I - Não constitui situação de prisão ilegal nem fundamento para providência de habeas corpus a circunstância de a arguida se manter detida em cumprimento de pena por desligamento à ordem de outro processo onde fora condenada em pena de prisão, com trânsito em julgado, tendo sido inicialmente perdoada a pena que cumpria à ordem do processo que ordenou o desligamento e onde, se não fosse esse desligamento, seria libertada por força da aplicação do referido perdão ( da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto)
II - Tal desligamento para cumprimento de pena de prisão operou efeitos, aliás expressamente declarados por despacho, a partir do dia em que seria colocada em liberdade, dando-se ali sem efeito os mandados de libertação iniciais ocasionados pela aplicação da Lei do perdão e tendo sido tal desligamento efectivado junto do estabelecimento prisional no dia anterior àquele em que, se fosse o caso no processo desligante, seria colocada em liberdade.
III - Da decisão de desligamento e anulação dos mandados de libertação iniciais não resultou nem resultaria qualquer ofensa aos direitos da arguida, nomeadamente de recurso ou defesa perante aquele pedido de desligamento baseado em ordem judicial legítima para execução de pena aplicada em cúmulo jurídico no processo que solicitou o desligamento nem ofensa quer do princípio da legalidade quer do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.
Processo: Habeas Corpus -73/21.2GGSTB-A.S1
Relator - Agostinho Torres
Juízes adjuntos: - António Latas (1º adjunto) Orlando Gonçalves (2ª adjunto)
Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal; Juízo Local Criminal de ... - Juiz...;
Requerente: arguida (detida)AA
Fundamento alegado: Incumprimento de mandados de libertação por ocasião de aplicação de perdão da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto.
*
Acordam em audiência os juízes Conselheiros na 5ª Secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
I- No processo nº 73/21.2GGSTB a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal-Juízo Local Criminal de ... - Juiz ..., veio a arguida AA requerer providência de Habeas Corpus invocando, singelamente, as seguintes razões:
“(…) A peticionante foi notificada de uma decisão proferida no âmbito do processo nº 73/21.2GGSTB. Crê que o despacho determina a emissão de mandados de libertação para 1 de setembro de 2023, provavelmente por efeito de aplicação do perdão de decorrente do artigo 3º ou da amnistia concedida pelo artigo 4º, ambos da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto. A requerente mantém-se privada da sua liberdade, presa no estabelecimento prisional, possivelmente porque a este não chegaram nenhuns mandados de libertação. A peticionante encontra-se no estabelecimento prisional de Tires.
Termos em que, segundo o disposto nos artigos 222º e 223º do código de processo penal, deve ser ordenada a imediata libertação da peticionante.
Deve instruir o presente, pelo menos, cópia do aludido despacho, que lhe foi notificado e que terá sido certamente proferido em agosto de 2023”
II - A Mmª Juíza do processo prestou informação ao abrigo do artº 223º nº1 do CPP dizendo em suma:
“Apresenta AA requerimento em que suscita a ilegalidade da sua prisão e solicita, ao artigo do disposto pelo artigo 222º, do Código de Processo Penal, a sua imediata libertação.
Para tanto alega, em síntese, que foi determinada a emissão de mandados de libertação para 1 de setembro de 2023, em virtude da aplicação do perdão de penas decorrente do artigo 3º, da Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto, e que a Requerente se mantém presa no estabelecimento prisional.
Cumpre-me informar V. Exa. do seguinte:
Por sentença de 18 de Outubro de 2021, transitada em julgado em 28 de Fevereiro de 2022, AA foi condenada pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de um ano, sujeita a regime de prova, a delinear e acompanhar pela DGRSP.
Por despacho de 8 de Novembro de 2022, já transitado em julgado, foi determinada a revogação da suspensão da pena aplicada à condenada AA e o cumprimento da pena de oito meses de prisão que lhe foi aplicada nestes autos.
AA foi ligada aos presentes autos no dia 25 de Agosto de 2023 para cumprimento da pena de oito meses de prisão.
Por despacho de 30 de Agosto de 2023, foi reconhecido o perdão ope legis do remanescente da pena aplicada, sob a condição resolutiva de a mencionada reclusa não praticar infração dolosa no ano subsequente (artigo 8º do supra referido diploma), designadamente até 01 de Setembro 2024, e foi determinado que fossem emitidos mandados de libertação da condenada, a cumprir no dia 01 de Setembro 2023.
Por ofício datado de 30 de Agosto de 2023, foram os presentes autos informados que interessava o ligamento da reclusa ao processo 183/22.9... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz ..., no âmbito do qual foi proferida sentença cumulatória transitada em julgado em 19 de Maio 2023, que condenou AA na pena única de 2 anos e 11 meses de prisão.
Por despacho de 31 de Agosto de 2023, foi determinada a emissão dos competentes mandados de desligamento/ligamento ao processo 183/22.9..., com efeitos a partir do dia 1 de Setembro 2023, ficando sem efeito os mandados de libertação já emitidos.
III- Foi designada audiência de julgamento nos termos do artº 223º, nºs 2 e 3 do CPP com a tramitação prevista no n.º 3 do artº supra, com produção de alegações finais do MPº e defensor(a) do arguido, tendo o MPº considerado que a providência não merece provimento.
Por sua vez a defesa (oficiosamente representada em audiência por ausência do ilustre mandatário) pediu justiça.
Cumpre então deliberar e decidir.
IV- O Direito
4.1- Os dados do processo [efectuou-se consulta na plataforma Citius]
Vistos os autos, confirma-se a exactidão da narrativa processual constante da informação da Mmª Srª Juíza do processo e que já anteriormente se reproduziu.
Assim:
Por sentença de 18 de Outubro de 2021, transitada em julgado em 28 de Fevereiro de 2022, AA foi condenada pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução, pelo período de um ano, sujeita a regime de prova, a delinear e acompanhar pela DGRSP.
Por despacho de 8 de Novembro de 2022, já transitado em julgado, foi determinada a revogação da suspensão da pena aplicada à condenada AA e o cumprimento da pena de oito meses de prisão que lhe foi aplicada nestes autos.
AA foi ligada aos presentes autos no dia 25 de Agosto de 2023 para cumprimento da pena de oito meses de prisão.
Por despacho de 30 de Agosto de 2023, foi reconhecido o perdão ope legis do remanescente da pena aplicada, sob a condição resolutiva de a mencionada reclusa não praticar infração dolosa no ano subsequente (artigo 8º do supra referido diploma), designadamente até 01 de Setembro 2024, e foi determinado que fossem emitidos mandados de libertação da condenada, a cumprir no dia 01 de Setembro 2023.
Por ofício datado de 30 de Agosto de 2023, foram os presentes autos informados que interessava o ligamento da reclusa ao processo 183/22.9... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz..., no âmbito do qual foi proferida sentença cumulatória transitada em julgado em 19 de Maio 2023, que condenou AA na pena única de 2 anos e 11 meses de prisão.
Por despacho de 31 de Agosto de 2023, foi determinada a emissão dos competentes mandados de desligamento/ligamento ao processo 183/22.9..., com efeitos a partir do dia 1 de Setembro 2023, ficando sem efeito os mandados de libertação já emitidos.
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De seguida relembraremos, em considerações gerais, os pressupostos fundamentais da providência de Habeas Corpus.
Como tem sido sublinhado na jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus não se destina a apreciar erros, de facto ou de direito, nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade (cfr., v.g, o acórdão de 04.01.2017, no processo n.º 109/16.9GBMDR-B. S1, e jurisprudência nele citada, in www.dgsi.pt).
Tem sedimentado ainda a interpretação de que nela não se cuida da reanálise do caso trazido à sua apreciação mas que tão só se pretende almejar a constatação de uma ilegalidade patente, em forma de erro grosseiro ou de manifesto abuso de poder.
E, como se sublinha na anotação 4 ao artº 222.º, do CPP (in “Código de Processo Penal – Comentado”, Almedina, 2014, pág. 909), “o que importa é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro directamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correcção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário”.
O STJ pode e deve verificar se , além do mais, se foram respeitados os limites temporais da privação da liberdade fixados pela lei ou em decisão judicial (vide entre outros, ac. STJ 5.9.2019 -Carlos Almeida).
A providência de habeas corpus também não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão ou a libertação do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis.
Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no artº. 222.º, n.º 2, do CPP.
Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado a pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida. O habeas corpus não é pois, meio adequado para impugnar as decisões processuais ou arguir nulidades e irregularidades processuais, que terão de ser impugnadas através do meio próprio (cfr Ac. STJ de 16-03-2015)
Derradeiramente, a providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente, com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: as primeiras previstas nas quatro alíneas do n.º 1 do artº. 220.º do CPP e as segundas, nos casos extremos de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do referido preceito ( (cfr. Ac. STJ de 13-02-2008 ; idem Ac. STJ de 18-10-2007 )
O habeas corpus não conflitua com o direito ao recurso, pois que (…) visa, reagir, de modo imediato e urgente - com uma celeridade incompatível com a prévia exaustação dos recursos ordinários e com a sua própria tramitação contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, decorrente de abuso de poder concretizado em atentado ilegítimo à liberdade individual «grave, grosseiro e rapidamente verificável» integrando uma das hipóteses previstas no artº 222º nº 2, do Código de Processo Penal”.-[ cfr AC. STJ de 12-12-2007 ]
A medida de habeas corpus não se destina pois a formular juízos de mérito sobre a decisão judicial de privação de liberdade ou a sindicar eventuais nulidades ou irregularidades, cometidas na condução do processo. Para esses fins servem os recursos, os requerimentos e os incidentes próprios, na sede apropriada. Nesta sede cabe apenas verificar, de forma expedita, se os pressupostos de qualquer prisão constituem patologia desviante enquadrável em alguma das alíneas do n.º 2 do artº. 222.º do CPP.
O artº. 222.º, n.º 2, do CPP, constitui a norma delimitadora do âmbito de admissibilidade do procedimento em virtude de prisão ilegal, do objecto idóneo da providência, nela se contendo os pressupostos nominados e em numerus clausus, que podem fundamentar o uso da garantia em causa.( Ac. STJ de 9-11-2011 )
Os fundamentos de Habeas Corpus devem ser apenas os enunciados nos artºs 220 e 222º do CPP. Relativamente a outras vicissitudes terá de se utilizar formas de reacção distintas, destarte, de índole processual, como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso (…) é um instituto de natureza extraordinária (cfr Milheiro, Tiago Caiado in Comentário Judiciário do CPP, Tomo III, pagª 547, § 13 , 14 e 16.
Não obstante a sua inserção sistemática no CPP a providência de Habeas Corpus não é um verdadeiro modo de impugnação visto que o seu objecto se prende com a situação de objectiva ilegalidade e não com a decisão que lhe deu causa.- (cfr Ac STJ de 7.3.2019 (Júlio Pereira, procº 72/15.3GAAVZ-K.S1 5ª Sec; idem, Maia Costa, 2016, Habeas Corpus, passado, presente e futuro, Julgar, 29, pag 48).
A apreciação de habeas corpus pelo STJ coloca-se, assim, em patamar supra processual e a apreciação de indícios ou sua insuficiência para aplicar o manter, por exemplo, uma medida de coação não lhe pode servir de fundamento (ibidem, Comentário citº, §26)- cfr Ac STJ 9.6.2020 (Helena Moniz) bem como assim será não ser de apurar se a prova foi ou não válida, se houve nulidades processuais (v.g. do auto de interrogatório ou outras, erro de valoração de prova, etc (cfr Ac. STJ de 31.1.2018 (M. Matos), Ac STJ de 3.1.2018 (Raúl Borges)
Assim, enquanto ao tempo do Decreto-lei n.º 35 043, de 20 de outubro de 1945, «o habeas corpus era um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não houvesse qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade», após as alterações de 2007, com o aditamento do n.º 2 ao artº. 219.º do CPP, o instituto não deixou de ser um remédio, mas coexiste com os meios judiciais comuns, nomeadamente com o recurso (artºs. 219.º/2, 212.º, no respeitante a medidas de coação)- (citº do Ac STJ de 19.11.2020 ( A. Gama).
Além do mais, os fundamentos do «habeas corpus» são, apenas, aqueles que se encontram taxativamente fixados na lei, não podendo esse expediente ser utilizado para a sindicância de outros motivos susceptíveis de colocarem em causa a regularidade ou a legalidade da prisão-(cfr Ac. STJ de 19-05-2010, CJ (STJ), 2010, T2, pág.196)
4.2- Posto isto e relembrados os pressupostos fundamentais para petição de providência de Habeas Corpus, retomemos agora o caso em concreto.
4.2.1- A questão que a arguida coloca é a de ter sido ordenada judicialmente a sua libertação para dia 1 de Setembro corrente e a mesma não ter ocorrido, mantendo-se detida ilegalmente por ausência de cumprimento dos mandados de libertação.
4.2.2 – Decorre do processo que foi desligada do presente processo para ser colocada à ordem de outro, dando-se sem efeito os mandados de libertação iniciais ocasionados pela aplicação da Lei do perdão
Na verdade, por ofício datado de 30 de Agosto de 2023, foram os presentes autos informados que interessava o ligamento da reclusa ao processo 183/22.9... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz..., no âmbito do qual foi proferida sentença cumulatória transitada em julgado em 19 de Maio 2023, que condenou AA na pena única de 2 anos e 11 meses de prisão.
Por despacho de 31 de Agosto de 2023, foi determinada a emissão dos competentes mandados de desligamento/ligamento ao processo 183/22.9..., com efeitos a partir do dia 1 de Setembro 2023, ficando sem efeito os mandados de libertação já emitidos.
Foi então na mesma data emitido MANDADO DE DESLIGAMENTO determinando (em síntese:
“ O Mmº Juiz de Direito (…) do Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Local
Criminal de ... - Juiz ...: MANDA que a arguida AA (…) detido(a) nesse
Estabelecimento Prisional, à ordem dos autos acima indicados, SEJA DESLIGADA deste
processo e colocada à ordem do processo n.º 183/22.9... do Juízo Local Criminal de
... - Juiz ... (a cumprir no dia 01/09/2023), em virtude de a mesma ter beneficiado do
perdão previsto na Lei 38-A/2023 de 02/08.
..., 31-08-2023.”
Conforme referência: 97827434 de 31 de agosto foi enviada notificação postal ao defensor oficioso e com comunicação ao TEP e ao EP da arguida quanto ao despacho judicial de 31 de Agosto no sentido de que esta seria desligada do processo e colocada à ordem do procº 183/22.9..., com efeitos a partir do dia 1/9/2023, ficando sem efeito os mandados de libertação já emitidos.
A 3 de Setembro de 2023 entra no tribunal requerimento subscrito pelo Sr advogado Dr BB, protestando juntar procuração forense, como mandatário da arguida a pedir a libertação, dizendo:
“Tanto quanto a requerente crê, foi proferida decisão a ordenar a emissão de mandados de libertação para 1 de setembro de 2023, tendo ela sido notificado do respetivo despacho.
A requerente mantém-se privada da sua liberdade, presa no estabelecimento prisional de Tires, provavelmente porque a este não chegaram nenhuns mandados de libertação.
Requer que seja ordenada a sua imediata libertação, procedendo à respetiva comunicação ao estabelecimento prisional, através dos competentes mandados.
Por despacho de 4 de Setembro sobre esse requerimento, notificado à defesa (desta vez ao novo mandatário Dr. BB) da arguida por via postal (Referência deste documento: 97834278 - Certificação Citius em: 04-09-2023)foi determinado:
“Requerimento entrado em juízo com a referência Citius 7452162
Informe a condenada que, por ofício datado de 30 de Agosto de 2023, foram os presentes autos
informados que interessava o seu ligamento ao processo 183/22.9... do Juízo Local Criminal de ... Juiz..., tendo, por despacho datado de 31 de Agosto de 2023, sido determinada a emissão dos competentes mandados de desligamento/ligamento ao processo 183/22.9..., com efeitos a partir do dia 1 de Setembro 2023, ficando sem efeito os mandados de libertação já emitidos. Em face do anteriormente decidido, nada mais há a determinar.”
Na sexta feita dia 1 de Setembro o EP de Tires, pelas 10h41, comunicou ao Tribunal a quo (...) o desligamento, o qual havia sido determinado se cumprisse, na sequência de despacho nesse sentido exarado pela Exª Srª Directora do EP a 31 de agosto.
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Mutatis mutandis, a questão da natureza e efeitos dos mandados de desligamento de um processo e ligamento a outro, na decorrência de decisões judiciais foi já objecto de discussão em sede de recurso , entre outros , no Ac do TRC de 10-07-2014 ( no qual foi ali adjunto, ainda como Desembargador, o actual subscritor do presente acórdão como 2º adjunto Conselheiro Orlando Gonçalves) e o qual aqui transcrevemos no segmento relevante: (1)
“ Natureza do mandado de desligamento/ligamento:
No caso vertente, o recorrente encontrava-se a cumprir a medida de coação imposta nestes autos, prisão preventiva.
No processo 119/11.2PBTMR solicitou-se que o arguido fosse desligado destes autos e passasse a cumprir pena à ordem daquele.
O mandado é só um, de desligamento e ligamento, pelo que é o tribunal competente para o desligamento que terá de emitir esse mandado. A ordem de colocação do arguido ligado ao processo onde vai cumprir pena emana desse mesmo processo, sendo que neste (nosso) processo apenas se satisfaz o solicitado.
E tem de ser assim porque não pode haver hiato ou interregno entre o desligamento e o ligamento à ordem de outro. Tem de haver simultaneidade.
Assim que, contrariamente ao indicado pelo recorrente, não foi o juiz deste processo que determinou, ordenou o cumprimento de pena à ordem do outro. A diligência que se fez e foi ordenada neste processo, foi a de se dar cumprimento ao ordenado e pedido naquele outro processo e, porque o art. 478 do CPP determina que os condenados só dão entrada no EP por mandado e é assim, para evitar a entrada de pessoas que tenham sido ilegalmente presas.
Dão entrada no EP ou se mantêm presas, na dependência de mandado. Mesmo nos casos em que o arguido terminando o cumprimento de uma pena de prisão e tendo outra pena para cumprir, tem de haver o desligamento e ligamento ao novo processo e a pedido deste processo.
É o juiz do processo à ordem do qual se encontra preso, quem tem competência para desligar desse e colocar à ordem de outro que assim o haja solicitado.
Logo, o Juiz que ordenou o desligamento e ligamento era o competente para satisfazer o solicitado por outro tribunal, não lhe competindo apurar e saber da legitimidade de tal pedido.
Se o pedido era ilegal ou ilegítimo, a esse pedido deveria ter reagido o ora recorrente.
Neste processo, o arguido encontrava-se preso preventivamente, tendo em conta a medida de coação aplicada, enquanto naquele outro que solicitou o desligamento/ligamento havia sido condenado com transito em julgado.
Transitando em julgado a decisão penal condenatória tem força executiva, correndo a execução nos próprios autos sob promoção do Mº Pº. O que determina ou condiciona a execução, da pena de prisão, é o trânsito em julgado da decisão condenatória
E, havendo lugar a privação da liberdade resultante da aplicação de medida de coação e, privação da liberdade resultante da execução da pena, deve dar-se prevalência a esta. Foi o que se fez no caso em análise, tão-somente.
O que resulta em benefício do arguido. Basta supor a ocorrência de absolvição no processo onde a detenção corresponde a medida de coação aplicada.
E esse mandado, desligamento/ligamento apenas respeita à execução da pena aplicada e em nada afeta direitos do condenado ou lhe impossibilita ou diminui garantias de defesa.
Funciona nos mesmos termos que funcionaria o mandado para iniciar o cumprimento de um apena de prisão, de condenado que estivesse em liberdade.
È despacho de mero expediente?
Ou verifica-se a irregularidade de falta de notificação?
O art. 400, n.° 1, al. a) do Código de Processo Penal, refere não ser admissível o recurso de despachos de mero expediente.
O Código de Processo Penal, não define o que é despacho de mero expediente.
Para integrarmos esse conceito de "mero expediente", teremos de nos socorrer do que a tal propósito é referido no Código de Processo Civil, atento o disposto no art. 4, do Código de Processo Penal.
Ora, nos termos do artigo 152, n° 4, primeira parte, do Código de Processo Civil, despachos de mero expediente são aqueles que se destinam a prover ao andamento regular do processo, sem interferir no conflito de interesses entre as partes.
Como ensina Castro Mendes, in Recursos, 1980-40, os despachos de mero expediente “são despachos de carácter meramente interno, que dizem respeito às relações hierárquicas entre o juiz e a secretaria (p. ex., o despacho que ordena a conclusão do processo ao juiz); ou em qualquer caso são despachos que dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes (ex: o despacho que marca dia para julgamento). Estes despachos são, em princípio irrecorríveis, só o sendo no caso de desarmonia com a lei”.
Na definição de Alberto dos Reis (C.P.C. Anotado, vol. V, 240), despachos de mero expediente são "aqueles que se destinam a regular, de harmonia com a lei, os termos do processo, e que assim não são suscetíveis de ofender direitos processuais das partes ou de terceiros". São os que "dizem respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres das partes".
O despacho de desligamento/ligamento não ofende qualquer direito do arguido.
O arguido condenado em pena de prisão, com decisão transitada em julgado, tem de cumprir a pena (cumprir a decisão), sendo que para se dar inicio ao cumprimento, tem de haver, como se referiu um mandado a fim de o condenado poder dar entrada no EP.
Assim, que o despacho que ordena a emissão de mandado é despacho que diz respeito apenas à tramitação do processo, sem tocarem nos direitos ou deveres do condenado.
E o que deve ser comunicado ao arguido é o momento de execução desse despacho através do cumprimento do respetivo mandado, para o arguido saber à ordem de qual processo se encontra preso, e desde quando para o caso de se proceder à liquidação da pena.
Tal despacho apenas dá início à execução da condenação já transitada e, a condenação é que interfere com os direitos do arguido nomeadamente o direito à liberdade e não, a execução da condenação transitada.
No caso concreto, o condenado (com transito em julgado) não pode interferir ou escolher o momento ou modo de execução da prisão, sendo que a mesma é exercida pelo poder público. Terá de cumprir a pena.
Assim que entendamos que o despacho em causa é irrecorrível, atento o disposto no art. 400 nº 1 al. a) do CPP, por se tratar de despacho de mero expediente.
Assim o entendeu também o Ac. da Rel. de Évora de 10-01-2006, proferido no processo nº 2723/05-1, ao referir, “Não admissível recurso do despacho que se limitou a dar seguimento à passagem de mandados de desligamento de um arguido preso, afim de ser colocado à ordem de outro tribunal, a pedido deste, por tal despacho ser de mero expediente”.
O despacho proferido nestes autos, apenas, deu seguimento à passagem dos aludidos mandados de desligamento e ligamento ao processo nº 119/11.2PBTMR do 3º Juízo do tribunal de Tomar.
Assim que entendamos ser de manter o decidido em “decisão sumária” pelo relator.
Sem que da decisão resulte qualquer ofensa aos direitos do arguido, nomeadamente de recurso ou defesa ou, ofensa do princípio da legalidade e acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.
(…)”
Ora, sem necessidade de muito mais considerandos, face à nossa concordância com a argumentação transcrita, independentemente de se considerar o real sentido e a natureza dos mandados, não propriamente no centro da discussão agora do caso concreto, também pode aqui concluir-se, indo ao aspecto nuclear da matéria, que da decisão de desligamento e anulação dos mandados de libertação não resulta qualquer ofensa aos direitos da arguida, nomeadamente de recurso ou defesa perante aquele pedido de desligamento baseado em ordem judicial legítima para execução de pena aplicada em cúmulo jurídico noutro processo ou ofensa quer do princípio da legalidade quer do acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.
A ideia a reter no caso é apenas a de que, com as devidas adaptações em concreto (trata-se agora do desligar de um processo em que se cumpria prisão entretanto perdoada, dando-se sem efeito a libertação, porquanto outro processo por decisão também transitada, pediu que a arguido fosse ligada a ele para cumprimento de pena aplicada), a situação da detida não foi minimamente afectada nos seus direitos fundamentais. Se não concordava com o desligamento certamente poderia ou teria podido eventualmente impugnar a decisão que lhe dera causa.
Existe, como se sabe, em regra, um hiato temporal entre o desligamento e a colocação à ordem de outro processo e as respectivas comunicações entre EP e tribunal, por razões normalmente procedimentais e/ou de comunicação entre processos e estabelecimentos prisionais que pode demorar mais ou menos tempo a concluir-se, consoante as circunstâncias de cada processo.
De todo o modo, o desligamento (como o tribunal a quo desligante teve o cuidado de explicitar) seria sempre reportado à data de 1 de Setembro garantindo que a nova pena fosse contada incluindo tal data e a partir dela. A expectativa da arguida em ser libertada não lhe gerava um direito especial a ser efectivada a libertação, quando muito e apenas a ser informada ( o que foi ordenado) adequadamente sobre a sua situação (de não libertação naquela data) sendo que certamente não poderia ignorar que teria de cumprir a pena à ordem do processo que pediu o seu desligamento dos autos originários da providência de habeas corpus.
Por isso, ao não ser colocada em liberdade no dia 1 de Setembro, não seria difícil averiguar de imediato junto do EP (que a 31 de Agosto já sabia do pedido de desligamento a partir de 1 de Setembro, data em que foi efectivamente desligada) ou do processo, o que se passava e verificar-se a razão da não libertação, em vez de se socorrer com ligeireza da presente providência.
4.2.3 - Vistos os desenvolvimentos e circunstâncias processuais relatados, é incontornável termos de concluir pela manifesta falta de fundamento do pedido de habeas corpus invocado, sendo ainda certo que nenhum outro se afigura também verificar-se, nomeadamente qualquer um dos também previstos nas alíneas a) e b) do nº1 do artº222º do CPP ( o tribunal que decretou o desligamento é o competente e inexiste motivação por facto pelo qual a lei não permitisse a continuação da detenção)
Nestes termos e sem necessidade de mais considerações, é de concluir pela improcedência manifesta do pedido de habeas corpus.
V- DECISÃO
Dado o exposto, acordam os juízes desta 5ª secção em audiência em considerar manifestamente infundada a providência de habeas corpus requerida pela arguida.
Taxa de justiça em 3 (três) UC a cargo do requerente nos termos da tabela III do RCP.
Nos termos do art.º 223º n.º 6 do CPP dada a manifesta falta de fundamento da providência, vai condenado ainda na soma de 9 UC a acrescer àquela.
Lisboa, 14 de Setembro de 2023
[Texto Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artº. 94.º, n.º 2 do CPP), sendo assinado pelo próprio e pelos restantes Senhores Juízes Conselheiros infra indicados].
Os juízes Conselheiros
Agostinho Torres (relator)
António Latas (1º adjunto)
Orlando Gonçalves (2ª adjunto)
Helena Moniz (Presidente de Secção)
_________________________________________________
1. Publicado no site da DGSI; link Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra (dgsi.pt)↩︎