INSOLVÊNCIA
CASO JULGADO FORMAL
REJEIÇÃO DO RECURSO
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO (UE) N.º 2015/848
DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO
DE 20/05/2015
Sumário


1- A decisão judicial, transitada em julgado, que julga procedente a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada na petição inicial, é uma decisão estritamente processual, pelo que o caso julgado que cobre essa decisão é o formal, não obstando a que seja proposta nova ação, junto dos tribunais portuguese, tendo por objeto a mesma relação jurídica.
2- A exceção dilatória de incompetência internacional carece de ser aferida de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) na petição inicial e o momento relevante para determinar o regime jurídico à luz do qual essa exceção tem de ser apreciada é o da propositura da ação.
3- Ao processo de insolvência instaurado em 2023, em que os requerentes se apresentam à insolvência e que, em função da relação jurídica material controvertida por eles delineada na petição inicial, esta apresenta pontos de conexão com Portugal (os requerentes e os seus credores têm nacionalidade portuguesa, as obrigações vencidas que alegam emergem de negócios jurídicos regulados pela lei portuguesa, e o único património dos requerentes é constituído por um prédio situado em Portugal e por direitos a heranças indivisas abertas em território nacional) e com França (país onde os requerentes residem há cerca de dez anos e onde trabalham por conta de outrem), é aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/05/2015.
4- O referido Regulamento é aplicável, com exceção dos processos de insolvência previstos no n.º 2 do seu art. 1º, a todos os processos nacionais que constam do elenco taxativo enunciado no seu Anexo A, independentemente de estarem preenchidas as condições de aplicabilidade do Regulamento enunciadas na primeira parte do n.º 1 do seu art. 1º.
5- As regras de competência internacional previstas no Regulamento são aplicáveis independentemente dos requisitos impostos pela legislação adjetiva e/ou substantivo interna do Estado-Membro declarado internacionalmente competente (de acordo com as normas do Regulamento) para que os requerentes se possam socorrer dos processos nacionais previstos no Anexo A.
6- O Regulamente prevê a possibilidade de serem abertos: o «processo principal de insolvência», em que o processo tem vocação universal, abarcando todo o património do devedor, e «processos secundários (territoriais) de insolvência», estando a abertura destes últimos dependente do requerente ter «estabelecimento» num Estado-Membro distinto do Estado-Membro em que tem instalado o centro dos seus interesses principais, em que a competência internacional para conhecer do processo de insolvência secundário cabe à jurisdição do Estado-Membro em que se situa o «estabelecimento» e em que esse processo (secundário) apenas abarca os bens do devedor situados nesse Estado-Membro.
7- Como único fator relevante para determinação de competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros para abrirem o «processo principal de insolvência», o Regulamento elege o Estado-Membro em que se situa o centro de interesses principais do devedor e considera que este é “o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros”, presumindo, até prova em contrário, no caso de devedor pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional, que esse centro dos interesses principais do devedor é o local onde exerce a sua atividade principal, salvo se essa atividade principal tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência; nos restantes casos, presume-se, até prova em contrario, que o centro dos interesses principais do devedor pessoa singular é o lugar de residência habitual deste, salvo se essa residência habitual tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.
8- Daí que os tribunais portugueses sejam internacionalmente incompetentes para a abertura de um processo principal de insolvência instaurado em 2023, em que os devedores se apresentam à insolvência (apesar de se verificarem os elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa mencionados na conclusão 3, os quais não relevam como elementos de conexão relevantes para efeitos do Regulamento para determinar a competência internacional entre as jurisdições dos Estados-Membros), quando estes residem em França desde 2013, país onde exercem a sua atividade profissional por conta de outrem, sendo, por isso, em França que se situa o seu centro de interesses principais, o que determina que sejam os tribunais franceses os internacionalmente competente para determinarem a abertura do «processo principal de insolvência».
9- E os tribunais portugueses são também internacionalmente incompetentes para determinarem a abertura de um «processo secundário de insolvência», apesar do único património dos devedores se situar em Portugal (um prédio) e ser regulado pela ordem jurídica interna portuguesa (caso das heranças indivisas), dado que esse património não constitui “estabelecimento” para efeitos do Regulamento.
10- Na medida em que o regime jurídico previsto no n.º 2, do art. 294º do CIRE contraria o regime jurídico enunciado no Regulamento, aquela norma não é aplicável às insolvências transfronteiriças às quais seja aplicável o Regulamento.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

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I- RELATÓRIO

AA e mulher, BB, residentes em ..., Residence ..., França, instauraram, em 09 de maio de 2021, a presente ação especial de insolvência, pedindo que fossem declarados insolventes.
Para tanto alegaram, em síntese, serem devedores dos elencos das obrigações vencidas que discriminam, cujo valor ascende à quantia global de cerca de 206.000,00 euros, as quais foram constituídas no exercício da sua atividade comercial de exploração de um estabelecimento comercial sito em ....
Os requerentes trabalham atualmente em França por conta de outrem, onde auferem o salário mínimo nacional francês, no montante de cerca de 1.400,00 euros brutos mensais cada.
Detêm património em Portugal e são herdeiros das heranças abertas por óbito de CC e DD, cujo património é composto, entre o mais, por prédios rústicos e urbanos sitos no concelho ....
O património dos requerentes sito em Portugal tem um valor de mercado não superior a 8.000,00 euros, sendo insuficiente, inclusive em conjunto com os rendimentos mensais que auferem, para satisfazer todas as suas obrigações vencidas.
Por despacho de 12/05/2023 a 1ª Instância determinou que, nos termos do disposto no art. 3º, n.º 3 do CPC, se observasse o contraditório em relação aos requerentes perante a circunstância de, situando-se o domicílio destes em França, o presente processo de insolvência carecer de correr termos como processo particular de insolvência, com as especialidades consagradas no art. 295º do CIRE.
Entretanto, com fundamento de que tomara conhecimento da instauração do presente processo de insolvência, por requerimento entrado em juízo em 25/05/2023, invocando a sua qualidade de credora em relação aos requerentes, A...– Sociedade Unipessoal, Lda., com sede na Rua ..., União de Freguesias ..., ... e ..., ..., suscitou, além do mais, a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos requerentes na petição inicial, alegando, em suma que, no ano de 2019, os requerentes instauraram ação especial de insolvência em que se apresentaram à insolvência, a qual correu termos sob o n.º 1269/19...., do Juízo de Comércio ..., Juiz ..., onde, por despacho transitado em julgado foi decretada a absolvição da instância dos aí devedores dos requerentes em resultado da procedência da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida aí delineada pelos aí e aqui requerentes.
Mais alegou que a A... instaurou ação contra os aqui requerentes, que correu termos com o n.º 1665/23...., pelo Juízo Central Cível ..., Juiz ..., onde pediu que fosse declarada a nulidade do contrato de compra e venda e mútuo celebrado pelos aqui e ali requerentes em 17/11/2016, tendo por objeto o prédio urbano descrito na matriz sob o art. ...42º da União de Freguesias ..., ... e ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...06/..., com fundamento em venda de coisa alheia e onde, por decisão de 11/04/2012, esse contrato foi declarado nulo com fundamento em simulação absoluta.
Alegou que os requerentes se apresentam agora novamente à insolvência com o único propósito de prejudicarem a A..., na medida em que esta é beneficiaria da penhora, já efetuada, sobre o identificado prédio para satisfação dos créditos que detém sobre os mesmos e, bem assim que, conforme resulta da petição inicial, os requerentes trabalham atualmente em França, para onde, desde o ano de 2013, transferiram definitivamente a sua residência, atividade e vida, e onde permanecem desde então.
Os requerentes trabalham por conta própria, onde auferem o salário mínimo francês, no valor mensal de 1.645,58 euros brutos (e não o alegado de 1.400,00 euros mensais).
São titulares do património que identificam na petição inicial e do prédio urbano acima identificado, em virtude da declaração, por simulação absoluta, da venda que celebraram em 11/04/2012.
Antes de transferirem a sua residência para França, os requerentes residiam no Lugar ..., ..., onde exerceram a sua atividade profissional.
Conclui que o principal centro de interesses dos requerentes localiza-se atualmente, e desde 2013, em França, pelo que são os tribunais franceses os internacionalmente competentes para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos requerentes na petição inicial.
Observado o contraditório, os requerentes AA e BB responderam à exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses suscitada pela A..., concluindo pela respetiva improcedência, confirmando terem, no ano de 2019, instaurado ação junto dos tribunais portugueses em que se apresentaram à insolvência, não tendo esse pedido sido apreciado em consequência da procedência da exceção de incompetência internacional do tribunal.
Acontece que, desde então não foi, e não é, possível aos requerentes abrirem, em França, junto dos tribunais franceses, processo de insolvência, dado que, de acordo com o regime jurídico francês apenas podem ser instaurados em França processos de insolvência, de recuperação judicial ou de liquidação judicial contra pessoas que exerçam uma atividade comercial ou artesanal, agricultor, pessoa singular que exerça uma atividade profissional independente, incluindo profissão liberal sujeita a um estatuto legal ou regulamentar ou cujo titular seja protegido, bem como contra qualquer pessoa coletiva de direito privado, mas não contra trabalhadores por conta de outrem, como é o caso dos requerentes.
Daí que, não tendo os mesmos se apresentado à insolvência em França, em cujo território se situa o centro dos seus interesses principais, em virtude das condições estabelecidas na lei francesa, o seu direito de se apresentarem à insolvência não lhes possa ser coartado, impondo-se concluir pela competência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem do presente processo de insolvência, o qual apenas tem por objeto os bens situados no território português e tem por finalidade a liquidação desse património, presente e futuro, sito em Portugal e, bem assim, a repartição do produto da liquidação desse património por todos os credores dos requerentes.
Por decisão proferida em 16/06/2021, a 1ª Instância conheceu da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos requerentes na petição inicial, julgando-a procedente e, em consequência, absolveu os devedores daqueles da instância, constando essa decisão da seguinte parte dispositiva:
“Deste modo este Tribunal novamente declara-se incompetente internacionalmente para conhecer da insolvência dos devedores requerentes.
Custas pelos requerentes”.     

Inconformados com o decidido, os requerentes AA e BB interpuseram o presente recurso de apelação em que formulam as conclusões que se seguem:~

i.- O caso julgado formal não interessa, de todo, para o efeito da exceção do caso julgado.
ii.- O caso julgado formal, verificado na anterior ação, não interessa para o efeito da exceção do caso julgado, e mostra-se – deve mostrar-se – de todo indiferente, nesta ação, para apreciação da competência do internacional dos tribunais portugueses.
iii.- O Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29 de maio, convocado pelo Tribunal «a quo» para resolver a questão, foi revogado pelo Regulamento (UE) n.º 2015/848 do PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO relativo aos processos de insolvência (cfr., artigos 84.º e 91.º deste diploma), que entrou em vigor em 26 de junho de 2017.
iv.- O Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29 de maio, e o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO relativo aos processos de insolvência (doravante, REGULAMENTO), são inaplicáveis à presente causa.
v. Afastada a aplicabilidade do REGULAMENTO, é apodítico que o critério do «centro dos interesses principais», ao qual lançou mão o Tribunal «a quo», não deve ser tido em conta para efeito de apreciação da competência internacional dos tribunais português, devendo antes ser considerado o contido no artigo 62.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, por força do disposto no artigo 294.º, n.º 2, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas.
vi.- Ora, como invocado na sua petição, não é possível aos Recorrentes abrir um processo de insolvência em França, posto que a jurisdição francesa não reconhece, em abstrato, o direito carecido de tutela, na medida em que apenas permite a aplicação do regime de insolvência às pessoas que exerçam uma atividade comercial ou artesanal, qualquer agricultor, qualquer outra pessoa singular que exerça uma atividade profissional independente, incluindo uma profissão liberal sujeita a um estatuto legal ou regulamentar, ou cujo título seja protegido, bem como qualquer pessoa coletiva de direito privado, podem ser objeto de um processo de salvaguarda (procédure de sauvegarde), de recuperação judicial (procédure de redressement judiciaire) ou de liquidação judicial (procédure de liquidation judiciaire) – cfr., documento junto com o ato com a referência eletrónica ...45.
vi.- A impossibilidade de aplicação, em França, do regime de insolvência a «não comerciantes», como o caso dos Recorrentes (estes ficam apenas sujeitos ao regime das execuções individuais), consiste num sistema desde há muito praticado naquele país, sendo amplamente conhecido e notório.
vii.- Por outro lado, e de acordo com elementos relevantes a considerar, os quais são, reforce-se, incontroversos, dúvidas não há que entre o objeto do presente litígio e a ordem jurídica portuguesa existem elementos ponderosos de conexão, pessoais e reais, destacando-se:
a) a circunstância de a lei pessoal comum aos Requerentes e aos seus credores ser a Portuguesa;
b) a circunstância de as obrigações vencidas a que estão adstritos os Requerentes terem por fonte negócios jurídicos regulados pela lei portuguesa;
c) a circunstância de o património imobiliário na titularidade dos Requerentes estar situado em Portugal;
d) a circunstância de o processo de liquidação do património dos Requerentes sito em Portugal apenas poder ser prosseguido por meio de processo (de insolvência, particular de insolvência ou executivo) aberto perante os Tribunais Portugueses;
e) a circunstância de apenas através de um processo de insolvência aberto em Portugal se assegurar o princípio par condicio creditorum.
viii.- À luz dos factos invocados pelos Requerentes, os tribunais portugueses são, por força do disposto nos artigos 62.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Civil, por força do disposto no artigo 294.º, n.º 2, do Código da Insolvência e Recuperação de Empresa, internacionalmente competentes para a presente causa, pelo que, ao decidir como decidiu, o tribunal «a quo» violou, entre outros, aqueles preceitos legais, sendo a decisão, por isso, ilegal.
TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, a decisão proferida ser substituída por outra que declare os tribunais portugueses internacionalmente competentes para conhecer a presente causa.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso interposto como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, o que mereceu a adesão do aqui relator.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação dos apelantes, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam do conhecimento oficioso do tribunal - cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do CPC.
No seguimento desta orientação, a questão a apreciar pelo tribunal ad quem é uma única e consiste em saber se, no despacho recorrido, ao julgar procedente a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, por infração das regras de competência internacional, para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelantes na petição inicial e ao ter, consequentemente, absolvido os devedores dos apelantes da instância, a 1ª Instância incorreu em erro de direito e se, por isso, se impõe revogar essa decisão e julgar essa exceção improcedente e ordenar o prosseguimento dos autos em que os apelantes se apresentam à insolvência.
Note-se que, apesar dos recorrentes, nas alegações de recurso, pretenderem que o tribunal a quo, na decisão recorrida, conheceu da exceção dilatória do caso julgado, julgando-a procedente e de imputarem a essa pretensa decisão erro de direito, lida e relida a decisão sob sindicância verifica-se que semelhante alegação não tem correspondência com o teor desta, na qual, salvo melhor entendimento, o tribunal a quo se limitou a conhecer e a julgar procedente a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelantes na petição inicial, pelo que se impõe rejeitar o recurso de apelação interposto pelos apelantes, quanto ao erro de direito que imputam à decisão recorrida, na parte em que a 1ª Instância terá alegadamente conhecido da exceção dilatória do caso julgado, julgando-a pretensamente procedente, por falta de objeto do recurso interposto nessa parte.
É certo que, na decisão sob sindicância, lêem-se as seguintes passagens: “(…) chegados aqui cumpre-nos começar por dizer, que tendo sido requerida insolvência, nos mesmos pressupostos e com os mesmos factos que já anteriormente haviam sido elencados, outra decisão, diferente da já proferida, não seria de esperar. Realça-se que nesta petição não constava tal indicação e se não fora o credor a alertar o Tribunal, que neste caso era o mesmo Tribunal e por ironia da distribuição, o mesmo juiz, poderia ser tomada decisão diferente, fazendo tábua rasa do que entendemos ser já caso julgado” e, mais à frente que: “(…) os mesmos elementos, factos e pedidos, já formulados em 2019, pelo que este Tribunal e mesmo juiz não pode agora mudar a decisão, que sobre tal, já oportunamente proferiu” (destacado nosso), e termina-se a decisão recorrida com a seguinte parte dispositiva: “Deste modo este Tribunal novamente declara-se incompetente internacionalmente para conhecer da insolvência dos devedores requerentes”, passagens essas que, por um lado, evidenciam que, na perspetiva (antecipe-se desde já, errónea) da 1ª Instância, entre a presente ação em que os apelantes se apresentam à insolvência e a que correu termos em 2019, sob o n.º 1269/19...., do Juízo de Comércio ..., Juiz ..., em que, por decisão transitada em julgado, foi decretada a absolvição da instância dos aí devedores dos aí e aqui requerentes (apelantes) em resultado da procedência da exceção dilatória de incompetência  internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida aí delineada pelos aí e aqui requerentes na petição inicial, intercede a exceção dilatória do caso julgado, em virtude da presente ação ser repetição daquela outra e, por outro lado, confere foros de plausibilidade à alegação dos apelantes quando pretendem que, na decisão em apreciação, a 1ª Instância conheceu efetivamente da exceção dilatória do caso julgado, julgando-a procedente e que foi com base na procedência dessa exceção que absolveu, ou também absolveu, os devedores dos apelantes da instância nos presentes autos em que estes se apresentam novamente à insolvência.
Acontece que lida a decisão recorrida verifica-se que semelhante alegação não tem qualquer correspondência com o restante teor dessa decisão, na qual, apesar de se exarar as passagens que acima transcrevemos, a 1ª Instância não conheceu da identificada exceção dilatória do caso julgado, mas limitou-se conclusivamente (e erroneamente) a afirmar que, na sua perspetiva, verificar-se-ia, nestes autos, essa exceção dilatória, por via do trânsito em julgado da decisão proferida no âmbito daquela anterior  ação em que os devedores dos apelantes foram absolvidos da instância, com fundamento na procedência da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida nela delineada na petição inicial, passando, contudo, na decisão em apreço, logo a conhecer-se expressamente da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelantes na petição inicial, por infração das regras de competência internacional dos tribunais portugueses para dela conhecerem (o que se mostra incompatível com a procedência da exceção do caso julgado), concluindo pela procedência desta exceção, e foi unicamente com fundamento na sua procedência (e não também, na do caso julgado) que se absolveu os devedores dos apelantes da instância.
 Note-se que, caso o tribunal tivesse efetivamente conhecido da exceção dilatória do caso julgado, julgando-a procedente, e tivesse sido com fundamento na procedência dela que tivesse absolvido os devedores dos apelantes da presente instância, o que, salvo o devido respeito por entendimento contrário não é manifestamente o caso, tal como sustentam os apelantes acontecer, essa decisão padeceria de efetivo erro de direito.
Com efeito, nos termos do disposto no art. 628º do CPC, as decisões judiciais transitam em julgado logo que não sejam suscetíveis de recurso ordinário ou de reclamação por nulidades ou obscuridade ou por reforma quanto a custas e multa, de modo que o nelas decidido torna-se imodificável, não podendo mais ser submetido à apreciação e à decisão do tribunal, tornando-se o decidido vinculativo.
Acontece que a referida imodificabilidade e incontestabilidade das decisões judiciais transitadas em julgado, do ponto de vista da sua eficácia jurídica, pode projetar-se apenas intra ou intra e extraprocessualmente, de modo que se impõe distinguir entre caso julgado formal e caso julgado material.
O caso julgado formal, externo ou de simples preclusão significa que a questão decidida, por decisão judicial transitada em julgado, não pode ser novamente submetida à apreciação e à decisão do tribunal dentro do mesmo processo em que a decisão foi proferida, adquirindo o nela decidido força vinculativa e de incontestabilidade apenas dentro do processo em que a decisão, transitada em julgado, foi proferida, mas essa mesma questão pode ser novamente suscitada pelas mesmas partes (do ponto de vista da sua qualidade jurídica), perante o mesmo ou outro tribunal num outro processo, não estando este impedido de decidir essa mesma questão em moldes distintos daqueles em que a decidiu na anterior ação, por decisão transitada em julgado.
O caso julgado formal obsta, portanto, que se suscite novamente uma questão anteriormente já decidida, por decisão judicial transitada em julgado dentro do mesmo processo em que essa questão foi apreciada e decidida, onde o decidido torna-se imodificável e adquire força vinculativa dentro desse processo, mas não obsta que essa mesma questão seja novamente suscitada, apreciada e decidida diversamente numa posterior ação pelo mesmo ou por outro tribunal.
O caso julgado formal, nos termos do art. 620º, n.º 1 do CPC, cobre apenas as decisões judiciais que recaiam unicamente sobre a relação processual, ou seja, as decisões que não versam sobre o fundo da causa, não decidindo de mérito, ou seja, que não disponham sobre os concretos bens discutidos no processo em que a decisão transitada em julgado foi proferida, não definindo, portanto, a relação ou situação jurídica deduzida em juízo pelas partes, não estatuindo sobre a pretensão do autor.
As sentenças, acórdãos e despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual, transitados em julgado, operam, assim, apenas caso julgado formal, adquirindo força de obrigatoriedade e de incontestabilidade exclusivamente dentro do processo em que foram proferidos, obstando que a mesma questão processual neles decidida, por decisão transitada em julgado, possa  ser novamente ser suscitada pelas partes ou conhecida oficiosamente pelo tribunal, mas essa obrigatoriedade e incontestabilidade do decidido não se projeta para fora do processo, nada obstando que essa mesma questão processual seja novamente suscitada e diversamente decidida em novo processo que corra termos entre as mesmas partes (do ponto de vista da sua qualidade jurídica) pelo mesmo ou por outro tribunal.
Conforme pondera Manuel de Andrade, no caso julgado formal intervêm exclusivamente razões de disciplina ou de ordem no desenvolvimento processual. Na medida em que as decisões judiciais transitadas em julgado que versam exclusivamente  sobre a relação processual não estatuem “sobre os bens litigados, pensou-se não haver inconveniente de maior na possibilidade de serem desrespeitadas noutro processo”[1], pelo que, o caso julgado que cobre as decisões que versam exclusivamente sobre a relação processual seja o formal.
Por sua vez, as decisões judiciais que decidam do mérito da causa e que, portanto, dirimam o concreto conflito submetido pelas partes à apreciação e decisão do tribunal, uma vez transitadas em julgado, ficam cobertas por caso julgado material, adquirindo força vinculativa intra e extraprocessualmente, tornando-se imodificáveis e incontestáveis dentro do processo em que foram proferidas e fora dele, nos precisos limites fixados nos arts. 580º e 581º, ou seja, “nos precisos limites e termos em que julga” (arts. 619º, n.º 1 e 621º do CPC), de modo que a questão de fundo (mérito) nelas decididas não pode ser novamente suscitada pelas partes, nem conhecida oficiosamente pelos tribunais, dentro e fora do processo em que a decisão de mérito, transitada em julgado, foi proferida, quer essa questão  seja suscitada na posterior ação a título principal (repetição da causa em que foi proferida a decisão de mérito primeiramente transitada em julgado), quer a título prejudicial (em que essa questão definitivamente decidida, por decisão de mérito transitada em julgado, é novamente suscitada a título incidental numa posterior ação que corra termos entre as mesmas partes do ponto de vista da sua qualidade jurídica, mas em pretendam fazer valer um outro efeito dessa mesma relação jurídica material controvertida sobre que incidiu a ação primeiramente instaurada e definitivamente decidida, por decisão de mérito transitada em julgado).
A decisão de mérito transitada em julgado impõe-se de modo absoluto a todos os tribunais, às partes e, inclusivamente, dentro de certos pressupostos, aos terceiros, pelo que sempre que essa questão seja novamente suscitada em posterior ação, a título principal ou incidental, constitui dever oficioso do tribunal suscitar a exceção dilatória do caso julgado material e abster-se de reapreciar e decidir essa mesma questão de mérito já definitivamente decidida, absolvendo os réus da posterior ação da instância (arts. 576º, 577º, al. i), 578º, 580º, n.ºs 1 e 2, 581º, 619º e 621º do CPC), e se por qualquer motivo a exceção do caso julgado material não for suscitada pelas partes ou oficiosamente pelo tribunal, e este último  vier a reapreciar novamente essa questão e a proferir nova decisão de mérito sobre a mesma que seja contraditória com a decisão de mérito proferida na anterior ação, transitada em julgado, essa segunda decisão, ainda que transite em julgado, não produz efeitos jurídicos, uma vez que se impõe cumprir a decisão de mérito primeiramente transitada em julgado (art. 625º do CPC)[2].  
Assentes nas premissas que se acabam de enunciar, a decisão, transitada em julgado, proferida no âmbito dos autos de ação de insolvência instaurada pelos apelantes em 2019, em que estes se apresentaram à insolvência, e que correu termos sob o n.º 1269/19...., do Juízo de Comércio ..., Juiz ..., que absolveu os devedores dos apelantes (aí requerentes) da instância, por via da procedência da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem da relação jurídica material controvertida por eles delineada  na petição inicial, recaiu unicamente sobre a  relação processual sobre que versa essa concreta ação, na medida em que nela o tribunal se limitou a apreciar e a decidir sobre a competência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem (ou não) dessa relação jurídica material delineada na petição inicial face à circunstância desta apresentar pontos de conexão com as ordens jurídicas portuguesa e francesa.
Nessa decisão, em que se julgou procedente a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, por infração das regras de competência internacional, o tribunal limitou-se a apreciar se estavam ou não preenchidos um dos pressuposto processuais, isto é, os elementos processuais “de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão (de mérito) sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida” e que, por isso, consubstanciam as condições processuais “mínimas consideradas indispensáveis para, à partida, garantir uma decisão idónea e uma decisão útil da causa” e sem cuja verificação o  juiz não pode entrar no conhecimento do mérito da causa, pronunciando-se sobre a procedência ou improcedência do pedido[3], impondo-se que se abstenha de conhecer do mérito da causa, absolvendo os réus da instância ou indeferindo, em despacho liminar, a petição inicial, quando o processo o comportar (arts. 99º, n.º 1 e 576º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
Daí que, na referida decisão, transitada em julgado, o tribunal limitou-se a pronunciar-se sobre uma questão estritamente processual, mais concretamente, sobre o pressuposto processual da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da concreta relação jurídica material controvertida delineada pelos aí requerentes (apelantes) na petição inicial, ou se antes essa competência internacional  competia aos tribunais franceses, conforme então se decidiu, em definitivo, não entrando, pois, o tribunal, na decisão em causa, na apreciação do mérito dessa relação jurídica, ou seja, sobre a procedência ou improcedência do direito nela exercido pelos aí e aqui requerentes em serem declarados insolventes.
Por conseguinte, tendo a decisão, transitada em julgado, proferida no âmbito da ação n.º 1269/19...., que correu termos no Juízo de Comércio ..., Juiz ..., e que absolveu os devedores dos nela requerentes (aqui requerentes e apelantes) da instância, por via da procedência da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses, por infração das regras de competência internacional, incidindo apenas sobre a relação processual nela delineada pelos apelantes, não versando sobre o fundo (mérito) dessa relação e, portanto, sobre os bens discutidos nessa ação, não definindo a relação ou situação jurídica nela deduzida pelos aí e aqui requerentes, deixando incólume o direito a que estes se arrogavam titulares em serem declarados insolventes, o trânsito em julgado que cobre essa decisão estritamente processual é o formal, tornando-se o nela decidido apenas imodificável e vinculativo dentro da ação em que foi proferida, não impedindo que os nela requerentes (apelantes) instaurem nova ação, apresentando-se novamente à insolvência, com fundamento na mesma relação jurídica que delinearam naquela anterior ação, isto é, com base nos mesmos elementos subjetivos (sujeitos) e objetivos (pedido e causa de pedir) que expuseram na petição inicial apresentada no âmbito da anterior ação (art. 100º do CPC)[4].
Resulta do que se vem dizendo que, ao escrever-se conclusivamente, na decisão sob sindicância, que entre aquela anterior ação, em que se julgou procedente, por decisão transitada em julgado, a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem da relação jurídica material controvertida nela delineada pelos aí e qui requerentes (apelantes) na petição inicial e, em consequência, se absolveu da instância os devedores daqueles, e a presente ação intercede a exceção do caso julgado, a 1ª Instância, ao emanar esse juízo conclusivo, incorreu em efetivo erro de direito, pelo que se impunha revogar o decidido, caso esta tivesse conhecido dessa exceção dilatória e tivesse sido com fundamento na procedência dessa exceção que tivesse absolvido, no âmbito da decisão recorrida, os devedores dos apelantes instância, o que, reafirma-se, não é o caso, uma vez que nela, sem prejuízo de ter manifestado, de modo conclusivo e erróneo, que ocorreria tal exceção, o tribunal a quo não conheceu daquela, mas antes se limitou exclusivamente a conhecer da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelantes na petição inicial, julgando-a procedente e, com fundamento apenas na procedência desta (e não também na procedência da exceção dilatória do caso julgado) a absolver os devedores dos apelantes da instância.
Termos em que, sem mais, por desnecessárias, considerações, não tendo o tribunal a quo, no âmbito da decisão recorrida, conhecido da exceção dilatória do caso julgado e não tendo sido com fundamento na procedência dela que absolveu os devedores dos apelantes da instância, mas sim, exclusivamente, com fundamento na procedência da exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineados pelos apelantes na petição inicial, rejeita-se o recurso interposto pelos apelantes quanto ao erro de direito que assacam à decisão recorrida, na parte em que nela a 1ª Instância terá pretensamente conhecido da exceção dilatória do caso julgado, por falta de objeto do recurso interposto nesta parte.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Os factos que relevam para o conhecimento do objeto do presente recurso de apelação são os que constam do relatório acima exarado, que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

Na decisão recorrida entendeu-se que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para dirimir o pedido de declaração de insolvência dos autos, posto que, à relação jurídica material controvertida delineada na petição inicial é aplicável o Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29/05, escrevendo a esse propósito que, de acordo com o mencionado Regulamento “podem ser instaurados três tipos de processos: o processo principal, o processo secundário e o processo particular de insolvência. O processo principal é único e tem alcance universal, visando abarcar todo o património do devedor, cabendo a respetiva competência ao Estado-Membro onde se situa o centro de interesses principais do devedor (considerações 12 e artigo 3º, n.º , do Regulamento); o processo secundário pode ser instaurado noutro Estado-Membro que não aquele onde corre o processo principal, a requerimento do síndico principal ou de qualquer outra pessoa habilitada pela legislação nacional desse Estado-Membro (cfr. consideração 18ª), desde que o devedor possua aí um estabelecimento, e os efeitos desse processo são os de liquidação dos bens do devedor que se encontrem neste último território”.
Acontece que, de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada na petição inicial, ponderou-se que os requerentes não possuem, em Portugal, “estabelecimento ou centro de interesses, nem o processo principal precedeu este requerimento” e, em consequência, concluiu-se que os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para conhecerem do presente processo de insolvência enquanto processo principal ou processo secundário de insolvência.
No que respeita à competência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem do presente processo enquanto processo particular de insolvência, na decisão sob sindicância entendeu-se que, da conjugação das normas contidas no art. 3º, n.º 4, do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29/05, com o disposto no art. 294º do CIRE, o processo particular de insolvência apenas pode ser instaurado antes da abertura do processo principal quando se verifique uma das duas situações previstas no n.º 4, do art. 3º do Regulamento, isto é: “a) Não for possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do n.º 1 em virtude das condições estabelecidas pela legislação do Estado-Membro em cujo território se situa o centro de interesses principais do devedor; ou b) A abertura do processo territorial de insolvência for requerida por um credor que tenha residência habitual ou sede no Estado-Membro em cujo território se situa o estabelecimento, ou cujo crédito tenha origem na exploração do estabelecimento”.
Contudo, ponderou-se que, “o n.º 2, do art. 294º do CIRE faz depender a competência internacional dos tribunais portugueses para o processo particular de insolvência da verificação dos requisitos da al. d), do n.º 1, do art. 65º do CPC, que corresponde ao atual art. 62º, n.º 1, al. c), do NCPC, segundo o qual, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes «Quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real”, e concluiu-se que os enunciados requisitos de conexão não foram alegados pelos apelantes na petição inicial.
Mais se ponderou que, o processo de insolvência sobre que versam os autos não foi instaurado pelos apelantes nos termos do art. 294º do CIRE e, bem assim, que o principal centro de interesses destes se situa em França, e não em Portugal, porquanto, “de acordo com o considerando 13 do Regulamento, esse centro de interesses corresponde ao local onde o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses, pelo que é determinável por terceiros”, e sendo os devedores pessoas singulares, “a doutrina tem acolhido o lugar da residência habitual, ou da principal residência habitual” como aquele em que se situa o principal centro de interesses dos requerentes da insolvência quando, no caso dos autos, de acordo com “os factos alegados pelos próprios devedores na petição inicial”, estes têm, há cerca de dez anos, a sua residência permanente em França, onde, portanto, se situa o seu centro de interesses, pelo que, os tribunais portugueses também seriam internacionalmente incompetentes para conhecer do presente processo de insolvência enquanto processo particular de insolvência.
Os apelantes imputam ao assim decidido erro de direito sustentando que, diversamente do decidido, à presente ação de insolvência não é aplicável o Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29/05, mas antes eventualmente o Regulamento (UE) n.º 2015/848, porquanto este último revogou aquele e entrou em vigor em 26 de junho de 2017, estando, por isso, vigente à data da propositura da presente ação.
Acontece que, apesar de terem o seu centro de interesses principal efetivamente em França, também o Regulamento (UE) n.º 2015/848 não é aplicável ao presente processo de insolvência, isto porque, de acordo com o considerando 9º e o art. 1º desse Regulamento, este é exclusivamente “aplicável aos processos de insolvência que preencham as condições nele fixadas, independentemente de o devedor ser uma pessoa singular ou coletiva, um comerciante ou um particular” e que se encontrem “enumerados de modo exaustivo no anexo A”, uma vez que “os processos de insolvência não enumerados no anexo A não deverão ser abrangidos pelo presente regulamento”. Ora, de acordo com o identificado anexo A do Regulamento, os processos de insolvência a que se refere o seu art. 2º, ponto 4, são em França, os seguintes: “Sauvegarde”, “Sauvegarde accélerée”, “Sauvegarde financiére accélerée”, “Pedressement Judiciaire” e “Liquidation Judiciaire”.  Acontece que nenhum desses processos é suscetível “de acomodar a pretensão dos requerentes, uma vez que excluem do seu âmbito subjetivo qualquer pessoa singular – trabalhador dependente, categoria em que, de forma incontroversa, se enquadram os recorrentes”. Daí que, na perspetiva dos apelantes, também o Regulamento (UE) n.º 2015/848 não seja aplicável ao presente processo de insolvência, devendo antes a competência internacional dos tribunais portugueses para apreciarem e decidirem da relação jurídica material controvertida que delinearam na petição inicial ficar sujeita à norma do art. 62º, al. c) do CPC, por força do disposto no art. 294º, n.º 2 do CIRE.
Concluem  assim,  que perante a impossibilidade de aplicação, em França, do regime de insolvência previsto no anexo A do Regulamento (EU) n.º 2015/848 a não comerciantes, como é o caso daqueles, “a) a circunstância de a lei pessoal comum aos Requerentes e aos seus credores ser a Portuguesa; b) a circunstância de as obrigações vencidas a que estão adstritos os Requerentes terem por fonte negócios jurídicos regulados pela lei portuguesa; c) a circunstância de o património imobiliário na titularidade dos Requerentes estar situado em Portugal; d) a circunstância de o processo de liquidação do património dos Requerentes sito em Portugal apenas poder ser prosseguido por meio de processo (de insolvência, particular de insolvência ou executivo) aberto perante os Tribunais Portugueses); e e) a circunstância de apenas através de um processo de insolvência aberto em Portugal se assegurar o princípio par condicio creditorum”, impõe-se concluir que os tribunais nacionais são internacionalmente competentes para conhecer do processo de insolvência que instauraram enquanto processo particular de insolvência, nos termos do disposto no art. 294º, n.º 2 do CIRE, ex vi, art. 62º, al. c), do CPC.
Vejamos se assiste razão aos apelantes para os erros de direito que assacam à decisão recorrida.
A questão a dirimir nos autos prende-se em saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para apreciar e decidir a situação de insolvência alegada e pedida pelos apelantes, apreciação essa que, recaindo sobre um dos pressupostos processuais, isto é, sobre um dos “elementos de cuja verificação depende o dever de o juiz proferir decisão sobre o pedido formulado, concedendo ou indeferindo a providência requerida”, consubstanciando as condições processuais “mínimas consideradas indispensáveis para à partida garantir uma decisão idónea e uma decisão útil  da causa” e que, por isso, “condicionam todo o poder-dever de apreciação do mérito da ação”[5], cuja ausência impede que o tribunal possa entrar no conhecimento do mérito da causa, implicando a absolvição do réu da instância, ou o indeferimento da petição inicial, em despacho liminar, quando o processo o comportar (arts. 96º, al. a), 99º, n.º 1, 576º, n.ºs 1 e 2 e 577º, al. a), do CPC), tem de ser aferida de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) pelos apelantes na petição inicial[6].
Sendo a competência dos tribunais portugueses “a fração do poder jurisdicional atribuída a estes, no seu conjunto, relativamente à fração de poder jurisdicional atribuída por leis nacionais, estrangeiras ou tratados ou convenções internacionais, a tribunais estrangeiros sempre que o litígio seja transfronteiriço, isto é, quando apresente elementos de conexão com ordens jurídicas estrangeiras”[7] , como acontece no caso da presente ação em que os apelantes se apresentam à insolvência e em que, de acordo com a relação jurídica material controvertida por eles delineada na petição inicial, essa relação jurídica apresenta pontos de conexão com as ordens jurídicas nacional e francesa, coloca-se a questão de se saber qual dessas jurisdições é internacionalmente competente para apreciar dessa concreta relação jurídica.
Essa questão é solucionada pelas regras sobre a competência internacional, “às quais cabe determinar, em cada uma das jurisdições com as quais o litígio tem contacto, se os tribunais de alguma deles são competentes para resolver o conflito”.  Note-se que as normas de competência internacional “não são consideradas em si mesmas, normas de competência, porque não se destinam a aferir qual o tribunal concretamente competente para apreciar o litígio, mas apenas a definir a jurisdição na qual se determinará, então com o recurso a verdadeiras regras de competência, qual o tribunal competente para essa apreciação”[8].
Dito isto, sem prejuízo da celebração de convenções e de tratados internacionais, em que os estados contratantes estabeleçam entre si normas sobre a competência internacional, às quais se auto vinculam, determinando, em caso de conflitos plurilocalizados que apresentem pontos de conexão com as ordens jurídicas dos Estados contratantes, qual o ponto de conexão relevante determinativo da jurisdição competente internacionalmente para conhecer desse concreto conflito, diga-se que, na comunidade internacional não existem regras fixas e uniformes sobre a competência internacional, cumprindo a cada estado, de acordo com a soberania que exerce sobre o seu território, determinar as normas atributivas de competência internacional a que os seus órgãos jurisdicionais ficam submetidos, definindo nelas quais os elementos de conexão que considera relevantes para abrir a sua jurisdição ao julgamento de litígios plurilocalizados.
No que respeita ao Estado português, as normas gerais sobre a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem de litígios plurilocalizados (transfronteiriços) constam dos arts. 59º a 63º do CPC, e no que respeita especificamente a insolvências transfronteiriças ou internacionais, ou seja, quando o devedor tenha ligações com mais do que um estado, nomeadamente, por ter bens ou credores em mais do que um estado, essas normas constam dos arts. 275º a 296º do CIRE.
 Nos termos do disposto no art. 59º do CPC, “Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62º e 63º ou quando as partes lhe tenham atribuído competência nos termos do artigo 94º”, de onde decorre que, na determinação da competência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem de conflitos plurilocalizados mas que, de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada na petição inicial, apresentem pontos de conexão com a ordem jurídica portuguesa, impõe-se recorrer em primeiro lugar às normas de competência internacional que se encontrem estabelecidas em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais a que o Estado português se auto vinculou, e apenas na ausência desses instrumentos de direito internacional é que se pode recorrer aos fatores de conexão constantes das normas gerais nacionais atributivas de competência internacional constantes dos arts. 62º e 63º do CPC, e no que tange às insolvência transfronteiras, às normas de competência internacional previstas no CIRE[9].
Essa prevalência das normas de competência internacional constantes de instrumentos internacionais e, em particular, de regulamentos europeus, sobre as normas de competência internacional constantes  da legislação ordinária nacional tem assento constitucional, na medida em que os n.ºs 1 a 4 do art. 8º da CRP, contém cláusulas gerais de receção automática do Direito Internacional comum  e do Direito Internacional convencional e, em particular, do direito da União Europeia, em cujo n.º 4 daquele preceito se estabelece expressamente que: “As disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das respetivas competência, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático”.
Destarte, cingindo-nos ao Direito da União Europeia, a Constituição Portuguesa contém uma cláusula de receção automática do direito comunitário constante dos tratados que regem a União Europeia e das normas emanadas pelas suas instituições, no exercício das suas competências, nos termos definidos pelo direito da própria União, passando este a vigorar na ordem jurídica nacional interna e a prevalecer, inclusivamente, sobre o direito interno nacional ordinário, não faltando quem, como é o caso do Tribunal de Justiça da União Europeia (TJEU), afirme o primado do direito europeu sobre as próprias Constituições dos Estados-Membros[10].
No que respeita ao Direito da União Europeia emanado pelas suas instituições, no exercício das suas competências, importa chamar à colação o art. 288º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE), nos termos do qual: “Para exercerem as competências da União as instituições adotam regulamentos, diretivas, recomendações e pareceres. O regulamento tem caráter geral. É obrigatório em todos os seus elementos e diretamente aplicável em todos os Estados-Membros”.
 Daí que, nos termos do art. 288º do TFUE acabado de transcrever e da supra identificada cláusula de receção automática do Direito da União contida no n.º 4, do art. 8º da CRP, o regime jurídico constante dos Regulamentos é rececionado automaticamente na ordem jurídica interna nacional, onde passa a vigorar, e prevalece sobre o direito ordinário interno nacional.
Assente nas premissas que se acabam de expor, a relação jurídica material controvertida delineada pelos apelantes na petição inicial com que se apresentaram à insolvência apresenta pontos de conexão  com as ordem jurídica francesa, porquanto, os apelantes residem e trabalham em França, mas também apresenta pontos de conexão com a ordem jurídica portuguesa, na medida em que os apelantes têm nacionalidade portuguesa, as obrigações vencidas que discriminam na petição inicial foram por eles contraídas em Portugal, emergindo de contratos celebrados e regulados pela lei portuguesa, e os credores dessas obrigações têm também eles nacionalidade portuguesa, além de que os apelantes são proprietários de um prédio urbano que se situa em território nacional e são detentores do direito às heranças indivisas abertas por óbito de CC e DD,  direitos esses que igualmente são regulados pela  ordem jurídica portuguesa, pelo que os presentes autos de insolvência têm por objeto uma relação jurídica internacional, tratando de uma insolvência transfronteiriça ou internacional.
Portugal e França são Estados-Membros da União Europeia, importando, por isso, indagar se, à data da propositura da presente ação de insolvência, em 09 de maio de 2021[11], existia Regulamento da UE que previsse normas de competência internacional que determinem qual a jurisdição dos dois Estados-Membros com que o presente processo de insolvência transfronteiriço apresenta os identificados pontos de conexão é o internacionalmente competente para conhecer da presente ação de insolvência transfronteiriça.
Nesta sede, cumpre salientar que o primeiro instrumento legislativo da União Europeia que estabeleceu normas de competência internacional para conhecer de processos de insolvência transfronteiriços entre Estados-Membros da União, foi o Regulamento (CE) n.º 1346/2000 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de maio de 2000, relativo aos processos de insolvência.
O mencionado Regulamento entrou em vigor em 31 de maio de 2002 (art. 47º do Regulamento n.º 1346/2000), com o objetivo confessado pelo legislador comunitário de “assegurar o bom funcionamento do mercado interno”, para o que julgou necessário que “os processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços se efetuem de forma eficiente e eficaz” (considerando 2), de modo a “evitar quaisquer incentivos que levem as partes a transferir bens ou ações judiciais de um Estado-Membro para outro no intuito de obter uma posição legais mais favorável (forum shopping)” – considerando 4.
O Regulamento (CE) n.º 1346/2000 determinava que o tribunal competente para a abertura do processo de insolvência é o tribunal do Estado-Membro onde se localiza o centro dos interesses principais do devedor (art. 3º) e estabelecia que o Direito do Estado-membro em que o processo é aberto (lex fori concursus), salvo disposição em contrário, determina os efeitos processuais e substantivos do processo de insolvência (art. 4º) e, bem assim, que a decisão de abertura de um processo de insolvência proferida num Estado-Membro é reconhecida em todos os outros Estados-Membros.
Consagrava-se, portanto, no Regulamento n.º 1346/2000 o princípio da unidade ou da universalidade do processo de insolvência, de acordo com o qual haverá um único processo de insolvência em curso no Estado-Membro onde se situa o centro principal de interesses do devedor, denominado «processo principal de insolvência», o qual abrangerá todo o património do devedor e não apenas o que se situe no Estado-Membro do foro, bem como todos os credores do devedor, sejam eles do foro ou estrangeiros.
Contudo, o universalismo do «processo principal de insolvência» reconhecido pelo Regulamento em referência não era absoluto, mas limitado ou modificado, na medida em que “reconhecendo não ser possível contrariar a tendência (natural) para afetar os bens localizados no território de um Estado-Membro à satisfação dos interesses dos credores locais e assegurar, em absoluto, o reconhecimento de um processo aberto num Estado-Membro pelos outros Estados-Membros”, previa-se nele a possibilidade de serem abertos «processos secundários de insolvência» - na linguagem do CIRE, «processos particulares de insolvência» (arts. 294º a 296º do CIRE) -  onde  o devedor possuísse estabelecimento, sendo os efeitos desses processos secundários de insolvência circunscritos aos bens que se encontrem no Estado-Membro em que fossem abertos os referidos processos secundários de insolvência[12].
Acontece que o Regulamento (CE) n.º 1346/2001 foi revogado pelo Regulamento (UE) n.º 2015/848, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência (art. 91º do Regulamento 2015/848), o qual entrou em vigor em 14 de junho de 2015 e que, com exceção da Dinamarca  (cfr. considerando 88), é diretamente aplicável a todos os Estados-Membros a partir de 26 de junho de 2017, sendo diretamente aplicável a todos os processos de insolvência transfronteiriços neles abertos (ao qual o Regulamento naturalmente seja aplicável) após essa data (arts. 84º, n.º 1 e 92º do Regulamento).
Note-se que, apesar do Regulamento (UE) n.º 2015/848 ter revogado expressamente, no seu art. 91º, o Regulamento (CE) n.º 1346/2000, aquele declara, no n.º 2, do seu art. 84º, que o Regulamento n.º 1346/2000 continua a ser aplicado aos processos de insolvência abrangidos pelo mesmo e abertos antes de 26 de junho de 2017. Daí que os processos de insolvência transfronteiriços abrangidos pelo Regulamento (CE) n.º 1346/2000, abertos antes de 26 de junho de 2017, continuam a reger-se por esse Regulamento, enquanto os abertos após 26 de junho de 2017, passaram a regular-se pelo Regulamento (UE) n.º 2015/848.
Os presentes autos de insolvência deram entrada em juízo em 09 de maio de 2021 e, portanto, após 26 de junho de 2017, data em que o Regulamento (UE) n.º 2015/848, passou a ser diretamente aplicável a todos os Estados-Membros, pelo que conforme sustentam os apelantes, ao aplicar o Regulamento (CE) n.º 146/2000, quando este já tinha sido revogado à data da propositura da presente ação, a 1ª Instância incorreu em erro de direito.
O Regulamento (UE) n.º 2015/848, à semelhança do anterior, não contém uma disciplina jurídica uniformizadora sobre o direito insolvencial substantivo ou processual dos Estados-Membros, mas apenas regras de atribuição de competência internacional aos tribunais dos Estados-Membros, regras de determinação da lei aplicável, regras de reconhecimento de decisões estrangeiras, regras de articulação entre um processo de insolvência principal e um processo de insolvência secundário, regras relativas à informação dos credores e à reclamação dos créditos, regras respeitantes aos processos de insolvência relativos a membros de um grupo de sociedades e regras relativas à proteção de dados.
Quanto ao âmbito de aplicação do Regulamento, com exceção dos processos relativos a empresas de seguro, instituições de crédito, empresas de investimento e outras empresas e instituições, na medida em que estas estejam abrangidas pela Diretiva 2001/24/CE, e organismos de investimento (cfr. n.º 2, do art. 1º do Regulamento), este, nos termos do n.º 1, daquele art. 1º declara-se aplicável: “aos processos coletivos públicos de insolvência, incluindo os processos provisórios, com fundamento na lei no domínio da insolvência e nos quais, para efeitos de recuperação, ajustamento da dívida, reorganização ou liquidação: a) O devedor é total ou parcialmente privado dos seus bens e é nomeado um administrador da insolvência; b) Os bens e negócios do devedor ficam submetidos ao controlo ou à fiscalização por um órgão jurisdicional; ou c) Uma suspensão temporária de ações executivas singulares é ordenada por um órgão jurisdicional ou por força da lei, a fim de permitir a realização de negociações entre o devedor e os seus credores, desde que o processo no qual é ordenada a suspensão preveja medidas adequadas para proteger o interesse coletivo dos credores e, caso não seja obtido acordo, seja preliminar relativamente a um dos processos a que se referem as alíneas a) ou b)”.
Acresce que, ainda nos termos do n.º 1, do art. 1º do mesmo Regulamento: “Nos casos em que os processos referidos no número anterior (acabado de transcrever) em situações em que existe apenas uma probabilidade de insolvência, a sua finalidade deve ser a de evitar a insolvência do devedor ou a remoção das suas atividades”, e acrescenta-se também que: “Os processos referidos no presente número (isto é, em todo o n.º 1 do art. 1º do Regulamento que se acabou de transcrever) são enumerados no anexo A”.
Resulta do regime jurídico que se acaba de transcrever que, com exceção dos processos de insolvência elencados no n.º 2, do art. 1º do Regulamento (UE) 2015/848, este é aplicável aos processos que promovam a recuperação de empresas economicamente viáveis mas que se encontre em dificuldades e que concedam uma segunda oportunidade ao devedor (processos pré-insolvenciais), aos processos que mantém o devedor em situação de controlo total ou parcial dos seus bens e negócios, aos processos que prevêem o perdão ou o ajustamento das dívidas relativamente aos consumidores e trabalhadores, por exemplo, através da redução do montante a pagar pelo devedor ou da prorrogação do prazo de pagamento que lhes é concedido e aos processos de insolvência propriamente ditos, e que constem do elenco taxativo de processos insolvenciais nacionais vertido no Anexo A.
Deste modo, todos os processos que preencham as condições de aplicabilidade do Regulamento  previstas na primeira parte do seu n.º 1, do art. 1º (descrição-base, em que se descrevem o conjunto de características gerais dos processos sujeitos ao Regulamento), mas que não constem do elenco taxativo de processos insolvenciais nacionais vertido no Anexo A, não estão sujeitos ao regime jurídico previsto no Regulamento (UE) n.º 2015/848, mas, por outro lado, todos os processos nacionais que estejam incluídos no identificado Anexo A, ainda que não preencham as condições previstas na dita descrição-base constante do n.º 1, do art. 1º do Regulamento, estão sujeitos ao regime jurídico nele previsto, o que significa que, no caso do ordenamento jurídico português, estão submetidos ao regime jurídico do Regulamento os processos que, segundo o regime jurídico interno nacional, são qualificados como: processo de insolvência, processo especial de revitalização e processo especial para acordo de pagamento, contanto que naturalmente, se trate de processos transfronteiriços entre Estado-Membros da União Europeia, mas já não o RERE, dado  que este concreto processo não consta do elenco taxativo de processos nacionais submetido ao Regulamento enunciado no seu Anexo A[13].
Já no caso de França, estão submetidos ao regime jurídico do Regulamento (UE) n.º 2015/848 os processos transfronteiriços entre Estados-Membros da União Europeia que, segundo a ordem jurídica francesa, são qualificados como: “Sauvegarde”, “Sauvegarde aceélerée”, “Sauvegarde financiére accélerée”, “Redressement judiciare” e “Liquidation Judiciaire”, uma vez que todos eles constam do elenco taxativo vertido no Anexo A.
Note-se que, contrariamente à posição sustentada pelos apelantes, é com o sentido interpretativo que se acaba de explanar, segundo o qual, todos os processos nacionais que constam do Anexo A do Regulamento ficam submetidos ao respetivo regime jurídico, independentemente de se encontrarem preenchidas as condições da sua aplicabilidade constante da descrição-base da primeira parte do seu art. 1º, n.º 1, e ficam excluídos do mesmo todos os processos nacionais que não constam desse anexo A, ainda que aqueles elementos constantes da descrição-base se encontrem preenchidos, que carece de ser interpretado o considerando 9 do Regulamento, onde se lê que: “O presente regulamento deverá ser aplicável aos processos de insolvência que preencham as condições nele fixadas, independentemente de o devedor ser uma pessoa singular ou coletiva, um comerciante ou um particular. Estes processos são enumerados de modo exaustivo no anexo A. Em relação aos processos nacionais que figuram no anexo A, o presente regulamente deverá ser aplicável, sem que os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro devam apreciar das condições nele fixadas estão preenchidas. Os processos nacionais de insolvência não enumerados no Anexo A não deverão ser abrangidos pelo presente Regulamento” (destacado e sublinhado nosso).
Na verdade, conforme se retira, de forma clarividente, do teor do considerando, o único sentido interpretativo que este consente é no sentido de que, por um lado, o Regulamento é aplicável a todos os processos que “preencham as condições nele fixadas”, ou seja, que preencham as condições para a sua aplicabilidade constantes da primeira parte do n.º 1, do seu art. 1º (excluídos naturalmente os processos previstos no n.º 2, do mesmo art. 1º), mas logo se acrescenta que esses processos são os processos nacionais que se encontram “enumerados de modo exaustivo”,  isto é, taxativo, “no anexo A”, ou seja, são unicamente os que constam do identificado Anexo, pelo que todos os processos que, segundo a nomenclatura usada pela ordem jurídica interna de cada um dos Estados-Membro recebem o “nomem iuris”  constante do identificado Anexo A, ficam submetidos ao regime jurídico fixado no Regulamento, independentemente dos processos instaurados junto dos tribunais nacionais desses Estados-Membros preencherem ou não o conjunto de características gerais previstas na descrição-base da norma contida no art. 1º, n.º 1 do Regulamento e, por outro lado, dispõe-se que “os processos nacionais de insolvência não enumerados no Anexo A não deverão ser abrangidos pelo presente Regulamento”, isto é, todos os processos que, segundo a nomenclatura da ordem jurídica interna de  cada Estado-Membro, não mereçam ser qualificados segundo o “nomem iuris” previsto no elenco taxativo constante do Anexo A, ficam excluídos da aplicação do Regulamento, ainda que as condições para a aplicabilidade deste, explanadas na primeira parte do n.º 1, do art. 1º do Regulamento, se encontrem preenchidas.
O sentido interpretativo que se acaba de explanar, segundo o qual  apenas os processos de insolvência transfronteiriços que apresentam elementos de conexão entre Estados-Membros da União que constam do elenco taxativo enunciado no Anexo A do Regulamento ficam submetidos à disciplina jurídica nele prevista também acolhe pleno conforto na circunstância de, no identificado considerando, expressamente se estabelecer que: “Em relação aos processos nacionais que figuram no Anexo A,  o presente Regulamento deverá ser aplicável, sem que aos órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro devam apreciar das condições nele fixadas estão preenchidas”, ou seja, instaurado num Estado-Membro da União um processo de insolvência transfronteiriço, cuja relação jurídica apresente pontos de conexão com vários Estados-Membros da União, merecendo esse processo, de acordo com a ordem jurídica interna desse Estado, uma das nomenclaturas constantes do elenco taxativo do Anexo A do Regulamento, esse processo fica automaticamente submetido ao regime jurídico do Regulamento, vedando-se aos órgãos jurisdicionais dos restantes Estados-Membros verificar se, apesar disso, estão preenchidos (ou não) os elementos de aplicabilidade do Regulamento constante da primeira parte do n.º 1, do art. 1º deste em eventual ação que junto deles seja proposta, concluindo, designadamente, pela sua competência internacional para conhecer dessa mesma relação jurídica com o argumento de que apesar do processo antes intentado junto de outro Estado-Membro, segundo a ordem jurídica interna deste, constar do elenco taxativo do Anexo A, que os órgãos jurisdicionais desse Estado-Membro não são os internacionalmente competentes porque não se encontram preenchidas as condições gerais de aplicabilidade do Regulamente previstas na 1ª parte do n.º 1, do art. 1º do Regulamento.
Note-se que isto é assim, independentemente do direito interno da jurisdição considerada pelo Regulamento como internacionalmente competente para conhecer do processo permitir ou não ao requerente instaurar nela o processo insolvencial que intentou instaurar junto da jurisdição de outro Estado-Membro, mas que o Regulamento declara ser territorialmente incompetente para dele conhecer.
Com efeito, as normas de competência internacional destinam-se apenas a definir, entre as jurisdições dos vários Estados com as quais a relação jurídica material controvertida delineada pelo requerente na petição inicial apresenta elementos de conexão, qual a conexão relevante para efeitos de atribuição da competência internacional às jurisdições com quem essa concreta relação jurídica apresenta conexões.
Determinada essa jurisdição e, assim, determinada qual a concreta jurisdição que dispõe de competência internacional para dela conhecer, saber se o direito adjetivo e/ou substantivo interno dessa jurisdição internacionalmente competente permite ou não ao requerente instaurar esse processo com vista a exercer o direito que se propõe exercer, é questão totalmente indiferente e alheia às regras de competência internacional, tratando-se antes de questão que se coloca a jusante da determinação da jurisdição internacionalmente competente para conhecer desse concreto litígio, às quais as normas sobre a competência internacional são alheias, tratando-se de questão que se prende exclusivamente com o ordenamento jurídico adjetivo e/ou substantivo interno do Estado cuja jurisdição detém competência internacional para conhecer desse concreto litígio.
Daí que, caso a ordem jurídica interna do Estado cuja jurisdição detenha competência internacional para conhecer da concreta relação jurídica material controvertida delineada pelo requerente na petição inicial não reconheça o direito que o requerente pretende exercer, sem prejuízo da norma geral de competência internacional interna prevista na al. c), do art. 62º do CPC, a qual, conforme se vem dizendo e do que infra ainda se dirá, não tem aplicação aos processos insolvenciais transfronteiriços aos quais o Regulamento (UE) n.º 2015/848 é aplicável, esse facto mostra-se totalmente irrelevante para efeitos de afastamento das regras atributivas de competência internacional previstas no Regulamento, pelo que, contrariamente ao pretendido pelos apelantes, não é pelo facto de, segundo o ordenamento jurídico interno francês, não ser possível aos mesmos instaurarem nenhum dos processos que constam do elenco taxativo do Anexo A do Regulamento que afasta a aplicabilidade do Regulamento à concreta relação jurídica material controvertida por eles delineada na petição inicial e confere competência internacional aos tribunais portugueses para dela conhecerem.
De resto, conforme já enunciado, apesar de não desconhecer a existência de regimes jurídicos substantivos e adjetivos distintos em sede pré-insolvencial e insolvencial ao nível das ordens jurídicas internas dos vários Estados-Membros da União, não foi propósito do legislador comunitário, mediante o Regulamento (UE) n.º 2015/848, nem do anterior Regulamento (CE) n.º 1346/2000, proceder a uma uniformização desses múltiplos e diversos regimes jurídicos internos, mas apenas criar “uma tramitação eficiente e eficaz dos processos de insolvência que produzem efeitos transfronteiriços” (considerando 3 do Regulamento 2015/848), para o que considerou ser necessário a adoção de medidas legislativas destinadas “a evitar incentivos que levem as partes a transferir bens ou ações judiciais de um Estado-Membro para outro, no intuito de obter uma posição jurídica mais favorável em detrimento do interesse coletivo dos credores (seleção do foro)” (considerando 5) e, bem assim, estabelecer regras sobre a competência internacional “para a abertura de processos de insolvência e a propositura de ações que deles decorram diretamente e que com eles se encontrem estritamente relacionadas”, estabelecer “disposições relativas ao reconhecimento e à execução das decisões judiciais proferida em processos desta natureza e disposições relativas à lei aplicável ao processo de insolvência”, assim como “regras de coordenação dos processos de insolvência relativos ao mesmo devedor ou a vários membros do mesmo grupo de sociedades” (considerando 6).
Acresce que, apesar de não desconhecer as identificadas divergências entre ordenamentos jurídicos nacionais dos Estados-Membros, o legislador comunitário estabeleceu, como regra geral, que a lei aplicável ao processo principal e secundário de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo processo território o processo é aberto por, de acordo com as normas de competência internacional que estabeleceu no Regulamento, esse Estado-Membro ser o internacionalmente competente para conhecer do processo de insolvência (arts. 7º, n.º 1 e 35º do Regulamento), sendo essa lei (lex fori concursus) que, nos termos do n.º 2, desse art. 7º, determina as condições de abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência, designadamente: a) os devedores que podem ser objeto de um processo de insolvência em razão da qualidade dos mesmos; b) os bens pertencentes à massa insolvente e o destino a dar aos bens adquiridos pelo devedor após a abertura do processo de insolvência; c) os poderes respetivos dos devedor e do administrador da insolvência; etc., apesar de não desconhecer que o direito interno desse Estado-Membro, considerado internacionalmente competente para conhecer do processo de insolvência pelas regras de competência internacional que instituiu poder não reconhecer ao devedor o direito a instaurar esse processo, diversamente do que sucede de acordo com as regras internas de outro Estado-Membro, o que significa que o legislador comunitário, uma vez determinada, de acordo com as normas que instituiu, constantes do Regulamento, a jurisdição do concreto Estado-Membro internacionalmente competente para conhecer do concreto litigio transfronteiriço e com pontos de conexão entre Estados-Membros, sujeitou o processo às contingências do direito interno desse Estado-Membro declarado internacionalmente competente para conhecer do litígio nele explanado.
Em suma, contrariamente ao pretendido pelos apelantes, o Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, não só é aplicável ao presente processo de insolvência, como não é pela circunstância de a ordem jurídica interna francesa não permitir aos mesmos instaurar o processo de insolvência que intentam instaurar junto dos tribunais nacionais que afasta as normas de competência internacional fixadas no mencionado Regulamento, caso, de acordo com essas mesmas normas, os tribunais nacionais sejam realmente internacionalmente incompetentes para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelantes na petição inicial e antes sejam os tribunais franceses os internacionalmente competentes para dela conhecerem.
Posto isto, nos termos do disposto no art. 3º, n.º 1 do Regulamento, “Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros”, e adianta, no que ao caso dos autos interessa, que: “No caso de pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local onde exerce a atividade principal. Esta presunção é aplicável se o local de atividade principal da pessoa singular não tiver sido transferido para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência” e, bem assim, que: “No caso de qualquer outra pessoa singular, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual. Esta presunção só é aplicável se a residência habitual não tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência”.
Destarte, de acordo com a norma acabada de transcrever, o tribunal internacionalmente competente para conhecer da presente ação em que os apelantes se apresentam à insolvência (processo principal de insolvência) é o do Estado-Membro onde estes têm instalado o seu centro de interesses principal, e sendo os apelantes pessoas singulares e trabalhando por conta de outrem (conforme confessam acontecer), presume-se, até prova em contrário (presunção iuris tantum), que o seu centro de interesses principais é o lugar da sua residência habitual, salvo se esta tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.
Ora, não só os apelantes, na petição inicial, alegaram trabalharem em França por conta de outrem, país em que se afirmaram residentes, como tendo a apelada A... alegado que os mesmos transferiram, no ano de 2013, definitivamente a sua residência, atividade e vida para França, país onde permanecem, não contrariaram essa alegação, antes confessaram expressamente ser, em França, que se situa o seu centro de interesses principais, pretendendo, porém,  sem fundamento legal, conforme acima já demonstrado, que o Regulamento (UE) n.º 2015/848, não têm aplicação à presente ação de insolvência, porquanto, em virtude das condições estabelecidas na lei francesa, não lhes é reconhecido o direito de se apresentarem à insolvência, direito esse que sustentam não lhes poder ser coartado.
E residindo os apelantes confessadamente em França desde 2013, onde exercem a sua atividade profissional  por conta de outrem, não só se presume que o centro de interesses principais dos mesmos se situa nesse país, como, inclusivamente, confessaram o facto presumido, ou seja, que o seu centro de interesses principais se situa efetivamente nesse país, pelo que, nos termos do art. 3º, n.º 1 do Regulamento, são os tribunais franceses os internacionalmente competentes para a abertura do processo principal de insolvência, com alcance universal e visando abarcar todo o património dos apelantes (devedores)[14], e não os tribunais portugueses, não colhendo a sua alegação de que o direito de se apresentarem à insolvência que lhes é reconhecida pela legislação interna nacional (CIRE) não lhes pode ser coartado, dado que, de acordo do direito interno francês, os mesmos não podem apresentar-se à insolvência.
Na verdade, os apelantes não podem pretender beneficiar das especialidades próprias do ordenamento jurídico interno português quando não têm instalado em Portugal o centro dos seus interesses principais, mas antes em França, e deste modo subtraírem-se às regras próprias do ordenamento jurídico interno francês e beneficiarem, por via da sua qualidade - e a dos seus credores - de nacionais, da fonte das obrigações vencidas a que se encontram adstritos e que alegaram serem negócios jurídicos regulados pela lei portuguesa, de serem proprietários de um prédio situado em território português, bem como, titulares de direitos (caso dos direitos às heranças indivisas que alegam) também eles regulados pela lei portuguesa, quando nenhum desses fatores foi eleito como elemento de conexão relevantes pelo art. 3º, n.º 1 do Regulamento para efeitos de determinação da competência internacional pelas várias jurisdições dos Estados-Membros, mas unicamente  o “centro dos interesses principais do devedor”[15].
Aliás, ao pretenderem eleger os enunciados fatores como elementos de conexão relevantes para ser atribuída à jurisdição nacional competência internacional para conhecer da presente ação em que se apresentam à insolvência e, assim, beneficiarem do regime específico do direito interno nacional de insolvência, que lhes permite instaurar a presente ação, quando nenhum dos enunciados elementos de conexão (nacionalidade, fonte das obrigações, local em que se situa o seu património) é eleito pelo legislador da União como relevante para efeitos de determinação da competência internacional das jurisdições dos Estados-membros para conhecerem de insolvências transfronteiriças entre Estados-Membros, mas sim unicamente o Estado-Membro em que os mesmos têm instalado o centro dos seus interesses principais, dir-se-á que, diversamente do que afirmam, os apelantes não vêm coartado o seu direito a apresentarem à insolvência, já que não têm o seu centro de interesses principais instalado em Portugal, mas sim em França, mas antes visam obter uma situação de privilégio relativamente aos demais sujeitos que têm instalado em território francês o seu centro de interesses principais e que não têm nacionalidade portuguesa e que não se encontram em nenhuma das demais situações invocadas pelos apelantes para obter essa situação de privilégio.
Essa pretensão de privilégio que os apelantes almejam alcançar, para além de não ter fundamento fáctico nem jurídico,  caso lhes fosse concedida, além de ilegal, colocaria em crise os interesses que o legislador comunitário visou acautelar de salvaguarda do bom funcionamento do mercado interno, em particular os efeitos que o legislador refere no considerando 5 do Regulamento visar obstar, ao pretenderem que se considere como elementos de conexão relevantes para a determinação da competência internacional entre as várias jurisdições dos Estados-Membros para conhecerem de processos de insolvência transfronteiriços, não considerados, nem eleitos como relevantes pelo legislador comunitário, sabendo-se que os efeitos jurídicos dos processos de insolvência transfronteiriços se projetam reconhecidamente no mercado interno da União.
Caso assim se procedesse, não só se violaria frontalmente a ordem jurídica comunitária, a qual, relembra-se, nos termos do art. 8º, n.º 4 da CRP, goza de receção automática na ordem jurídica interna nacional, como tem prevalência sobre o direito interno ordinário português, como longe de se assegurar o princípio par condicio creditorum, violar-se-ia frontalmente esse princípio, ao privar-se a insolvência instaurada do seu caráter de execução universal, restringindo-se a mesma ao património (bens e direitos) detidos pelos apelantes no território português e forçar-se-ia os seus credores, não residentes em Portugal, a terem de se sujeitar a um processo de insolvência de caráter limitado, regulado pela lei interna portuguesa, com as inerentes dificuldades e custos acrescidos que daí necessariamente decorreriam para esses credores não residentes, nomeadamente, em  sede de reclamação dos seus créditos.
Realce-se que, a par do processo principal de insolvência de caráter universal e que visa abarcar todo o património do devedor, o art. 3º, n.º 2 do Regulamento prevê a possibilidade de serem abertos processos secundários de insolvência em Estados-Membros diversos do Estado em que o devedor tem instalado o seu centro de interesses principais no caso desse devedor, nesse Estado-Membro, ter um estabelecimento, em que os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem nesse Estado.
Com efeito, estabelece o referido art. 3º, n.º 2, que: “No caso de o centro de interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro. Os efeitos desse processo são limitados aos bens do devedor que se encontrem neste último território”.
Condição para a abertura de tais processos secundários de insolvência é que o devedor tenha um estabelecimento no território de Estado-Membro distinto daquele em que tem instalado o seu centro de interesses principais e é a existência desse estabelecimento que constitui o fator de conexão relevante para se atribuir competência internacional aos tribunais do Estado-Membro onde se situa o estabelecimento em causa para conhecer do processo secundário de insolvência.
Sucede que, entendendo-se, para efeitos do Regulamento, nos termos do seu art. 2º, n.º 10, por «estabelecimento», “o local de atividade em que o devedor exerça, ou tenha exercida, de forma estável, uma atividade económica, com recurso a meios humanos e materiais, nos três meses anteriores à apresentação do pedido de abertura do processo principal de insolvência”, o que não é o caso dos apelantes, os quais confessadamente residem em França desde 2013, onde exercem a sua atividade profissional por conta de outrem, pelo que não só não existe fundamento legal para abrir um processo de insolvência secundário que tenha por objeto os bens que estes têm em território nacional, como também falece competência internacional aos tribunais nacionais para semelhante processo de insolvência secundário.
Advogam os apelantes que a competência internacional dos tribunais nacionais para conhecerem dos presentes autos de insolvência enquanto processo secundário (ou, na nomenclatura do CIRE, processo particular) de insolvência decorre do disposto no art. 294º, n.º 2 do CIRE, ex vi, art. 62º, al. c) do CPC, mas antecipe-se, desde já, sem razão.
Com efeito, dispõe o n.º 2 do art. 294º do CIRE que: “Se o devedor não tiver estabelecimento em Portugal, a competência internacional dos tribunais portugueses depende da verificação dos requisitos impostos pela alínea c) do n.º 1 do artigo 62º do Código do Processo Civil”.
Acontece que essa norma carece de ser conjugada com a disposição geral contida no art. 275º, do CIRE, em cujo n.º 1 se estatui que: “Os processos regulados neste Código a que se aplica o Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, regem-se pela disciplina vertida naquele instrumento e, em tudo quanto a não contrarie, pelo presente diploma”, e cujo n.º 2 acrescenta: “As disposições do presente título são aplicáveis apenas na medida em que não contrariem o estabelecido no Regulamento referido no número anterior ou normas do Direito da União Europeia ou em tratados e convenções internacionais”.
Nessas disposições legais reafirma-se a já enunciada regra da receção direta na ordem jurídica nacional dos regulamentos da União Europeia, mormente, do Regulamento (UE) n.º 2015/848, bem como das restantes normas de direito da União Europeia ou constantes de tratados e convenções internacionais a que Portugal se auto vinculou, e a prevalência destas sobre o direito ordinário interno nacional, determinada pelo art. 8º, da CRP, ao estabelecer-se que as disposições contidas no título XV do CIRE, em que insere o art. 294º, n.º 2 invocado pelos apelantes, apenas são aplicáveis na medida em que não contrariem  as disposições daqueles instrumentos internacionais a que Portugal auto se vinculou e no que  diz respeito especificamente aos processos de insolvência transfronteiriços a que se aplica o Regulamento n.º 2015/848, que os processos de insolvência previstos no CIRE regem-se pela disciplina jurídica vertida naquele Regulamento e, em tudo quanto a não contrarie, pelo CIRE, ou seja, quanto aos processos de insolvência transfronteiros  regulados pelo Regulamento, o regime jurídico do CIRE constitui direito supletivo, sendo aplicável aos aspetos não regulados pelo Regulamento (caso omissos), mas apenas na estrita medida em que esse regime jurídico não contrarie o regime jurídico do Regulamento.
Resulta do que se vem dizendo que, em sede de processos de insolvência transfronteiriços impõe-se distinguir entre processos de insolvência transfronteiriços aos quais é aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848, processos de insolvência transfronteiriços aos quais são aplicáveis outras normas de direito da União Europeia ou tratados e convenções internacionais a que o estado português voluntariamente se vinculou, naturalmente enquanto vigorarem, e processos de insolvência transfronteiriços não regulados por nenhum dos identificados instrumentos legais internacionais.
No que respeita aos processos de insolvência transfronteiriços aos quais seja aplicável o Regulamento e os regulados por outras normas de direito da União Europeia ou em tratados e convenções internacionais, por força dos princípios constitucionais consagrados no art. 8º da CRP, de receção do direito internacional na ordem jurídica interna e do primado desse direito internacional face ao direito ordinário interno nacional, em que se inscreve o CIRE, é aplicável o regime jurídico previstos nos identificados instrumentos legislativos internacional e, supletivamente o CIRE, nos aspetos omissos, isto é, não regulados por esses instrumentos legislativos internacionais, mas apenas na estrita medida em que o regime jurídico do CIRE, nomeadamente, as normas contidas do Título XV, não contrariem o regime jurídico estabelecido nos identificados instrumentos legislativos internacionais[16].
Por sua vez, aos processos de insolvência transfronteiriços não regulados pelo Regulamento (UE) nº 2015/848, nem por outras normas de direito da União Europeia ou por tratados e convenções internacionais, são aplicáveis as normas previstas nos arts. 276º a 296º do CIRE.
Sucede que, o regime jurídico previsto no art. 294º, n.º 2 do CIRE convocada pelos apelantes contraria frontalmente o regime jurídico previsto no art. 3º, n.º 2 do Regulamento n.º 2015/848, de acordo com o qual, não se localizando o estabelecimento do devedor em Portugal, os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para um processo secundário de insolvência.
Daí que face à receção automática do regime jurídico do Regulamento na ordem jurídica interna nacional e ao primado deste perante o direito ordinário interno nacional, em que se insere o CIRE, o regime jurídico constante do identificado art. 294º, n.º 2 apenas é aplicável aos processos de insolvência transfronteiriços não regulados pelo Regulamento n.º 2015/848[17] e, bem assim, que não sejam regulados por outras normas de Direito da União Europeia ou por tratados e convenções internacionais, ou que sendo-o, o regime jurídico previstos nesses instrumentos legislativos internacionais não seja contrariado pelo regime jurídico constante do identificado art. 294º, n.º 2[18].
Resulta do que se vem dizendo que, contrariamente ao sustentado pelos apelantes, o regime jurídico enunciado no art. 294º, n.º 2 do CIRE não é aplicável à relação jurídica material controvertida delineada pelos mesmos na petição inicial, em virtude dessa relação jurídica se encontrar submetida ao Regulamento (UE) n.º 2015/848 e ser incompatível com o regime jurídico previsto nesse Regulamento.
Destarte, em face do que se vem dizendo, apesar de com os fundamentos acima enunciados, impõe-se concluir que ao julgar procedente a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada pelos apelantes na petição inicial e ao ter, consequentemente, absolvido os devedores dos apelantes da instância, a 1ª Instância não incorreu em erro de direito, impondo-se concluir pela improcedência da presente apelação e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.
*
Sumário (elaborado pelo relator – art. 663º, n.º 7 do Cód. Proc. Civil).

1- A decisão judicial, transitada em julgado, que julga procedente a exceção dilatória de incompetência internacional dos tribunais portugueses para conhecerem da relação jurídica material controvertida delineada na petição inicial, é uma decisão estritamente processual, pelo que o caso julgado que cobre essa decisão é o formal, não obstando a que seja proposta nova ação, junto dos tribunais portuguese, tendo por objeto a mesma relação jurídica.
2- A exceção dilatória de incompetência internacional carece de ser aferida de acordo com a relação jurídica material controvertida delineada subjetiva (quanto aos sujeitos) e objetivamente (quanto ao pedido e à causa de pedir) na petição inicial e o momento relevante para determinar o regime jurídico à luz do qual essa exceção tem de ser apreciada é o da propositura da ação.
3- Ao processo de insolvência instaurado em 2023, em que os requerentes se apresentam à insolvência e que, em função da relação jurídica material controvertida por eles delineada na petição inicial, esta apresenta pontos de conexão com Portugal (os requerentes e os seus credores têm nacionalidade portuguesa, as obrigações vencidas que alegam emergem de negócios jurídicos regulados pela lei portuguesa, e o único património dos requerentes é constituído por um prédio situado em Portugal e por direitos a heranças indivisas abertas em território nacional) e com França (país onde os requerentes residem há cerca de dez anos e onde trabalham por conta de outrem), é aplicável o Regulamento (UE) n.º 2015/848, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20/05/2015.
4- O referido Regulamento é aplicável, com exceção dos processos de insolvência previstos no n.º 2 do seu art. 1º, a todos os processos nacionais que constam do elenco taxativo enunciado no seu Anexo A, independentemente de estarem preenchidas as condições de aplicabilidade do Regulamento enunciadas na primeira parte do n.º 1 do seu art. 1º.
5- As regras de competência internacional previstas no Regulamento são aplicáveis independentemente dos requisitos impostos pela legislação adjetiva e/ou substantivo interna do Estado-Membro declarado internacionalmente competente (de acordo com as normas do Regulamento) para que os requerentes se possam socorrer dos processos nacionais previstos no Anexo A.
6- O Regulamente prevê a possibilidade de serem abertos: o «processo principal de insolvência», em que o processo tem vocação universal, abarcando todo o património do devedor, e «processos secundários (territoriais) de insolvência», estando a abertura destes últimos dependente do requerente ter «estabelecimento» num Estado-Membro distinto do Estado-Membro em que tem instalado o centro dos seus interesses principais, em que a competência internacional para conhecer do processo de insolvência secundário cabe à jurisdição do Estado-Membro em que se situa o «estabelecimento» e em que esse processo (secundário) apenas abarca os bens do devedor situados nesse Estado-Membro.
7- Como único fator relevante para determinação de competência internacional dos tribunais dos Estados-Membros para abrirem o «processo principal de insolvência», o Regulamento elege o Estado-Membro em que se situa o centro de interesses principais do devedor e considera que este é “o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros”, presumindo, até prova em contrário, no caso de devedor pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional, que esse centro dos interesses principais do devedor é o local onde exerce a sua  atividade principal, salvo se essa atividade principal tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos três meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência; nos restantes casos, presume-se, até prova em contrario, que o centro dos interesses principais do devedor pessoa singular é o lugar de residência habitual deste, salvo se essa residência habitual tiver sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.
8- Daí que os tribunais portugueses sejam internacionalmente incompetentes para a abertura de um processo principal de insolvência instaurado em 2023, em que os devedores se apresentam à insolvência (apesar de se verificarem os elementos de conexão com a ordem jurídica portuguesa mencionados na conclusão 3, os quais não relevam como elementos de conexão relevantes para efeitos do Regulamento para determinar a competência internacional entre as jurisdições dos Estados-Membros), quando estes residem em França desde 2013, país onde exercem a sua atividade profissional por conta de outrem, sendo, por isso, em França que se situa o seu centro de interesses principais, o que determina que sejam os tribunais franceses os internacionalmente competente para determinarem a abertura do «processo principal de insolvência».
9- E os tribunais portugueses são também internacionalmente incompetentes para determinarem a abertura de um «processo secundário de insolvência», apesar do único património dos devedores se situar em Portugal (um prédio) e ser regulado pela ordem jurídica interna portuguesa (caso das heranças indivisas), dado que esse património não constitui “estabelecimento” para efeitos do Regulamento.
10- Na medida em que o regime jurídico previsto no n.º 2, do art. 294º do CIRE contraria o regime jurídico enunciado no Regulamento, aquela norma não é aplicável às insolvências transfronteiriças às quais seja aplicável o Regulamento.
*
V- Decisão:

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar a presente apelação improcedente e, em consequência:
- confirmam a decisão recorrida.
*
Custas da apelação pelos apelantes (arts. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
*
Notifique.
*
Guimarães, 14 de setembro de 2023
Assinado eletronicamente pelos Juízes Desembargadores:

José Alberto Moreira Dias – Relator
Alexandra Amaria Parente Lopes – 1ª Adjunta
Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade – 2ª Adjunta
 


[1] Manuel de Andrade, “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pág. 304.
[2] Manuel de Andrade, ob. cit., pág. 305.
[3] Antunes Valera, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1985, págs. 104 e 105, 
[4] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 136, em que expendem que: “A decisão que declare a incompetência absoluta do tribunal apenas produz caso julgado formal, não vinculando nem o tribunal para onde os articulados eventualmente sejam remetidos (art. 99º, n.º 2), nem qualquer outro onde venha a ser proposta a segunda ação, a não ser que a competência tenha sido definida pelo Supremo ou pelo Tribunal dos Conflitos, nos termos do art. 100º”.
[5] Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, “Manual de Processo Civil”, 2ª ed., Coimbra Editora, 1995, págs. 104 e 105.
[6] Entre outos, Acs. RP., de 26/04/2021, Proc. 12588/19.8T8PRT-A.P1; RG., de 31/01/2019, Proc. 621/17.2T8FAF.G1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos a que se venha a fazer referência sem menção em contrário.
[7] Remédio Marques, “Ação Declarativa”, 3ª ed., 2011, pág. 268.
[8] Teixeira de Sousa, “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, Lex, Lisboa 1997, pág. 93.
[9] Acs. RP., de 13/03/2017, Proc. 13923/16.6T8PRT.P1; R.L., de 23/02/2023, Proc. 4398/21.9T8LSB.L1-8, em que se afirma a receção direta, na ordem jurídica portuguesa, do regime jurídico fixado nos Regulamentos da União Europeia e a prevalência deste face ao direito ordinário interno.
[10] Para maiores desenvolvimentos, Jorge Miranda e Rui Medeiros, “Constituição Portuguesa Anotada”, tomo 1, 2ª ed., Wolters Kluwer e Coimbra Editora, págs. 158 a 170.
[11] Ac. R.L., de 09/01/2023, Proc. 2943/22.1T8FNC-B.L1-1, em que se expende que: “O momento relevante para a aferição de pressupostos de natureza processual é a data da instauração da ação”.
[12] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, abril de 2018, pág. 613; Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., Almedina, págs. 553 a 554.
[13] Catarina Serra, ob. cit., págs. 619 a 622; Maria do Rosário Epifânio, ob. cit., págs. 555 a 557.
[14] Ac. RG. de 22/05/2014, Proc. 2304/13.3TBVCT-A.G1, proferido no âmbito do Regulamento (CE) n.º 1346/2000, de 29 de maio, em que a decisão recorrida indiscutivelmente se inspirou, em que se pondera: “Demonstrando-se que o centro de interesses do devedor não é em Portugal, mas em França, são os tribunais deste último Estado-Membro os internacionalmente competentes para conhecerem do pedido de insolvência do devedor (processo principal de insolvência)”.
[15] Ac. R.C., de 13/12/2022, Proc. 2615/22.7T8CBR.C1: “Os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes para a abertura de um processo principal de insolvência, como de um processo particular (na terminologia do art. 249º e processo territorial e secundário na terminologia do Regulamento (UE) 2015/848), quanto a duas pessoas de nacionalidade portuguesa, casadas entre si, que residem e trabalham em França - quando foi proposta a ação já residiam habitualmente naquele país, sendo que em Portugal têm residência ocasional -, onde se encontram emigrados, por ser aí que se situa o “centro dos interesses principais do devedor”, aquele “em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros”. Nesse âmbito, as normas de competência relevantes não erigem, como fatores de atribuição de competência internacional, o local onde foram praticados os factos que servem de fundamento ao pedido de insolvência, local de origem do passivo e o local onde os credores/pessoas coletivas foram constituídas e têm a sua sede. Situando-se em Portugal o único bem pertença dos requeridos, mas não constituindo um estabelecimento, é de concluir que a requerente não está em condições de se prevalecer do art. 3º, n.º 2, do Regulamento para requerer a abertura, em Portugal, de um processo particular de insolvência dos requeridos, com efeitos limitados ao imóvel situado em território português”.
[16] Carvalho Fernandes e João Labareda, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 3ª ed., Quid Juris, págs. 933 a 934, onde expendem que: “O objetivo único do comando (contido no art. 275º) é o de reiterar a regra do primado do Direito comunitário e, bem assim, dos tratados internacionais a que o Estado português voluntariamente se vinculou, naturalmente enquanto vigorarem. O que de um e outros puder, pois, resultar em contrário das normas de conflitos consagradas prevalece sobre eles. Neste contexto, o preceito seria, em rigor, dispensável, por força dos princípios constitucionais vigentes (art. 8º da Const.) e as regras da hierarquia das hierarquias. Sem embargo, pode adiantar-se, a benefício de melhor esclarecimento que advirá das anotações respetivas, que, na generalidade, os artigos posteriores se inspiram fortemente nos preceitos congéneres do Regulamento, assumindo muitas vezes soluções idênticas. Nem sempre assim é, porém, e daí a preocupação do legislador em ressalvar o primado das normas comunitárias e, por acréscimo, das que resultem dos tratados internacionais”.  
[17]Ac. R.L., de 02/05/2023, Proc. 2615/21.4T8PDL.L1-1: “As normas de conflitos previstas nos arts. 275º a 296º do CIRE são aplicáveis a todas as situações de insolvência, incluindo aos processos internacionais de insolvência não abrangidos pelo Regulamento (UE) n.º 2015/848”.
[18] Catarina Serra, ob. cit., págs. 630 e 631; Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 965, lendo neste que: “A admissibilidade de um processo de insolvência com efeitos limitados, em termos substancialmente idênticos aos do art. 294º, está também consagrada no art. 3º, n.º 2, do Regulamento. Há, porém, duas diferenças no regime dos dois preceitos que é mister considerar. Por um lado, o art. 3º, exige, como pressuposto do processo territorial (particular), que o devedor possua estabelecimento no território do Estado-Membro onde se pretende proceder à abertura. Por outro lado, a legalidade do processo territorial depende da conformidade da conformidade com o disposto no n.º 4 do art. 3º, o que implica, por regra, a acessoriedade e subsidiariedade do processo territorial. Ora, se bem que, à vista do que dispõe o art. 2º do art. 294º, fique dificultado o recurso a processo particular quando o devedor não tem estabelecimento no país, a verdade é que esse facto não é essencial e não há condicionamentos equiparados aos do Regulamento quanto à normal procedência de um processo principal. Em face desta diversidade de regime, e sendo a lei nacional mais generosa no que respeita à admissibilidade do processo particular (territorial), cabe perguntar da possibilidade de abrir e fazer seguir em Portugal um processo deste tipo quando seja aplicável o Regulamento – por o centro dos interesses principais do devedor se situar num Estado-Membro da União Europeia -, sem que, todavia, estejam integralmente satisfeitos os requisitos do seu art. 3º, v.g., se faltar um estabelecimento localizado no território nacional. Á questão colocada respondemos negativamente. Se bem avaliamos a fundamentação do diploma regulamentar, resulta dele a intenção do legislador comunitário em estabelecer uma disciplina comum ao processo de insolvência, nos aspetos abrangidos, e que as legislações internas dos Estados-Membros não podem afastar. Isto é particularmente sensível nas considerações n.ºs 8, 11 e 12 do Preâmbulo do Regulamento. Opta-se, assim, por aquilo a que é comum chamar de harmonização máxima, que não deixa aos Estados-Membros a faculdade de ir mais além, mesmo quando isso pudesse parecer mais favorável aos interesses em jogo.
Ainda, Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 11º ed., Almedina, pág. 320, onde citando Helena Brito, pondera que “face às características e efeitos do processo particular de insolvência, não se compreende a relevância da remissão do n.º 2, sendo que, em qualquer caso, a norma só pode aplicar-se a um processo de insolvência não abrangido pelo (hoje) Regulamento (UE) n.º 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de maio de 2015, que atribui sempre competência aos tribunais do Estado-Membro, em cujo território se situe um estabelecimento do devedor. O aditamento do n.º 3 clarificou esse entendimento”.