de forma tão precipitada e com tamanha ligeireza, o presente incidente de recusa.
Desde logo, porquanto a prolação do despacho em processo urgente apenas a 4 de Julho, apesar de aberta conclusão a 12 de Junho, não é aqui motivo para recusa de juiz. Não revela por si nem do seu contexto, alcance de má vontade, parcialidade ou sequer “inclinação” dolosa ou negligente decisória “interessada” contra ou a favor de quem quer que seja e muito menos “aparenta” ter sido proferido por qualquer uma dessas razões de onde se pudesse intuir ou vislumbrar receio de que o Sr Juiz tivesse alguma intencionalidade violadora de lei ou da Constituição da República e dos seus deveres funcionais de isenção, imparcialidade e independência.
Isto, tanto mais que, em conferência, a reclamação (autónoma, diga-se, do seu despacho de 4/7/23 e não do acórdão de 7/6/23) até foi indeferida.
Ademais, convém salientar que os atrasos processuais, se os houve (e desconhecemos se houve injustificadamente, e porquê, embora aparentemente o despacho exarado tenha sido proferido além do prazo normal em processo urgente) terão de ser apreciados em processo eventualmente disciplinar e não como fundamento de recusa. Quando muito, havendo detidos num processo, se os atrasos afectarem direitos fundamentais, além da responsabilidade disciplinar poderão ser caso de eventual medida de habeas corpus se for caso de imputação de ilegalidade de prisão ( artºs 22º e ss do CPP)
O arguido não alega razão alguma para ter havido injustificação de atraso e também não consta que se tenha preocupado em saber o que possa ter acontecido.
Contudo, importa agora e, sobretudo, salientar que o facto de o Sr Juiz se referir a “despacho” e não a acórdão, se porventura se entendesse, só por mera hipótese ( e não é essa a nossa perspectiva) , afastada que fosse a possibilidade de um mero lapso, uma falta de respeito (que não é! ), quando muito, tratar-se-ia apenas de uma circunstância fundante para a arguida se queixar contra o sr magistrado por violação dos deveres de urbanidade e cortesia. Nada mais.
Daí que se não entenda a patente ligeireza e manifesta falta de fundamento na suscitação do presente incidente, tanto mais que nem sequer do despacho em causa se vislumbra que se tratasse de uma dessas hipóteses (lapso e/ou violação de dever de urbanidade).
E porquê? A resposta é clara. Porque o despacho sequer comete qualquer lapso na alusão que faz e refere-se adequadamente a despacho na explicação do regime de reclamação pois com ele se quis explicar que o arguido não reclamou do acórdão, apesar de pedir a sua invalidade consequencial, não arguiu a 12 de Junho reclamação para a conferência propriamente dita e mais pareceria, como pensamos ter sido essa a interpretação do Sr Juiz recusando, que o impugnante viria pôr em causa, ao menos implicitamente, por violação do contraditório, o despacho preliminar do Sr juiz ao ter enviado o recurso para decisão em Conferência (que o decidiu por acórdão de 7 de Junho de 2023) sem antes da mesma ter sido notificado da promoção do MPº.
Pode assim o despacho de 4 de Julho estar, talvez, um pouco menos claro, mas compreende-se com muita facilidade o seu contexto, sentido e alcance. Nunca por nunca dele se pode deduzir engano, lapso, fala de respeito ou, ao que mais importa agora, falta de imparcialidade do sr juiz.
Relembrando, pois, que a seriedade e gravidade do motivo causador de desconfiança sobre a imparcialidade do juiz – imparcialidade que sempre se presume – tem que ser considerada e apreciada objectivamente, não bastando um puro e infundado convencimento subjectivo do requerente, para se ter como verificada a ocorrência de suspeição, no caso dos autos é manifesta a falta de razão e a ligeireza com que o presente incidente foi suscitado.
Por fim, é desprovida de qualquer fundamento e razão dizer que a norma constante do nº 1 do artigo 43º do CPP contraria o nº 4 do artigo 20º e o nº 1 do artigo 32º da constituição, quando interpretada no sentido de que não deve ser recusando o magistrado que, perante uma peça de processual em que se invoca a invalidade de um acórdão, toma a decisão dizendo que a forma de reagir contra despachos do relator é mediante a apresentação de reclamação para a conferência.
6. Não se alcança, pois, minimamente, o sentido e alcance da propalada inconstitucionalidade da sobredita interpretação, tanto mais até que (incoerentemente na linha do que defendia) foi o próprio quem até acabou por reclamar para a conferência desse mesmo despacho onde aquela afirmação se conteve. Despacho esse que não se ficou por questões de forma mas acabou por decidir até, ainda que desfavoravelmente para o requerente, da questão de fundo (a invalidade do acórdão) suscitada pelo requerente.
Improcede, pois, manifestamente, o pedido de recusa.
7- DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar manifestamente infundado o pedido de recusa do Sr Juiz Desembargador Dr. AA no âmbito dos autos Processo 60/20.8PJLRS.
Taxa de justiça pelo incidente a cargo do requerente e que se fixa em 3 UC ( artº 7º nº4 e tabela II do RCP) à qual acresce a soma de 10 UC nos termos do nº 7 do artº 45º do CPP.
Comunique ao processo no Tribunal da Relação e ao Sr Juiz Desembargador a presente decisão.
D.n.
Lisboa, 14 de Setembro de 2023
Os Juízes conselheiros
(texto processado informaticamente e revisto pelo relator- artº 94º, nº2 do CPP)
Agostinho Torres (relator)
Leonor Furtado (1ª adjunta)
António Latas (2º adjunto)