COVID-19
LEI TEMPORÁRIA
INTERPRETAÇÃO DA LEI
CONTRATO ATÍPICO
CONTRATO DE INSTALAÇÃO DE LOJISTA EM CENTRO COMERCIAL
CENTRO COMERCIAL
CADUCIDADE DO CONTRATO
DESOCUPAÇÃO DE IMÓVEL
Sumário

I - As leis temporárias de resposta à situação epidemiológica COVID-19 admitem interpretação extensiva (art.º 11º do CC).
II - Apesar de se tratar de um contrato atípico, mas integrando uma atividade comercial/empresarial, é de considerar que o art.º 8º al. a) da Lei n.º 1-A/2020 e o art.º 10º Decreto n.º 2-A/2020 são aplicáveis aos “contratos de instalação de lojista em centro comercial”.
III - A caducidade dum contrato pode resultar de cláusula contratual (caso em que opera de forma automática pelo simples decurso do tempo) ou ipso iure (tendo por base um qualquer facto superveniente a que a lei atribui esse efeito).
IV - A Lei n.º 1-A/2020, 19 de março, apenas determinou a suspensão da denúncia, não abrangendo as situações de caducidade dos contratos.
V - A caducidade e a desocupação do imóvel só vieram a ser contempladas na alteração ao art.º 8º feita pela Lei n. 4-A/2020, em vigor desde o dia 07 de abril. Porém, esta alteração, ao fazer remissão para o art.º 1053º do CC, só contempla os casos de caducidade ipso iure, e já não a caducidade contratual.
VI - Como decorre claramente do art.º 1053º do CC, a dilação de 6 meses para desocupação do prédio só é concedida para os casos de caducidade ipso iure. A caducidade resultante de cláusula contratual opera de imediato, na data acordada.
VII - Um contrato de instalação de lojista em centro comercial que por acordo das partes caducava em 31/03/2020:
(i) não beneficia do regime da Lei n.º 1-A/2020, porque não está em causa uma denúncia;
(ii) nem do art.º 10º do Decreto nº 2-A/2020, porque o fundamento resultava da caducidade convencionada, e não do facto do estabelecimento se manter encerrado.
VIII - A caducidade e a desocupação do imóvel só vieram a ser contempladas na alteração ao art.º 8º feita pela Lei n. 4-A/2020, mas esta só entrou em vigor no dia 07 de abril, já este contrato tinha caducado.
IX - O regime de suspensão dos prazos de caducidade e a moratória de desocupação do imóvel contemplados na Lei nº 4-A/2020 não são aplicáveis a um contrato cuja caducidade foi acordada, por convenção contratual, para o dia 31/03/2020.

Texto Integral

Apelação nº 461/21.4T8MTS.P1
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

I – Resenha histórica do processo
1. A..., SA, interpôs ação contra B..., SA, pedindo a sua condenação «a pagar à A. a quantia global de Euros 33.048,19, a qual corresponde ao somatório das quantias de Euros 32.356,83 a título de capital e a quantia de Euros 691,36 a título de juros de mora vencidos, e à qual deve ainda acrescer juros de mora vincendos, contabilizados à taxa legal para transações comerciais, até efetivo e integral pagamento.»
Fundamentou tal pedido alegando ter celebrado com a ré um contrato para utilização de loja em centro comercial, o qual caducou em 31/03/2020. Sucede que a Ré não procedeu à entrega da loja, apesar de interpelada para o efeito, antes continuando a desenvolver a sua atividade sem pagar a respetiva remuneração. A ré só entregou a loja em 09/10/2020. A quantia peticionada corresponde à indemnização acordada correspondente ao atraso na entrega, acrescida da fatura referente ao último mês de vigência do contrato.
Em contestação, a Ré, para além de impugnar parcialmente a factualidade alegada, suscitou a suspensão da caducidade dos contratos imposta pela Lei n.º 75-A/2020, de 30 de dezembro e, bem assim, o art.º 168.º-A da Lei n.º 2/2020, de 31 de março, aditado pela Lei n.º 27-A/2020, de 24 de julho, quanto à exigibilidade da fatura.
Realizada audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença que decidiu:
1) Condena-se a ré no pagamento à autora da quantia de €1.341,71 (mil, trezentos e quarenta e um euros e setenta e um cêntimos), acrescida de juros, à taxa de juro comercial, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento;
2) Condena-se a ré no pagamento à autora da quantia de € 31.015,12 (trinta e um mil, quinze euros e doze cêntimos), acrescida de juros, à taxa de juro comercial, desde a data da citação e até efectivo e integral pagamento;
3) Absolve-se a ré do mais peticionado.

2. Na sentença, foi considerada provada a seguinte factualidade [1]:
«1. A autora dedica-se a todo o comércio retalhista e armazenista, nomeadamente a exploração de centros comerciais, grandes armazéns, charcutarias, confeitarias, cafés, restaurantes, padarias, talhos, relojoarias e ourivesarias e, ainda as indústrias de confeitaria, padaria, charcutaria e outras pequenas indústrias e a distribuição em livre serviço, a importação de todos os bens destinados ao comércio retalhista, pode ainda importar e comercializar medicamentos não sujeitos a receita médica, e a título acessório, prestar serviços na área de comércio retalhista e grossista a outros estabelecimentos de livre serviço, bem ainda como a promoção, desenvolvimento e gestão imobiliária, compra e venda de imóveis próprios ou alheios e revenda dos adquiridos para esse fim e arrendamento de imóveis.
2. A ré é uma sociedade que se dedica à confecção de artigos de vestuário exterior, em sistemas de pronto-a-vestir, para homem, mulher e criança e comercialização de artigos de vestuário, podendo para tanto usar de quaisquer meios, designadamente a forma directa ou por catálogo.
3. No dia 24 de Abril de 2014, e no âmbito das respectivas actividades, a autora celebrou com a ré um contrato que denominaram de “Contrato de Utilização de Loja em Centro Comercial”, com início de produção de efeitos reportada a 01/04/2014 e respectivo termo no dia 31/03/2020, no âmbito do qual concedeu a utilização da loja n.º ..., sita no ..., para esta ali exercer a actividade comercial de venda ao publico de artigos de ponto a vestir unissexo, assumindo a denominação comercial “C...”, conforme contrato que como documento n.º 1 é junto com a petição inicial e que aqui se dá por reproduzido.
4. Nesse espaço a ré, por sua própria conta e risco e sujeitando-se às regras gerais de funcionamento do respectivo centro comercial, desenvolve a sua actividade.
5. Ambas as partes concertam as suas actividades para a atracção de clientela para o respectivo centro comercial e, consequentemente, para as lojas que o integram e onde os utilizadores desenvolvem as suas actividades.
6. Como contrapartida da cedência da utilização da loja, a ré comprometeu-se a pagar à autora uma retribuição periódica mensal resultante da soma de uma remuneração mínima e fixa de € 952,00 e uma remuneração variável, por aplicação da percentagem de 7% ao valor de facturação bruta da loja e ainda o respectivo pagamento das despesas e encargos comuns.
7. Nos termos da cláusula 3/3, “o presente contrato caducará, impreterivelmente, em 31 (trinta e um) de Março de 2020.
8. Segundo a cláusula 7/2 do contrato, “A SEGUNDA CONTRAENTE obriga-se a devolver à PRIMEIRA a LOJA livre e devoluta de pessoas e bens na data em que se verificar a extinção do presente contrato”.
9. A ré não procedeu à entrega da loja.
10. A ré continuou a desenvolver a sua actividade na referida loja, efectuando vendas e recebendo o respectivo preço.
11. Usufruindo do referido espaço e dos serviços inerentes, bem assim como da clientela que frequentava o mesmo centro comercial.
12. A ré só veio a entregar a loja à autora no dia 09 de Outubro de 2020.
13. Segundo o ponto 2.2 da cláusula 7 do contrato “A SEGUNDA CONTRAENTE ficará constituída na obrigação de indemnizar a PRIMEIRA em caso de atraso na devolução da LOJA, acordado as partes, a título e cláusula penal, e sem prejuízo da indemnização por danos excedentes que o incumprimento da SEGUNDA acarrete para a PRIMEIRA, numa indemnização de valor igual a 3/30 da remuneração mínima por cada dia de atraso nos primeiros 8 oito) dias, e 5/30 avos por cada dia subsequente.”
14. A remuneração mínima devida pela ré à autora pela utilização da loja em 31-03-2020 era no montante de € 985,65.
15. A autora emitiu a factura ..., emitida a 03/02/2020, no montante de Euros 1.341,71, referente à remuneração do mês de Março de 2020, bem como à comparticipação para as despesas comuns.
16. A ré foi interpelada para o pagamento de indemnização bem como da factura ainda em dívida por carta que lhe foi dirigida a 19.11.2020, conforme documento n.º 6 junto com a petição inicial e que aqui se dá por reproduzido.
17. A ré interpôs, contra a autora, uma providência cautelar, requerendo ao tribunal que lhe fosse concedido o direito de não entregar a loja, providência que foi indeferida por decisão de 30-09-2020.»
3. Inconformado com a decisão, dela apelou a Ré, formulando as seguintes CONCLUSÕES:
«1. O presente recurso é interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo pela procedência, por provada, a presente ação, e consequentemente condenar a ré a pagar à autora a quantia € 31.015,12 (trinta e um mil, quinze euros e doze cêntimos), acrescida de juros à taxa de juro comercial, desde a data da citação e até efetivo e integral pagamento.
2. Na ótica da recorrente o Tribunal a quo interpretou e aplicou incorretamente a legislação aplicável, à data dos factos, fazendo um juízo de prognose depois dos acontecimentos terem ocorrido, como se a recorrente soubesse e tivesse a obrigação de conhecer, e tomar decisões, com base nas futuras alterações da lei, que à data não existiam.
3. Como é sabido, o país encerrou a 19 de Março de 2020, fechando por ordem governamental todos os serviços e atividades de retalho, inicialmente por duas semanas, progredindo para tempo indeterminável, conforme os diversos e sucessivos estados de emergência.
4. O Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, determinou o primeiro estado de emergência, dos 14 existentes ao longo de 2020 e 2021, estipulou no artigo 4.º que ficaria parcialmente suspenso o exercício, entre outros, do “direito de deslocações e fixação em qualquer parte do território nacional”.
5. O decreto n.º 2-A/2020, de 20 de Março, determinou no artigo 5.º o dever de recolhimento domiciliário limitando a circulação de pessoas em espaços e vias públicas, ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias públicas, para algum dos propósitos taxativamente permitidos pelo artigo.
6. Determina igualmente no artigo 8.º do mesmo diploma, a suspensão de atividades no âmbito do comércio a retalho, com exceção daquelas que disponibilizem bens de primeira necessidade ou outros bens considerados essenciais na presente conjuntura.
7. O artigo 10.º do decreto n.º 2-A/2020, estipula que o encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo do diploma legal, “não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem com fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados”.
8. É obvio que o decreto se aplica a outras formas de exploração de imóveis, e ainda que não seja taxativo no mesmo, este refere “outra forma de extinção de contratos”, pelo que, se deve aplicar a todas as formas de extinção de contratos, sejam elas quais forem, incluindo a caducidade, pois, é uma forma de extinção de contratos pela natureza da própria figura.
9. No entender da recorrente, durante a vigência daquele decreto n.º 2-A/2020, até 2 de Abril de 2020, revogado pela entrada em vigor do decreto 2-B/2020, de 2 de Abril, não podia a caducidade ser fundamento para a obrigação de desocupação de imóveis, mesmo porque o substrato humano da recorrente, que prática e ativamente teriam de ir desimpedir a loja, estavam impedidos de o fazer, por terem de permanecer nas suas residências e não podiam deslocar-se no território nacional.
10. A recorrente estava objetivamente impedida de cumprir com a entrega da loja e cumprimento do efeito da caducidade do contrato, até 3 de Maio de 2020, pela aplicação dos Decretos n.º 2-B/2020, 2-C/2020 e 2-D/25020.
11. À data da publicação do primeiro decreto do Presidente da República, isto é, a 18 de Março de 2020, o que a recorrente tinha conhecimento, e estava em vigor era a Lei n.º 1-A/2020, 19 de Março, na versão original com efeitos à data de 13 de Março, a qual vigorou até 7 de Abril, tendo sido alterada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de Abril.
12. A Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, apenas contemplou expressamente os contratos de exploração de imóveis com a alteração da Lei n.º 14/2020, de 9 de Maio, a qual aditou os artigos 8.º-A a 8.º-D, alterando o artigo 8.º para determinar a suspensão até 30 de setembro de 2020 da “(…) b) A caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação (…)”
13. Eram estes diplomas legais que vigoravam à data dos factos, isto é, a 31 de Março de 2020, ficando a recorrente impedida de desocupar e entregar a loja no centro comercial da recorrida.
14. Simultaneamente o artigo 8.º-A, aditado pela Lei n.º 14/2020, de 9 de Maio, que entrou em vigor a 10 de Maio, foi a primeira referência a outros contratos de exploração de imóveis nas leis publicadas no período da pandemia, à exceção dos decretos de autorização, decretamento e aplicação do estado de emergência, estipulando que “O encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo de disposição legal ou medida administrativa aprovada no âmbito da pandemia provocada pela doença COVID-19 não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados.” (sublinhado e negrito nosso).
15. É do entendimento da recorrente que, nos termos do artigo 8.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de Março, alterada Lei n.º 14/2020, de 9 de Maio, a extinção do contrato ora em questão para efeitos da caducidade se encontrava suspenso.
16. No entanto, ainda que assim não se entenda, o artigo 8.º-A, aditado pela Lei n.º 14/2020, de 9 de Maio, que entrou em vigor a 10 de Maio, não permite que o encerramento de instalações ao abrigo das disposições legais e medidas administrativas no âmbito da pandemia provocada pela doença COVID-19, seja invocado como fundamento para a extinção de contratos de arrendamento, nem como fundamento para a obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados.
17. Eram estes diplomas legais que vigoravam à data dos factos, isto é, a 31 de Março de 2020, ficando a recorrente impedida de desocupar e entregar a loja no centro comercial da recorrida.
18. Nos termos supra descritos, e segundo as regras do tempo, a 31 de Março de 2020, estava em vigor a versão original da Lei n.º 1-A/2020, 19 de Março, conforme supra citado, e o decreto n.º 2-A/2020, e decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de Março, os quais, em conjunto, impediam a circulação de pessoas pelo território nacional, obrigando ao encerramento do comércio a retalho em lojas e impediram a extinção de contratos de exploração de imóveis com fundamento no encerramento daquelas.
19. Mesmo tendo sido levantado o Estado de Emergência a 30 de Abril de 2020, o país esteve em estado de calamidade até 21 de Novembro de 2020, e ainda que tenha sido levantada a restrição de deslocação no território nacional, a recorrente continuava a estar impedida de cumprir com o disposto na cláusula 3, n.º 3 do contrato celebrado com a recorrente, não só pelo cumprimento do dever cívico de recolhimento, sendo o desrespeito era punível com coima, como, pelo menos até meados de Junho de 2020.
20. Pois os centros comerciais encontravam-se encerrados, proibidos de abrir, exceto os serviços de primeira necessidade, estando, deste modo, a recorrente impedida de entrar no mesmo na zona onde se situava a loja em questão, encontrando uma barreira física ao cumprimento daquela cláusula.
21. Pelo exposto, é evidente pela aplicação das normas legais em vigor à data dos factos, isto é 31 de Março de 2020 e até à reabertura dos centros comerciais, a recorrente encontrava-se impedida de cumprir a obrigação de entrega da loja sita em centro comercial da recorrida, não devendo, tão pouco, ser a mesma penalizada por um facto que não lhe é imputável.
Nestes termos e nos melhores de direito, sempre com o douto suprimento de V. Exas., Venerandos Desembargadores, requer-se que seja julgado procedente o presente recurso, sendo alterada a sentença recorrida, devendo os pedidos apresentados em sede de petição inicial ser julgados improcedentes, e consequentemente a recorrente ser absolvida dos mesmos, só assim fazendo V. Exas., Venerandos Desembargadores, a vossa costumada justiça!!!»

4. A Ré contra-alegou, sustentando a improcedência do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO
5. Apreciando o mérito do recurso
O objeto do recurso é delimitado pelas questões suscitadas nas conclusões dos recorrentes, e apenas destas, sem prejuízo de a lei impor ou permitir o conhecimento oficioso de outras: art.º 615º nº 1 al. d) e e), ex vi do art.º 666º, 635º nº 4 e 639º nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC).
No caso, o recurso suscita uma única questão: em geral, apurar se as ditas “leis Covid” – em especial, o decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, o decreto n.º 2-A/2020, decretos n.º 2-B/2020, 2-C/2020 e 2-D/25020, Lei n.º 1-A/2020 e Lei n.º 14/2020 ─, são aplicáveis aos “Contratos de Utilização de Loja em Centro Comercial”.
Estamos, portanto, no domínio da interpretação das leis.
Decidindo.

§ 1º - As regras de interpretação das leis
Em resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19 foram emitidas um conjunto de diplomas legislativos pelos órgãos com competência para o efeito.
Nesse contexto de excecionalidade, tais diplomas assumem a natureza de medidas excecionais (passe a redundância) e merecem a classificação de leis temporárias.
As leis temporárias destinam-se a regular circunstâncias excecionais e têm, por inerência, uma vigência temporária, ou seja, só enquanto perdurarem as circunstâncias que determinaram a sua implementação. Nesta medida, ainda que não o digam de forma expressa, elas têm implícita e pré-determinada a data da cessação da sua vigência: art.º 7º nº 1 e 2 do Código Civil (CC).
E comportam uma outra caraterística fundamental: as normas excecionais não comportam aplicação analógica, mas admitem interpretação extensiva: art.º 11º do CC.
A interpretação extensiva é o resultado de interpretação quando se conclui que a diz menos do que aquilo que pretendia dizer. «A interpretação extensiva assume normalmente a forma de extensão teleológica: a própria razão de ser da lei postula a aplicação a casos que não são diretamente abrangidos pela letra da lei mas são abrangidos pela finalidade da mesma.» [2]
«Interpretar uma lei é definir-lhe o conteúdo normativo, é desvendar-lhe a significação e alcance, quer no seu núcleo essencial, quer nos seus desenvolvimentos marginais» [3], pelo que há que nos socorrermos das regras da interpretação da lei, por recurso aos seus elementos literal, sistemático, histórico e teleológico: art.º 9º do CC.
De acordo com a técnica hermenêutica, o primeiro elemento a considerar deve ser o lógico-gramatical: não pode ser considerado pelo intérprete um pensamento legislativo que não tenha na letra e no espírito da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso e, como refere Baptista Machado [4], «(…) o intérprete deve optar em princípio por aquele sentido que melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto (nem sempre exacto) de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento».
Quanto ao elemento sistemático, determina ele que os preceitos legais não podem/devem ser encarados isoladamente, quer desgarrados do contexto da lei em que se inserem, quer dos diplomas ou institutos que dispõem sobre a mesma ou idêntica realidade social.
Fazendo apelo à unidade e coerência do sistema jurídico, corolário do elemento sistemático, «Quer isto dizer que toda a ordem jurídica assenta num transfundo de princípios ordenadores ou decisões fundamentantes e se legitima pela referência (expressa ou implícita) a valores jurídicos fundamentais que lhe conferem a unidade e coerência de um “sistema intrínseco” do qual são eliciáveis critérios orientadores que tornam possível a adaptação do ordenamento a novos problemas e situações.» [5]
Pelo elemento teleológico, trata-se de percecionar os objetivos visados pelo legislador, impondo ao intérprete que procure descobrir a ratio legis e utilizá-la na determinação do espírito da lei.

§ 2º - As leis invocadas, e em vigor em 31/03/2020 (data acordada para a caducidade do contrato):
Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março ─ Declarou o estado de emergência e situação de calamidade pública, em todo o território nacional, com início no dia 19 de março de 2020 e cessando no dia 2 de abril de 2020, suspendendo o direito de deslocação
Lei n.º 1-A/2020, 19 de março ─ procedeu à ratificação do Decreto-Lei n.º 10-A/2020, de 13 de março, considerando-o sua parte integrante e estabeleceu:
● Até à cessação das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade nacional de saúde pública, fica suspensa: a) A produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio;
Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, em vigor desde 22/03/2020 ─ que estabeleceu:
● um dever geral de recolhimento domiciliário, exceto para aquisição de bens e serviços: art.º 5º nº 1 al. a);
● a suspensão das atividades de comércio a retalho, com exceção dos bens de primeira necessidade, e dos estabelecimentos que pretendam manter a respetiva atividade exclusivamente para efeitos de entrega ao domicílio ou disponibilização dos bens à porta do estabelecimento ou ao postigo, estando neste caso interdito o acesso ao interior do estabelecimento pelo público: art.º 8º.
● que o encerramento de instalações e estabelecimentos não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados: art.º 10º.
A Recorrente invoca ainda o Decreto n.º 2-B/2020, de 02 de abril, o Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril e a Lei n.º 14/2020, de 9 de maio, diplomas já não aplicáveis ao caso por serem posteriores a 31/03/2020 e por não integrarem (no que aqui importa) qualquer norma interpretativa. Não obstante, aqui se elencam também.
Decreto n.º 2-B/2020, de 02 de abril, em vigor desde 03/04/2020 ─ estabeleceu
● um dever geral de recolhimento domiciliário, exceto para aquisição de bens e serviços: art.º 5º nº 1 al. a);
● a suspensão das atividades de comércio a retalho, com exceção dos bens de primeira necessidade, e dos estabelecimentos que pretendam manter a respetiva atividade exclusivamente para efeitos de entrega ao domicílio ou disponibilização dos bens à porta do estabelecimento ou ao postigo, estando neste caso interdito o acesso ao interior do estabelecimento pelo público: art.º 8º.
● que o encerramento de instalações e estabelecimentos não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados: art.º 10º.
Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril ─ alterou o art.º 8º da Lei nº 1-A/2020, que passou a dispor:
● Durante a vigência das medidas de prevenção, contenção, mitigação e tratamento da infeção epidemiológica por SARS-CoV-2 e da doença COVID-19, conforme determinada pela autoridade de saúde pública e até 60 dias após a cessação de tais medidas nos termos do n.º 2 do artigo 7.º da presente lei, ficam suspensos: b) A caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação;
Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril ─ manteve tais medidas.
Lei n.º 14/2020, de 9 de maio ─ procedeu à 3ª alteração à Lei n.º 1-A/2020, aditando-lhe um art.º 8º-A, do seguinte teor:
● O encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo de disposição legal ou medida administrativa aprovada no âmbito da pandemia provocada pela doença COVID-19 não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados.

§ 3º - A caducidade
A caducidade é uma das formas de extinção da relação contratual, o contrato deixa de produzir efeitos a partir da altura em que caduca.
Pode ocorrer por convenção contratual ─ caso em que opera de forma automática pelo simples decurso do tempo ─, ou ipso iure ─ neste caso, quando ocorre um facto superveniente a que a lei atribui esse efeito extintivo do vínculo contratual.
Portanto, quando resulta do acordado entre os contraentes, a caducidade não depende de qualquer ato nem necessita de qualquer declaração de vontade.

§ 4º - Os contratos atípicos
Os contratos atípicos são vistos tradicionalmente como a máxima expressão da autonomia privada. Não encontram regulamentação específica na lei, não seguem um modelo como os 16 tipos de contrato regulados no Título II do Livro II do CC.
Atenta a proliferação dos ditos “centros comerciais” nas últimas décadas em Portugal, hoje em dia o “contrato de utilização de espaço comercial”, mantendo a qualificação jurídica de “atípico”, é já, contudo, um contrato “socialmente típico”.
A exploração do centro comercial pertence a uma terceira entidade (entidade gestora) que, numa primeira fase celebra um contrato de comercialização com a empresa proprietária do centro, e numa segunda fase celebra (em nome próprio) com os lojistas os contratos de utilização das lojas, exercendo “atividades empresariais complexas e prestações de serviços a título oneroso”.
No caso particular dos “lojistas em centro comercial”, não tendo disciplina ou regulamentação legal, estabilizou-se na doutrina e na jurisprudência o entendimento de integrar um contrato atípico, que não se esgota no elemento típico da locação (cedência de espaço).
Além da cedência do espaço e da correspetiva contrapartida duma retribuição fixa, existe ainda uma retribuição variável cifrada numa percentagem do valor da faturação bruta mensal e que corresponde ao pagamento dos serviços de gestão que a entidade responsável se obriga a prestar; o lojista contribui ainda para as despesas de manutenção e funcionamento do centro comercial; por norma, paga uma “reserva de ingresso”, a título de remuneração pelo acesso ao centro comercial; a entidade gestora, por seu lado, faz a gestão do centro comercial e zela pela sua manutenção e promoção e participa nas despesas de promoção e publicidade.
Estes contratos reúnem uma realidade que ultrapassa as regras do “arrendamento comercial”, da “cessão de exploração de estabelecimento” e da “prestação de serviços”, razão por que não integram um contrato misto, mas efetivamente um contrato atípico. [6]
Refere Oliveira Ascensão que «a essência do contrato está na disciplina de uma relação inter-empresarial» (pág. 837) e «vigora o estatuto dinâmico das relações empresariais e não o estatuto estático da afectação de um local» (pág. 838).
Não tendo disciplina ou regulamentação legal, estabilizou-se na doutrina e na jurisprudência o entendimento de lhes ser aplicável, em 1º lugar as estipulações negociais que formam o contrato, no cumprimento do respeito pela autonomia e liberdade contratuais (art.º 405º e 406º do CC); em 2º lugar, as regras gerais dos contratos; em 3º lugar, as regras do contrato típico que mais se lhe aproximar. [7]

§ 5º - O caso em concreto
a) - O conjunto de leis vulgarmente designadas “Leis Covid” perseguiram o desígnio típico das leis temporárias; no caso, por razões de saúde pública, criaram medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2 e da doença COVID-19.
E, como é do conhecimento público, essas medidas foram evoluindo ao longo do tempo, fosse no sentido do seu agravamento, fosse da atenuação, de acordo com a evolução da situação epidemiológica.
Reportando-nos a medidas atinentes a arrendamento ─ e à data de 31/03/2020 (data da caducidade do contrato) ─ temos:
● a restrição total ou parcial do público aos estabelecimentos comerciais, de acordo com portaria do membro do Governo responsável (art.º 12º do Decreto-Lei n.º 10-A/2020);
● a suspensão da produção de efeitos das denúncias de contratos de arrendamento habitacional e não habitacional efetuadas pelo senhorio [(art.º 8º al. a) Lei n.º 1-A/2020];
● um dever geral de recolhimento domiciliário, exceto para aquisição de bens e serviços [art.º 5º nº 1 al. a) Decreto n.º 2-A/2020];
● a suspensão das atividades de comércio a retalho, com exceção dos bens de primeira necessidade: art.º 8º Decreto n.º 2-A/2020.
● que o encerramento de instalações e estabelecimentos não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados: art.º 10º Decreto n.º 2-A/2020.
Há que presumir que o legislador soube exprimir o seu pensamento em termos adequados (nº 3 do art.º 9º do CC).
Assim, o legislador não pode ignorar as várias modalidades de arrendamento, que ele próprio criou; está já também bem sedimentada na doutrina e na jurisprudência, se não até na generalidade dos cidadãos, que a grande dicotomia em sede de arrendamento se efetua pelo habitacional-não habitacional, sendo que o “não habitacional” é que abrange várias finalidades – comércio, indústria, profissões liberais, estabelecimentos de saúde, finalidades culturais, etc. [8]
Assim, quando a lei se limita a referir “arrendamento habitacional e não habitacional” ou “não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis” temos de entender que o “não habitacional” “ou outras formas contratuais de exploração” engloba todas as modalidades cuja finalidade não seja habitação. Como costuma dizer-se, onde a lei não distingue, não o deve fazer o intérprete.
Por outro lado, em termos teleológicos e racionais, se a finalidade dessas leis foi a preocupação da saúde pública, tentando travar a disseminação da doença diminuindo o máximo possível o contato humano, designadamente coartando a liberdade de circulação e suspendendo uma multiplicidade de serviços, não se justificaria a aplicabilidade da lei apenas ao setor habitacional (que se bastaria com o recolhimento domiciliário), deixando o fora o não habitacional.
Em termos sistemáticos, há que conjugar os diversos preceitos: o art.º 8º do Decreto n.º 2-A/2020 ordena o encerramento do comércio a retalho e o art.º 10º começa por referir que essa disposição se aplica ao “encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo do presente decreto”, sem distinguir ou atender ao tipo de contrato do estabelecimento.
Portanto, apesar de se tratar de um contrato atípico, mas integrando uma relação comercial/empresarial, é de considerar que o art.º 8º al. a) da Lei n.º 1-A/2020 e o art.º 10º Decreto n.º 2-A/2020 são aplicáveis aos “contratos de instalação de lojista em centro comercial”.
Em abono desta tese se vem consolidando a doutrina. Assim (com destaques nossos):
«Nos termos do disposto no n.º 2 do seu artigo 1.º, o regime desta lei também se aplica, com as necessárias adaptações, a outras formas contratuais (além do contrato de arrendamento) de exploração de imóveis (urbanos). Não são explicitadas essas outras formas, nem sequer a título exemplificativo. Cremos que a bitola será a da semelhança entre as funções económico-sociais do arrendamento e dos outros visados contratos de exploração de imóveis. Poderá com facilidade considerar-se a aplicação às rendas do recente direito real de habitação duradoura, da locação financeira de imóvel urbano, do contrato de utilização de loja em centro comercial, de contratos de cedência de imóveis para exploração em alojamento local (se não se qualificarem como arrendamento, não habitacional) ou, ainda que com maior dificuldade, às devidas pela cessão de exploração de estabelecimento, se o imóvel tiver tido um peso primordial no valor da renda.» [9]
«Chamo a atenção para que este mecanismo da Lei 4-C se aplica quer ao arrendamento, quer a outras formas contratuais de exploração de imóveis. Integram estas outras formas contratuais de exploração de imóveis, penso eu sem grandes dúvidas, os casos dos lojistas de centros comerciais, os casos de uniões de contrato com contrato de arrendamento ou contratos mistos com contrato de arrendamento (por exemplo, os contratos de porteira), eventualmente, dependendo do contrato que tiver sido feito, mas alguns deles sem dúvida, contratos de cedência de imóveis para alojamento local também poderão beneficiar do regime deste diploma.» [10]
Também Maria Olinda Garcia que, depois de referir que as leis/normas em questão valem tanto para o arrendamento habitacional, como para os arrendamentos para fins não habitacionais, passa a analisar a questão da caducidade e desocupação destes nos seguintes termos:
«O disposto no art.º 8.º da Lei n.º 1-A/2020 aplica-se tanto a arrendamentos para habitação como para fins não habitacionais. Assim, o que se referiu supra sobre a aplicação deste artigo aos arrendamentos para habitação vale, em grande medida, para os arrendamentos destinados a fins não habitacionais. Existem, porém, algumas diferenças, que decorrem da própria diversidade do regime normal destes contratos. (pág. 39) (…)
Quanto à suspensão dos efeitos da caducidade do contrato, referida na alínea b) do art.º 8.º, remetemos para o que supra afirmámos quanto aos arrendamentos para habitação. (pág. 40)
No art.º 8.º encontram-se, assim, previstos tipos de hipóteses distintas. Enquanto as alíneas a) e c) respeitam à extinção do contrato por iniciativa do locador, as alíneas b) e d) correspondem a hipóteses que não pressupõem qualquer declaração de vontade desse sujeito; estas alíneas regulam o momento da produção dos efeitos da caducidade e a inerente entrega do imóvel. (pág. 19) (…)
A alínea b) suspende, até 30 de setembro de 2020: “A caducidade dos contratos de arrendamento habitacionais e não habitacionais, salvo se o arrendatário não se opuser à cessação”. A expressão literal desta norma não é muito clara, apresentando, mesmo, alguma deficiência conceitual ou de formulação. Todavia, há que procurar compreender o seu alcance. À caducidade do contrato de arrendamento aplicam-se as normas gerais da locação, particularmente o art.º 1051.º do CC, cujas alíneas preveem circunstâncias que, uma vez verificadas, determinam a automática extinção do contrato. Trata-se, portanto, de um modo de extinção do contrato de locação que não depende da emissão de declarações de vontade das partes especificamente dirigidas a esse efeito. (pág. 21)
Deste modo, a compreensão do alcance daquela alínea exige um particular esforço interpretativo, no sentido de perceber qual o correto significado da expressão “salvo se o arrendatário não se opuser à cessação”. Para que se verifique a extinção do contrato por caducidade, a vontade do arrendatário é irrelevante (tal como irrelevante é a vontade do senhorio). Então, o comportamento do arrendatário, pressuposto por aquela norma, não deverá ser a emissão de uma declaração de vontade, mas sim a decisão de desocupar ou não o imóvel. Considere-se o seguinte exemplo: um contrato de arrendamento foi celebrado em junho de 2019, pelo prazo de um ano (prazo mínimo, estabelecido pelo art.º 1095.º, n.º 2), mas com uma convenção de não renovação (permitida pelo art.º 1096.º, n.º 1, 1ª parte), pelo que tal contrato caduca em junho de 2020, nos termos da alínea a) do art.º 1051.º. Não sendo aplicável nesta hipótese a dilação de 6 meses para entregar o imóvel, prevista no art.º 1053.º, o arrendatário deveria (segundo o regime normal) entregar imediatamente o imóvel.
Porém, se o arrendatário não pretender entregar o imóvel até ao final de setembro, resulta desse comportamento que “se opõe à cessação”, ou seja, o legislador ficciona uma situação de prorrogação de vigência de um contrato que tecnicamente está caducado. Mas se o arrendatário desocupar o imóvel em julho ou agosto de 2020, o efeito extintivo produz-se. Tal significa que deixou de se opor à cessação do contrato. Esta “vigência” do contrato pode, assim, terminar antes do final do prazo legal (30 de setembro de 2020), caso tal extinção seja do interesse do arrendatário.
Tratando-se de uma sui generis “vigência” precária de um contrato, não estará o arrendatário vinculado à observância de qualquer pré-aviso relativamente ao momento em que projeta desocupar o imóvel, sendo o pagamento da renda devido até esse momento. Nas hipóteses de caducidade previstas nas alíneas b) a g) do art.º 1051.º, no regime normal, o arrendatário goza do prazo de 6 meses para restituir o imóvel após a caducidade. Todavia, neste regime excecional, pela interpretação conjugada das alíneas b) e d) do art.º 8.º da Lei n.º 1-A/2020, o art.º 1053.º do CC não chega a ter aplicação quando se verifique alguma das referidas hipóteses do art.º 1051.º durante a vigência deste regime, pois a alínea b) do art.º 8.º estabelece a ficção legal de que o contrato se mantém em vigor até 30 de setembro de 2020, a não ser que o arrendatário, voluntariamente, desocupe e entregue o local arrendado.» (pág. 22-23) [11]

b) – Todos aceitarão sem dificuldade que a caducidade constitui uma “forma de extinção de contratos”.
Já mais problemático será apurar se a caducidade referida no art.º 10º do Decreto n.º 2-A/2020 abrangerá as duas modalidades da figura, ou apenas a ipso iure, porque fundamentada em qualquer um dos factos em que é a própria lei a atribuir esse efeito extintivo ao vínculo contratual.
Operando com as regras de interpretação já referidas, consideramos que o artigo não contempla a caducidade contratual, mas apenas a caducidade ipso iure, dado que, pela letra da lei, a caducidade é aí considerada e referida como “fundamentada no encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo do presente decreto” [cf. al. g) do art.º 1051º do CC].
Mas atentando melhor no preceito ─ O encerramento de instalações e estabelecimentos ao abrigo do presente decreto não pode ser invocado como fundamento de resolução, denúncia ou outra forma de extinção de contratos de arrendamento não habitacional ou de outras formas contratuais de exploração de imóveis, nem como fundamento de obrigação de desocupação de imóveis em que os mesmos se encontrem instalados ─ vemos que o mesmo previne duas situações:
● O encerramento como causa da caducidade, na 1ª parte;
● O encerramento como fundamento para a desocupação do imóvel, na 2ª parte.
De todo o contexto de interpretação das leis, designadamente o elemento racional/teleológico e o sistemático, é de entender que este art.º 10º do Decreto n.º 2-A/2020 apenas previne que o encerramento não possa constituir fundamento.
Na verdade, é do senso comum, que o legislador não pode ignorar ─ o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas (art.º 9º nº 3 do CC) ─, que será necessária toda uma série de trabalhos e operações para retirar as mercadorias dum estabelecimento comercial, e outros afins, cancelar eventuais contratos do empresário, proceder a limpezas, etc.
E todas essas operações estavam interditadas ou muito limitadas à data. O legislador não podia ignorar todas as restrições e limitações que vinha impondo, nem a realidade subjacente que pretendia limitar – o mínimo contato humano, “regulando a prossecução de tarefas e funções essenciais à sobrevivência, as deslocações por motivos de saúde, o funcionamento da sociedade em geral, bem como o exercício de funções profissionais a partir do domicílio”, como se lê no preâmbulo do diploma.
Assim, e porque resultava da lei geral do CC que o encerramento dum estabelecimento comercial podia constituir fundamento para resolução ou caducidade do contrato de arrendamento, tratou-se de deixar bem claro que assim não seria durante o período das leis Covid.

c) – Sucede que, no caso concreto, o entendimento que acabamos de expor não é aplicável ao caso, pois resulta de diplomas que não estavam ainda em vigor à data em que operou a caducidade do contrato em causa (31/03/2020), como se passa a demonstrar:
Na Lei n.º 1-A/2020 (de 19 de março), apenas era prevista a suspensão da denúncia, instituto que, como se sabe, é diverso da caducidade. O legislador não pode ignorar as diversas modalidades de extinção dos contratos de arrendamento. Igualmente, nada era previsto quanto à desocupação do imóvel.
A caducidade e a desocupação do imóvel só vieram a ser contempladas na alteração ao art.º 8º feita pela Lei n. 4-A/2020, mas esta só entrou em vigor no dia 07 de abril, já este contrato tinha caducado.
E foi também pela alteração desta Lei que se instituiu, ex novo, a dilação de mais 60 dias sobre o prazo do art.º 1053º do CC, o qual só é aplicável aos casos de caducidade ipso iure.
Atente-se que, nos termos do CC [al. a) do art.º 1051º e art.º 1053º), nos casos de caducidade acordada entre as partes, o arrendatário tem de restituir o locado findo o prazo estipulado.
Na verdade, como decorre claramente do art.º 1053º do CC, a dilação de 6 meses para desocupação do prédio só é concedida para os casos de caducidade ipso iure. A caducidade resultante de cláusula contratual opera de imediato, na data acordada.
Ou seja, os preceitos das leis Covid que vimos analisando adotaram a mesma lógica de distinção que está prevista no Código Civil.
«À exceção da caducidade como consequência de ter findado o prazo estipulado ou estabelecido por lei (art.º 1051º alínea a) do CC), em qualquer dos outros casos de caducidade previstos no art.º 1051º do CC, tratando-se de arrendamento, o legislador estabeleceu uma moratória para a restituição do prédio que, em regra, será de três meses, a contar do facto que determina esta causa de extinção do contrato (art.º 1053º do CC). justifica-se esta moratória porque, agora a hipótese da alínea a), nos restantes casos de caducidade, o arrendatário poderia não estar prevenido e seria gravosa a obrigação de entrega imediata do bem locado.» [12]
A alteração efetuada pela Lei n. 4-A/2020 ao art.º 8º da Lei 1.A/2020 ainda não vigorava em 31/03/2020, significando não serem aqui aplicáveis as hipóteses comtempladas nas alíneas b) e d) da nova redação do art.º 8º.
Concluindo, o contrato aqui em causa, não beneficiou da suspensão da caducidade, nem do prazo para desocupação do imóvel. O que se suspende é o momento em que deve produzir-se o efeito extintivo; ora, não pode suspender-se algo que já se operou/completou.
Quanto ao art.º 10º do Decreto nº 2-A/2020, de 20 março também não é aplicável porque se limitou a determinar que o encerramento do estabelecimento não podia ser invocado como fundamento de qualquer das formas de extinção do contrato. Mas o que no caso se invocou, não foi o encerramento do estabelecimento, mas a caducidade convencionada.

d) – Por fim, quanto à impossibilidade objetiva de desocupação e entrega do imóvel, tal argumentação também não pode ser acolhida, pela simples razão de que, não obstante as circunstâncias extraordinárias que se viviam, ficou provado que a Ré continuou a desenvolver a sua atividade na loja e usufruindo do espaço e dos serviços inerentes, bem como da clientela (factos provados 10 e 11).

6. Sumariando (art.º 663º nº 7 do CPC)
………………………
………………………
………………………

III. DECISÃO
7. Pelo que fica exposto, acorda-se nesta secção cível da Relação do Porto em julgar improcedente a apelação e manter a sentença recorrida.
Custas do recurso a cargo da Recorrente.

Porto, 12 de julho de 2023
Isabel Silva
António Carneiro da Silva
Paulo Duarte Teixeira
______________
[1] Não se transcrevem os “factos não provados”, por desnecessidade, dado o recurso versar apenas sobre matéria de direito.
[2] Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, Almedina, 13ª reimpressão, pág. 186.
[3] Manuel de Andrade, “Sentido e Valor da Jurisprudência”, separata do Boletim da Faculdade de Direito, vol. XLVIII, 1973, pág. 20.
[4] Ob. Cit., pág. 182.
[5] Baptista Machado, ob. cit., pág. 197.
[6] Sobre esta questão, ver Antunes Varela, “Centros Comerciais (Shopping Centers). Natureza Jurídica dos Contratos de Instalação dos Lojistas”, Coimbra Editora, 1995, pág. 50-58; Ana Afonso, “Anotação ao Acórdão do STJ de 13/09/2007, O Problema da Qualificação e Regime dos Contratos de Instalação de Lojistas em Centro Comercial”, Revista da Faculdade de Direito de Lisboa (RFDUL), pág. 87 e seguintes. Oliveira Ascensão, “Lojas em Centros Comerciais; Integração Empresarial; Forma”, Revista da Ordem dos Advogados (ROA), dezembro de 1994, vol. III, em anotação ao acórdão do STJ de 24/03/1992; Pedro Pais de Vasconcelos, in https://portal.oa.pt/upl/%7B4c44e661-e9bb-458b-a6b1-59175c5e5114%7D.pdf.
Em termos jurisprudenciais, a título de exemplo, acórdãos do STJ de 26/04/1994 (processo nº 084898), de 26/05/1997 (processo nº 97A949), de 25/10/2001 (processo nº 02B826), de 30/06/2009 (processo nº 1398/03.4TVLSB.S1), de 20/05/2015 (processo nº 6427/09.5TVLSB.L1.S1) e de 10/09/2020 (processo nº 3454/16.0T8LRA.C1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt/, sítio a atender nos demais arestos que vierem a ser citados sem outra menção de origem.
[7] Cf. o já referido acórdão de STJ, de 20/05/2015 (processo nº 6427/09.5TVLSB.L1.S1), bem como Nuno Pinto de Oliveira, “Princípios de Direito dos Contratos”, Coimbra Editora, pág. 123.
[8] Sobre as novas realidades e desafios que a vida vai criando, veja-se “O Contrato de Utilização de Espaço em Centro de Escritórios e o Regime do Arrendamento Urbano”, de Vasco Caetano de Faria”, disponível em https://www.uria.com/pt/publicaciones/2370-o-contrato-de-utilizacao-de-espaco-em-centro-de-escritorios-e-o-regime-do-arrend: « O mercado imobiliário de escritórios tem assistido nos últimos anos ao desenvolvimento e generalização de novos conceitos de cedência de espaço para instalação de escritórios de empresas ou de profissionais liberais.
A par da comum cedência simples de espaço para instalação de escritório, o comércio jurídico gerou o desenvolvimento de novos modelos contratuais em que o espaço é cedido em conjunto com uma multiplicidade de serviços associados, que vão desde a disponibilização de infra-estruturas de telecomunicações, serviços de manutenção, limpeza e segurança, equipamento informático, gestão de correspondência, salas de reuniões, podendo até incluir a prestação de serviços de secretariado.»
[9] Higina Castelo, “O arrendamento urbano nas leis temporárias de 2020”, Revista do Ministério Público, Número Especial COVID-19, 2020, pág. 319, disponível em file:///C:/Users/isabe/Downloads/O_arrendamento_urbano_nas_leis_temporari.pdf
No mesmo sentido, Luís Menezes Leitão, “O regime do arrendamento durante a pandemia COVID-19”, COVID 19, Edições Universitárias Lusófonas, 2020, pág. 32-33.
[10] Maria Raquel Rei, “Arrendamento’, in Novo Coronavírus e Gestão da Crise Contratual ¯ Contratos em Especial e Responsabilidade, CIDP, 2020, pág. 40, in https://www.cidp.pt/Archive/Docs/f956034234341.pdf
[11] Maria Olinda Garcia, “Alterações excecionais ao regime do arrendamento urbano (legislação COVID-19)”, in Revista Julgar Online, setembro de 2020, disponível em file:///C:/Users/isabe/Downloads/20200912-JULGAR-Altera%C3%A7%C3%B5es-excecionais-arrendamento-Maria-Olinda-Garcia-1.pdf
[12] Pedro Romano Martinez, “Da Cessação do Contrato”, 2ª edição, 2006, Almedina, pág. 329. O Autor fala em 3 meses que era o prazo vigente à data.