HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRISÃO PREVENTIVA
DESPACHO
JUÍZ DE INSTRUÇÃO
MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I - Tendo o JIC determinado no despacho que fixou a medida de coação de prisão preventiva”… solicitar “(…) à DGRSP (noutro processo em que o arguido estaria a ser acompanhado pela equipe ali identificada) uma informação tendente “(…) a verificar a possibilidade de o arguido cumprir um tratamento de alcoolemia em regime de internamento em instituição adequada e sobre a possibilidade da substituição da prisão preventiva imposta nestes autos, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 213º, n.º 4 do Código de Processo Penal”, desse despacho não resulta de forma alguma que essa substituição seria imediata nem que a alegada ausência de resposta ou sequer de incumprimento do solicitado (e que, aliás, o havia sido pela secção) constitua fundamento para requerer providência de habeas corpus.
II - Do texto dessa decisão e do contexto processual apenas se pode concluir que a dita substituição seria uma possibilidade, em função do que a DGSRS viesse a sugerir sobre a viabilidade de uma medida de internamento e que os prazos de prisão preventiva se manteriam intocados, inexistindo pois prisão ilegal.
III - Tendo aquela respondido poucos dias após o solicitado dizendo já não estar a seguir o caso do arguido no processo solicitado e prosseguindo os autos para elaboração de parecer por outra equipe mas do EP, a providência de habeas corpus, além de manifestamente infundada, foi instaurada com ligeireza pela defesa que não cuidou minimamente de verificar o que tinha acontecido nos autos quer da iniciativa do tribunal quer por parte da equipe da DGSRP.

Texto Integral



Processo: Habeas Corpus nº 1058/23.0GAVCD-A


Relator - Agostinho Torres


Juízes adjuntos: - António Latas; Eduardo Sapateiro.


Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Instrução Criminal de ...-...;


Requerente: arguido AA


Fundamento alegado: art.º 222.º, nº 2 alínea b) do CPP; incumprimento de pedido do JIC após fixação de prisão preventiva para avaliação pela DGSRS sobre a possibilidade de substituição da mesma por medida de internamento para desintoxicação de adição a alcoolismo.


Acordam em audiência os juízes Conselheiros na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.


I- No presente processo nº 1058/23.0GAVCD-A a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo de Instrução Criminal de... - ... veio o arguido requerer providência de Habeas Corpus convocando as seguintes razões:


“A presente providência fundamenta-se numa razão, a saber:


A- Artigo 222º n.ºs 1 e 2 b) do Código de Processo Penal


II- Analisando, especificamente, este fundamento invocado:


(seguem-se apenas considerações jurídicas genéricas sobre os fundamentos constitucionais e legais da providência de habeas corpus que aqui nos dispensamos de transcrever)


(…)


DITO ISTO,


17º


No passado dia 25 de Agosto de 2023, na sequência de detenção para o efeito, o arguido foi sujeito a primeiro interrogatório judicial, com vista à aplicação de medida de coacção.


18º


No âmbito da aplicação da sobredita medida, o Meritíssimo Juíz de Instrução Criminal decidiu o seguinte:


DESPACHO


“Julgo válida a detenção do arguido porque, porque efectuada nos termos do art.º 30º da Lei 112/2009 de 16 de Setembro e dos artigos 254.º, n.º 1 e 257.º do Código de Processo Penal. Com base noselementosde prova quenos foram apresentados,enaconfissãodoarguido,temos como fortemente indiciada a prática pelo arguido AA dos factos que lhe são imputados pelo Ministério Público e que lhe foram comunicados no decurso da presente audiência.


Esses factos preenchem a prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica p.p. pelos artigos 152.º n.º 1 al. a) e n.º 2, do Código Penal.


Considerando a natureza e a gravidade dos factos, a insuficiência das injunções que foram aplicadas ao arguido no âmbito do processo 413/21.4… -e que o arguido não cumpriu, tendo registado 2 faltas às consultas relativas ao seu tratamento à dependência do álcool - e considerando ainda as necessidades de protecção da vítima e de prevenção do perigo de perturbação da tranquilidade pública temos como justificada, neste momento, como única medida de coação necessária, adequada e suficiente, a aplicação de prisão preventiva.


Pelo exposto e decidindo nos termos do disposto nos artigos 191.º a 194.º, 202.º, nº 1, al. b) e 204.º, al. c) do Código de Processo Penal, determino que o arguido AA, aguarde os ulteriores termos do processo em prisão preventiva, pelos fortes indícios da prática do crime de violência doméstica p.p. pelas disposições legais acima indicadas.


Passem-se os necessários mandados de condução do arguido ao Estabelecimento Prisional. Cumpra-se o disposto no art.º 194.º, n.º 10, do C. P. P..


Solicite-se à DGRSP, com referência ao processo 413/21.4..., uma informação tendente a verificar a possibilidade de o arguido cumprir um tratamento de alcoolemia em regime de internamentoem instituição adequadaesobreapossibilidadeda substituiçãoda prisão preventiva imposta nestes autos, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 213º, n.º 4 do Código de Processo Penal. (sublinhado nosso)


Comunique-se à ofendida a medida de coacção ora aplicada.


(…)”


O tribunal decretou a prisão preventiva, com a possibilidade imediata de substituição de medida de coacção, para regime de internamento, com vista ao tratamento da dependência ao álcool, desde que a Direcção-Geral de Reinserção Social considere viável essa mesma possibilidade.


20º


O arguido não só não se opõe à medida substitutiva determinada, como a considera uma mais-valia, pelo que, deste segmento do despacho proferido, não pretende interpôr qualquer recurso ordinário, conformando-se com o mesmo.


SUCEDE, PORÉM, QUE,


21º


Decorrida precisamente uma semana, no dia 01 de Setembro de 2023, o defensor signatário, estranhando a total ausência de contacto com o arguido, por parte da referida entidade (DGRSP),


22º


O que não costuma suceder em processos desta natureza,


23º


Tratou de indagar a razão de tal omissão, dirigindo-se ao Departamento de Investigação e Acção Penal de ....


24º


Na 4ª Secção do Departamento de Investigação e Acção Penal, nesse dia, porque no exercício legítimo do Direito à greve, não se encontrava qualquer funcionário judicial, pois apesar de se tratar de secção especializada, para combate ao fenómeno da violência doméstica, não foram decretados serviços mínimos.


25º


Nessa sequência, o defensor signatário dirigiu-se à secretaria do estabelecimento prisional, que não tinha qualquer registo de contacto da Direcção-Geral de Reinserção Social, mas indicou que a Equipa da Direcção-Geral de Reinserção Social, afecta aos estabelecimentos prisionais, é a Equipa ... 6.


26º


Nesse mesmo dia, 01 de Setembro de 2023, o defensor signatário contactou a Equipa ... 6, que tinha conhecimento de que ao arguido foi atribuído o número de recluso …, estava afecto ao técnico de reinserção-social, Sr. Dr. BB, sendo que o mesmo se encontra de férias.


27º Não obstante se encontrar de férias, sempre a Direcção-Geral de Reinserção Social daria resposta ao pedido formulado, mas que nunca, no âmbito destes autos, foi solicitada qualquer informação à Direcção-Geral de Reinserção Social, por e-mail ou via Citius, relativa à possibilidade de internamento do arguido em estabelecimento adequado para tratamento ao álcool.


28º


Por conseguinte, apesar da natureza urgente dos presentes autos, o despacho do Meritíssimo Juíz de Instrução Criminal não foi respeitado.


29º


Sendo certo que a prisão preventiva decretada teria sempre natureza provisória, caso chegasse aos presentes autos informação que permitisse o seu internamento em instituição adequada para tratamento ao álcool.


30º


Não tendo sidosolicitadaqualquerinformação, condenando-seantecipadamenteoarguidoaestar recluído em estabelecimento prisional, o que não espelha a vontade do tribunal, a prisão a que se vê sujeito é ilegal.


31ºDiferente seria,se a informação tivesse sido imediatamente solicitada, aguardando-se arespectiva tramitação.


32º


Contudo, mais de uma semana depois, como se disse, a decisão proferida não foi respeitada.


33º Deacordocomoart.º25º da Constituição da República Portuguesa:“ Ninguém pode ser submetido a tratos (…) desumanos”.


34º


Ora, se a vontade do tribunal é manter o arguido confinado até se encontrar estabelecimento adequado, não encetar qualquer diligência para se aferir desse internamento, desrespeita-se o que foi decidido, tornando ilegal tão grave omissão.


35º


Como o arguido não consegue fazer prova de factos negativos e não tem acessoaos autos, a sua tramitação, ou falta dela, demonstrará o alegado.


36º


É, assim, inconstitucional a interpretação normativa da conjugação dos artigos 202º e 213º n.º 4 do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido da legitimidade da manutenção da prisão preventiva, sempreque haja omissãode diligências ordenadas para substituiçãoda medida decretada, por violação dos artigos 1º, 18º e 25º da Constituição da República Portuguesa


37º


No caso concreto, estão emcausa os princípios da violação da dignidade da pessoa humana e da boa administração da justiça.


DAQUI SE CONCLUI,


38º


Que o arguido se encontra em situação de prisão ilegal, por violação das regras processuais, relativas à vinculação obrigatória das decisões judiciais a todas as entidades públicas e privadas, requerendo-se, nos termos e para os efeitos do art.º 223º n.º 4 do Código de Processo Penal, o procedimento que V. Exas. considerarem necessário, para o caso sub iudice.”


II - A Mmª Juíza do processo prestou a seguinte informação ao abrigo do artº 223º, nº1 do CPP:


“ (…)


Nos presentes autos de inquérito que correm sob o número 1058/23.0GAVCD, foi o arguido AA detido em 24 de Agosto de 2023, em flagrante delito pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelos artigos 152.º n.º 1 al. a) e n.º 2, do Código Penal.


Sujeito a primeiro interrogatório judicial de arguido detido em 25 de Agosto de 2023, foi-lhe aplicada, nessa mesma data, a medida de coação máxima – prisão preventiva -, tendo sido proferida a seguinte decisão (trata-se da decisão supra e que o requerente também já mencionou e se transcreveu):


“(…)”


Os motivos de ilegalidade da prisão, que constituem os fundamentos da providência de habeas corpus, de enumeração taxativa, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do artigo 222.º do Código de Processo Penal (CPP).


Ou seja, a prisão é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no artigo 27.º da Constituição e das condições que a lei determinar.


No caso em apreço, por maior que seja o esforço interpretativo empregue, não conseguimos vislumbrar a invocada (ou qualquer outra) ilegalidade da prisão do arguido.


(…)”


*


III- Na pendência da providência foi pedido com urgência ao processo de onde emanou o pedido de habeas corpus informação sobre se o despacho do Mmº JIC de 25 de Agosto (que por sua vez pedira informação ao serviços da DGRSP) fora cumprido, em que termos e quando, bem como se houve resposta desta entidade ou informação de razões desta para a omissão de resposta.


Nesta sequência e conseguido entretanto acesso directo ao processo no Citius verificámos dos autos principais que, após o despacho que fixou a medida de coação foi oficiado à DGSRS (afecta ao conexo procº 413/21.4... como solicitado naquele despacho quanto à possibilidade de tratamento e substituição de prisão preventiva.


A Equipe da DGSRS junto do processo aludido, por sua vez, respondeu a 04.09.2023 ( refª ... )


“Na sequência da solicitação de Vª Exª cumpre-nos informar que o arguido AA, já não se encontra em acompanhamento nesta Equipa da DGRSP no âmbito do processo 413/21.4..., desde o dia 14 de junho de 2023, altura em que terminou o período de 18 meses da suspensão provisoria do processo que lhe tinha sido fixada.


Face ao exposto queira Vª Exº determinar o que tiver por conveniente”


A 06.09.2023 é proferido despacho com o teor seguinte:


“Fls. 80


Dê imediato conhecimento ao Supremo Tribunal de Justiça (Apenso de Habeas Corpus).


*


Solicite a ordenada informação aos serviços da DGRSP com competência no EP.” (negrito nosso)


A 07-09-2023 é cumprido este despacho com ofício à equipe social junto do EP, assim:


“Assunto: Pedido À equipe da DGSRS junto do EP:


Solicito a V. Exª., se digne mandar informar este Tribunal da possibilidade de o arguido cumprir um tratamento de alcoolemia em regime de internamento em instituição adequada e sobre a possibilidade da substituição da prisão preventiva imposta nestes autos, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 213º, n.º 4 do Código de Processo Penal.”


No dia seguinte (8 de Setembro) a DGSRS - EQUIPA ... PENAL 6 (EX-... EP'S) informou:


“Na sequência da vossa mensagem supra identificada e a fim de a recolha de dados se processar de modo


adequado, solicitamos que nos seja remetida cópia das peças processuais e do despacho judicial exarado pelo magistrado que determina o envio da presente solicitação.”


Até à presente data desconhece-se outra evolução relevante do processo quanto a este assunto.


IV- Foi designada audiência de julgamento nos termos do artº 223º, nº 2 do CPP com a tramitação prevista no n.º 3 do artº supra, com produção de alegações finais


do MPº e defensor(a) do arguido, tendo o MPº considerado que a providência não merece provimento.


Por sua vez a defesa (oficiosa) alegou pedindo justiça.


Cumpre então deliberar e decidir.


V- O Direito


5.1- Os dados do processo [efectuou-se também consulta directa na plataforma Citius ]


Vistos os autos, confirma-se a exactidão da narrativa processual constante da informação da Mmª Srª Juíza do processo e que já anteriormente se reproduziu.


Cumpre assinalar que a leitura que se faz do despacho que determinou ”… solicitar “(…) à DGRSP, com referência ao processo 413/21.4..., uma informação tendente a verificar a possibilidade de o arguido cumprir um tratamento de alcoolemia em regime de internamento em instituição adequada e sobre a possibilidade da substituição da prisão preventiva imposta nestes autos, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 213º, n.º 4 do Código de Processo Penal.”


de forma alguma, ao contrário do que afirma o requerente, resulta que o tribunal decretou a prisão preventiva, com a possibilidade imediata de substituição de medida de coacção,


Do texto da decisão e do contexto processual apenas retiramos que a substituição seria uma possibilidade, em função do que a DGSRS viesse (ou venha) a sugerir sobre a viabilidade de uma medida de internamento mas nunca por nunca foi decretada como necessariamente imediata a substituição.


Foi apenas criada uma expectativa como bem se depreende até, desde logo, de uma leitura literal daquele despacho e se esperaria do habitualmente decidido no âmbito destas situações processuais.


De seguida relembraremos, em considerações gerais, os pressupostos fundamentais da providência de Habeas Corpus.


Como tem sido sublinhado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus não se destina a apreciar erros, de facto ou de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (cfr., v.g, o acórdão de 04.01.2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt).


Tem sedimentado ainda a interpretação de que nela não se cuida da reanálise do caso trazido à sua apreciação mas que tão só se pretende almejar a constatação de uma ilegalidade patente, em forma de erro grosseiro ou de manifesto abuso de poder.


E, como se sublinha na anotação 4 ao artº 222.º, do CPP (in “Código de Processo Penal – Comentado”, Almedina, 2014, pág. 909), “o que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário”.


Podemos ainda afirmar ser consensual que, no âmbito da providência de habeas corpus não cabe ao Supremo Tribunal de Justiça verificar a existência ou não de fortes indícios da prática dos factos imputados ao arguido (artº. 202.º do CPP) e dos requisitos gerais de aplicação da medida de coação (artº. 204.º), ou se foram corretamente ponderados os princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade (artº. 193.º).


O controlo efetuado pelo Supremo Tribunal de Justiça, na providência de habeas corpus, tem como objeto a situação existente tal como promana da decisão que aplica a medida de coação, taxada de extinta pelo requerente por decurso de prazo e não envolvendo a valoração dos elementos de prova com base nos quais a mesma foi proferida.


O STJ pode e deve verificar se a medida de coação de prisão preventiva foi aplicada por juiz competente, e foi-o no caso; se a aplicação ocorreu em relação a facto praticado pelo requerente que em abstracto admite essa medida (de igual modo tal foi aferido), e se foram respeitados os limites temporais da privação da liberdade fixados pela lei ou em decisão judicial (vide entre outros, ac. STJ 5.9.2019 -Carlos Almeida).


A providência de habeas corpus também não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis.
Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no artº. 222.º, n.º 2, do CPP.


Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida. O habeas corpus não é pois, meio adequado para impugnar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, que terão de ser impugnadas através do meio próprio (cfr Ac. STJ de 16-03-2015)


Derradeiramente, a providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente, com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: as primeiras previstas nas quatro alíneas do n.º 1 do artº. 220.º do CPP e as segundas, nos casos extremos de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do referido preceito ( (cfr. Ac. STJ de 13-02-2008 ; idem Ac. STJ de 18-10-2007 )


O habeas corpus não conflitua com o direito ao recurso, pois que (…) visa, reagir, de modo imediato e urgente - com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual «grave, grosseiro e rapidamente verificável» integrando uma das hipóteses previstas no artº 222º nº 2, do Código de Processo Penal”.-[ cfr AC. STJ de 12-12-2007 ]


A medida de habeas corpus não se destina pois a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, na sede apropriada. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do artº. 222.º do CPP.


O referido n.º 2 constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.( Ac. STJ de 9-11-2011 )


Os fundamentos de Habeas Corpus devem ser apenas os enunciados nos artºs 220 e 222º do CPP.


Relativamente a outras vicissitudes terá que se utilizar formas de reacção distintas, destarte, de índole processual, como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso (…) é um instituto de natureza extraordinária (cfr Milheiro, Tiago Caiado in Comentário Judiciário do CPP, Tomo III, pagª 547, § 13 , 14 e 16.


Não obstante a sua inserção sistemática no CPP a providência de Habeas Corpus não é um verdadeiro modo de impugnação visto que o seu objecto se prende com a situação de objectiva ilegalidade e não com a decisão que lhe deu causa.- (cfr Ac STJ de 7.3.2019 (Júlio Pereira, procº 72/15.3GAAVZ-K.S1 5ª Sec; idem, Maia Costa, 2016, Habeas Corpus, passado, presente e futuro, Julgar, 29, pag 48).


A apreciação de habeas corpus pelo STJ coloca-se, assim, em patamar supra processual e a apreciação de indícios ou sua insuficiência para aplicar o manter medida de coação não lhe pode servir de fundamento (ibidem, Comentário citº, §26)- cfr Ac STJ 9.6.2020 (Helena Moniz) bem como assim será não ser de apurar se a prova foi ou não válida, se houve nulidades processuais (v.g. do auto de interrogatório ou outras, erro de valoração de prova, etc (cfr Ac. STJ de 31.1.2018 - M. Matos) e Ac STJ de 3.1.2018 (Raúl Borges)


Assim, enquanto ao tempo do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus era um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não houvesse qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao artº. 219.º do CPP, o instituto não deixou de ser um remédio, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (artºs. 219.º/2, 212.º, no respeitante a medidas de coação)- (citº do Ac STJ de 19.11.2020 ( A. Gama).


Além do mais, os fundamentos do «habeas corpus» são, apenas, aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de colocarem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão-(cfr Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196)


5.2- Posto isto, retomemos agora o caso em concreto.


5.2.1- A questão que o arguido coloca é a de, em seu entender, ter sido ordenado que se pedisse informação para viabilização imediata da substituição da prisão preventiva mas que tal não foi cumprido ou em demora e por isso estava em prisão ilegal.


5.2.2 - O despacho que fixou a medida de coação definiu-a nos termos que já constam em transcrição anterior feita pelo próprio requerente e por isso nos dispensamos de a repetir.


5.2.3- Vistos os desenvolvimentos e circunstâncias processuais relatados, é incontornável termos de concluir pela manifesta falta de fundamento do aliás precipitado pedido de habeas corpus, nomeadamente nos termos em que foi invocado, sendo ainda certo que nenhum outro se afigura também verificar-se nomeadamente qualquer um dos também previstos nas alíneas a) e b) do nº1 do artº222º do CPP (o JIC que decretou a medida é o competente e inexiste motivação por facto pelo qual a lei não permitisse a medida de prisão preventiva)


Dispõe o artº 215º nºs 1 e 2, que:


“1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:


a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação; (negrito nosso)


(…)


2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos, ou por crime (…)”


Não havendo razão de facto ou de direito para se considerar sequer seriedade de um erro grave na fixação da medida de coação (aliás apenas atacável por via de recurso ordinário), temos por certo que o desenvolvimento processual posterior ao despacho que determinou a prisão preventiva foi o previsível e ocorreu com normalidade. A falta de resposta ou a demora de resposta não significariam em nada a verificação, por aí, de alteração dos pressupostos da prisão preventiva mas, quando muito, se tivesse havido incorrência em negligência processual ou funcional (e não houve) motivo para eventual averiguação das razões da omissão ou do atraso.


Assim, é manifesto que o pedido de habeas corpus não tem qualquer fundamento, não houve demora nem omissão alguma e, quer o tribunal quer a DGSRS actuaram com normalidade, face às circunstâncias processuais, sendo de aceitar que esta necessite também de algum tempo para poder averiguar as condições de tratamento e de eventual substituição da medida de coação imposta, para cabalmente poder satisfazer o pretendido pelo tribunal, emitindo um parecer abalizado, objectivo e consistente, o qual poderá ser positivo, ou não.


Não houve excesso de prazos nem de cumprimento nem de respostas.


Mesmo que tivesse havido excesso de prazos (e não o houve) seria sempre uma situação processual, in casu, bem fora do âmbito do art.º 215º do CPP.


Lembramos aqui, a propósito do tema, embora num caso que se ateve à revisão trimestral oficiosa ocorrida 3 dias depois do prazo de lei, o decidido pelo Acórdão do STJ de 09-09-2021 , procº nº 208/20.2GFVNG-D.S1 (ANTÓNIO GAMA):





O desenho legislativo do habeas corpus no Código de Processo Penal posiciona-o a meio caminho entre os sistemas onde esse instituto apresenta grande campo de intervenção e aqueles onde a sua relevância é escassa. Entre as especificidades do habeas corpus no direito português está a taxatividade dos fundamentos, entendida como excluindo do domínio de aplicação do artigo 222.º/2/c, CPP, outros desvalores legais referentes a prazos que, embora dizendo respeito ao regime processual da prisão preventiva, não se traduzem no prolongamento desta para além dos períodos de duração máxima previstos no artigo 215º do CPP (assim, o seminal ac. TC 64/2005). O STJ mantém uma linha interpretativa uniforme na sua jurisprudência no sentido de que a prisão preventiva é ilegal quando se mantém para além dos prazos fixados pela lei, isto é, quando são ultrapassados os prazos fixados no art. 215.º, CPP, e apenas esses, ou [se mantém] depois de verificada causa extintiva (art. 214.º, CPP). É essa jurisprudência que se reafirma, pelo que não consubstancia prisão ilegal, a legitimar o uso da providência de habeas corpus, a situação em que o reexame e manutenção da prisão preventiva (art. 213.º/1/a, CPP) ocorre três dias após o decurso de três meses a contar do último reexame (acs. STJ 06.02. 2002, CJ; 15.12.2004, Sumários de acórdãos das seções criminais; 25.05.2016, Sumários de acórdãos das seções criminais; 11.10.2017, 23.10.2019, 14.05.2020 e 10.12.2020, disponíveis em www.dgsi.pt, 23.10.2019, Maria do Carmo Silva Dias, Comentário Judiciário ao Código de Processo Penal, Tomo III, 2020, anotação ao art. 213.º).”


Ou, também, mutatis mutandis, sobre aspectos também ligados à questão dos prazos, seu controle e excesso, num caso em que se concedera 60 dias à DGRSS para efectivação de perícia, vide o Ac do STJ de 16-12- 2021, no procº 208/20.2...-A.S1 (Orlando Gonçalves):


“ “(…)A providência de habeas corpus requerida ao abrigo do art. 222.º, n.º 2, al. b), do CPP, não é o meio processual próprio para sindicar o despacho em que o Juiz de Instrução Criminal solicita à DGRSP a realização de perícia sobre a personalidade do arguido e relatório social, no âmbito do requerimento do arguido de substituição de medida de coação, bem como o despacho de deferimento do prazo de 60 dias solicitado pela DGRSP para a concretização dessa perícia, pois não configuram ofensa flagrante e ostensiva da lei”


Assim, não vislumbramos minimamente qualquer violação de norma ou incumprimento de prazos geradores de fundamento para a presente providência de Habeas Corpus.


Nestes termos e sem necessidade de mais considerações, é de concluir que não pode ser deferida pois é manifesta a sua falta de fundamento.


VI- DECISÃO


Dado o exposto, acordam os juízes desta 5ª secção em audiência em julgar manifestamente infundada a providência de habeas corpus requerida pelo arguido AA.


Taxa de justiça em (3) três UC a cargo do requerente nos termos da tabela III do RCP.


Nos termos do art.º 223º n.º 6 do CPP dada a manifesta falta de fundamento da providência, vai condenado ainda na soma de 10 UC a acrescer àquela.


Lisboa, 14 de Setembro de 2023


[Texto Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artº. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos restantes Senhores Juízes Conselheiros infra indicados].


Os juízes Conselheiros


Agostinho Torres (relator)


António Latas - (1º adjunto)


Eduardo Sapateiro- (2º adjunto)


Helena Moniz (Presidente de Secção)