EXONERAÇÃO DO PASSIVO
NULIDADE DA DECISÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
DECISÃO FINAL
NÃO PROLAÇÃO NO PRAZO DE 10 DIAS - ART.º 244.º N.º 1 DO CIRE
INUTILIDADE DA REPONDERAÇÃO DA DECISÃO FACTUAL
RECUSA DA EXONERAÇÃO DO PASSIVO
REQUISITOS
Sumário


I – Não padece de nulidade por excesso de pronúncia, por violação do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, a decisão final proferida no procedimento de exoneração do passivo restante que decide recusar a exoneração, sem que tal lhe tenha sido requerido, porquanto, se não tiver ocorrido cessação antecipada, tal decisão tem sempre que ser proferida, não dependendo de requerimento dos credores ou do fiduciário e podendo essa decisão basear-se em factos não alegados, em conformidade com o princípio do inquisitório consagrado no art. 11º do CIRE, o qual é aplicável ao procedimento de exoneração.
II - O prazo de 10 dias previsto no art. 244º, nº 1, do CIRE é meramente programático ou ordenador e da lei não decorre qualquer consequência jurídica quanto ao seu desrespeito. Consequentemente, pese embora a decisão final sobre a exoneração do passivo restante tenha sido proferida para além do aludido prazo, tal não preclude a possibilidade de a decisão ser proferida nem afeta a sua validade.
III - Em situações de irrelevância para o conhecimento do mérito da causa, visto os factos impugnados não serem suscetíveis de influenciar decisivamente a decisão do pleito segundo as diferentes soluções plausíveis de direito, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão factual proferida pela 1.ª instância.
IV - Da al. a) do nº 1 do art. 243º do CIRE decorre que para que exista fundamento para recusa da exoneração do passivo restante não basta a mera ocorrência de uma violação das obrigações impostas ao insolvente e descritas no art. 239º do mesmo diploma, sendo necessário que o incumprimento dessa obrigação tenha sido praticado de forma dolosa ou com grave negligência, que tenha prejudicado a satisfação dos credores da insolvência e que exista nexo de causalidade entre a aludida violação e o prejuízo causado aos credores, requisitos estes que são cumulativos.

Texto Integral


Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

Por sentença, de 02.07.2013, foi declarada a insolvência de AA e BB.
Os insolventes requereram a exoneração do passivo restante.
Em 04.11.2013 foi proferido despacho que considerou inexistirem motivos para indeferir liminarmente os pedidos de exoneração do passivo restante e fixou o valor do rendimento disponível a ceder ao fiduciário nos seguintes termos:
No que se refere ao rendimento disponível, há que considerar que o agregado familiar dos insolventes é composto por eles e dois menores.
Este agregado familiar tem uma dimensão semelhante à de grande parte dos agregados familiares portugueses, já que o nº de menores dependentes não é superior à média nem integram o agregado maiores sem quaisquer fontes de rendimentos.
Contudo, e segundo informações prestadas pelos devedores, a filha mais nova do casal, de 22 meses de idade, padecerá de Síndrome de Down, o que poderá acarretar despesas escolares acrescidas.
Como tal, entendo que o rendimento disponível deverá ser fixado em toda a quantia que exceda os € 550 mensais (líquidos) por cada um dos elementos que compõem o agregado familiar, aqui se incluindo o subsídio de férias e/ou de natal que lhes venha a ser processado.
Consequentemente, declaro que a exoneração requerida será concedida desde que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o rendimento disponível que os insolventes venham auferir se considere cedido ao fiduciário abaixo indicado.

Em 8.1.2019 foi proferido despacho que declarou encerrado o processo de insolvência.

O Sr. Fiduciário elaborou os relatórios anuais a que alude o art. 61.º, nº1, aplicável ex vi art. 240º, nº 2, ambos do CIRE, juntos aos autos em 29.1.2019, 27.6.2019, 7.7.2020, 13.7.2021 e 6.5.2022, os quais se dão aqui por integralmente reproduzidos, para todos os efeitos legais.
Nos relatórios de 29.1.2019, 27.6.2019, 7.7.2020 e 13.7.2021, relativos aos 1º a 4º anos do período de cessão, o Sr. Fiduciário considerou que não existia qualquer valor a ceder por os valores auferidos pelos insolventes não excederem o rendimento indisponível.
No relatório de 6.5.2022, referente ao 5º ano do período de cessão, o Sr. Fiduciário considerou que os insolventes tinham a ceder o valor de € 1 022,49, face aos valores que haviam sido auferidos em setembro de 2021, no montante de € 2 352,40, os quais excediam a quantia de € 1 330 €.
Os referidos relatórios foram notificados aos insolventes e aos credores.

Na sequência da notificação deste último relatório, o insolvente, em 5.5.2022, apresentou requerimento no qual refere que discorda do entendimento do Sr. Fiduciário de que tem de entregar a quantia de € 1 022,49, considerando que nada tem a entregar porquanto os rendimentos auferidos não excedem o valor do rendimento indisponível visto que o mesmo tem de ser calculado através do cômputo global dos rendimentos anuais, dividido pelo número correspondente aos meses do ano. Assim, uma vez que o rendimento médio mensal percebido é inferior ao rendimento indisponível, considera que nada tem a ceder.

O requerimento em questão não foi objeto de apreciação e decisão no tribunal a quo.

Em 21.4.2022 foi proferido despacho que declarou que o período de cessão se considera findo com a entrada em vigor da Lei 9/2022, de 11.1, e determinou a notificação dos insolventes, do fiduciário e dos credores reconhecidos, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 244.º, nº 1, do CIRE, notificação que foi efetuada com data de 22.4.2022, não tendo os credores ou o fiduciário requerido que fosse indeferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes.

*
Em 27.2.2023 foi proferida decisão com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto, ao abrigo do disposto no art. 243.º/1/al.a) CIRE, ex vi art. 244.º/2 CIRE, recuso a exoneração do passivo restante requerida por AA e BB.”
*
O insolvente AA. não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

1ª - O Tribunal recorrido recusou a exoneração do passivo restante requerida por AA, aqui recorrente.
2ª - Para fundamentar “de facto” a decisão proferida, o Tribunal a quo descriminou – como relevante para a decisão a proferir – a seguinte factualidade:

“- Por sentença datada de 02.07.2013, a fls. 63ss transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA e BB, na sequência da apresentação à insolvência efectuada pelos insolventes;

- Por despacho datado de 04.11.2013, a fls. 136ss, transitado em julgado, foram liminarmente admitidos os pedidos de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que os insolventes deveriam ceder ao fiduciário a quantia que excedesse a quantia mensal líquida de €550 por cada um dos devedores;

- O processo de insolvência foi encerrado em 08.01.2019;

- Os insolventes nunca entregaram à fidúcia qualquer quantia (cfr. relatórios remetidos aos autos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 61.º/1 CIRE ex vi art. 240.º/2 CIRE em 29.01.2019, a fls. 332ss, em 27.06.2019, a fls. 391ss, 07.07.2020, a fls. 446ss, 13.07.2021, a fls. 498ss, e 06.05.2022, a fls. 551ss);

- O insolvente-marido auferiu as seguintes quantias durante o período de cessão:

- Entre Julho de 2017 e Junho de 2018, €1.694,56 a título de rendimento social de inserção (cfr. informação do ISS remetida aos autos a 13.02.2019 e que se encontra a fls. 349v);
- Entre Julho de 2018 e Setembro de 2018, €66,78 a título de rendimento social de inserção (cfr. informação do ISS remetida aos autos a 27.06.2019 e que se encontra a fls. 396);

- O insolvente-marido esteve inscrito em centro de emprego entre 23.05.2017 e 22.05.2018, data em que solicitou a anulação da inscrição para apoio a descendente, e novamente entre 01.04.2019 e 09.10.2019 (cfr. informações do IEFP de 09.09.2019, a fls. 430, e de 12.09.2021, a fls. 516, e) e a partir de 03.09.2021;

- A insolvente-mulher auferiu as seguintes quantias mensais líquidas durante o período de cessão (cfr. recibos de vencimento juntos aos autos em 13.02.2019, a fls. 350ss, em 07.06.2019, a fls. 385ss, em 27.06.2019, a fls. 398ss, em 06.09.2019, a fls. 423ss, e informações do ISS reportadas ao subsídio de desemprego a fls. 413v/414, de 19.10.2020, a fls. 474, de 14.09.2021, a fls. 520ss e de 30.01.2023, a fls. 628 ):



- Em Novembro de 2019 o insolvente-marido adquiriu o veículo automóvel de matrícula ..-..-SB (cfr. informação a fls. 458 e requerimento do insolvente de 12.10.2020, a fls. 465v);

- Aos insolventes não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. CRC a fls. 550v e 555)”.

3ª - Considerando que é o próprio Tribunal recorrido que infere que “(…) foram liminarmente admitidos os pedidos de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que os insolventes deveriam ceder ao fiduciário a quantia que excedesse a quantia mensal líquida de €550 [equivalente ao salário mínimo nacional + 13,4%] por cada um dos devedores”, deveria o facto descrito no 2º travessão da factualidade dada por provada ser alterado, dando-se por provado que::

- Por despacho datado de 04.11.2013, a fls. 136ss, transitado em julgado, foram liminarmente admitidos os pedidos de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que os insolventes deveriam ceder ao fiduciário a quantia que excedesse a quantia mensal líquida de €550, equivalente ao salário mínimo nacional + 13,4%, por cada um dos devedores.

4ª - O insolvente justificou devida e validamente a aquisição do veículo automóvel de matrícula ..-..-SB - cfr. requerimento de 12.10.2022, com a referência ...95 -, justificação que não foi objecto de qualquer oposição pelos credores ou pelo Senhor Fiduciário, pelo que deveria ter sido dado por provado, aditando-se à factualidade dada por provada, que:

- A aquisição do veículo automóvel de matrícula ..-..-SB pelo insolvente e pelo preço de 200,00€, deveu-se à necessidade premente de efectuar deslocações inerentes aos tratamentos da sua filha, bem como para o seu trabalho.

5ª - Não tendo havido cessação antecipada, o julgador não tem o poder discricionário de, oficiosamente, decidir no termo do período da cessão, pela não concessão da exoneração do passivo restante dos recorrentes.

6ª - A decisão recorrida violou o disposto nos artigos 243º n.º 1 a 3 ex vi art.º 244º, n.º 1 e 2 do CIRE e, bem assim, no art.º 11º do mesmo diploma legal.

7ª - A decisão recorrida é, nos termos do disposto no art.º 615º, n.º 1, al. d) e n.º 4 e 613º, n.º 3, do CPC ex vi art.º 17.º do CIRE, nula por excesso de pronúncia, atendendo a que o julgador conheceu questões de que não podia, nos termos da lei, tomar conhecimento.

8ª - A decisão recorrida foi proferida não 10 dias depois do termo do período da cessão, mas 321 dias depois desse momento, razão pela qual violou o disposto no art.º 244º, n.º 1, ab initio do CIRE e, consequentemente, o disposto no art.º 9.º do mesmo diploma legal.

9ª - O período em que o recorrente não se encontrou inscrito no centro de emprego deveu-se à necessidade de apoio a descendente.

10ª - Nenhum facto resulta dos autos que demonstre que a “não procura activa de emprego”, pelo recorrente, importou um prejuízo para a satisfação dos créditos sobre a insolvência.

11ª - O recorrente, apenas com a notificação do relatório final de cessão/parecer final apresentado pelo Senhor Fiduciário, em 28.04.2022, tomou conhecimento do entendimento daquele no sentido de que “(n)o período de julho de 2021 até abril de 2022, os rendimentos mensais auferidos pelos insolventes geraram o valor de 1.022,49 a título de valores objecto de cessão”.

12ª - Até ao dia 28.04.2022 nunca ao recorrente foi solicitada a entrega de qualquer quantia.

13ª - Notificado da posição expressa no relatório identificado na conclusão 11ª, o recorrente, tempestivamente e por requerimento de 05.05.2022, referência ...33, reagiu contra a mesma.

14ª - A quantia a ceder ao Fiduciário deverá ser apurada através do cômputo global dos rendimentos anuais dos devedores, considerando-se a soma dos rendimentos dos dois, enquanto rendimento do agregado familiar.

15ª - Tomando em consideração o rendimento líquido auferido anualmente pelos insolventes conclui-se que o mesmo é inferior ao rendimento indisponível, nos termos fixados pelo Tribunal recorrido, conforme quando infra:


AnoRendimento anual recebido pelos devedoresRendimento indisponível
20172.902,20€ (6 meses)7.579,68€ (6 x 631,64€ x 2)
20186.340,72€ (12 meses)15.785,28€ (12 x 657,72€ x 2)
20197.209,45€ (12 meses)16.329,60€ (12 x 680,40€ x 2)
202014.884,66€ (12 meses)17.282,16€ (12 x 720,09€ x 2)
202116.331,05€ (12 meses)18.098,64€ (12 x 754,11€ x 2)
20223.079,02€ (4 meses)6.395,76€ (4 x 799,47€ x 2)



16ª - Nenhuma quantia há a ceder ao Fiduciário pelos devedores, in casu, pelo recorrente.

17ª - As normas contidas no art.º 239º, números 2 e 3 e 240º, n.º 2 do CIRE, quando interpretadas no sentido de que o rendimento objecto de cessão é aferido mensalmente e apenas e individualmente considerando os rendimentos de cada um membros do agregado familiar (insolventes), é materialmente inconstitucional por violadora dos princípios da dignidade da pessoa humana, da determinabilidade na dimensão proibição do excesso e dos subprincípios da proporcionalidade e da razoabilidade previstos, respectivamente, nos artigos 1º, 26º, 59º n.º 2, e 18º, bem como dos princípios da segurança jurídica e da protecção da confiança, previstos no art.º 2.º da Constituição da República Portuguesa. Inconstitucionalidade que expressamente se invoca para todos os legais efeitos.

18ª - Os insolventes não actuaram com dolo ou negligência grave, nem nada nos autos o permite inferir.

19ª - Inexistiu, durante todo o período de cessão, um único momento intelectual em que o recorrente tenha dirigido a sua vontade no sentido de incumprir qualquer dos deveres que sobre si impendiam.

20ª - A conduta do insolvente foi sempre do cumprimento escrupuloso de todos os deveres a que se encontrava adstrito, para, dessa forma, lhe ser concedido o benefício da exoneração do passivo restante, não se tendo questionado ao longo do percurso, uma única vez, se tal benefício lhe seria negado, nunca representou o presente desfecho, sequer, como possível, nunca representou o presente desfecho, sequer, como provável, e, nessa medida, para a verificação do requisito da negligência grave, sempre seria necessário que a produção do evento fosse previsível para os insolventes, o que não foi, nem tal previsibilidade lhe pode ser assacada.

21ª - A decisão do Tribunal a quo tem uma consequência demasiado gravosa para o insolvente quando comparada com o prejuízo causado aos credores, violando o Princípio da proporcionalidade constitucionalmente regulado no art.º 18º, n.º 2, da CRP.

22ª - O insolvente não violou, durante o período de cessão, quaisquer das obrigações a que se encontrava vinculado, máxime da obrigação de procura diligente de emprego e de entregar ao fiduciário o rendimento disponível.

23ª - In casu, não se verificam nenhum dos pressupostos necessários e previstos na lei para fundamentar a decisão da recusa da exoneração do passivo restante Não se verificam os pressupostos que a recusa da exoneração exige.

24ª - A decisão recorrida violou o disposto no art.º 243º, n.º 1, al. a) ex vi art.º 239º, todos do CIRE.
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
*
O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
*
Pese embora no tribunal a quo não tenha sido proferido o despacho referido no art. 617º, nº 1, do CPC, relativo à nulidade da decisão que foi invocada, não se determinou a baixa dos autos à 1ª instância por não se verificar a situação de indispensabilidade referida no nº 5, do art. 617º, do mesmo diploma, aqui aplicável ex vi art. 17º, nº 1, do CIRE.
*
Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:

I - saber se a decisão padece de nulidade por violação do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC;
II - saber quais as consequências da não prolação da decisão final no prazo de 10 dias a que alude o art. 244º, nº1 do CIRE;
III - saber se a matéria de facto deve ser alterada;
IV - saber se se verificam, ou não, os pressupostos legais para recusar a exoneração do passivo restante.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

- Por sentença datada de 02.07.2013, a fls. 63ss transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA e BB, na sequência da apresentação à insolvência efectuada pelos insolventes;
- Por despacho datado de 04.11.2013, a fls. 136ss, transitado em julgado, foram liminarmente admitidos os pedidos de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que os insolventes deveriam ceder ao fiduciário a quantia que excedesse a quantia mensal líquida de €550 por cada um dos devedores;
- O processo de insolvência foi encerrado em 08.01.2019;
- Os insolventes nunca entregaram à fidúcia qualquer quantia (cfr. relatórios remetidos aos autos nos termos e para os efeitos do disposto no art. 61.º/1 CIRE ex vi art. 240.º/2 CIRE em 29.01.2019, a fls. 332ss, em 27.06.2019, a fls. 391ss, 07.07.2020, a fls. 446ss, 13.07.2021, a fls. 498ss, e 06.05.2022, a fls. 551ss);
- O insolvente-marido auferiu as seguintes quantias durante o período de cessão:
-Entre Julho de 2017 e Junho de 2018, €1.694,56 a título de rendimento social de inserção (cfr. informação do ISS remetida aos autos a 13.02.2019 e que se encontra a fls. 349v);
-Entre Julho de 2018 e Setembro de 2018, €66,78 a título de rendimento social de inserção (cfr. informação do ISS remetida aos autos a 27.06.2019 e que se encontra a fls. 396);


201720182019202020212022
Janeiro ====____€715,04€723,83€509,68
Fevereiro ====____€721,75€768,61€509,68
Março ====____€1,353,67€931,42€509,68
Abril ====____€588,79€731,54€509,68
Maio ====____€565,15€747,13
Junho ====____€737,46€727,09
Julho========____€1.282,73€1.135,92
Agosto========____€653,53€649,35
Setembro========€663,24€723€2.825,471
Outubro====____€668,45€729,83€504,63
Novembro====____€905,11€1.302,24€504,63
Dezembro====____€862,62€653,53€504,63

1 Inclui €470,98 a título de subsídio de desemprego – cfr. fls. 570vss
(cfr. recibos de vencimento remetidos aos autos em 12.10.2020, a fls. 466ss, em 03.11.2020, a fls. 478vss, em 01.10.2021, a fls. 524ss, 05.05.2022, a fls. 549, 23.05.2022, a fls. 569, 14.12.2022, a fls. 614, 18.01.2023, a fls. 626, e informações do ISS remetidas em 02.06.2022, a fls. 570/570v)
-           O insolvente-marido esteve inscrito em centro de emprego entre 23.05.2017 e 22.05.2018, data em que solicitou a anulação da inscrição para apoio a descendente, e novamente entre 01.04.2019 e 09.10.2019 (cfr. informações do IEFP de 09.09.2019, a fls. 430, e de 12.09.2021, a fls. 516, e) e a partir de 03.09.2021;
-           A insolvente-mulher auferiu as seguintes quantias mensais líquidas durante o período de cessão (cfr. recibos de vencimento juntos aos autos em 13.02.2019, a fls. 350ss, em 07.06.2019, a fls. 385ss, em 27.06.2019, a fls. 398ss, em 06.09.2019, a fls. 423ss, e informações do ISS reportadas ao subsídio de desemprego a fls. 413v/414, de 19.10.2020, a fls. 474, de 14.09.2021, a fls. 520ss e de 30.01.2023, a fls. 628 ):



201720182019202020212022
Janeiro ____€586,50€387,15€387,15€520,15
Fevereiro ________€387,15€387,15€520,15
Março €566,20€38,73€387,15€387,15____
Abril €563,70€387,30€387,15€387,15____
Maio €568,70€387,30€387,15€387,15
Junho €566,20€387,30€387,15€520,15
Julho€592,04€571,20€387,15€435€520,15
Agosto€569,54€819,76€387,15€435€520,15
Setembro€577,04€561,20€387,15€435€520,15
Outubro€589,54€571,20€387,15€435€520,15
Novembro€592,04€568,70€387,15€407,89€520,15
Dezembro____€983,86€387,15€387,15€520,15


-           A insolvente-mulher esteve inscrita em centro de emprego entre 29.03.2019 e (cfr. informação do IEFP remetida aos autos em 12.09.2021, a fls. 516)
-           Em Novembro de 2019 o insolvente-marido adquiriu o veículo automóvel de matrícula ..-..-SB (cfr. informação a fls. 458 e requerimento do insolvente de 12.10.2020, a fls. 465v);
- Aos insolventes não são conhecidos antecedentes criminais (cfr. CRC a fls. 550v e 555).
*
Para além destes factos há ainda a considerar os factos que se encontram descritos no relatório, os quais resultam da consulta do iter processual.

FUNDAMENTOS DE DIREITO

I - Nulidade da decisão

Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, aqui aplicável ex vi art. 17º, nº 1, do CIRE, que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.

As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença.
As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).

A nulidade decorrente de o juiz apreciar ou conhecer questões de que não podia tomar conhecimento, vulgarmente denominada como excesso de pronúncia, ocorre quando o tribunal conhece de questões que não foram suscitadas pelas partes e que não são de conhecimento oficioso.
A nulidade da sentença por excesso de pronúncia resulta da violação do disposto no n.º 2 do art. 608.º, do CPC, nos termos do qual o juiz não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.
É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que o excesso de pronúncia se traduz na violação do princípio do dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes.
Deste modo, só haverá nulidade da sentença por excesso de pronúncia quando o julgador tiver conhecido de questões que as partes não submeteram à sua apreciação, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir.
Ressalva-se da anterior afirmação os casos em que existam questões de conhecimento oficioso, de que o tribunal pode conhecer sem sujeição à prévia iniciativa das partes, e as matérias em que vigore o princípio do inquisitório.

O recorrente considera que o tribunal a quo não podia ter recusado a exoneração do passivo restante sem que tal lhe tivesse sido requerido pelo fiduciário ou pelos credores.
Alicerça esta pretensão na remissão que é feita no art. 244º para o regime da cessação antecipada da exoneração, constante do art. 243º, ambos do CIRE, defendendo que, assim como a cessação antecipada só pode ter lugar caso haja requerimento nesse sentido por parte de algum credor, do administrador da insolvência ou do fiduciário, a recusa de exoneração também depende de idêntico requerimento e, não tendo este sido apresentado, tal impede que o tribunal possa recusar a exoneração.
Invoca ainda que não é aplicável à exoneração do passivo restante a possibilidade de recurso ao princípio do inquisitório, consagrado no art. 11º do CIRE, pois que tal normativo se aplica exclusivamente ao processo de insolvência, aos embargos e ao incidente de qualificação de insolvência.
Com base nestes fundamentos essenciais conclui que o tribunal a quo, ao recusar a exoneração do passivo restante sem tal lhe ter sido requerido, conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, em violação do disposto no art. 615º, nº 1, al. d) do CPC, o que gera a nulidade da decisão.

Vejamos se lhe assiste razão.

A exoneração do passivo restante, que se encontra prevista nos arts. 235º a 248º-A, do CIRE, é uma figura que tem como objetivo primordial conceder uma “segunda oportunidade” ao devedor singular que caia em situação de insolvência de recomeçar vida nova no fim do período de 3 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito daquele processo (cf. Acórdãos do STJ de 21/10/2010 e 19/04/2012, in www.dgsi.pt).
Conforme se afirma relativamente à figura jurídica da exoneração do passivo restante no nº 45 do preâmbulo do DL nº 53/2004, de 18.3, que aprovou o CIRE, o “Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. (...)
O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. (...)
A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”

A exoneração do passivo restante inspira-se, pois, no chamado modelo de fresh start amplamente difundido no Estados Unidos e acolhido no código da insolvência alemão visando permitir ao devedor pessoa singular libertar-se do peso das dívidas que não podem ser satisfeitas através da liquidação do seu património e recomeçar de novo a sua vida.
Subjacente a este instituto está a ideia de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de redenção para uma nova vida, o que passa por sacrifícios para ambas as partes (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.1.2016, Relatora Maria Cristina Cerdeira, in www.dgsi.pt).
Nas palavras de Catarina Serra, (in O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, pp. 102 e 103) trata-se de um instituto “tributário da ideia de fresh start”, sendo o seu objectivo final “a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica”.

A concessão da exoneração passa por dois momentos fundamentais caracterizados basicamente por duas decisões: o chamado despacho inicial e a decisão final da exoneração.
Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que, durante os 3 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário destinando-se ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, ao reembolso ao IGFEJ das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efetuadas e, por fim, à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 239º e 241º do CIRE.
No final do período da cessão será proferida decisão sobre a concessão, ou não, da exoneração e, sendo esta concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, ressalvando-se apenas os créditos elencados no nº 2 do art. 245º, do CIRE.
Portanto, no procedimento de exoneração do passivo restante têm sempre que ser proferidos os dois aludidos despachos: o despacho inicial e o despacho final.
Poderá vir a ser proferido despacho de cessação antecipada da cessão, o qual se encontra previsto no art. 243º, do CIRE, e, como o nome indica, fará cessar o procedimento antes de terminado o período de cessão sendo que, nessa hipótese, constituirá o despacho final do procedimento de exoneração.
A cessação antecipada poderá basear-se na verificação das circunstâncias enumeradas nas alíneas a) a c) do nº 1, referentes a atitudes do devedor que revelam que não se mostra merecedor da concessão de uma segunda oportunidade, ou na verificação da situação referida no nº 4, ou seja, quando ocorra a satisfação integral de todos os créditos da insolvência.
A cessação antecipada prevista no nº 1 do art. 243º só pode ser desencadeada por requerimento fundamentado de algum credor, do administrador da insolvência ou do fiduciário, não podendo ser declarada oficiosamente pelo juiz. O juiz só pode declarar a cessação antecipada oficiosamente na hipótese prevista no nº 4, ou seja, quando a finalidade da exoneração do passivo já foi alcançada pela via alternativa de satisfação integral de todos os créditos sobre a insolvência.
Como deixámos dito, formulado pedido de exoneração do passivo restante, o juiz tem sempre que proferir o despacho inicial a que alude o art. 239º do CIRE e, findo o período de cessão e desde que não tenha ocorrido a cessação antecipada, o despacho final a que alude o art. 244º do CIRE no qual se pronuncia sobre a concessão ou recusa da exoneração do passivo, sendo que a prolação destes dois despachos é obrigatória e não depende da apresentação de qualquer requerimento nesse sentido.
Na decisão final a proferir o juiz deve verificar se a exoneração deve ou não ser concedida, podendo a mesma ser recusada com base nos mesmos fundamentos e com subordinação aos mesmos requisitos que poderiam ter levado à cessação antecipada e que se encontram previstos no art. 243º, para o qual remete o art. 244º, nº 2, ambos do CIRE.
Esta remissão não significa que o juiz só pode recusar a exoneração se tal lhe for requerido pois tal entendimento implicaria que, caso nada fosse requerido quanto à recusa de exoneração, o juiz, aquando da prolação do despacho final, nada teria que apreciar e se limitaria a conceder a exoneração, sem efetuar qualquer controle efetivo sobre a verificação dos fundamentos de recusa.
Não nos parece que seja esta a solução que decorre da interpretação do art. 244º pois o nº 1 manda ouvir previamente o devedor, o fiduciário e os credores e estatui que, após tal audição, o juiz decide. Ora, se fosse intenção do legislador que em caso de ausência de pedido de recusa de exoneração o juiz não a pudesse decretar seguramente teria dito que nessa hipótese o juiz concederia a exoneração, ao invés de referir que o juiz decide sobre a concessão da exoneração, o que inculca a ideia de que a audição do devedor, fiduciário e credores se destina unicamente a permitir-lhes manifestar a sua posição sobre a matéria, a qual constitui um elemento que deve ser analisado e tido em conta na decisão, mas que, independentemente de tal posição ser ou não manifestada, cabe sempre ao juiz a decisão sobre se existe fundamento para recusar a exoneração e só se esse fundamento não existir é que a exoneração deverá ser concedida.
O nº 2 do art. 244º do CIRE, na parte em que refere a exoneração é recusada com subordinação aos mesmos requisitos que poderiam ter levado à cessação antecipada, não significa que o juiz só pode recusar a exoneração se tal lhe for requerido pelos credores ou pelo fiduciário, mas antes que estes, caso se pronunciem no sentido de recusa de exoneração, têm que se basear em fundamentos de que tenham tido conhecimento nos seis meses anteriores, ou de que pudessem ter tido conhecimento nesse prazo, sendo esse o sentido útil de tal remissão.

Por outro lado, na decisão final a proferir o juiz não tem que se circunscrever aos factos que sejam alegados pelo devedor, fiduciário ou credores, pois o princípio do inquisitório consagrado no art. 11º do CIRE permite-lhe que funde a decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes, sendo que a aplicação deste normativo não se encontra restringida ao processo de insolvência strito sensu, sendo igualmente aplicável quer ao incidente de qualificação da insolvência, quer à exoneração do passivo restante.
No sentido desta aplicabilidade, pronunciam-se Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões (in CIRE Anotado, 2013, pág. 39) dizendo “[j]á quanto ao pedido de exoneração do passivo restante, é abundante a jurisprudência no sentido de que é aplicável o regime do artigo 11º - v. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto, de 19 de dezembro de 2012 (processo nº 3087/11.7TBVCD.P1) relatora Maria João Areias, do Tribunal da Relação de Guimarães, de 31 de maio de 2012 (processo nº 1926/11.1TBBRG-G.G1) relatora Isabel Rocha, e do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20 de junho de 2012 (processo nº 1933/11.4 TBACB-D.G1), relator Carlos Gil; neste último decidiu-se claramente: “O artigo 11º do CIRE é aplicável ao pedido de exoneração do passivo restante”.

Na sequência do que se acaba de explanar, conclui-se que a decisão recorrida, ao ter recusado a exoneração do passivo restante sem que tal lhe tenha sido requerido pelos credores ou pelo fiduciário e, por conseguinte, baseando-se em factos que não foram alegados, não conheceu questão de que não podia tomar conhecimento, não se verificando a nulidade prevista no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC.

Questão diversa é a de saber se, no caso, se verificam os requisitos legais para recusar a exoneração, mas tal é matéria que se prende com a existência de erro de julgamento, e não com a existência de nulidade.

Nestes termos, julga-se improcedente a invocada nulidade da decisão.

II – Consequências da não prolação da decisão final no prazo de 10 dias a que alude o art. 244º, nº1 do CIRE

O recorrente invoca que a decisão final que recusou a exoneração do passivo restante e que é objeto de recurso violou o disposto no art. 244º, nº 1, do CIRE, visto que não foi proferida no prazo de 10 dias a que alude tal normativo, só tendo sido proferida passados 321 dias.

De acordo com o disposto no art. 244º, nº 1, do CIRE, não tendo havido lugar a cessação antecipada, ouvido o devedor, o fiduciário e os credores da insolvência, o juiz decide, nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão, sobre a respetiva prorrogação, nos termos previstos no artigo 242.º-A, ou sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor.

Ora, tendo em conta que a notificação dos insolventes, do fiduciário e dos credores para os efeitos previstos no citado normativo foi realizada com data de 22.4.2022 e que o despacho final sobre o pedido de exoneração foi proferido em 27.2.2023 é manifesto que não foi respeitado o prazo de 10 dias constante do art. 244º, nº 1, do CIRE.

Não obstante, tal prazo é meramente programático ou ordenador e da lei não decorre qualquer consequência jurídica quanto ao seu desrespeito.

Por isso, pese embora a decisão final sobre a exoneração do passivo restante tenha sido proferida para além do prazo de 10 dias previsto no art. 244º, nº 1, do CIRE, isso nem preclude a possibilidade de a decisão final ser proferida nem afeta a sua validade.

Improcede assim esta questão recursória.


III - Alteração da matéria de facto


Dispõe o artigo 662º, n.º 1, do C.P.C. que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.

O recorrente pretende que o segundo facto dado como provado, que tem a seguinte redação:

- Por despacho datado de 04.11.2013, a fls. 136ss, transitado em julgado, foram liminarmente admitidos os pedidos de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que os insolventes deveriam ceder ao fiduciário a quantia que excedesse a quantia mensal líquida de €550 por cada um dos devedores;


seja alterado, passando a ter a seguinte redação:

- Por despacho datado de 04.11.2013, a fls. 136ss, transitado em julgado, foram liminarmente admitidos os pedidos de exoneração do passivo restante, tendo-se consignado, entre outros, que os insolventes deveriam ceder ao fiduciário a quantia que excedesse a quantia mensal líquida de €550, equivalente ao salário mínimo nacional + 13,4%, por cada um dos devedores.

Do confronto das duas redações conclui-se que o recorrente pretende que se acrescente a expressão “equivalente ao salário mínimo nacional + 13,4%”.
Esta pretensão não pode proceder porquanto o despacho proferido em 4.11.2023 não contém esse teor. A circunstância de a quantia de € 550 corresponder ao salário mínimo nacional, vigente à data, acrescido de 13,4%, constitui matéria de interpretação jurídica do aludido despacho que é feita na decisão recorrida, razão pela qual não pode constar do acervo factual.
Porém, o facto também não se pode manter com a redação que lhe foi conferida pela 1ª instância porquanto, não é esse o teor do despacho proferido em 4.11.2013, o qual supra já se transcreveu parcialmente.
Assim, altera-se o 2º facto provado, em conformidade com o que consta do despacho proferido em 4.11.2013, passando o facto em questão a ter a seguinte redação:

- Em 04.11.2013 foi proferido despacho que considerou inexistirem motivos para indeferir liminarmente os pedidos de exoneração do passivo restante e fixou o valor do rendimento disponível a ceder ao fiduciário nos seguintes termos:
No que se refere ao rendimento disponível, há que considerar que o agregado familiar dos insolventes é composto por eles e dois menores.
Este agregado familiar tem uma dimensão semelhante à de grande parte dos agregados familiares portugueses, já que o nº de menores dependentes não é superior à média nem integram o agregado maiores sem quaisquer fontes de rendimentos.
Contudo, e segundo informações prestadas pelos devedores, a filha mais nova do casal, de 22 meses de idade, padecerá de Síndrome de Down, o que poderá acarretar despesas escolares acrescidas.
Como tal, entendo que o rendimento disponível deverá ser fixado em toda a quantia que exceda os € 550 mensais (líquidos) por cada um dos elementos que compõem o agregado familiar, aqui se incluindo o subsídio de férias e/ou de natal que lhes venha a ser processado.
Consequentemente, declaro que a exoneração requerida será concedida desde que durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão), o rendimento disponível que os insolventes venham auferir se considere cedido ao fiduciário abaixo indicado.
*
O recorrente pretende ainda que se adite um facto com a seguinte redação:

- A aquisição do veículo automóvel de matrícula ..-..-SB pelo insolvente e pelo preço de 200,00€, deveu-se à necessidade premente de efetuar deslocações inerentes aos tratamentos da sua filha, bem como para o seu trabalho.

Previamente à análise substancial da pretensão deduzida quanto à alteração da matéria de facto importa verificar se essa alteração é útil e relevante para a decisão a proferir, pois só nessa hipótese se justifica aceitar a dedução da impugnação.
Ao invés, em situações de irrelevância para o conhecimento do mérito da causa, visto os factos impugnados não serem suscetíveis de influenciar decisivamente a decisão do pleito segundo as diferentes soluções plausíveis de direito, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão factual proferida pela 1.ª instância.
Assim, e seguindo a esclarecedora linha de raciocínio traçada sobre esta matéria no Acórdão do STJ, de 17.5.2017, Relatora Fernanda Isabel Pereira (in www.dgsi.pt) “[o] princípio da limitação de actos, consagrado no artigo 130º do Código de Processo Civil para os actos processuais em geral, proíbe a sua prática no processo – pelo juiz, pela secretaria e pelas partes – desde que não se revelem úteis para este alcançar o seu termo.
Trata-se de uma das manifestações do princípio da economia processual, também aflorado, entre outros, no artigo 611º, que consagra a atendibilidade dos factos jurídicos supervenientes, e no artigo 608º n.º 2, quando prescreve que, embora deva resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, o juiz não apreciará aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.
Nada impede que também no âmbito do conhecimento da impugnação da decisão fáctica seja observado tal princípio, se a análise da situação concreta em apreciação evidenciar, ponderadas as várias soluções plausíveis da questão de direito, que desse conhecimento não advirá qualquer elemento factual, cuja relevância se projecte na decisão de mérito a proferir.
Com efeito, aos tribunais cabe dar resposta às questão que tenham, directa ou indirectamente, repercussão na decisão que aprecia a providência judiciária requerida pela(s) parte(s) e não a outras que, no contexto, se apresentem como irrelevantes e, nessa medida, inúteis.
Para se aferir da utilidade da apreciação da impugnação da decisão fáctica importa considerar se os pontos de facto questionados se não apresentam de todo irrelevantes, se a eventual demonstração dos mesmos é susceptível de gerar um juízo diferente sobre a questão de direito, se é passível de influenciar e, porventura, alterar a decisão de mérito no quadro das soluções plausíveis da questão de direito.”
No caso em apreço, verifica-se que a decisão recorrida recusou a exoneração do passivo restante com base em dois fundamentos:

1. violação, por parte do recorrente, da obrigação de procura diligente de emprego imposta pelo art. 239º, nº 4, al. b), do CIRE;
2. violação, por parte do recorrente, da obrigação de entrega de rendimentos objeto de cessão, imposta pelo art. 239º, nº 4, al. c), do CIRE.

A aquisição do veículo automóvel encontra-se provada e não foi objeto de impugnação.

De acordo com a decisão recorrida, tal aquisição, não constituiu fundamento para a recusa da exoneração do passivo restante e só é referida na fundamentação, de forma algo lateral, para efeitos de reforçar a ideia de que existia possibilidade de fazer entrega do valor cedido pois foi efetuada a aquisição de um veículo.
Dado o contexto em que tal matéria é referida na decisão e a circunstância de a aquisição do veículo estar provada e não ser objeto de impugnação, considera-se que os concretos motivos que levaram o recorrente a adquirir o veículo e o custo do mesmo não relevam para a decisão proferir pelo que não se considera que exista utilidade na apreciação da impugnação deduzida e que seja útil aditar a factualidade pretendida.

Nestes termos, rejeita-se, por inutilidade para a decisão a proferir, a pretensão de aditamento do facto atrás referido.
*

IV – Análise da verificação dos pressupostos legais para recusa da exoneração do passivo restante

Como já acima aflorámos, caso a exoneração seja concedida ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, não ficando abrangidos pela extinção unicamente os créditos elencados no art. 245º, nº 2, do CIRE.
Dada esta consequência da concessão da exoneração, e como assertivamente se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 5.3.2020, Relator José Alberto Moreira Dias (in www.dgsi.pt)porque o instituto em causa pressupõe uma colisão de direitos constitucionalmente protegidos e a concordância prática entre eles, procurando-se, em primeira linha, salvaguardar os interesses do devedor insolvente e, bem assim os dos seus credores (estes, a título secundário), é indiscutível que o instituto da exoneração não consubstancia, sequer pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor”, pelo que o perdão das dívidas não pode ser concedido ao insolvente, pessoa singular, sem critérios mínimos de razoabilidade, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material e se banalizar o próprio instituto, ao qual todos recorreriam, sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que a exoneração tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, sequer que o processo judicial possa ser uma porta aberta para atingir semelhante desiderato.
Por isso, prossegue aquele Acórdão dizendo que o devedor “terá de passar por uma espécie de período de prova (período de cessão), durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes, isto é, que permanecem por pagar uma vez feita a liquidação da massa insolvente, e durante o qual o insolvente ficará sujeito a um conjunto de obrigações. Apenas findo esse período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício.
Deste modo, atenta a colisão de direitos de credores e devedor que se assiste no instituto da exoneração, a filosofia e a ratio que lhe está subjacente e porque a exoneração é rigorosamente uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária ou avulsa relativamente às causas de extinção das obrigações previstas no CC (arts. 837º a 874º do CC), para que a exoneração do passivo restante seja concedida é necessário que antes do processo de insolvência, durante este e, bem assim até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que lhe confira a exoneração (art. 246º do CIRE), o devedor singular justifique ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”.
Do expendido decorre que o despacho inicial de deferimento liminar do incidente de exoneração nada garante quanto ao desfecho do procedimento pois “só promete conceder a exoneração efetiva se o devedor, ao longo de cinco anos” (atualmente três anos) “observar certo comportamento que lhe é imposto” (Luís Carvalho Fernandes e João Labareda, in Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3ª ed., pág. 853.)
Durante o período de cessão, que vigora nos três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o devedor fica sujeito a uma espécie de “regime de prova” no qual lhe é imposto um muito exigente conjunto de deveres que tem de cumprir como condição demonstrativa de que é merecedor da pretendida segunda oportunidade.
Nesse conjunto de deveres integra-se uma obrigação ou dever principal que consiste na cessão ao fiduciário do rendimento disponível (art. 239º, nºs 2 e 3, do CIRE) e um elenco de deveres acessórios estabelecido no nº 4, do art. 239º, do CIRE, segundo o qual o devedor fica obrigado a:
a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado;
b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto;
c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objeto de cessão;
d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respetiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego;
e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores.

Assunção Cristas (in artigo publicado na Revista Themis (edição especial 2005 “Novo Direito da Insolvência”, F.D.U.N.L, pág.167) agrupa estas obrigações em três áreas: obrigações destinadas a garantir a transparência da situação patrimonial e pessoal do insolvente; obrigações destinadas a garantir que o devedor é diligente na procura da manutenção de um rendimento que possa satisfazer os credores e obrigações que se destinam a atestar a probidade e lisura de comportamento do próprio devedor.

Os motivos que podem levar à recusa da exoneração do passivo restante coincidem com os motivos que podem levar à cessação antecipada do procedimento de exoneração, como resulta das disposições conjugadas dos arts. 243º e 244º, do CIRE.
Da leitura conjugada dos aludidos normativos decorre que o juiz deve recusar a exoneração, quando:
a) o devedor tiver dolosamente ou com grave negligência violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência;
b) se apure a existência de alguma das circunstâncias referidas nas alíneas b), e) e f) do n.º 1 do artigo 238.º, se apenas tiver sido conhecida pelo requerente após o despacho inicial ou for de verificação superveniente;
c) a decisão do incidente de qualificação da insolvência tiver concluído pela existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência;
d) o devedor, sem motivo razoável, não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-la.

A decisão recorrida considerou verificada a situação prevista no art. 243º, nº 1, al. a), do CIRE pois recusou a exoneração do passivo restante com base em dois fundamentos, a saber:
1. violação, por parte do recorrente, da obrigação de procura diligente de emprego imposta pelo art. 239º, nº 4, al. b), do CIRE;
2. violação, por parte do recorrente, da obrigação de entrega de rendimentos objeto de cessão, imposta pelo art. 239º, nº 4, al. c), do CIRE.


Da al. a), do art. 243º, do CIRE, decorre que para que exista fundamento para recusa da exoneração do passivo restante não basta a mera ocorrência de uma violação das obrigações impostas ao insolvente e descritas no art. 239º do mesmo diploma, sendo necessário que o incumprimento dessa obrigação tenha sido praticado de forma dolosa ou com grave negligência, que tenha prejudicado a satisfação dos credores da insolvência e que exista nexo de causalidade entre a aludida violação e o prejuízo causado aos credores, requisitos estes que são cumulativos.
Como referido no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 10.7.2019, Relator Fernando Freitas (in www.dgsi.pt), o qual, por sua vez, cita o Acórdão da Relação de Coimbra de 4.5.2017, “o dolo comporta um elemento cognitivo e um elemento volitivo”, actuando o insolvente dolosamente “quando se decida pela actuação contrária ao direito”. Assim, “se a violação do dever – v.g., de entregar ao fiduciário o rendimento disponível – constitui intenção específica da conduta do insolvente, há dolo directo; se essa violação não é directamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta, o dolo é necessário; finalmente, se a violação não é directamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta, há dolo eventual”.
Já a negligência grosseira “corresponde à falta grave e indesculpável, que consiste na omissão dos deveres de cuidado, por não se ter usado daquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas, pelo que se exige um dever de prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo” (Acórdão da Relação de Guimarães, de 11.10.2018, Relatora Maria dos Anjos Nogueira, in www.dgsi.pt).

A decisão recorrida considerou que o insolvente violou a obrigação de procura diligente de emprego afirmando que “durante quase 1 ano o insolvente não terá procurado activamente emprego. Notificado para se pronunciar, alega o insolvente que o motivo da anulação da sua inscrição em centro de emprego foi a necessidade de prestar apoio à sua filha menor, portadora de trissomia XXI.
Não arrolou qualquer prova demonstrativa dessa necessidade de prestação de apoio à filha menor, sendo certo que a trissomia XXI, por si só, não é determinativa da necessidade de prestação desse apoio.
Tem-se, por isso, violada a obrigação de procura diligente de emprego imposta pelo art. 239.º/4/al. b) CIRE.”

Divergimos deste entendimento.
Com efeito, provou-se que o insolvente-marido esteve inscrito em centro de emprego entre 23.05.2017 e 22.05.2018, data em que solicitou a anulação da inscrição para apoio a descendente, e novamente entre 01.04.2019 e 09.10.2019.
Tendo sido dado como provado que a anulação da inscrição no centro de emprego teve como motivo dar apoio a descendente não é adequado afirmar de seguida que o insolvente “não arrolou qualquer prova demonstrativa dessa necessidade de prestação de apoio à filha menor, sendo certo que a trissomia XXI, por si só, não é determinativa da necessidade de prestação desse apoio.”
Assim, à luz da factualidade dada como provada está justificado o motivo pelo qual o insolvente não esteve inscrito no centro de emprego no período de 23.5.2018 a 31.3.2019, motivo esse que consistiu em dar apoio a descendente, pelo que se considera que essa não inscrição não integra uma situação de não procura diligente de emprego cometida de forma dolosa ou gravemente negligente.
Deste modo, entende-se que não ocorreu violação da obrigação imposta pelo art. 239º, nº 4, al. b) do CIRE.
*
A decisão recorrida considerou ainda que o insolvente violou a obrigação de entrega de rendimentos objeto de cessão imposta pelo art. 239º, nº 4, al. c), do CIRE, entendendo que no período de cessão tinha que ter entregue a quantia de € 4.141,87 e não entregou qualquer valor.

Para alcançar esta conclusão, a decisão recorrida desenvolveu o seguinte raciocínio:
- no despacho inicial foi fixado como rendimento indisponível a quantia que excedesse € 550, o que correspondia, à data, a um salário mínimo nacional acrescido de 13,40%;
- assim, o valor do rendimento mensal indisponível era de € 631,64 em 2017, € 657,72 em 2018, € 680,40 em 2019, € 720,09 em 2020, € 754,11 em 2021 e € 799,47 em 2022;
- o insolvente auferiu valores superiores ao rendimento indisponível fixado nos meses de novembro e dezembro de 2019, fevereiro, março, junho, julho, setembro, outubro e novembro de 2020, fevereiro, março, julho e setembro de 2021, num total de € 4.141,87.

O recorrente discorda e refere que nada tem de entregar porque, conforme resulta dos relatórios apresentados pelo fiduciário, quanto aos primeiros 4 anos de cessão o seu rendimento não excedeu o rendimento indisponível.
Quanto ao último ano, o fiduciário entendeu que tinha que entregar a quantia de € 1 022,49 face aos valores que haviam sido auferidos em setembro de 2021, no montante de € 2 352,40. Porém, o valor do rendimento indisponível não foi ultrapassado visto que o mesmo tem de ser calculado através do cômputo global dos rendimentos anuais, dividido pelo número correspondente aos meses do ano. Assim, uma vez que o rendimento médio mensal percebido é inferior ao rendimento indisponível, considera que nada tem a ceder.

Vejamos, então, se o recorrente violou, de forma dolosa ou gravemente negligente, a obrigação de entrega dos rendimentos objeto de cessão, prejudicando desse modo a satisfação dos créditos da insolvência.

Em primeiro lugar cumpre referir que no caso em concreto existem dúvidas e diferentes interpretações quanto ao valor do rendimento indisponível.

Como foi dado como provado, em 04.11.2013 foi proferido despacho que fixou o valor do rendimento disponível a ceder ao fiduciário nos seguintes termos:
No que se refere ao rendimento disponível, há que considerar que o agregado familiar dos insolventes é composto por eles e dois menores.
Este agregado familiar tem uma dimensão semelhante à de grande parte dos agregados familiares portugueses, já que o nº de menores dependentes não é superior à média nem integram o agregado maiores sem quaisquer fontes de rendimentos.
Contudo, e segundo informações prestadas pelos devedores, a filha mais nova do casal, de 22 meses de idade, padecerá de Síndrome de Down, o que poderá acarretar despesas escolares acrescidas.
Como tal, entendo que o rendimento disponível deverá ser fixado em toda a quantia que exceda os € 550 mensais (líquidos) por cada um dos elementos que compõem o agregado familiar, aqui se incluindo o subsídio de férias e/ou de natal que lhes venha a ser processado.
Segundo o teor literal do despacho, foi fixado como rendimento indisponível € 550 x 4 pois se se fixam € 550 por cada elemento que compõe o agregado familiar e se este é composto pelos insolventes e por dois menores é essa a conclusão que se retira do teor literal do despacho.

Parece-nos que se pretendia dizer que se fixava € 550 por cada um dos devedores insolventes, mas a verdade é que não foi isso que se escreveu.

Não se refere no despacho inicial que se fixa o valor do rendimento indisponível em um salário mínimo acrescido de 13,40%. Esta interpretação é apenas feita no despacho recorrido sendo com base nesse modo de cálculo que se concluiu que não foram feitas as entregas de € 4 141,87.
Porém, o fiduciário efetuou outros cálculos e concluiu que nos 1º a 4º anos de cessão não existiram rendimentos a ceder. Se bem compreendemos os relatórios, o fiduciário considerou que não existiam valores a ceder porque somou os rendimentos mensais dos dois insolventes e concluiu que o valor resultante dessa soma não excedia o valor do rendimento indisponível.
Já a decisão recorrida considerou que havia valores a ceder nos meses de novembro e dezembro de 2019, fevereiro, março, junho, julho, setembro, outubro e novembro de 2020 e fevereiro e março de 2021 porque atendeu unicamente aos rendimentos mensais auferidos individualmente por cada um dos insolventes.

Sucede que quer os insolventes quer os credores foram notificados dos relatórios relativos ao 1º a 4º anos de cessão e os credores não se insurgiram contra o cálculo levado a cabo pelo fiduciário. Naturalmente que tal gerou uma legítima expectativa aos insolventes de que nada tinham a ceder, legitimidade essa que se mostra devidamente alicerçada no princípio da confiança.

Ora, independentemente de saber qual é forma de cálculo mais correta - se a seguida pelo fiduciário se a perfilhada na decisão recorrida - o certo é que a circunstância de os insolventes terem sido notificados dos relatórios do fiduciário onde constava que não existiam rendimentos a ceder, o que não mereceu reação adversa por parte de qualquer dos credores que também foram notificados dos relatórios, é geradora de uma legítima expectativa e convicção por parte dos insolventes de que nada tinham a ceder quanto ao aludido período, expetativa e convicção essas que se mostram devidamente alicerçadas e suportadas no princípio da confiança.
Por isso, quanto aos 1º a 4 anos de cessão não se pode considerar que houve qualquer atuação dolosa ou gravemente negligente por parte do recorrente quanto à não entrega de rendimentos auferidos, não se verificando os pressupostos legais para recusar a exoneração com este fundamento.

Relativamente ao último ano de cessão, o qual abarca o período de julho de 2021 a abril de 2022, o fiduciário, no relatório apresentado, concluiu que os insolventes tinham que ceder € 1 022,49 pois no mês de setembro de 2021 o rendimento auferido pelo insolvente foi de € 2 352,49. Para alcançar esta conclusão, o fiduciário considerou que deveria ser cedido o valor que excedesse € 1 330 (€ 2 352,40 - € 1 330 = € 1 022,49). Se bem compreendemos o raciocínio seguido, o fiduciário entendeu que o rendimento indisponível era de € 1 330 por corresponder a dois salários mínimos (€ 665 x 2 = €1 330), pelo que haveria a ceder a parte excedente.
De referir que o rendimento indisponível não foi fixado em dois salários mínimos, como já atrás se referiu.

Este relatório foi notificado quer aos credores quer aos insolventes e apenas o insolvente reagiu, nos termos do requerimento apresentado em 5.5.2022, manifestando a sua discordância acerca da entrega da quantia de € 1 022,49, considerando nada ter a entregar porquanto os rendimentos auferidos não excedem o valor do rendimento indisponível visto que o mesmo tem de ser calculado através do cômputo global dos rendimentos anuais, dividido pelo número correspondente aos meses do ano. Assim, uma vez que o rendimento médio mensal percebido é inferior ao rendimento indisponível, considera que nada tem a ceder.

Este requerimento não foi objeto de apreciação por parte do tribunal recorrido.

Sem se ter pronunciado sobre o modo de cálculo do valor do rendimento indisponível, situação objeto de controvérsia nos autos, e utilizando uma forma de cálculo diferente quer da usada pelo fiduciário quer da defendida pelo insolvente, a decisão recorrida considerou quanto ao último ano de cessão que o insolvente tinha auferido valores superiores ao rendimento indisponível de € 754,11 pois nos meses de julho e setembro de 2021 auferiu, respetivamente, € 1 135,92 e € 2 825,47, o que significa que, de acordo com este método de cálculo, que é mensal e só considera o rendimento individual do insolvente, teria que entregar  € 381,81 e € 2 071,36 (€ 1 135,92- € 754,11 =  € 381,81 e € 2 825,47- € 754,11 =  € 2 071,36).
De acordo com o método de cálculo utilizado na decisão recorrida o valor a ceder nesses meses até é superior ao de € 1 022,49 constante do relatório do fiduciário, alcançando tal valor a quantia de € 2 453,17 (€ 381,81 + € 2 071,36).

Independentemente de saber se a forma correta de cálculo quanto ao 5º ano de cessão é a perfilhada pelo fiduciário no relatório apresentado, a defendida pelo recorrente no requerimento de 5.5.2022, a sufragada na decisão recorrida ou uma outra, o certo é que, no caso, existe dúvida fundada sobre o valor do rendimento indisponível e, por decorrência, sobre o valor a ceder e que deveria ser entregue pelo insolvente.
Persistindo esta dúvida, não resolvida, não se pode considerar que a falta de entrega de valores consubstancie uma atuação dolosa ou gravemente negligente por parte do insolvente, de acordo com a noção que destes conceitos supra deixámos explanada.
Repare-se que nunca foi solucionada a dúvida em questão e perante um diferente entendimento quanto à forma de cálculo do rendimento indisponível não foi sequer dada a oportunidade ao insolvente de proceder às entregas de valores em falta, tendo-se de imediato decidido pela recusa da exoneração do passivo.

Sobre uma situação semelhante e parcialmente coincidente do ponto de vista factual com a em apreço nestes autos pronunciou-se o acórdão desta Relação de Guimarães, de 16.3.2023, Relatora Eugénia Pedro (in www.dgsi.pt) em cujo sumário consta que “[s]e o devedor, sendo trabalhador por conta própria, durante todo o período de cessão entregou a facturação da respectiva actividade ao fiduciário e ao tribunal e nunca foi instado para entregar qualquer quantia, constando em todos os relatórios do fiduciário que o respectivo rendimento médio mensal não atingia o valor fixado para o seu sustento condigno, no final do período de cessão, o tribunal não pode calcular o seu rendimento líquido através de um método diferente do fiduciário e sem previamente notificar o devedor para entregar qualquer quantia à fidúcia imputar-lhe a violação do dever de entrega do rendimento disponível com negligência grave, recusando-lhe a concessão da exoneração do passivo restante com esse fundamento” (sublinhados nossos).
Assim, quanto ao 5º ano de cessão também não se pode considerar que houve qualquer atuação dolosa ou gravemente negligente por parte do recorrente quanto à não entrega de rendimentos auferidos, não se verificando os pressupostos legais para recusar a exoneração com este fundamento.


Conclui-se do exposto que os factos que emergem dos autos não consentem a conclusão alcançada na decisão recorrida de que o insolvente violou com dolo ou negligência grave o dever de entrega dos rendimentos ao fiduciário, falecendo os requisitos para a recusa da exoneração do passivo.
Assim, procede o recurso e a decisão recorrida tem que ser revogada e substituída por outra que conceda ao insolvente a exoneração do passivo restante.
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A insolvente BB não recorreu. Porém, quanto à mesma o motivo de recusa da exoneração do passivo constante da decisão recorrida é idêntico ao referente ao recorrente, ou seja, baseia-se na violação culposa de entrega de valores quanto aos meses de agosto e dezembro de 2018, isto é quanto ao 2º ano de cessão.
As razões que levaram a considerar que a falta de entrega de valores nesse período por parte do recorrente não consubstancia uma conduta dolosa ou gravemente negligente são válidas igualmente para a falta de entrega quanto à insolvente não recorrente. Assim, e face ao disposto no art. 634º, nº 2, al. b), do CPC, o recurso aproveita-lhe e também quanto a si a decisão recorrida tem que ser revogada e substituída por outra que lhe conceda a exoneração do passivo restante
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado procedente, mas não existindo parte vencida, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada e atento o critério do proveito, sem prejuízo do apoio judiciário.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, em consequência, revogam a decisão recorrida e concedem aos insolventes AA e BB a exoneração do passivo restante (com exclusão de créditos que se incluam nas categorias referidas no art. 245º, nº 2 do CIRE).
Custas da apelação pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário.
Notifique.
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Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):

I – Não padece de nulidade por excesso de pronúncia, por violação do disposto no art. 615º, nº 1, al. d), do CPC, a decisão final proferida no procedimento de exoneração do passivo restante que decide recusar a exoneração, sem que tal lhe tenha sido requerido, porquanto, se não tiver ocorrido cessação antecipada, tal decisão tem sempre que ser proferida, não dependendo de requerimento dos credores ou do fiduciário e podendo essa decisão basear-se em factos não alegados, em conformidade com o princípio do inquisitório consagrado no art. 11º do CIRE, o qual é aplicável ao procedimento de exoneração.
II - O prazo de 10 dias previsto no art. 244º, nº 1, do CIRE é meramente programático ou ordenador e da lei não decorre qualquer consequência jurídica quanto ao seu desrespeito. Consequentemente, pese embora a decisão final sobre a exoneração do passivo restante tenha sido proferida para além do aludido prazo, tal não preclude a possibilidade de a decisão ser proferida nem afeta a sua validade.
III - Em situações de irrelevância para o conhecimento do mérito da causa, visto os factos impugnados não serem suscetíveis de influenciar decisivamente a decisão do pleito segundo as diferentes soluções plausíveis de direito, é inútil e contrário aos princípios da economia e da celeridade a reponderação pela Relação da decisão factual proferida pela 1.ª instância.
IV - Da al. a) do nº 1 do art. 243º do CIRE decorre que para que exista fundamento para recusa da exoneração do passivo restante não basta a mera ocorrência de uma violação das obrigações impostas ao insolvente e descritas no art. 239º do mesmo diploma, sendo necessário que o incumprimento dessa obrigação tenha sido praticado de forma dolosa ou com grave negligência, que tenha prejudicado a satisfação dos credores da insolvência e que exista nexo de causalidade entre a aludida violação e o prejuízo causado aos credores, requisitos estes que são cumulativos.
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Guimarães, 14 de setembro de 2023

(Relatora) Rosália Cunha
(1ª Adjunta) Lígia Venade
(2º Adjunto) Fernando Barroso Cabanelas (com a seguinte declaração de voto):

Votei a decisão, não subscrevendo integralmente os fundamentos expressos sobre a decisão final da exoneração prevista no artº 244º do CIRE.
Conforme entendimento já expresso em vários acórdãos (vg. 2443/12.8TBGMR.G1 e 5708/16.6T8GMR.G1), entendo que face ao disposto no artº 244º, nº2, do CIRE, se o fiduciário ou algum credor da insolvência não tiverem requerido a recusa da exoneração, o juiz só a pode recusar nos casos referidos no 2º parágrafo do artº 243º, nº3, do CIRE, ou seja, quando ela é sempre recusada: se o devedor, sem motivo razoável não fornecer no prazo que lhe seja fixado informações que comprovem o cumprimento das suas obrigações, ou, devidamente convocado, faltar injustificadamente à audiência em que deveria prestá-las.