CRIME DE TRATO SUCESSIVO
ABUSO SEXUAL
CONCURSO EFETIVO DE CRIMES
Sumário

I. O entendimento do crime de trato sucessivo — como uma “unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma, uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente” – foi transposta pela jurisprudência em 2012 para os crimes sexuais em particular, para o crime de abuso sexual de criança, e mais tarde aplicada ao crime de violação como forma de abarcar actuações cujo número de vezes não era possível determinar.
II. “Na verdade, há (ou pode haver) alguma dificuldade em determinar de forma exacta todos os factos que estiveram na base do abuso sexual. É muitas vezes difícil provar se os actos foram praticados todas as semanas, ou todos os dias, ou todos os meses, e ainda provar o início e o fim da prática de tais atos. E por isso, não raras vezes, se dá apenas como provado que o arguido, entre o período x e y, por diversas vezes, mas não menos que duas por semana, por exemplo, ou num número de vezes superior a 4 por semana, por exemplo, praticou aqueles atos.”
III. “Mas, este entendimento que agrega múltiplos actos típicos e ilícitos numa globalidade de comportamento ilícito com uma unificação resolutiva aproxima-nos, contra a lei, da figura do crime continuado, pese embora a jurisprudência expressamente afirme não haver uma menor culpa do agente, ou uma situação de menor exigibilidade.”
IV. “Não podemos deixar de concluir que: unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade”, não se devendo, por isso, considerar haver trato sucessivo nos crimes sexuais.
V. “Assim sendo, o agente deverá ser punido por tantos crimes quantos os actos levados a cabo e provados, em concurso efetivo de crimes. Deverá sempre tentar apurar-se, tanto quanto possível, quantos actos foram efetivamente realizados. De outra forma, dispensando a investigação de determinar (o mais possível) o número de actos singulares que foram praticados, abrindo mão do necessário rigor na investigação, impede-se a valoração jurídico-penal de cada facto relevante praticado pelo arguido.”
VI. É por demais óbvio que uma criança de 8 anos, que é sujeita a contactos sexuais, não consentidos, por si não desejados e que implicam um contacto físico não próprio para a sua idade afecta, sem sombra de qualquer dúvida, o seu são desenvolvimento e o seu estado psicológico, devendo, por isso, e ainda que não se prove em concreto o grau dessas lesões, ser arbitrado uma indemnização.
VII. Quando um homem adulto, força uma criança, ademais uma menina impúbere, a encetar consigo contactos sexuais (mesmo sem penetração que implique rompimento do hímen) não há qualquer dúvida que esse homem, além de violar os mais sagrados direitos à autodeterminação e integridade física e moral da criança, que é um ser especialmente carecido de cuidado e protecção, provoca nesta um solavanco no seu normal desenvolvimento cognitivo, intelectual e emocional, digno de mais elevada tutela e protecção jurídicas.
VIII. A progenitora de uma menor que tem conhecimento de que a sua filha está a ser abusada sexualmente pelo companheiro e nada faz para a proteger, que até deixa a filha sozinha com esse companheiro e promove momentos a sós entre a filha e o companheiro comete o crime de abuso sexual de menor por omissão nos termos dos art.ºs 171º e 10º do Código Penal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. No âmbito do processo comum colectivo que corre termos pelo Juiz 4, do Juízo Central Criminal de Lisboa, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, sob o nº 380/18.1S6LSB, na sequência de audiência de discussão e julgamento foi proferido acórdão em 16-12-2019 (refª 392835173), constante de fls. 754 e ss, o qual determinou o seguinte (transcrição):

“IV. Dispositivo:
Em face do exposto, acordam as Juízes que constituem o Tribunal Colectivo em julgar a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência, decidem:
a) Absolver os arguidos L_______ e M_______ da prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e n,º 2 e 177.º, n.º 1, respectivamente, alíneas b) e a), ambos do Código Penal, pelos quais se encontram acusados;
b) Condenar, em concurso real e efectivo, o arguido L_______, na forma consumada e em coautoria material, pela prática dce2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e 177º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, respectivamente, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, por cada um deles;
c) Condenar, em concurso real e efectivo, o arguido L_______, na forma consumada e em coautoria material, pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos Art.ºs 371.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, respectivamente, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles;
d) Condenar, em concurso real e efectivo, o arguido L_______, na forma consumada e em autoria material, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 3, alínea c) e 177º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
e) Condenar, em concurso real e efectivo, o arguido L_______, na forma consumada e em coautoria material, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 3, alínea b) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
f) Condenar, em concurso real e efectivo pela prática de todos os crimes retro descritos, o arguido L_______ na pena única de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva;
g) Condenar, em concurso real e efectivo, a arguida M________ , na forma consumada e em coautoria material, pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos Art.ºs 171º, n.º 1 e 177º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, respectivamente, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles;
h) Condenar, em concurso real e efectivo, a arguida M________ , na forma consumada e em coautoria material, pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, respectivamente, na pena de 3 (três) anos de prisão, por cada um deles;
i) Condenar, em concurso real e efecíivo, a arguida M________ , na forma consumada e em coautoria material, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 3, alíneas b) e c) e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano de prisão;
j) Condenar, em concurso real e efectivo pela prática de todos os crimes retro descritos, a arguida M________ na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão efectiva;
k) Condenar a arguida M________ na pena acessória de proibição de confiança de menores e de inibição de responsabilidades parentais, nos termos e para os efeitos previstos no Art.º 69.º-C, n.º 2 e n.º 3, do Código Penal, pelo período de 10 (dez) anos;
l) Condenar os arguidos no pagamento das custas do processo, e nos demais encargos com o processo, englobando os honorários devidos no âmbito da defesa oficiosa, nos termos legalmente determinados, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC, por cada um deles (cfr. Art.ºs 513.º e 514.º, ambos do Código de Processo Penal e Art.º 8.º, do Regulamento das Custas Processuais);
m) Condenar os arguidos L_______ e M________ no pagamento de uma indemnização, a título de arbitramento, por conta dos danos não patrimoniais sofridos, no montante de €8.000,00 (oito mil euros) à pessoa da ofendida menor S______, nos termos do Art.º 82.º-A, do Código de Processo Penal;
n) Determinar ao abrigo do disposto no n.º 2 do Art.º 8.º da Lei n.º 5/2008, de 12 de Fevereiro, a recolha de amostra de vestígios biológicos destinados a análise de ADN aos arguidos L_______ e M_______, com os propósitos referidos no n.º 3 do Art.º 18.º, do mesmo diploma legal;
o) Declarar perdidos a favor do Estado o telemóvel, o cartão “SIM” e a bateria, objectos melhor descritos a fls. 61 dos autos, por estarem directamente relacionados com a prática dos crimes pelos quais os arguidos vão condenados, nos termos do Art.º 109.º, n.º 1, do Código Penal, dada a ausência de qualquer valor comercial e de destinação legal específica, como resulta do teor de auto de exame directo de fls. 157, determina-se, após trânsito, a sua integral destruição, nos termos do n.º 4 do Art.º 109º, do Código.
Notifique. 
Comunique-se ao TEP, ao EP e ao Tribunal de Família e Menores da área da residência da menor S____, com a menção de não trânsito em julgado.
Após trânsito:
a) - remetam-se boletins à D.S.I.C. (registo criminal);
b) - comunique-se ao Tribunal de Família e de Menores da área de residência da menor S____, extraindo-se certidão, com nota da data do trânsito cm julgado, da decisão ora proferida;
c) - comunique-se à Conservatória do Registo Civil a pena acessória a que a arguida foi condenada;
d) - oficie-se ao L.P.C. da Polícia Judiciária, como supra determinado, para recolha de ADN dos arguidos;
e) - diligencie-se pela integral destruição dos objectos declarados perdidos a favor do Estado, melhor descritos a fls. 61, nos termos do n.º 4 do Art.º 109.º, do Código.”
II.  Inconformada com o acórdão veio a arguida M________ interpor recurso em 15-01-2020, com a refª 252201140, constante de fls. 799 e ss, através do qual oferece as seguintes conclusões:

“1. Dos factos provados não resulta a participação da recorrente num único ato de execução dos crimes que lhe foram imputados.
2. Nem qualquer acordo prévio para a sua prática.
3. Terá quanto muito a recorrente tomado conhecimento indireto dos factos perpetrados pelo arguido, sendo claro que não os viu para o que contribuiu o facto de ser praticamente cega.
4. A recorrente foi determinada pelo arguido à gravação de um vídeo de cariz sexual, mas não participou na respetiva gravação ou amostragem à vítima (sendo que quando o arguido mostrava o vídeo à vítima lhe dizia: “não olhes” – 41 da matéria de facto).
5. Como resulta dos factos, sem necessidade de elucubrações teóricas e jurisprudenciais, toda a fundamentação aponta para que o arguido praticava todos os factos sem o conhecimento senão à revelia da recorrente, assim os factos mencionados contrariam os factos conclusivos vertidos nos pontos 55 e 56 da matéria provada, nos termos dos quais, a recorrente fomentava e conhecia os crimes perpetrados pelo arguido.
6. Na verdade, como se viu, concluiu o douto acórdão que a recorrente participava nos mesmos sem que para tal tivesse qualquer base fática.
7. O que poderá ter acontecido é que a recorrente não deu o merecido crédito aos avisos que lhe foram dados pela vítima e pelo seu filho.
8. Para o que contribuiu a sua evidente dificuldade cognoscitiva a qual, com o devido respeito, acreditamos não ter sido devidamente sopesada pelo Tribunal recorrido.
9. Apesar da prova ter sido equilibradamente apurada, não podemos deixar de discordar com a consignada no ponto 23, quando se escreve que a recorrente tinha “visto tudo”.
10. Como se referiu acima, sendo a recorrente praticamente cega de nascença, nada poderia ter visto à distância a que se encontrava.
11. Deve, pois, ser dado sem provado o facto vertido no ponto 23,
12. Mesmo considerando que a recorrente não praticou os crimes pelos quais foi condenada, não podemos deixar de expressar a nossa discordância quanto ao cômputo das penas parcelares e única porquanto não tiveram o devido relevo a ausência de antecedentes criminais da recorrente, os seus problemas de visão, a sua pobreza o seu fraco discernimento, o seu baixo nível de instrução e a sua dependência emocional do arguido que a levou a acreditar que não ele praticava os factos.
13. Foi, pois, incorretamente aplicado o disposto nos art.º 171º, n.º 1 e n.º 3, alíneas b) e c) e 177º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
14. Não se pode concordar com a proximidade das penas aplicadas ao arguido – 10 anos e 4 meses e à recorrente – 7 anos e 3 meses, atendendo à respetiva responsabilidade nos factos e também aos antecedentes criminais deste em crimes de idêntica natureza bem como da violação da obrigação de não manter contato com menores sem ser na proximidade de terceiros.
15. Sempre com o devido respeito, consideramos não terem sido corretamente aplicados os artigos 71º e 77º do CP.
16. Acresce que, caso a pena eventualmente a aplicar assim o permita, sempre essa pena poderá ser suspensa nos termos do art.º 50º do CP uma vez que a censura do facto e a ameaça da prisão realizam in casu de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
17. Assim, deverá ser a arguida absolvida dos crimes por que foi condenada.
18. Não se entendendo dessa forma, deverá ser reduzida e posteriormente suspensa a pena que lhe foi aplicada.”

III. Igualmente inconformado com a decisão veio o arguido L______ interpor recurso em 16-01-2020, com a refª 25216531, constante de fls. 821 e ss, através do qual oferece as seguintes conclusões:

I. O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos que condenou o recorrente pela prática em concurso real e efectivo, na prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos arts.º 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b) ambos do Código Penal, respectivamente, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, por cada um deles;
II. Condenar, em concurso real e efectivo, o recorrente na forma consumada e em coautoria material, pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos artigos 171.º, n.º 1 e 177.º n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, respectivamente, na pena de 3 (três) anos e 6 (meses) de prisão, por cada um deles;
III. Condenar em concurso real e efectivo, o recorrente na forma consumada e em autoria material, pela prática de 1(um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos art.ºs 171.º, n.º 3, alínea c) e 177.º, n.º 1 alínea b) ambos do código penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
IV. Condenar, em concurso real e efectivo, o recorrente, na forma consumada e em coautoria material, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos artigos 171.º n.º 3, alínea b) e 177.º , n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão;
V. Condenar, em concurso real e efectivo pela prática de todos os crimes retro descritos, o recorrente na pena única de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva:
VI. Alega o Recorrente que os pontos 19 a 22 da matéria de facto provada, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos efeitos legais, foram julgados de forma incorreta, e, consequentemente julgados provados.
VII. Entende o Recorrente o depoimento prestado pela ofendida no dia 19.06.2019, pelas __ :03:02 até __ :13:24, revela hesitações, mostra-se pouco coerente e não credível.
VIII. Vejamos, do depoimento prestado pela menor foi relatado que o arguido colocou o pénis na vagina e fez movimentos “vem para trás” e posteriormente veio a sangrar um bocadinho, o que é contraditado pelo douto relatório de perícia sexual.
IX. Alega o Recorrente que os factos relatados pela menor não devem ser tidos em consideração, uma vez que são contrariados pela prova documental, nomeadamente o relatório médico, onde consta que o íman da menor tem características de ser íntegro, conforme relatório médico de perícia sexual junto aos autos.
X. Ademais, e continuando a transcrição das declarações para memória futura prestadas no dia 19.06.2019: (…) Juiz de Instrução: E a sua mãe apercebeu-se do que se estava a passar ou não? S____-: Ela ouviu e viu.”.
XI. Alega o Recorrente que as declarações prestadas pela ofendida S____-, mais uma vez não se mostram plausíveis, quanto à postura da progenitora, recorrendo neste ponto ao depoimento prestado pela irmã da ofendida V_____, filha também daqui aqui arguida M________ -, prestado no dia 14.12.2019 das __ : 14:30 até __ 15:24 , que quando questionada pela Juiz se alguma vez teve razões para duvidar do que, o que a sua irmão S____lhe contou, a testemunha V_____ respondeu que não, acrescentado, que “ Falando mais a nível pessoal eu passei por uma situação idêntica com o meu pai, era mais a nível verbal e despia-se, sempre que ficava embriagado, só se mostrou, mas nunca me tocou. Mas houve uma vez, que a minha mãe presenciou e agrediu o meu pai. Como ele começou a sangrar houve uma denuncia e a minha mãe foi obrigada a prestar trabalho a favor da comunidade nos primeiros seis meses de vida da minha irmã. “. Referiu que, inicialmente, existiu a dúvida até que realmente se comprovou, quando a progenitora M________ - viu, agindo de imediato, em defesa da filha.
XII. Pelo que, salvo melhor opinião, estranha-se, o comportamento da progenitora relatado pela ofendida S____- nos pontos 23 e 25 da matéria de facto provada;
XIII. Isto porque, e, à semelhança do sucedido anteriormente, em relação à sua irmã V______ em que a arguida M________ - inicialmente não acreditava, na mesma, achava que esta estava a inventar, mas após ter visto o marido e pai da sua filha V_____ a actuar da forma relatada, agiu de imediato em defesa da filha, agredindo-o!
XIV. Pelo que, se efetivamente a aqui arguida M________ -, tivesse “ouvido e visto” os factos relatados pela menor, nessa noite, e atendendo ao já sucedido com a filha V_____, teria agido de imediato.
XV. Acresce, ainda, que também em 2017, data em que a ofendida relata que aconteceram os factos supra transcritos, o irmão J_____ estava também a residir na dita habitação, e se encontrava em casa, uma vez que os abusos sexuais, alegadamente, ocorreram depois do jantar, ou seja de noite.
XVI. Pelo que, se efetivamente o Recorrente estava a agir da forma relatada pela ofendida, perpetuando os alegados abusos sexuais, esta poderia ter gritado, ter feito barulho, chorado, pedindo auxilio ao irmão, ter fugido, ter ido ter com o irmão J_____ à semelhança da situação relatada nos pontos 14 a 16, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, o que não logrou fazer!.
XVII. Devemos ter em consideração o depoimento prestado, pelo irmão J_____, do qual resulta, que o mesmo nunca viu nada, a única situação anormal que teve conhecimento, não por conhecimento directo do factos, mas porque a irmã aqui ofendida lhe contou foi relativamente aos pontos 14 a 17, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os devidos e legais efeitos;
XVIII. Resulta assim, do depoimento prestado pelo irmão J_______, que este nunca viu nada nem se apercebeu de nenhuma outra situação anormal para além da já relatada, que apenas, teve conhecimento dos factos provados correspondentes aos pontos 14 a 16, porque a menor lhe contou;
XIX. Repita-se, novamente, que o irmão J_____ deixou a residência onde vivia com a mãe M________ - e o recorrente L__ na mesma altura que a irmã S____, em 8 Novembro de 2017, na sequência do acordo de promoção e proteção;
XX. A partir da data supra referida passaram a residir com a irmã V_____ e com o companheiro R____, pelo que, durante o período de tempo de Junho de 2017 até Novembro de 2017, nunca se apercebeu de mais nenhuma situação anormal.
XXI. Por outro lado, analisada a prova gravada, relativamente as declarações prestadas pela menor S____- quanto aos pontos 19 a 25 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos, as mesmas não se mostram credíveis, não merecendo a valoração que lhes foi dada pelo Tribunal a quo;
XXII. Dos depoimentos prestados pelas testemunhas V_____, J_____ e R____, a prova produzida, relativa aos alegados abusos sexuais, revela-se insuficiente para imputar ao aqui recorrente a prática dos factos dados por provados nos pontos 19 a 22 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
XXIII. Ademais, entende o Recorrente que atendendo as regras da experiência e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica, as declarações que não se mostram coerentes, sendo contraditadas tanto pelo relatório de perícia sexual, como também, não se revelam coerentes com algumas das declarações prestadas pelo irmão J_____ e irmã V_____ que se encontram transcritas no presente recurso;
XXIV. Pelo que, salvo o devido respeito, se impunha ao Tribunal a quo, que considerasse NÃO PROVADA a matéria constante dos pontos 19 a 22 dos factos provados, que se crê incorretamente julgado, e cuja alteração da decisão no sentido pretendido se requer;
XXV. Impugna, também, o Recorrente nos termos do art.º 412.º do CPP os factos provados nos pontos 18 a 27, cujo conteúdo se dá reproduzido para os devidos e legais efeitos.
XXVI. Os depoimentos prestados pela irmã V_____ e pelo companheiro R____, também não se mostram suficientes para formar a convicção do Tribunal a quo, e consequentemente julgar provada a factualidade aqui em causa, uma vez que, nenhuma destas testemunhas residia na referida habitação com os aqui arguidos nem presenciou tais factos.
XXVII. Do depoimento do irmão J________, que residia na habitação, também resulta que não presenciou, nem se apercebeu de mais nenhuma situação anormal, como já referido;
XXVIII. Alega o Recorrente, que resulta dos factos dados por provados nos pontos 13 a 29, relatados pela ofendida S____-, que estes correspondem ao período de tempo que mediou entre Junho de 2017 a Novembro de 2017;
XXIX. Nesta ocasião, também, o irmão J_______, residia na habitação, não lhe tendo sido relatado pela ofendida nenhum destes factos, nem se apercebendo de nada;
XXX. Entende o Recorrente que estando o irmão J_____ em casa nessa altura, e se efectivamente tivesse a perpetuar tais actos sobre a ofendida o irmão teria se apercebido, ouvido barulho, ou a própria menor poderia à semelhança do já sucedido ir ter com o irmão, relatando o sucedido ou ter chamado pelo irmão…;
XXXI. Alega o Recorrente que não se compreendo, o comportamento da ofendida S____- em não ter pedido auxílio ao irmão, conforme já o teria feito anteriormente;
XXXII. Impugna também o Recorrente os pontos da matéria de facto provada nos pontos 30 a 38 cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
XXXIII. Entende, o ora Recorrente que o Tribunal a quo deu mais credibilidade às declarações da menor/ofendida do que às suas;
XXXIV. Por outro lado, das declarações prestadas pela menor para memória futura desacompanhadas de outras provas e tendo em conta a sua negação dos factos, estas não se revelam suficientes para dar como provada toda a factualidade.
XXXV. Salvo melhor opinião, entende, o Recorrente que não existe prova dos dias exatos em que foram “alegadamente” perpetrados tais abusos sexuais.
XXXVI. Por outro lado, também não existe outros depoimentos directos sobre a prática de tais abusos, apenas o da ofendida S____.
XXXVII. Quanto ao irmão J________, que como já se referiu supra, era a única testemunha que residia com o aqui recorrente, a irmã aqui ofendida e a mãe M________ -, à data da prática dos factos e, repita-se, que para além da situação já relatada relativamente aos pontos 15 a 17, não teve conhecimento de mais nenhuma situação.
XXXVIII. Todos os restantes depoimentos, nomeadamente o da irmã V_____ e do companheiro R____, prestados em audiência de julgamento, nada se extraiu, em termos de substrato factual probatório que infirmasse os factos em causa, dado que, estas testemunhas não detinham conhecimento directo, nem presencial da factualidade dada por provada nos 12 a 18 e 26 a 38 e 46, pelo que não poderão ser relevados para formar a convicção do douto Tribunal a quo.
XXXIX. Pelo que, não poderão ser relevados para o julgamento dos factos 12 a 13, 19 a 28 e 30 a 38, uma vez que nenhuma das testemunhas presenciou tais factos.
XL. Alega o recorrente que a convicção do tribunal a quo foi formada maioritariamente nas declarações prestadas para memória futura pela menor, e consequente julgou a matéria de facto dada como provada que levou à sua condenação.
XLI. Alega o Recorrente a violação do princípio in dúbio pro reo, face à dúvida sobre a ocorrência do número de vezes em que o Recorrente praticou os abusos sexuais com a ofendida.
XLII. Por tudo o expostos e ainda pelo princípio “in dúbio pro reo” devem ser não considerados provados os pontos 12 a 28 e 30 a 38;
XLIII. Face ao exposto o Recorrente impugna os pontos 12 a 29 e 30 a 38 da matéria de facto provada cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para os devidos e legais efeitos.
XLIV. Entende o Recorrente que a decisão do quantum, quer individual quer global das penas, proferida pelo Tribunal a quo, é merecedora de censura e, como tal, deve ser alterada, uma vez que a pena de prisão aplicada ao Recorrente se mostra, injusta e excessiva.
XLV. Assim de toda a prova resulta que não ficou claro que o arguido tenha efectuado todos os factos dados por provados no acórdão.
XLVI. Pelo que a prova produzida em audiência de julgamento mostra-se insuficiente para culpabilizar os arguidos pelos 8 (oito) crimes de abuso sexual agravado previstos e punidos pelos artigos 171.º e 177.º ambos do Código Penal;
XLVII. O douto acórdão recorrido foi mais longe ao condenar em cúmulo jurídico o arguido na pena única de 10 (dez) anos de prisão e 4 (quatro) meses de prisão efectiva.
XLVIII. Porém mesmo que, por mero caso académico, se considerem provados os oito crimes de abuso sexual agravado nos termos dos artigos 171.º e 177.º ambos do Código Penal, afigura-se-nos que a pena é demasiado elevada;
XLIX. Em caso de não merecer provimento a reapreciação da prova absolvendo-se o aqui recorrente de alguns dos crimes de abuso sexual agravado, dos quais está acusado, hipótese que não se admite, mas que se equaciona por exercício de patrocínio; e seja de manter a condenação do arguido, deve a mesma ser reduzida ou eventualmente ser-lhe aplicada o crime de trato sucessivo;
L. A doutrina internacional, em particular a alemã, trata esta unidade típica da acção em sentido amplo, como uma comissão reiterada do mesmo tipo legal de crime – ou semelhante - durante um curto lapso de tempo, com permanência do mesmo contexto motivacional perante uma situação fáctica unitária. Esta unidade natural da acção não fica excluída pelo facto de se lesarem bens jurídicos pessoais em diferentes titulares – Tratado de Direito Penal – Parte Geral – fls 767 Hans H. Jescheck/Thomas Weigend – Editorial Colmares.
LI. Citando o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 25.05.2018, processo n.º 1010/16.1PBEVR.E1: “Estamos cientes que no crime continuado o legislador quis diferenciar os bens eminentemente pessoais, caso contrário não teria retirado do art.º 30, nº 3 do CP a excepção: salvo tratando-se da mesma vítima (redacção dada pela lei nº 40/2010 de 03/09) porém, esta unidade global do facto (unidade resolutiva), só diferenciada pelas diversas vítimas, sai agravada à medida que a conduta é reiterada, não deixando de atender à violação do mesmo bem jurídico ou semelhante (relação de estreita afinidade) muito embora os conceitos emprestados do crime continuado se devam manifestar: estrutura da execução homogénea; a mesma solicitação exterior e a proximidade espácio temporal (unidade de contexto situacional). A motivação subjectiva está definida desde o início das condutas.
Por tudo, somos levados à defesa desta unidade resolutiva, pela punição do crime mais grave, na modalidade de trato sucessivo.
Por outro lado, sempre se dirá que pressupondo a punição como crime continuado uma diminuição de culpa decorrente de circunstancialismos exteriores ao agente, tal não é susceptível de ocorrer no caso dos crimes contra a autodeterminação sexual de crianças, pois a gravidade da culpa aumenta à medida que os actos se repetem. Não obstante se por regra a prática de um crime de natureza sexual ocorre de forma isolada, sucede, porém, que, por vezes, tais actos seguem um percurso que se prolonga no tempo. Nessa situação os crimes sexuais envolvem uma repetitiva actividade prolongada no tempo, tornando-se difícil e quase arbitrário determinar o seu número.
A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave quanto mais repetido.
Ao contrário do crime continuado, nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta.
O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regras e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/11/2012 Relator Santos Carvalho, disponível em www.dgsi.pt).
No caos dos crimes de trato sucessivo, a punição faz-se pelo ilícito mais grave, entretanto cometido, agravada nos termos gerais, pela sobreposição dos demais (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 29/11/2012, Relator Santos Carvalho, disponível em www.dgsi.pt).”
LII. Reportando-nos, novamente ao presente caso, os abusos sexuais alegadamente perpetuados pelo Recorrente, foram sempre sobre a mesma ofendida S____-, num espaço de tempo prolongado, que mediou entre Junho de 2017 a Março de 2018, conforme resulta da factualidade provada, pelo que seria de aplicar o trato sucessivo.
LIII. Face ao supra exposto e mantendo-se a factualidade dada por provada pelo Tribunal a quo, hipótese que não se admite, mas que se equaciona por exercício de patrocínio e, seja de manter a condenação do recorrente, dúvidas inexistem de que os episódios de abuso sexual agravados previstos e punidos pelos art.ºs 171.º e 177.º ambos do Código Penal, devem ser agrupados num único crime de trato sucessivo.
LIV. Salvo diferente entendimento, alega o recorrente, que caso se considere ser de aplicar o trato sucessivo, pala pratica em coautoria de um crime de abuso de sexual de criança agravado p. e p. no art.º 171º nº 1 e 3, e 177.º n.º 1 al. b) do Cód. Penal, a pena não deve ser superior a 8 (oito) anos de prisão.
LV. Caso assim não se entenda e, seja de manter a condenação do recorrente/arguido por alguns ou todos os crimes supra referidos dever-se-á adequar a medida da pena a tal condenação, assim como o montante fixado oficiosamente a título de indeminização cível;
LVI. Repete-se que nos parece desmedida e desproporcional, pecando por excesso, a medida da pena de prisão aplicada ao Recorrente na pena única do cúmulo jurídico, de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão efectiva;
LVII. Caso não seja de manter a condenação pelos 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão, requer-se a redução das penas concretamente e individualmente aplicadas a cada crime e a final uma pena única aplicada ao Recorrente inferior à aplicada pelo Tribunal a quo.
LVIII. Por último, o Tribunal a quo, condenou o Recorrente no pagamento de €8.000,00 (oito mil euros) à ofendida S____, a título de indemnização arbitrada oficiosamente;
LIX. Alega o recorrente que não se mostra devidamente fundamentada a quantia da indemnização arbitrada à ofendida, por não constatar dos presentes autos, que a ofendida tenha sofrido danos não patrimoniais, que justifiquem uma quantia tão elevada de 8.000,00 (oito mil euros);
LX. Por outro lado, em nenhuma situação é dito que a ofendida na sequência dos actos, alegadamente, sofridos, apresente dificuldades ou alterações de comportamento, de ser uma criança triste, isolando-se, assim como, não evidencia sintomatologia ansiogena e depressiva;
LXI. Ademais, não se verificou, que apresenta-se alterações no sono, nem pesadelos, (…), pelo contrário, das declarações prestadas pela ofendida e das questões coladas pela Juíza de Instrução depreende-se que gosta de estudar, ver televisão, brincar, tem um bom discurso descrevendo o que faz diariamente e como passe os dias, não revelando problemas em exprimir-se, a nível psicológico mostra-se emocionalmente estável;
LXII. Do depoimento testemunhal, prestado pelos irmãos da menor S____, também os mesmos não relataram qualquer alteração negativa ou anormal de comportamento da menor S____, (tristeza, vergonha e medo, com perturbação do crescimento da sua sexualidade), na sequência dos factos pelos quais o recorrente está condenado.
LXIII. Pelo que do elenco dos factos constantes dos autos provados e não provados nada consta quanto a eventuais sequelas psicológicas, que a ofendida tenha sofrido.
LXIV. Deverá atender-se, também, ao teor do relatório de psicologia forense, constante dos autos, que concluiu que a menor apresenta um nível de desenvolvimento compatível com a sua idade cronológica, evidenciando um bom nível de linguagem expressiva e compreensiva. (VER).
LXV. Do relatório da perícia sexual referente à menor S____, junto aos autos, também não existe qualquer lesão, o mesmo refere que a nível da superfície corporal em geral, não tem alterações; a nível da região anal e peri-anal, também sem alterações e a da região genital e peri-genital o íman da menor tem características de ser íntegro, pelo que não existiu penetração do pénis do aqui recorrente.
LXVI. Pelo que, deve atender-se as declarações supra transcritas em que a ofendida, refere que o Recorrente nunca a magoou.
LXVII. Por outro lado, adianta, o recorrente que a admitir-se a condenação em indemnização, o valor sempre seria exagerado considerando as suas condições sócio-económicas, já que o mesmo se encontra detido, é de uma condição social modesta não dispondo de meios para proceder pagamento de tal quantia, devendo também ter-se em consideração a idade do mesmo e todas as demais circunstâncias relevantes apuradas no caso concreto.
LXVIII. Neste sentido, entende, o Recorrente que a indemnização arbitrada à ofendida S____ à título de danos não patrimoniais, no montante de €8.000,00 (oito mil euros), mostra excessiva atendendo à modesta condição social e económica do Recorrente.
LXIX. Alega o Recorrente que a manter-se a indeminização arbitrada à ofendida a mesma deve ser reduzida, tendo em conta não só pressupostos bem como as circunstâncias apuradas em sede de julgamento, devendo o montante indemnizatório ser reduzido, aos mínimos legais atendendo à situação económica do mesmo.
LXX. Face ao exposto e improcedendo todas as anteriores alegações haverá, ainda assim, que adequar o montante indemnizatório fixado no acórdão recorrido, por ser excessivo, desproporcional.
TERMOS EM QUE E NOS DEMAIS DE DIREITO E COMO VOSSAS EXCELÊNCIAS DOUTAMENTE SUPRIRÃO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO POR PROVADO E, CONSEQUÊNCIA DEVE:
REFORMAR-SE O DOUTO ACÓRDÃO RECORRIDO E SUBSTITUÍDO POR OUTRO QUE PROCEDA À ABSOLVIÇÃO DO ARGUIDO POR ALGUM DOS CRIMES SUPRA REFERIDOS, DO QUAL ESTÁ ACUSADO, POR NÃO PROVADO, CASO SE ENTENDA MANTER A CONDENAÇÃO DO ARGUIDO POR TODOS OS CRIMES SUPRA REFERIDOS DEVER-SE-Á ADEQUAR A MEDIDA DA PENA A TAL CONDENAÇÃO, ASSIM COMO O MONTANTE ARBITRADO OFICIOSAMENTE A TÍTULO DE INDEMNIZAÇÃO CÍVEL, E TAMBÉM A PENA ÚNICA, DO CÚMULO JURÍDICO, DE 10 ANOS E QUATRO MESES DE PRISÃO, CASO SE ENTENDA QUE NÃO DEVA SER REVOGADO O ACÓRDÃO RECORRIDO REQUER-SE A REDUÇÃO DAS PENAS PARCELARES APLICADAS; CASO SEJA DE MANTER A CONDENAÇÃO DO ARGUIDOS POR TODOS OS CRIMES NOS QUAIS FOI CONDENADO NO DOUTO ACÓRDÃO E MANTER-SE A PENA APLICADA PELO DOUTO ACÓRDÃO, O QUE NÃO SE ENTENDE MAS POR MERA CAUTELA DE PATROCÍNIO SE ADMITE, DEVE AO PRESENTE CASO SER APLICADO O CRIME DE TRATO SUCESSIVO E, CONSEQUENTEMENTE SER APLICADA AO ORA RECORRENTE UMA PENA ÚNICA DE PRISÃO NUNCA SUPERIOR A 8 ANOS, CASO IMPROCEDA O ANTERIORMENTE ALEGADO, O QUE POR MERA CAUTELA DE PATROCÍNIO SE ADMITE, REQUER-SE QUE SEJA ADEQUADO O MONTANTE INDEMNIZATÓRIO FIXADO NO ACÓRDÃO ÀS CIRCUNSTÂNCIAS CONCRETAS CULPA, IDADE, SITUAÇÃO ECONÓMICA MODESTA DO AQUI ARGUIDO, POR SER EXCESSIVO E DESPROPORCIONAL.
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTIÇA!”

IV. Os respectivos recursos foram admitidos por despacho de 20-01-2020, com a refª 393576086, constante de fls. 844, tendo sido fixado efeito suspensivo.

V. Respondeu o MºPº em 24-02-2020 nos termos que constam da refª 25637721, constante de fls. 849 e ss, pugnando pela improcedência de ambos os recursos e confirmação do acórdão condenatório.

VI.  Foi aberta vista nos termos do disposto no art.º 416º nº 1 do CPP, tendo o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto, proferido o douto parecer de 05-03-2020, com a ref.ª 15563110, no qual pugna pela respectiva improcedência de ambos os recursos interpostos pelos arguidos.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VIII: Analisando e decidindo.

 O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos art.ºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no art.º 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]
Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º, por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

Existindo dois recursos separadamente interpostos por cada um dos arguidos condenados nestes autos, convém analisar separadamente cada recurso.

Assim:
Quanto ao recurso interposto pela arguida M_______, de acordo com as suas conclusões, entende a mesma que:
- não lhe pode ser imputada a prática dos crimes pelos quais veio a ser condenada porquanto não resulta dos factos dados por provados que a mesma tenha praticado qualquer acto de execução;
- impugna o facto vertido em 23 porquanto a recorrente é praticamente cega e, por isso, não podia ter visto tudo;
- não aceita a pena concretamente aplicada tendo sido violado o disposto nos art.ºs 71º e 77º do CPP;
- em último caso, a ser-lhe aplicada uma pena deve a mesma ser suspensa nos termos do art.º 50º do Código Penal.

Utilizando uma técnica recursiva incorrecta, a recorrente M________, em vez de fazer constar das suas conclusões a identificação dos vícios concretos que aponta ao acórdão, faz constar da sua motivação essa identificação, reduzindo as suas conclusões a meros considerandos, que, se seguidos por este Tribunal de recurso, deixará por analisar a maior parte da “defesa” expendida no seu requerimento de recurso.

Ora, esta Relação poderia ter lançado mão do disposto no art.º 417º nº 3 do CPP, todavia, considerando que o co-arguido, L____ encontra-se preso, entendeu-se por bem não atrasar os autos, pelo que, com base no que consta da respectiva motivação de recurso, concluímos que a arguida M________  pretende decisão sobre:
- vícios do acórdão que identifica como sendo:
i) insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
ii) contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a                     decisão;
iii) erro notório na apreciação da prova,
o que significa que, apesar de não identificado pela recorrente M________ a correspondente norma legal em que tais vícios se enquadram, estão em causa os vícios elencados nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do art.º 410º do Código de Processo Penal.

Está, assim, em causa decidir no recurso da arguida M________:

a) Existência dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 al.s a), b) e c) Código de Processo Penal;
b) A Medida da pena e correcta aplicação dos art.ºs 71º e 77º do Código Penal;
c) Suspensão da Pena nos termos do art.º 50º do Código Penal.
           
Em relação ao recurso interposto pelo arguido L____ o mesmo entende que:
- os factos dados por provados sob os nºs 12 a 29 e 30 a 38 foram incorrectamente julgados atentos os depoimentos prestados;
- o Tribunal a quo deu mais credibilidade à menor do que ao arguido tendo assim violado o princípio in dúbio pro reo;
- a condenar-se o arguido só o devia ser por um único crime, com trato sucessivo;
-  as penas aplicadas e o respectivo cúmulo revelam-se demasiado elevados devendo ser reduzidos;
- elevada também se mostra o valor indemnizatório o qual deve ser reduzido.

Está, assim, em causa decidir no recurso do arguido L____:

a) Erro de julgamento com a consequente impugnação da matéria de facto nos termos do art.º 412º do CPP;
b) A violação do princípio in dúbio pro reo;
c) A qualificação do comportamento criminal como crime de trato sucessivo;
d) A Medida da Pena e eventual violação do disposto nos art.ºs 70º e 71º do CP;
e) O valor indemnizatório.

Antes de entrarmos na análise individual de cada recurso, porque comum a ambos os recursos, convém transcrever quer a matéria de facto, quer a motivação de facto e de direito, quer a determinação da pena que consta do acórdão ora sob escrutínio.

Assim, e no que toca à matéria de facto dada por provada e não provada bem como a respectiva motivação consta do acórdão sob recurso o seguinte (transcrição):

“II.  Fundamentação de Facto:
A) Na sequência do julgamento resultaram, com pertinência e relevância para a boa decisão da causa, os seguintes:
Factos Provados:
1. A menor S____  nasceu em 09 de Agosto de 2008, na data com 9 (nove) anos de idade, é filha de JT_____ e de M________ e residiu apenas com a sua mãe desde tenra idade;
2. Por Acórdão proferido em 16 de Abril de 2008, no âmbito do processo n.º 167/05.1TAPDL, o arguido L_______ foi condenado na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão efectiva, pela prática de um crime continuado de ofensa à integridade física e um crime de abuso sexual de crianças agravado, consubstanciado em ter sujeitado a cópula vaginal a sua filha, desde os 3 (três) aos 11 (onze) anos de idade;
3. Em data não concretamente apurada e durante o período temporal em que esteve preso, em cumprimento de pena no Estabelecimento Prisional da Carregueira, o arguido travou conhecimento com a mãe da menor, ora arguida, e iniciaram um relacionamento amoroso;
4. Por decisão proferida em 30.09.2016, no âmbito do processo n.º 1211/11.9TXLSB, pelo Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, foi concedida liberdade condicional ao arguido, ficando sujeito, entre outras condições a “não estar desacompanhado junto de menores” e “afastar-se de locais frequentados por menores.
5. Todavia, em Junho de 2017, o arguido foi residir para a habitação da arguida M________, sita na Rua da V______ n.º 84, rés-do-chão, em Lisboa, local onde também residiam a menor S____ e o seu irmão J_____, na data, com 18 (dezoito) anos de idade;
6. A arguida M________ - sempre ocultou dos filhos que consigo residiam, S____, J_____e ainda da filha V_____, que consigo não residia, que o arguido tinha estado preso pela prática de um crime de abuso sexual sobre a sua própria filha;
7. Em Outubro de 2017, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa contactou a irmã mais velha da menor, V_____, no sentido de confirmar se o arguido se encontrava a residir na casa de sua mãe, tendo esta tomado conhecimento das razões pelas quais o arguido tinha cumprido pena de prisão;
8. Nesta decorrência, por acordo de promoção e protecção, celebrado em 08 de Novembro de 2017, a menor S____ e J_____ passaram a residir com V_____, na zona da Pontinha, e a partir de 23 de Dezembro de 2017, na Travessa das Flores, n.º 47, 1.º direito, em Camarate;
9. Neste acordo ficou estipulado que a menor S____ poderia privar com a sua progenitora, sendo esta responsável pelo seu bem-estar e sob o compromisso de supervisionar a filha e a evitar que nesses contactos não estivesse presente o arguido;
10. Não obstante a menor S____ ter passado a residir com a sua irmã mais velha e esta salvaguardar que a menor não tivesse contacto com o arguido, nas alturas em que não era possível levá-la à escola, aquela ou o irmão J_____ levaram a menor até casa da mãe, ora arguida, a qual se disponibilizava para levar a menor S____ ao estabelecimento escolar que frequentava;
11. Durante o período compreendido entre data não concretamente apurada do mês de Junho de 2017 e o dia 05 de Março de 2018, no interior da residência da progenitora da menor S____ o arguido sujeitou a menor S____ à prática de actos sexuais;
12. Assim, o arguido, aproveitando os momentos em que apenas se encontrava na companhia da menor S____ e outros momentos em que a mãe da criança se encontrava na habitação, sita na Rua da V______ n.º 84, rés-do-chão, em Lisboa, aproximou-se da menor e colocou-lhe as mãos no interior das cuecas que envergava e com os seus dedos acariciou a sua vagina;
13. Em data não concretamente apurada, situada entre o mês de Junho de 2017 e Novembro de 2017, encontrando-se a menor S____ a ver televisão na sala da habitação, o arguido sentou-se ao seu lado;
14. Após a progenitora da menor S____ se ter ausentado dessa dependência da habitação, o arguido aproximou-se daquela e afastou-lhe os calções que envergava e encostou o seu pénis à sua vagina, friccionando-o na sua zona genital;
15. Noutra ocasião e no mesmo período temporal, em data não concretamente apurada, a menor S____ foi dormir para a cama da sua mãe, local onde também se encontrava o arguido;
16. Quando aí se encontravam, e uma vez que a progenitora da menor se recusou a manter relações sexuais, o arguido virou-se para a menor S____ e colocou a sua mão no interior das cuecas que esta envergava, tocando-a na sua vagina, tendo a menor saído do local e ido ter com o seu irmão J_______, a quem contou o sucedido;
17. Então, o irmão da menor S____ foi falar com a arguida, relatando-lhe o que havia ocorrido, com o arguido, tendo esta respondido: “Isso não é nada... é tudo mentira”;
18. No dia seguinte, o arguido dirigiu-se a S____ e pediu-lhe desculpas, dizendo-lhe que: "gostava de tocar-lhe, que era brincadeira que ele tinha e que já tinha feito isso com uma mulher e que queria que ela o deixasse tocar-lhe”;
19. Em data não concretamente apurada do ano de 2017, após o jantar e alguns dias após a situação acima descrita, a arguida encontrava-se no 1.º piso da habitação, enquanto o arguido se encontrava no rés-do-chão, na cozinha, na companhia da menor;
20. A dado momento, o arguido, que se encontrava vestido com um robe, desnudado, apenas em cuecas, solicitou à menor S____ que estava vestida com um pijama, que lhe fizesse um café, ao que esta acedeu, pedindo para que a menor mexesse o café, aproveitando para se aproximar da menor;
21. Após, o arguido dirigiu-se à menor e deitou-a por cima da mesa que aí se encontrava e despiu-lhe as calças de pijama que esta envergava e as cuecas;
22. Tendo colocado a menor nessa posição, o arguido aproximou-se da menor, retirou o pénis erecto das cuecas que trajava e friccionou o pénis junto da vagina da menor, sem que tivesse ejaculado;
23. Entretanto, a arguida que tinha descido as escadas e que tinha visto tais actos a serem praticados pelo arguido, voltou a subir as escadas, sendo que o arguido nesse momento, ouvindo os passos, largou a menor e esta vestiu-se;
24. No dia seguinte, a arguida dirigiu-se à menor e disse-lhe: “Eu vi tudo, podes-me dizer…”, tendo então, a menor relatado à sua mãe o que havia ocorrido;
25. Contudo, a arguida ouvindo o relato da menor, confirmou que tinha visto, dizendo-lhe: “Eu sei... eu vi... só fui buscar os chinelos e desci”, sem que tivesse denunciado tal situação;
26. Noutra ocasião e no mesmo período de tempo e de lugar, no interior da casa-de-banho da habitação supra referida, o arguido encontrava-se a lavar o cabelo da menor S____, a qual se encontrava apenas com as cuecas vestidas;
27. Então, o arguido aproveitando tal circunstância, colocou as suas mãos na sua vagina e acariciou-a, tendo a menor reagido e tirado a mão do arguido da sua zona genital;
28. Noutras ocasiões, o arguido para se aproximar da menor S____ pedia-lhe para lhe fazer um café e para o mexer;
29. Aproveitando tal momento, o arguido aproximava-se da menor e tocava-lhe na vagina, acariciando-a ou agarrando-a, tocando com as suas mãos no seu corpo;
30. No dia 15 de Fevereiro de 2018, data do aniversário da progenitora da menor, o companheiro da irmã V_____ e o irmão foram levá-la a casa da mãe, a fim de passar com a mesma tal data festiva;
31. Nessa data, o arguido não foi trabalhar e a menor S____ não foi à escola, tendo todos permanecido no interior da residência para almoçarem juntos;
32. A dado momento, cerca das 09 horas e 45 minutos, a progenitora da menor saiu da residência para ir buscar a senha de refeição que é distribuída na “Voz do Operário”, tendo deixado o arguido na companhia da menor;
33. Aproveitando tal ausência, o arguido levou a menor S____ para o interior do seu quarto e aí chegado sentou-a na cama de casal que aí se encontrava;
34. Em seguida, o arguido baixou as calças e as cuecas que trazia e dirigindo-se a S____ retirou-lhe igualmente as calças e cuecas que esta envergava e deitando-se sobre esta encostou o seu pénis na vagina da criança aí a friccionando, tendo a menor começado a bater e a empurrar o arguido, suplicando-lhe que parasse;
35. Após a progenitora da menor ter regressado à habitação e ainda durante o período da manhã, aquela voltou a sair da residência para se deslocar à “Voz do Operário”, para ir buscar o almoço, tendo deixado, novamente, a sua filha na companhia do arguido;
36. Então, o arguido aproveitando a sua ausência, voltou a conduzir a menor S____ para o interior do seu quarto e aí chegado, sentou-a na cama de casal que aí se encontrava;
37. Em seguida, o arguido baixou as calças e as cuecas que trazia e dirigindo-se a S____ retirou-lhe igualmente as calças e cuecas que esta envergava e deitando-se sobre esta encostou o seu pénis na vagina da criança aí a friccionando, tendo a menor começado, uma vez mais, a bater e a empurrar o arguido, suplicando-lhe que parasse;
38. No período da manhã do dia 05 de Março de 2018, encontrando-se a menor S____ em casa da sua progenitora preparada para ser conduzida para a escola que frequentava, o arguido, sem que aquela o visse, aproximou-se da criança e colocou as suas mãos na sua vagina, acariciando-a e apertando-a;
39. Em datas não concretamente apuradas, o arguido efectuou vídeos nos quais se encontrava este e a arguida a manterem relações sexuais;
40. Após ter efectuado tais vídeos, o arguido entregava o telemóvel para as mãos da menor e dizia-lhe para ver os vídeos e após os apagar, o que esta fazia;
41. Noutras ocasiões, o arguido, na presença da arguida, mostrava tais vídeos à menor, colocando o telemóvel à sua frente e pese embora esta fechasse os olhos, apercebia-se que era a sua mãe e o arguido a manterem relações sexuais, sendo que a arguida apenas lhe dizia: “não olhes!...”;
42. Noutras ocasiões, como tinha dificuldades de visão, a arguida pediu à menor para enviar mensagens ao arguido, ditando-lhe o seu conteúdo e que tinham o seguinte teor: “quero pepinos, quero bananas... logo quero uma salada com tomate e pepino”, fazendo referência a práticas sexuais;
43. O arguido enviava ainda mensagens para o perfil do facebook da arguida, que apenas a menor ou o próprio arguido conseguiam visionar, atentos os problemas visuais que aquela tinha, nas quais o arguido se dirigia à menor, dizendo-lhe “eu amo-te... só penso em ti...”;
44. Em data não concretamente apurada, situado no mesmo período de tempo, o arguido telefonou para o telemóvel da menor, e encontrando-se esta na companhia da arguida e com o telemóvel em voz alta, o arguido disse-lhe “quando faço amor com a tua mãe, eu penso em ti e que estou a fazer amor contigo”',
45. O arguido detinha no telemóvel de marca “Alcatel”, 4015D “One Touch Pop Cl”, com o IMEI ..., três ficheiros vídeo, que exibiu à menor S____, com as seguintes denominações e nos quais é possível visualizar o seguinte:
- files/vídeo/received_336304416814023_2, no qual se visualiza o arguido a introduzir o pénis na vagina da arguida, aí o friccionando, enquanto conversa com a mesma, dizendo-lhe ‘deixas-me meter lá dentro chouriço de pepinos ... ou mandas a S____ esfregar a chouriça de pepinos?... Sabes para que é isto? É para lhe mostrar...!”;
- files/vídeo/received_3421598922835142, no qual se visualiza o arguido a introduzir o pénis na vagina da arguida aí o friccionando até ejacular;
- vídeo 42543322 - correspondente a um vídeo de cariz pornográfico em que são intervenientes dois adultos que mantêm entre si vários actos sexuais;
46. Sempre que os actos supra descritos sucederam o arguido pedia à menor que guardasse segredo, ameaçando-a que lhe batia e que depois convencia a sua mãe a colocá-la numa instituição se ela contasse o que com ele ocorria, acrescentando que se ele não o deixasse tocar no seu corpo que abandonava a sua mãe;
47. Não obstante, a menor, por diversas vezes, tivesse relatado à sua mãe os actos praticados pelo arguido, aquela desvalorizava-os e desculpava o arguido, dizendo à criança que era uma brincadeira e que não contasse nada a ninguém;
48. Todavia, os factos acima descritos apenas foram denunciados, uma vez que, a menor contou o ocorrido à sua irmã, quando regressou a sua casa e esta se dirigiu às autoridades policiais;
49. O arguido praticou os factos acima descritos com o conhecimento da progenitora da menor, não se abstendo ainda de filmar as práticas sexuais que com esta mantinha para as exibir a S____, facto que a arguida também tinha conhecimento e não se opôs;
50. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com a intenção de satisfazer os seus próprios impulsos sexuais e com vontade de dominar a liberdade de autodeterminação sexual da menor, bem sabendo que esta em razão da sua idade, ainda não possuía a capacidade e discernimento necessários para se autodeterminar sexualmente;
51. Mais sabia o arguido que a menor era sua enteada, tinha apenas 9 (nove) anos de idade e que com as suas condutas molestava a integridade psicológica e emocional daquela, prejudicando gravemente o seu desenvolvimento sexual;
52. Aliás, o arguido ao manter com a menor S____ as aludidas conversas, ao enviar-lhe fotografias suas e vídeos de conteúdos sexuais e ao exibir-lhe os aludidos filmes, tinha perfeito conhecimento que a menor tinha 9 (nove) anos de idade e que o conteúdo pornográfico dos mesmos não era adequado à sua idade e lhe poderia causar perturbações na sua formação e estruturação da personalidade, prejudicando o seu normal desenvolvimento físico e psicológico, e ainda assim levou avante tal propósito;
53. O arguido agiu segundo estímulo e com o propósito de alcançar prazer e satisfação dos seus desejos sexuais, bem sabendo que os aludidos filmes exibiam práticas sexuais entre adultos, e designadamente entre si e a mãe da menor, visando com tal conteúdo preparar e manter contactos sexuais com a menor, o que veio a concretizar;
54. Acresce que, o arguido agiu deliberada e conscientemente, aproveitando-se da relação de confiança e proximidade que mantinha com a menor e com os familiares desta, para a levar a que praticasse consigo os actos supra descritos;
55. Por outro lado, a arguida tinha perfeito conhecimento que o arguido praticou os actos sexuais acima descritos com a sua filha e, não obstante, não acreditou nos relatos da criança, e não se absteve de fomentar e permitir que os dois permanecessem sozinhos na habitação, bem sabendo das intenções libidinosas do arguido, sem que nada fizesse para evitar os comportamentos acima descritos e praticados por este;
56. Aliás, a arguida sabia que sobre ela impendia o dever de protecção da sua filha e, não obstante deixava-a, sem qualquer vigilância, à mercê do arguido, bem sabendo que este já havia cometido actos sexuais contra crianças, e ainda assim proporcionou que tais actos ocorressem em relação à sua filha, participando nos filmes por este realizados, sabendo que o arguido tinha o fito de os mostrar à criança;
57. Sabiam os arguidos que as suas condutas são proibidas e punidas por Lei Penal;
58. Do certificado de registo criminal do arguido consta a seguinte condenação:
- pela prática de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, por factos praticados em 1996, por Acórdão proferido a 16.04.2008, transitado em julgado a 13,10.2008, no âmbito do processo n.º 167/05.1TAPDL, do Tribunal Judicial da Comarca de Ponta Delgada, 5.º Juízo, foi o arguido condenado na pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão;
59. Do relatório social do arguido consta, além do mais, cujo teor se dá integralmente por reproduzido que:
- “o arguido nasceu nos Açores, no seio de uma família numerosa, com uma prole de oito descendentes, sendo o seu contexto familiar de origem harmonioso e estabilizador, vivenciando o arguido dois eventos traumáticos, o falecimento do pai quando o arguido contava 16 (dezasseis) anos e a morte da mãe, quando contava 19 (dezanove) anos de idade. A partir de então, tanto o arguido como os seus irmãos, viram-se forçados a reorganizar o percurso de vida, iniciando o arguido actividade laboral remunerado, como forma de contribuir para o sustento dos irmãos;
- na idade própria cumpriu o serviço militar obrigatório, na Ilha Terceira, local onde conheceu a sua ex-mulher e mãe dos seus dois filhos. A separação do casal surgiu quando a filha do casal tinha cerca de treze meses e o filho tinha três anos de idade, na sequência de uma gravidez da companheira fruto de uma relação extraconjugal, o que provocou no arguido grande destabilização emocional, assim como nos descendentes, tendo a progenitora abandonado o lar e deixado os filhos do casal entregues ao arguido;
- neste contexto, o arguido começou a apresentar dificuldades na gestão do seu quotidiano e na educação dos filhos, que associados ao consumo em excesso de bebidas alcoólicas levaram a que a filha tivesse que ser institucionalizada, quando tinha cerca de 3 (três) anos de idade, denotando o arguido, sobretudo a partir dessa institucionalização da filha, dificuldade na assunção das suas responsabilidades parentais e educativas relativamente aos seus descendentes, recorrendo à força física, como meio punitivo, revelando ausência de afectos;
- previamente à sua presente reclusão, o arguido verbalizou que trabalhava como carpinteiro e vivia com a actual companheira, a arguida, que conheceu nesta altura, na casa da mesma, referindo que auferia cerca de € 600,00 (seiscentos euros), e que a companheira não trabalhava, sendo este o sustento do agregado familiar;
- mantém a relação com a coarguida, apesar da vítima no presente processo ser a “enteada”, filha da actual companheira, sendo que esta acredita na sua inocência, tendo a menor ido viver para casa da irmã mais velha;
- o arguido é um indivíduo, que em contexto prisional, cumpre com as normas instituídas no Estabelecimento, demonstrando capacidade de socialização com os restantes pares reclusos, mas mantendo a distância suficiente para não se colocar em situações que possam prejudicar o seu percurso prisional;
- em reclusão dispõe do apoio da companheira, a coarguida, com quem pretende voltar a viver quando restituído à liberdade, não pretendendo voltar à Ilha de São Miguel;
- desde a sua entrada no Estabelecimento Prisional pretende voltar ao atelier de pintura, actividade que mantinha na anterior reclusão, de forma a fabricar produtos de artesanato que depois pretende vender, e assim, manter a sua independência financeira, durante o cumprimento da pena;
- a nível clinico não é acompanhado em qualquer especialidade, tendo tido duas consultas de psicologia aquando do ingresso no Estabelecimento Prisional, não existindo cuidados especiais de saúde que impeçam um estilo de vida activa e saudável;
- quando questionado sobre os factos que o levaram à presente detenção, o arguido verbaliza estar inocente e que jamais tocaria na criança, até porque tem muito respeito pela companheira, e os elementos na família desconhecem a sua detenção e que é mantida a história que se encontra no estrangeiro a trabalhar;
- não se encontra disponível para frequentar o programa direcionado à tipologia do crime pelo qual foi condenado e pelo qual se encontra acusado, até porque não os assume e não se revê na condenação;
- mantém um percurso institucionalmente correcto, sem registo de sanções disciplinares, não tendo beneficiado de medidas de flexibilização de pena;
- o processo de socialização do arguido efectuou-se num ambiente de afectos e de transmissão de valores, verbalizando ser um homem “que não gosta de estar parado" e que sempre trabalhou para a sua independência, sendo notória a sua adaptação ao meio prisional, visto que não regista sanções e demonstra passividade na sua actual situação;
- não assume o crime pelo qual se encontra acusado e afirma que em caso de condenação irá recorrer até conseguir provar a sua inocência;
- actualmente depende financeiramente da companheira, que o visita com regularidade, e que pretende manter esse apoio no exterior, ajudando-o na reinserção na sociedade;
- não evidencia competências ao nível do pensamento consequente e alternativo, na medida em que não assume o crime, não pretende frequentar o programa, evidenciando dificuldades em trabalhar e em aceitar a sua problemática criminógena;
- quando restituído à liberdade quer voltar a viver com a companheira, e refazer a vida com a mesma, não pretendendo voltar à Ilha de São Miguel, onde verbaliza ter muitos inimigos, principalmente aqueles que em Tribunal depuseram contra ele e que acredita que o voltariam a tentar prejudicar”;
60. Do certificado de registo criminal da arguida nada consta;
61. Do relatório social da arguida consta, além do mais, a seguinte factualidade, cujo teor se dá integralmente por reproduzido:
- “a arguida é natural da Madeira, sendo a segunda filha de uma fratria de oito elementos germanos, filhos de um casal que vivia em união de facto, subsistindo a família com recurso ao trabalho dos pais, o pai como operário da construção civil e a mãe como bordadeira;
- em virtude de problemas oftalmológicos que comprometiam a sua visão, a arguida foi acolhida numa instituição do Funchal, com programa educativo para jovens, com este género de limitações, tendo permanecido nesta instituição entre os sete e os dezassete anos de idade, durante esse período manteve contacto regular com os pais, com quem estava nos períodos de fins-de-semana;
- após ter saído da instituição, regressou ao agregado familiar de origem, onde esteve até aos 23 (vinte e três) anos, altura em que passou a integrar o agregado familiar de uma das suas irmãs para a apoiar na tomada a cargo dos seus filhos;
- aos 30 (trinta) anos passou a viver com o pai dos seus três filhos, V_____, J_____ e S____, pessoa com quem coabitou cerca de 22 (vinte e dois) anos, tendo vindo a separar-se na sequência de comportamentos abusivos de natureza sexual deste com a filha mais velha, a qual deu conhecimento dos mesmos à arguida, a qual, num primeiro momento, não os credibilizou até que os tivesse presenciado. Acabou por se separar para poder manter a guarda dos filhos, ainda que o discurso sobre esta situação e sobre a filha seja ambivalente, reconhecendo os comportamentos do cônjuge, mas atribuindo a responsabilidade da separação à filha, por tê-los denunciado;
- após a separação, a arguida residiu em mais dois locais na Madeira, tendo vindo para o continente na sequência do estabelecimento de um relacionamento amoroso com um indivíduo que se encontrava preso, o qual conheceu através do companheiro da sua irmã, o qual também havia cumprido pena de prisão, nas deslocações ao estabelecimento prisional veio a conhecer o coarguido, com quem estabeleceu relacionamento e o qual mantém no presente;
- a arguida tinha conhecimento do crime pelo qual o coarguido tinha sido condenado, bem como da obrigação inscrita na decisão de liberdade condicional de não manter contacto com menores sem ser na proximidade de terceiros, não obstante a arguida promoveu a transferência do coarguido para o seu agregado familiar;
- na data dos factos subjacentes a estes autos, a arguida residia num imóvel arrendado na Rua da V______ sendo um imóvel constituído por dois pisos, com tipologia T2, pelo qual, pagava € 380,00 (trezentos e oitenta euros) por mês, sendo este valor suportado com apoio da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa;
- integravam o agregado familiar, a arguida, a menor e o filho J_____, já maior de idade, e o coarguido, não referindo conflitos ao nível da dinâmica familiar, embora, quando, numa ou outra ocasião, tal ocorressem atribuía a responsabilidade dos mesmos aos descendentes;
- o agregado familiar perdeu o apoio económico para pagamento da habitação por a arguida não ter aceitado que para mantê-lo, o coarguido não poderia ai residir;
- desde então, a arguida residiu em diversos locais, em casa de familiares, tendo por último residido em Portimão, em casa de uma irmã, local de onde foi afastada pela irmã, tendo pernoitado algumas noites na rua. A filha V_____ tendo tomado conhecimento desta situação, decidiu acolher a mãe, até esta ter condições para arrendar um quarto, assegurando que esta nunca esteja sozinha com a menor, sendo que a arguida omitiu esta informação aquando do contexto da entrevista com os serviços de reinserção social;
- a arguida possui sentimentos ambivalentes em relação aos filhos, verbalizando amor por eles, mas, por outro lado, atribuindo-lhes as responsabilidades pelos seus desaires relacionais, atribuindo à filha V_____ o ter contribuído para a separação do cônjuge, e agora, à filha menor S____ a separação do coarguido com a sua prisão, desvalorizando as queixas da filha menor e considerando que a mesma está a mimetizar o percurso da irmã, salientando que se encontra a aguardar a saída do coarguido do estabelecimento prisional para poder retomar a relação com ele;
- a arguida considera que o principal impacto da presente situação judicial foi a prisão do coarguido e companheiro, perda que prioriza em relação ao afastamento da filha menor, possuindo a arguida fraca capacidade de empatia para com aquela;
- a arguida é natural da Madeira, onde viveu até há cerca de sete anos, tendo a sua deslocação para o continente ocorrido na sequência da separação do pai dos filhos, mas também o estabelecimento de relação amorosa com um indivíduo que se encontrava preso, vindo a arguida a cessar este relacionamento para iniciar outro com o coarguido;
- após a saída do coarguido em liberdade condicional, e embora a arguida soubesse do impedimento daquele em conviver com menores, promoveu a sua integração no seu adegado familiar;
- presentemente, a arguida reside com os filhos, situação provisória, e que ocorreu por se encontrar em situação de sem-abrigo, acolhida pela filha V_____, a qual assegura que a irmã menor não fica sozinha com a arguida;
- como principal vulnerabilidade surge a falha de empatia e de sentido crítico sobre o impacto que crimes de idêntica natureza têm nas vítimas, e constitui factor de risco a persistência na manutenção da relação com o coarguido”,

B) Factos não Provados:
Com relevância e interesse para a boa decisão da causa, não se provaram os seguintes factos:

A) Que aquando do descrito em 22., o arguido tivesse introduzido o pénis no interior da vagina da menor, fazendo movimento vaivém, perguntando-lhe “se estava a sentir”;
B) Que após o aludido em 23. a menor se deslocou à casa-de-banho para se lavar e viu que tinha sangue nas cuecas, mas não relatou esta situação por ter receio de ser submetida a exames médicos.

Inexistem quaisquer outros factos provados ou por provar com relevância para a decisão de mérito, sendo o demais alegado de natureza jurídica, conclusiva e normativa.

C) Motivação da decisão de facto:

O Tribunal fundou a sua convicção quanto à matéria de facto provada pelo princípio da livre apreciação da prova, entendido como o esforço para alcançar a verdade material, analisando dialecticamente os meios de prova que teve ao seu alcance e procurando harmonizá-los e confrontá-los criticamente, entre si, de acordo com os princípios da experiência comum, de lógica e razoabilidade, pois, nos termos do Art.º 127.º do Código de Processo Penal, a prova é apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção do julgador, inexistindo, portanto, quaisquer critérios pré-definidores do valor a atribuir aos diferentes elementos probatórios, salvo quando a lei dispuser diferentemente (juízos técnicos), assim, alicerçou-se a convicção do Tribunal na inteligibilidade e análise crítica e ponderada do conjunto da prova produzida em sede de audiência de julgamento, socorrendo-se das regras da experiência comum, da lógica e da razoabilidade, baseando-se:
Nas declarações do arguido, o qual nega a prática de todos os factos imputados, negando ter tocado de qualquer modo na pessoa da menor, embora admita que, em violação das regras de conduta da liberdade condicional, estava a residir numa casa onde viviam menores, mormente a ofendida S____, na data com nove anos de idade.
Mais nega ter exibido qualquer vídeo de conteúdo pornográfico à menor, nem mensagens desse teor, nem a arguida actuou desse modo, tudo não passando de uma efabulação da menor, arquitectada pela irmã mais velha, que - sem conseguir concretizar qualquer motivo para o efeito - não querem que o arguido viva e tenha um relacionamento com a arguida, mãe daquelas.
Ora, tal versão relatada pelo arguido não tem qualquer sustentação factual, desde logo, atendendo às regras da lógica, da razoabilidade e da experiência comum, e igualmente, por confrontação, em plena antinomia, com os depoimentos prestados pelas testemunhas S____, V_____, J_____ e R____.
Vejamos.
Se na óptica do arguido tal “plano” de mentiras visava afastar os arguidos e fazer cessar o relacionamento amoroso entre ambos, não se compreende o motivo pelo qual, as testemunhas S____, V_____ e J______ afirmaram, sem qualquer evasiva, nem contradição, que a arguida sabia o que o arguido estava a fazer à menor, permitia e facilitava que tal sucedesse e omitia qualquer conduta que obstasse à sua prossecução.
Acresce ainda que, os factos ocorridos na cama do quarto, onde os arguidos dormiam, e que logo após a menor S____ foi, de imediato, ter com a testemunha J______, seu irmão, a quem os relatou, sucederam num momento anterior à saída da menor S____ da casa da arguida - bem como do seu irmão ou seja, numa altura em que a testemunha V_____, e os demais irmãos, desconheciam o motivo pelo qual o arguido tinha estado preso, ou seja, ainda não sabiam o tipo de crime pelo qual o arguido tinha cumprido pena.
Sem olvidar que, a testemunha J_____ confirmou, num registo natural, espontâneo e assertivo, que durante essa noite/madrugada a sua irmã S____ lhe relatou, mostrando-se agitada e nervosa, o que se tinha passado, logo nesse mesmo momento temporal, o que reforça a credibilidade do relato da menor, testemunha, S____, tanto mais que a testemunha J_____ declarou que, logo nessa mesma noite, confrontou a arguida com o que se tinha passado e que a irmã, a menor S____ instantes antes lhe tinha contado, confirmando a testemunha J_____ a postura de desvalorização e de descredibilização do narrado pela menor S____ ora afirmando que nada tinha sucedido, ora que se tratava de uma brincadeira que a menor S____ não tinha entendido, ora que foi uma movimentação não intencional do arguido enquanto dormia.
Aliás, nem se compreende a necessidade da menor S____ dormir entre a arguida e o arguido na cama destes, quando havia outro quarto, onde dormia o irmão, a testemunha J_____, para além do próprio sofá na sala.
Acresce ainda que, do conteúdo das declarações prestadas pela menor, e integralmente reproduzidas em audiência de julgamento, resultou indubitavelmente a demonstração da factualidade acima descrita e dada como provada, descrevendo, com detalhe, de um modo franco e espontâneo, os factos acima dados como provados, não minando minimamente a credibilidade subjacente ao seu relato, a circunstância de ter sido necessário tomar, por duas vezes, declarações para memória futura, por parte da menor S____ atendendo, por um lado, à própria natureza melindrosa dos factos em causa, e por outro lado, ao propiciar de um ambiente de segurança, de protecção e de confiança entretanto vivenciado junto da irmã mais velha e do companheiro desta, as testemunhas V_____ e R____, aliado ao facto de o arguido entretanto ter ficado em situação de privação de liberdade, deixando assim a menor S____ de se sentir amedrontada e intimidada quer pela presença deste, quer pelo o que lhe dizia relativamente a “deixar” a mãe da menor e “deixar” de contribuir para o sustento daquela, o que naturalmente gera sentimentos de abandono, medo e de insegurança por parte de quem tem apenas nove anos de idade e se trata da sua mãe e do companheiro desta.
Sem olvidar que, e enfatizando-se que, mesmo anteriormente à saída da menor para casa da irmã mais velha, a menor S____ já tinha contado ao irmão, a testemunha J_____, os gestos e actos que o arguido tinha praticado na cama do quarto, onde os arguidos dormiam.
Assim, as declarações de negação do arguido foram categoricamente contrariadas pelas declarações da menor, prestadas para memória futura - com observância de todo o formalismo legal, cfr. fls. 361 a 364 e fls. 473 a 476 - e integralmente reproduzidas em audiência de julgamento, cuja franqueza, espontaneidade e consistência descritiva permitiram ao Tribunal formar a sua convicção, sem qualquer margem dúvida, que fosse razoável e objectivável, no sentido que os factos ocorreram nos moldes e nos termos dados como provados.
Com efeito, resulta do relato simples, escorreito e sincero inerente às declarações prestadas pela ofendida, os gestos tidos pelo arguido para consigo, quer aqueles que executava com o corpo do arguido, quer o que fazia com o corpo da menor S____ a periodicidade, os locais e o impacto devastador que os mesmos tiveram no seu desenvolvimento, na sua saúde e no seu bem-estar psíquico, psicológico e físico, o que a menor ofendida narrou de forma detalhada e factualmente congruente, apesar da sua patente vulnerabilidade, desde logo, em face da sua jovem idade e do sentimento que vivenciou ao ter que relatar os factos que, manifesta e inequivocamente, viveu, dado que, só através da vivência efectivamente experimentada se justifica que uma criança consiga descrever de forma tão pormenorizada, vívida e rigorosa os eventos acima dados como provados, como de facto a menor o fez.
Na verdade, resultou cristalino das suas declarações, o número de vezes, os locais e os períodos temporais em que tais actos - descritos em pormenor e com rigor - tiveram lugar, como acima dado como provado, cujo detalhe descritivo, com a simplicidade narrativa própria da sua jovem idade, só é razoavelmente entendível como relato de facto efectivamente vivido.
Aliás, caso a menor ofendida S____ bem como as demais testemunhas inquiridas, tivessem qualquer motivação, que não seja a de relatar com autenticidade os factos que viveram, viram ou ouviram, então o lógico seria o de confirmar que tinha havido penetração, e por esse motivo foram estes factos dados como não provados, na medida em que, a menor não o relata, as testemunhas inquiridas não o mencionam, o que se mostra em conformidade com o teor do relatório médico-legal (cfr. fls. 492 a 494, “não foram observadas lesões na região ano-genital, o que é compatível com a história da examinanda. O hímen da examinanda tem características de ser íntegro. Estes achados estão de acordo com a história de contacto do pénis com a vulva, sem penetração”), e consequentemente mostra-se reforçada a credibilidade das declarações da menor.
Acresce ainda que, as declarações prestadas pela ofendida S____ cujo discurso foi pautado por uma patente naturalidade e congruência descritiva, foram inteiramente corroboradas pelos depoimentos prestados pelas testemunhas V_____S______ , J_____- Teixeira e R___, respectivamente irmãos da menor S____ e este último companheiro da irmã mais velha da menor S____ a testemunha V_____.
Com efeito, foram tidos ainda em consideração os depoimentos prestados por estas testemunhas, os quais foram dignos da maior credibilidade, dada a isenção, espontaneidade e coerência, quer intrínseca, quer extrínseca, com que os descreveram os factos, confirmando o declarado pela menor, o que descreveram de um modo rigoroso, assertivo e sem ambiguidades, nem contradições, não se compreendendo o que motivaria estas testemunhas em efabular tais factos, tanto mais que, nenhum interesse tinham para o efeito, como também, apesar do sucedido, a testemunha V_____ acedeu acolher em sua casa a arguida, o que presentemente ainda se verifica, ao ter conhecimento que a arguida estava a pernoitar na rua, em situação de sem-abrigo, salientando que agiu desse modo por se tratar de sua mãe, saindo assim ainda mais reforçada a autenticidade do seu relato, em face da sua manifesta objectividade e imparcialidade.
Mais confirmou esta testemunha a reacção da arguida quando confrontada com o tipo de crime pelo qual o arguido tinha estado em cumprimento de pena, desvalorizando-o, rejeitando adoptar qualquer medida ou alteração à sua relação amorosa, que visasse proteger a sua filha menor, tanto mais que, foi a menor S____ quem saiu da casa da mãe, indo - juntamente com a testemunha J_____- viver com a sua irmã, a testemunha V_____, no âmbito do citado acordo de promoção e protecção.
E, não obstante tal, a arguida continuou a permitir e a proporcionar momentos a sós, em casa da arguida, da menor S____ com o arguido, como a menor assim o descreveu, e a testemunha V_____ o corrobora.
Precisou também a testemunha R____, companheiro da testemunha V_____, que a menor S____ foi começando a falar sobre os gestos e actos praticados pelo arguido e consentidos, vistos e proporcionados pela arguida - aliás, se não fosse o papel crucial da arguida, o arguido não ficava sozinho com a menor S____- sendo que esse “contar” foi sendo paulatino e depois mais intenso, o que se afigura compreensível, dado que, só após a menor se sentir segura é que começou a contar tudo à testemunha V_____, sua irmã, o que esta, bem como a testemunha R____, confirma, advindo esse ambiente de segurança sobretudo após a situação de reclusão do arguido, atendendo às intimidações que este fazia e exercia sobre a menor.
Das declarações da arguida, que apenas no final optou por efectuar breves e genéricas declarações, atendendo ao direito ao silêncio, que legitimamente lhe assiste, o que se extrai é uma negação absoluta dos factos, tudo não passando de mentiras dos seus filhos - os mesmos que apesar do sucedido e praticado pela arguida, sua mãe, e que descreveram de forma congruente, unívoca e consistente em audiência de julgamento, acolheram a arguida, ao terem notícia que a mesma se encontrava a dormir na rua, em situação de sem abrigo - salientando que o que pretende é retomar a sua vida amorosa com o arguido, e o resto - entenda-se os filhos - é-lhe completamente indiferente, tanto mais que, e na perspectiva de ambos os arguidos, a condenação anterior mais não era o resultado de uma fabricação de mentiras e falsidades, à semelhança, na sua versão, dos factos descritos nestes autos.
Com efeito, as declarações dos arguidos foram intrinsecamente inverosímeis, rebuscadas e fantasiosas, bem como, foram patente e inequivocamente contrariadas pelos depoimentos coerentes, isentos e seguros prestados pelas testemunhas V_____, J_____ e R____, os quais, por sua vez, corroboram o teor das declarações prestadas pela menor S_____
Aliás, os arguidos até negam o teor das mensagens e dos vídeos que constam de fls. dos autos, e caso não tivessem sido mostrados e dados a conhecer à menor S____ não se compreende como é que mesma tinha conhecimento dos mesmos.
Igualmente se ponderou, juntamente com as declarações dos arguidos e os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, o teor de:
- fls. 29 a 33, resulta o teor do acordo de promoção e protecção, datado de 08.11.2017, subscrito também pela arguida, inferindo-se cristalinamente, além do mais, que os contactos entre a menor S____ e a arguida são-no sem pernoita e que o arguido não deve estar presente (cfr. ponto cinco do citado documento), conjugado com o processo de promoção e protecção, constante de fls. 160 a 315, cujo teor, na sua essência, resultou sustentado quer pelas declarações da menor ofendida, quer, conjugadamente, pelos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas, V_____, J_____ e R____;
- fls. 50 a 60, consta cópia da decisão proferida no âmbito do processo n.º 1211/11.9TXLSB, datada de 28.02.2018, atinente à revogação da liberdade condicional, os respectivos motivos subjacentes à decisão de revogação, sendo patente que, mesmo perante uma liberdade condicionalmente concedida, o arguido não hesita em violar as obrigações impostas, perante a perspectiva de ter acesso a uma criança e em contexto reservado, a sua residência;
- fls. 98 e 99, resulta a identidade e a data de nascimento da menor ofendida, bem como a identidade dos seus progenitores, mormente a da aqui arguida (cfr. certidão do assento de nascimento da menor Sara);
- fls. 114 a 118, consta certidão da decisão de concessão da liberdade condicional, datada de 30.09.2016, inferindo-se, além do mais, o período da liberdade condicional fixado de 07.10.2016 até 07.05.2018, no âmbito da condenação sofrida, ficando o arguido obrigado, entre outras, a não estar desacompanhado junto de menores e afastar-se de locais frequentados por menores (cfr. fls. 117);
- fls. 152 a 157 - exame pericial ao telemóvel do arguido, de cujo auto de visualização resulta inequivocamente os vídeos, de conteúdo pornográfico, acima mencionados, sendo certo que, o arguido não nega que tivesse tais ficheiros no seu telemóvel, apenas negando que os tivesse exibido à menor S____ todavia, caso não os tivesse mostrado à menor não se alcança como é que a menor S____ sabia, como o relatou, de forma segura e explícita, da sua existência e do seu preciso conteúdo (cfr. auto de fls. 155 e 156);
- fls. 356 a 357 verso (relatório de acompanhamento da menor Sara), inferindo-se da observação objectiva de terceiros, técnicos, com menção das técnicas empregues, que a “menor apresenta um discurso espontâneo, livre, coerente e tranquilo, não apresentando manifestações de ansiedade exacerbadas, efectua a distinção entre a verdade e a mentira, assim como entre o real e a fantasia”;
- fls. 492 a 494 - relatório da perícia de natureza sexual em direito penal, cujas conclusões sustentam as declarações da menor, sem descurar o rigor técnico-científico subjacente à elaboração de tais relatórios de índole pericial, cuja análise fundada, rigorosa e sustentada em que se alicerça a sua elaboração, não suscita qualquer dúvida, nem reserva.
No que se refere ao dolo o mesmo baseia-se na matéria de facto provada e nas regras da experiência comum, e nos factos objectivos dados como provados, que atentos tais meios de prova permitem concluir que os arguidos ao agirem da forma descrita, actuavam de forma deliberada e consciente e, do que estavam plenamente cientes, bem sabendo a idade da menor, conscientes que afectavam o seu bem-estar físico e psíquico, atentando contra a sua autodeterminação, sabendo que a mesma, em virtude da sua idade, era incapaz de o fazer, estando a arguida bem ciente que a menor era sua filha e o arguido por ser companheiro da arguida, progenitora da menor, coabitava com esta, aproveitando-se dessa relação de coabitação e do manifesto ascendente que tem com a coarguida, a qual estava plenamente ciente que ao agir nos moldes descritos proporcionava, fomentava e permitia que o arguido praticasse tais actos na pessoa da menor ofendida S_____.
No que se reporta à condenação sofrida pelo arguido, teve-se em consideração o teor do respectivo certificado de registo criminal do arguido, documento autêntico, constante de fls. 663 a 664 dos autos e no que tange à situação económica, social, familiar e profissional do arguido, bem como o enquadramento vivencial do mesmo, teve-se em consideração o teor do relatório social de fls. 684 a 688, e quanto à arguida, a ausência de condenações resulta da análise do teor do seu certificado de registo criminal, constante de fls. 705, e os factos atinentes ao seu percurso e enquadramento social, familiar e pessoal resultam do seu relatório social, constante de fls. 727 a 731 dos autos.
Os factos dados como não provados advêm da sua não demonstração, considerando que os mesmos não foram efectivamente descritos nem pelas testemunhas inquiridas, nem resultam das declarações da menor S____ nem da mesma conjugação probatória quando conjugada em si.”

No que tange à determinação da medida da pena, o acórdão sob escrutínio diz o seguinte (transcrição):

“Escolha e determinação da medida da pena:
Assente que está que os arguidos praticaram, em coautoria material e na forma consumada, em concurso real e efectivo, os crimes acima elencados, há que proceder à escolha e determinação da medida das penas que, em concreto, lhes devem ser aplicadas.
O crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo Art.º 171.º, n.º 1, do Código Penal, é punível com pena de prisão de um a oito anos.
Sendo tal moldura penal agravada de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima for descendente do agente (cfr. alínea a) do n.º 1 do Art.º 177.º, do Código Penal) e se encontrar numa relação de coabitação do agente (cfr. alínea b) do n.º 1 do Art.º 177.º, do Código Penal), como sucedeu, respectivamente, nos casos da arguida e do arguido.
Assim, no que respeita aos crimes de abuso sexual, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º n.º 1, alíneas a) e b), ambos do Código Penal, os mesmos, em abstracto, são puníveis com pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses a 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão.
O crime de abuso sexual de crianças previsto no n.º 3 do citado Art.º 171.º, do Código Penal (alíneas b) e c), do referido n.º 3) é punido com pena de prisão até três anos, logo o mínimo é de um mês de prisão (cfr. Art.º 41.º, n.º 1, do Código Penal).
Atendendo à agravação que decorre das alíneas a) e b) do n.º 1 do Art.º 177.º, do Código Penal, um terço nos seus limites mínimo e máximo, a moldura penal abstracta é de um mês e dez dias até quatro anos de prisão.
Para haver responsabilização jurídico-penal do arguido não basta a mera realização por este de um tipo-de-ilícito (facto humano anti-jurídico e correspondente ao tipo legal), toma-se necessário que aquela realização lhe possa ser censurada como culpa, o mesmo é dizer, que aquele comportamento preencha também um tipo-de-culpa (como se referem Leal-Henriques e Simas Santos, m Código Penal Anotado, vol. 1, 2002, p. 205).
De acordo com o Art.º 40.º, n.º 2 do Código Penal «A pena não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa», sendo a culpa um dos elementos fundamentais em sede de aplicação de penas. A punição visa a protecção dos bens jurídicos e a intimidação para a prática de futuros delitos (prevenção geral positiva e negativa) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), cfr. n.º 1 do Art.º 40.º do Código Penal.
Tais finalidades, de acordo com o que preceitua o Art.º 40.º, n.º 1, do citado Código, são a protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial), não podendo, em caso algum, a pena exceder a medida da culpa do agente, sob pena de se postergar o fundamento último de toda e qualquer punição criminal que é a dignidade humana (cfr. Art.º 40.º, n.º 2, do Código Penal).
Estatui o Art.º 71.º, n.º 1 do Código Penal que «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Importa, por isso, ponderar as exigências de prevenção geral e especial que se fazem sentir.
No caso vertente, são particularmente elevadas as exigências de prevenção geral, uma vez que, este tipo de crime, pela sua ínsita violência, assume relevantes proporções, com graves consequências, no seio da comunidade, as quais provocam grande alarme social e sentimento generalizado de insegurança e medo para além de situações análogas à dos autos sucederem com grande frequência, especialmente nesta comarca, o que provoca justificado temor na comunidade, abala a confiança que esta deve ter na eficácia do sistema penal, e impõe, consequentemente, uma necessidade acrescida de dissuadir a prática destes factos pela generalidade das pessoas e de incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes.
A ilicitude assume intensidade elevada, atentas as consequências dela resultantes no que respeita à lesão de bens de natureza pessoal.
O dolo, atenta a reflexão necessária ao empreendimento da acção, assume intensidade significativa, por revestir a sua modalidade mais intensa, de dolo directo.
Nestes termos, a operação a efectuar na determinação da pena consiste na construção de uma moldura penal de prevenção geral de integração (em obediência à ideia de que o fim da punição reside na defesa dos bens jurídicos e das legitimas expectativas da comunidade, com vista ao restabelecimento da paz jurídica) e cujo limite mínimo é dado pela defesa do ordenamento jurídico, o ponto abaixo do qual não é socialmente admissível a fixação da pena, sem colocar em causa a sua função de tutelar bens jurídicos.
Por outro lado, a culpa fornecerá o limite máximo inultrapassável das exigências de prevenção - a culpa como fundamento da pena e não como finalidade.
Dir-se-á, assim, que a culpa é a ratio da pena.
Dentro dos limites abstractamente definidos na lei, a medida concreta da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se igualmente a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele (cfr. Arts.º 71.º, n.ºs 1 e 2, e 40.º, n.º 1, do Código Penal).
É com base neles que ao juiz cabe “uma dupla (ou tripla) tarefa, dentro do quadro condicionante que lhe é oferecido pelo legislador. Determinar, por um lado, a moldura penal abstracta cabida aos factos dados como provados no processo. Em seguida, encontrar, dentro desta moldura penal, o quantum concreto da pena em que o arguido deve ser condenado. Ao lado destas operações - ou em seguida a elas escolher a espécie ou o tipo de pena a aplicar concretamente, sempre que o legislador tenha posto mais do que uma à disposição do juiz” assim o ensina o Prof. Jorge Figueiredo Dias, in As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, pág. 193.
Sem condescender que, os factos em causa se revelam particularmente graves e são profundamente censuráveis, porquanto denotam um significativo desprezo pela dignidade da pessoa e uma ausência absoluta de respeito pela humanidade, conforme supra explanado, sendo certo que, não se pode ignorar que o crime em referência, pela extrema frequência com que vem sendo praticado e pelos traços de insuportável violência e devassa de que geralmente se reveste, constitui uma das infracções criminosas que causam maior alarme social, contribuindo, claramente, para aumentar o sentimento geral de insegurança em que vive a sociedade portuguesa dos nossos dias, como sucedeu nos autos.
No respeitante à culpa dos arguidos, deve atender-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, sob pena de haver uma dupla valoração da culpa, depuserem a favor ou contra os arguidos, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste, a intensidade do dolo, os fins ou motivos que o determinaram e as suas condições pessoais.
Com efeito, têm de ser ponderadas, de forma equilibrada, todas as circunstâncias para a individualização da pena aplicada aos arguidos.
Assim, nas circunstâncias que antecederam, contemporâneas ou posteriores ao cometimento do delito e que influenciam a determinação da pena, de modo a concretizar-se o tipo e a gravidade da mesma, têm de ser ponderadas as circunstâncias, desfavoráveis e as favoráveis:
As primeiras:
- o grau elevado de ilicitude dos factos, atendendo ao circunstancialismo em que os mesmos ocorreram e a extensão do mal-estar, das dores, da ansiedade e do sofrimento quer físico, quer psíquico que a ofendida sofreu e o impacto que tais vivências comportam para a formação da personalidade e crescimento da menor, na data com 9 (nove) anos de idade;
- a amplitude do hiato temporal, desde Junho de 2017 até 05.03.2018;
- a existência de dolo directo (na sua forma mais intensa);
- a ausência de comportamentos exteriores consentâneos com a interiorização do desvalor das condutas, denotando ambos os arguidos falta de juízo crítico e de autocensura, ambos revelando desprezo pela pessoa da menor, alheamento do seu bem-estar e adoptando uma postura autocentrada e egoisticamente motivados;
- a assunção de uma postura auto complacente e de auto justificações, por parte do arguido;
- o facto do arguido ter uma condenação anterior por factos igualmente violadores de bens jurídicos de índole pessoal, pois o arguido foi condenado pela prática de crime da mesma natureza - abuso sexual de crianças agravado tendo sido condenado em pena de pisão efectiva, de nove anos e seis meses de prisão efectiva, por factos de 1996, o que revela uma personalidade desconforme à Lei e ao Direito, avessa ao respeito pelos valores penais vigentes;
- a circunstância de o arguido praticar esses factos no período em que se encontrava em liberdade condicional, referente a condenação pela prática de crimes da mesma natureza e em violação das regras de conduta a que estava sujeito pelo regime da liberdade condicional, o que denota indiferença a essa condenação;
- o facto de a arguida ter violado os termos do acordo de promoção e de protecção, no sentido de evitar contactos entre o arguido e a menor;
A favor dos arguidos depõem as seguintes circunstâncias:
- a condição humilde de ambos os arguidos e o apoio familiar de que a arguida beneficia;
- o facto de nada constar do certificado de registo criminal da arguida.
Ora, a factualidade sob colação revela-se particularmente censurável, visto que a conduta dos arguidos denotou total desrespeito pelas normas penais vigentes, bem como os crimes em causa se revestem de acentuada e veemente gravidade e são profundamente atentatórios dos bens jurídicos fundamentais de índole eminentemente pessoal, devassando esses bens pessoais, revelando desprezo pela natureza humana, pelo desenvolvimento de uma criança e pelo bem-estar da mesma, aproveitando-se da especial vulnerabilidade e fragilidade de quem se encontra a viver a infância.
Assim, conclui-se serem por demais prementes as necessidades de prevenção especial que urge acautelar de forma eficaz e adequada, mas justa.
Relativamente ao arguido:
Com efeito, o arguido denota um persistente e reiterado desrespeito pelos valores jurídicos penalmente tutelados, não lhe servindo a condenação anterior de efeito dissuasor, em pena de prisão efectiva e pela prática de crimes da mesma natureza, para além de se encontrar, por causa dessa pena, em pleno período de liberdade condicional, o que denota, claramente, uma ausência de interiorização do desvalor da conduta e desprezo pela norma penal incriminadora dos crimes sob colação, o que agrava, de forma acutilante, as necessidades de prevenção especial quer na sua vertente negativa, quer positiva.
Pelo que, se pode, indubitavelmente, afirmar que a pena anterior lhe foi nitidamente indiferente, dado que, não obstante a condenação anterior aquele não se absteve de delinquir, constatando-se que as finalidades visadas pela aplicação de uma pena resultaram goradas, não tendo o arguido reconhecido a censurabilidade dos seus comportamentos, tanto mais que se encontrava em período de liberdade condicional, ao que o arguido foi patentemente indiferente.
Assim, coloca-se com bastante premência a necessidade óbvia de dissuadir aquele de cometer futuros crimes, atenta a condenação anterior sofrida, o que aumenta significativamente o perigo de uma recidiva, sendo ostensivo o seu sistemático desrespeito pelas normais vigentes.
Tal denota uma personalidade desconforme ao direito e uma ineficácia da pena anteriormente sofrida, bem como revela uma postura de indiferença para com a mesma, não surtindo o efeito dissuasor pretendido, sobretudo na sua vertente de prevenção especial negativa e positiva, no sentido de evitar que o arguido volte a delinquir e forçá-lo a adoptar comportamentos consentâneos com os valores penais vigentes.
Os crimes em presença são essencialmente homogéneos, da mesma espécie, e levados a cabo sobre a mesma vítima e sobre a qual o arguido tinha a mesma “disponibilidade,” não só pela sua idade, mas pela relação que lhe permitia essa coabitação.
Todavia, e quanto a ambos os arguidos, importa distinguir, porquanto factualmente são situações intrinsecamente distintas, e consequentemente tal diferença tem que ter reflexo na medida concreta da pena, os dois crimes referentes às situações ocorridas na “cama” e na “cozinha”, porquanto de maior gravidade, requerendo maior energia criminosa e com maior impacto na pessoa da ofendida, e as demais quatro situações, ainda que inequivocamente gravosas e censuráveis, mas com menor impacto vivenciado por parte da ofendida, nos moldes acima dados como provados.
Acresce ainda que, ambos os arguidos revelam dificuldade em lidar com a crítica e a adversidade, são defensivos, desculpabilizantes, e têm dificuldade em se descentrar.
Assim, em face das circunstâncias expostas, entende-se ser adequado, justo e consentâneo quer com as finalidades ínsitas à punição, quer com a medida da culpa e da consciência da ilicitude, aplicar ao arguido as seguintes penas, em concurso real e efectivo, de:
- 4 (quatro) anos de prisão, respectivamente, pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, por cada um deles, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal), no que se reporta aos factos ocorridos na “cama” e na “cozinha”;
- 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, respectivamente, pela prática de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças agravado, por cada um deles, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal), relativamente às demais quatro situações acima descritas;
- 2 (dois) anos de prisão, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e n.º3, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal);
- 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e n.º 3, alínea b) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal).
Quanto à arguida:
Não obstante militar a seu favor a circunstância de nada constar no seu certificado de registo criminal, e apesar de beneficiar de apoio familiar, a verdade é que, a mesma denotou na sua postura e no seu comportamento um absoluto desrespeito pelo crescimento, educação, bem-estar e formação da sua filha menor, aqui ofendida, posição que ainda hoje se mantém, desvalorizando os sentimentos vivenciados pela menor, revelando indiferença pelo impacto que tais factos tiveram na formação da personalidade da menor e na infância desta, denotando assim a arguida falta de juízo crítico, total ausência de autocensura e profundo desprezo pela pessoa da menor, sua filha, na data com 9 (nove) anos de idade, circunstâncias que surgem em desabono da arguida.
Em face das circunstâncias expostas, e tudo ponderado, entende-se ser adequado, justo e consentâneo quer com as finalidades ínsitas à punição, quer com a medida da culpa e da consciência da ilicitude, aplicar à arguida as seguintes penas, em concurso real e efectivo, de:
- 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão, respectivamente, pela prática de 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, por cada um deles, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal), sendo de distinguir os dois crimes que se reportam aos factos praticados na “cama” e na “cozinha”, em face do maior impacto vivencial que a sua execução teve na menor ofendida, atendendo aos moldes acima dados como provados;
- 3 (três) anos de prisão, respectivamente, pela prática, por cada um deles, de 4 (quatro) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e 177º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal);
-1 (um) ano de prisão, pela prática de 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e n.º3, alíneas b) e c) e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal).
Do cúmulo jurídico:
Considerando que os arguidos vão condenados pela prática, em concurso real e efectivo, dos crimes acima aludidos, em penas da mesma natureza, penas de prisão, importa efectuar o cúmulo e condenar os arguidos numa pena única.
Na medida concreta da pena única resultante da aplicação das regras do concurso de crimes deverá o Tribunal ter em conta os factos e a personalidade dos arguidos, bem como os fins de prevenção quer geral, quer especial (cfr. Art.º 77.º, do Código Penal).
Ora, a factualidade sob colação revela-se de extrema gravidade, elevada ilicitude e intensa censurabilidade, denotando a conduta dos arguidos um absoluto alheamento pela integridade física e psíquica, pelo bem-estar integral e pelo desenvolvimento salutar da ofendida, revelando um total desrespeito pelos valores jurídicos e axiológicos vigentes, bem como os crimes em causa são profundamente atentatórios dos valores penais vigentes, porquanto revelam os arguidos com estas suas condutas um desprezo profundo pela dignidade da condição humana, particularmente vulnerável atendendo à jovem idade da ofendida - na data com nove anos de idade tanto mais que os arguidos não assumem uma postura de contrição que fosse denotativa de um processo de interiorização do desvalor das condutas.
Aliás, ambos os arguidos assumem uma postura de desvalorização da personalidade da ofendida, alheando-se da circunstância da mesma se encontrar na sua infância, desprezando os deveres que sobre em si impendem, assumindo um discurso desculpabilizador, manipulador e autocentrado.
Por outro lado, dos factos dados como provados resulta que os arguidos denotam um fraco recurso a um pensamento consequencial, ausência de consciência crítica, uma menor interiorização das normas e valores em vigência e sérias dificuldades em se colocar na perspectiva do outro, revelando uma postura de desculpabilização e de autovitimização.
Sem olvidar que, quanto ao arguido se revela a sua conduta, globalmente avaliada, de maior censurabilidade, considerando que, por um lado, o arguido já tinha sido condenado em pena de prisão efectiva pela prática do mesmo tipo de crime, e por outro lado, por conta dessa condenação, aquando do cometimento destes factos, o arguido encontrava-se em período de liberdade condicional.
Em relação à arguida urge ponderar, em seu abono, a ausência de condenações anteriores registadas, bem como, o ascendente psicológico que claramente a pessoa do arguido sobre si exerce, e contra si, a falta absoluta de consciência do imperativo ético e legal do cabal exercício das responsabilidades parentais.
Assim, e quanto ao arguido, operando o cúmulo jurídico entre o limite mínimo de 4 (quatro) anos, a pena mais elevada concretamente aplicada, e o limite máximo correspondente à soma de todas penas concretamente aplicadas (cfr. Art.º 77.º, do Código Penal), com o limite máximo legalmente estatuído de 25 (vinte e cinco) anos, julga-se adequada, justa e consentânea com os fins das penas e do instituto do cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 10 (dez) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
Em relação à arguida, operando o cúmulo jurídico entre o limite mínimo de 3 (três) anos e 6 (seis) meses, a pena mais elevada concretamente aplicada, e o limite máximo correspondente à soma de todas penas concretamente aplicadas (cfr. Art.º 77.º, do Código Penal), com o limite máximo legalmente estatuído de 20 (vinte) anos, julga-se adequada, justa e consentânea com os fins das penas e do instituto do cúmulo jurídico, condenai' o arguido na pena única de 7 (sete) anos e 3 (três) meses de prisão.”

Vejamos, agora, cada um dos recursos começando pelo recurso do arguido L_______, por o mesmo impugnar a matéria de facto que, a proceder, afectará o mérito do recurso da arguida.

I.  Do recurso interposto pelo arguido L____:

a) Da impugnação da matéria de facto:
Embora tenha declarado na sua motivação que interpunha recurso em relação a toda a matéria de facto, na realidade o arguido acaba por impugnar apenas a matéria de facto dada por provada sob os nºs 12 a 29 e 30 a 38.

A impugnação da matéria de facto em sede de recurso encontra o seu assento legal no art.º 412º nº 3 do CPP que dispõe o seguinte:
“Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.”

Tendo a prova sido gravada diz o nº 5 do citado art.º 412º do CPP que “as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.”

Sendo que, nos termos do nº 6 do art.º 412º do CPP “no caso previsto no nº 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”

Conforme se esclarece no Acórdão desta mesma Relação de Lisboa (9ª secção) de 08-10-2015, proferida no proc.º nº 220/15.3PBAMD.L1-9, in dgsi.pt:
“III- O recurso em matéria de facto, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo, relativamente à decisão sobre os concretos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgado, fazendo referência expressa às concretas passagens/excertos das declarações, que, no seu entendimento, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer;
IV- Não basta ao recorrente enunciar a sua pretensão quanto a um determinado resultado final em termos de facto ou de direito (v.g. da prova produzida não resultam provados os factos do tipo legal ou não se provou o crime, pelo que deve ser absolvido), de tal modo que fosse o tribunal superior, oficiosamente a retirar conclusões sobre quais os factos e provas concretas que se ajustariam à sua pretensão final e dentro destas, quais as passagens relevantes, depois de ouvir a prova gravada na íntegra, uma vez que o recurso da matéria de facto fundado em erro de julgamento não visa a realização, pelo tribunal “ad quem”, de um segundo julgamento, mas apenas a correção de erros relevantes (evidentes e óbvios) na apreciação e ou aquisição da prova produzida em sede de primeira instância.”

No que se refere às declarações dos arguidos, aos depoimentos das testemunhas e à sua articulação com os documentos, vigora o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do art.º 127º do CPP, que assenta na inexistência de regras legais que atribuam valor específico, pré-determinado às provas, ou que estabeleçam alguma hierarquia entre elas e na admissibilidade de todos os meios de prova, em geral, desde que não incluídos nas proibições contidas no art.º 126º do CPP, em sintonia com o princípio consagrado no art.º 32º nº 8 da Constituição.
 
Assim, “O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Daí que também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e, sobretudo, o recorrente tenha que indicar expressamente os vícios da decisão recorrida” (Prof. Germano Marques da Silva, Registo da Prova em Processo Penal, Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra, 2001. No mesmo sentido, Ana Maria Brito, Revista do C.E.J., Jornadas Sobre a Revisão do C.P.P., pág. 390; Cunha Rodrigues, «Recursos», in O Novo Código de Processo Penal, p. 393).

“Por outro lado diremos também que, dependendo o juízo de credibilidade da prova por declarações do carácter e probidade moral de quem as presta e não sendo tais atributos apreensíveis, em princípio, mediante exame e análise da gravação áudio onde as mesmas se encontram documentadas, mas sim através do contacto com as pessoas, é evidente que o tribunal superior, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal a quo.
Ou seja, a convicção do julgador só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.”[2]

Por isso é que é absolutamente fundamental que no recurso interposto da matéria de facto, nos termos do art.º 412º nº 3 do CPP, o recorrente identifique os concretos factos cuja alteração pretende e as concretas provas que impunham a requerida alteração, não cabendo a este Tribunal de recurso refazer o julgamento, ouvir toda a prova e voltar a decidir.

Da cuidada análise das conclusões, em conjugação com a motivação, se constata que o recurso do arguido é confuso quanto aos factos cuja impugnação efectivamente pretende operar, no âmbito do art.º 412º CPP,  uma vez que faz referência a diferentes grupos de factos, que depois reagrupa, como por exemplo impugna os factos 19 a 22, mas depois diz que impugna os factos 18 a 26, para depois dizer que afinal impugna também os factos 12 a 18, e os 26 a 38, oferecendo, de cada vez, motivos diversos para a respectiva impugnação.

Ora, apenas em relação aos factos vertidos em 19 a 22 é que o arguido transcreve os trechos e identifica o depoimento, neste caso as declarações da menor, que entende estarem em oposição com a prova pericial daí retirando que aqueles factos não podem ser considerados provados.

Em relação aos restantes factos que impugna o arguido apenas visa pôr em causa a credibilidade da menor e das testemunhas oferecendo a sua convicção.

Ora, como se sabe a impugnação da matéria de facto não implica que esta Relação proceda a um novo julgamento, sobrepondo a sua convicção à do Tribunal a quo mas apenas que verifique se, de facto, houve da parte do Tribunal a quo um erro de julgamento de acordo com as regras aplicáveis e dos concretos depoimentos prestados, devendo o recorrente demonstrar de forma clara que determinado depoimento ou conjugação de depoimentos, nas partes concretamente identificadas por si, impunham decisão diversa.

Ora, o arguido apenas faz isso em relação aos factos vertidos em 19 a 22 pois identifica os trechos das declarações da menor que, no seu entender, e em face da prova pericial, poderiam levar a um entendimento diverso quanto à matéria de facto provada naqueles números.

Em relação aos restantes factos por si impugnados, o arguido limita-se a explicar porque motivo entende que não podia ter sido dado crédito a testemunhas que não presenciaram os factos, tais como a irmã da menor, e invoca o princípio in dúbio pro reo para inquinar a credibilidade da menor.

O arguido suscita dúvidas genéricas para pôr em causa a credibilidade das testemunhas sem, contudo, demonstrar porque motivo este ou aquele depoimento não podia ter sido valorado como foi.

Por exemplo, o arguido levanta a dúvida porque motivo o irmão da menor, que com ela coabitava não soube de nada, impugnando assim os factos vertidos em 14 a 16.

Como também levanta a “dúvida” acerca dos factos vertidos em 23 a 25 porque entende que do depoimento da irmã da menor – que nada terá presenciado e que, por isso, desacredita em tudo menos naquilo que lhe interessa – resulta um pequeno trecho que demonstra que o referido pela menor em relação ao conhecimento por parte da mãe e do seu desinteresse em defender a filha, é incompatível com uma experiência passada.

Ora uma “dúvida” acerca de certos factos não cumpre com os requisitos plasmados no art.º 412º do CPP.

Em todo o caso, quanto aos factos vertidos em 23 a 25 os mesmos não são beliscados só porque a irmã da menor disse que, quando era menor e ainda vivia com o seu pai, este também lhe tentou tocar e que aí a sua mãe reagiu, porquanto, do relatório social junto aos autos e documentado no facto vertido em 61, bem como da cuidada análise de todos os elementos do processo de promoção e protecção juntos aos autos, se retira com muita facilidade, até, que a mãe da menor fez uma clara opção pelo arguido e que isso não só não é incompatível com o depoimento da irmã da menor como se lhe segue como situação lógica.

Ou seja, o facto de, no passado, a arguida ter-se afastado do pai dos seus filhos, por motivos semelhantes, só reforça a conclusão a que chegaram as respectivas técnicas quanto à personalidade da arguida: esta já “perdeu” um casamento por causa de queixas de uma filha, não iria perder agora esta relação pelo mesmo motivo.

De notar que a arguida “acabou por se separar para poder manter a guarda dos filhos, ainda que o discurso sobre esta situação e sobre a filha seja ambivalente, reconhecendo os comportamentos do cônjuge, mas atribuindo a responsabilidade da separação à filha, por tê-los denunciado.”

Mas quem ouve na íntegra o depoimento da filha mais velha da arguida, V_____, como fizemos, rapidamente se conclui que a própria testemunha disse o que disse, não para demonstrar que a mãe agira no passado, mas que também havia sido vítima de abuso por parte do seu pai e, por isso, acreditava naquilo que a irmã S____ lhe dizia.

 Na verdade, o trecho do depoimento citado no recurso do arguido vem na sequência de uma pergunta que lhe foi formulada no sentido de saber se a testemunha acreditava em tudo aquilo que a irmã lhe vinha relatando e não para “defender” a mãe.

Aliás, resulta de forma muito clara de todo o depoimento da testemunha V_____ que a mãe sempre negou os abusos, e no caso dela só terá agido em última instância – agredindo o marido – quando testemunhou pessoalmente os avanços sobre a filha mais velha, restando aí saber se agrediu o pai dos filhos para os defender ou se, na realidade, o fez por fúria por estar a ser “traída”.

De resto a agressão da arguida valeu-lhe uma pena de trabalho a favor da comunidade o que só reforça a ideia de que a mesma não iria querer passar pelo mesmo para defender a menor S_____.

Resulta também do depoimento da testemunha V_____- que a mãe sempre a culpara a si e à menor pelos desaires amorosos tendo esta testemunha referido de forma muito clara que a mãe lhe dizia que tinha sido a V_____ quem lhe destruiu a vida.

Ora esta testemunha disse várias vezes que a mãe nunca colocou os interesses dos filhos à frente dos seus interesses que, por exemplo, mesmo antes da presença do arguido na sua vida, deixou tudo na Madeira, agarrou nos três filhos e arrastou-os até ao Continente, onde não tinha casa nem trabalho, para encetar uma relação com outro recluso, pondo em causa a estabilidade e habitação dos filhos.

Disse ainda a testemunha V_____ que, mesmo antes do arguido L______ fazer parte da vida da sua mãe, que quando esta recebia dinheiro ia logo gastá-lo em tabaco e em restaurantes, não se preocupando com o bem-estar dos filhos.

Ora a arguida sabia o passado criminoso do seu companheiro, aqui co-arguido, sabia que o mesmo não podia estar perto da sua filha e sabia que o mesmo não podia coabitar consigo, quer porque isso estava vedado pelo TEP, que fixou as condições de liberdade condicional do arguido, quer porque a Santa Casa da Misericórdia não o permitia.

Por isso, faz todo o sentido, que a arguida, tendo já “perdido” um casamento e não querendo perder esta relação, nem a sua situação habitacional, não protegesse a filha, o que iria implicar denunciar a presença do arguido em sua casa e na sua vida, como aparentemente terá feito da primeira vez em relação à filha mais velha.

Fazendo, assim, perfeito sentido os factos vertidos em 23 a 25, que, aliás, e ao contrário do que pretende o arguido L____ saem plenamente corroborados com o depoimento da filha mais velha da arguida M________.

Aliás, resulta de todo o discurso da menor que esta tem plena consciência que a mãe sempre colocara acima dos seus interesses as vontades e interesses do companheiro, tendo a menor chegado a dizer que a mãe lhe disse, numa ocasião que: “ele é único no mundo, filhos há muitos”.

Quanto à estranheza que o arguido apresenta em relação ao facto do irmão da menor não se ter apercebido de nada, resulta do depoimento da criança que o irmão ou se fechava no seu quarto ou estaria a fazer as suas coisas, sendo que, da única vez que a menor contou ao irmão e pediu ajuda este foi ter com a mãe para se inteirar da situação.

Só que, como de costume, a mãe dizia que eram brincadeiras do companheiro e para não ligar.

O facto das testemunhas ouvidas (irmã, cunhado e irmão da menor) não terem conhecimento directo dos factos, não inquina, de per si, o seu depoimento, especialmente se esse depoimento se mostrar consentâneo com aquilo que a própria menor, que terá vivido a experiência, lhes terá relatado e se coincidir com aquilo que a menor veio relatar em Tribunal, mostrando consistência no seu reviver da situação.

Aliás, tudo aquilo que as testemunhas ouvidas disseram que a menor lhes terá contado coincide com aquilo que a menor relatou em Tribunal quando foi ouvida em declarações para memória futura, o que só valida aquelas declarações por serem consistentes ao longo do tempo.

Pelo que este simples argumento não chega para pôr em causa a convicção do que o Tribunal a quo formou que, como todos sabem, resulta também da imediação da prova.

Assim e quanto aos factos os vertidos em 12 a 28 e 30 a 38, à excepção dos vertidos em 19 a 22 que o arguido impugna também de outra forma pondo em causa a credibilidade da menor em confronto com prova pericial, os mesmos são impugnados por dois motivos, sendo que o primeiro, o facto de não terem sido presenciados por outras testemunhas deve ser tido como improcedente pelos motivos já aqui explanados, e o segundo motivo, por violação do princípio in dúbio pro reo, será tratado num item à parte como infra se verá.

Assim e no que tange à impugnação da matéria de facto que se enquadra no disposto no art.º 412º do CPP temos apenas a análise dos factos vertidos em 19 a 22.                 

Ora, entende o arguido que o Tribunal a quo não podia ter dado como provado os factos vertidos em 19 a 22 por os mesmos assentarem no depoimento da menor que, na sua óptica, revela incongruências e é contraditado por prova pericial.

Vejamos, olhando de novo, esses factos.

“19. Em data não concretamente apurada do ano de 2017, após o jantar e alguns dias após a situação acima descrita, a arguida encontrava-se no 1.º piso da habitação, enquanto o arguido se encontrava no rés-do-chão, na cozinha, na companhia da menor;
20. A dado momento, o arguido, que se encontrava vestido com um robe, desnudado, apenas em cuecas, solicitou à menor S____ que estava vestida com um pijama, que lhe fizesse um café, ao que esta acedeu, pedindo para que a menor mexesse o café, aproveitando para se aproximar da menor;
21. Após, o arguido dirigiu-se à menor e deitou-a por cima da mesa que aí se encontrava e despiu-lhe as calças de pijama que esta envergava e as cuecas;
22. Tendo colocado a menor nessa posição, o arguido aproximou-se da menor, retirou o pénis erecto das cuecas que trajava e friccionou o pénis junto da vagina da menor, sem que tivesse ejaculado;”

Para impugnar estes factos o arguido alega que as declarações da menor, que transcreve muito parcialmente, prestadas no dia 19-06-2019 (a menor prestou declarações para memória futura em duas ocasiões diferentes, sendo a do dia 19-06-2019 a segunda vez) revelam que o arguido não podia ter feito aquilo que a mesma refere em tais factos pois que a perícia revela que o hímen da menor está intacto.

Antes de mais, convém esclarecer que esta Relação ouviu na íntegra as declarações para memória futura prestadas pela menor nos dias 10-04-2018 e 19-06-2019.

Os trechos transcritos pelo arguido traduzem uma ínfima parte de todo o discurso da menor, discurso esse que não pode ser desligado da primeira sessão de declarações para memória futura.

Explicando.

Daquilo que a menor refere nas suas declarações, ouvidas na íntegra, a mesma relata situações em que todas as vezes que o arguido lhe teria tocado com intuitos de satisfação sexual, à excepção da situação relatada nos factos vertidos em 19 a 22, o mesmo “apenas” teria tocado nos genitais da menor com a mão, a maior parte das vezes, por cima da roupa, ou encostado o seu pénis, nessas ocasiões sem roupa.

A situação referida nos factos vertidos em 19 a 22 seria a única situação em que o arguido teria ido mais longe, chegando a colocar o pénis “dentro” da vagina da menor.

Mas daqui não se retira, e a menor em parte alguma refere, que houve penetração completa.

O que a menor refere é que o arguido pegou nela e colocou-a sentada na mesa da cozinha e, depois, puxou-lhe a roupa e “entrou um bocadinho”, no “pipi”, e depois fez um movimento “vem para trás”.

Ora, temos de compreender a linguagem de uma menor que, ao tempo das declarações em referência, só tinha 10 anos.

Para a criança, que estava sentada e, por isso, qualquer acesso à sua parte genital seria sempre limitada, o facto do arguido ter entrado “um bocadinho” não significa que tivesse penetrado a cavidade vaginal e rompido o hímem.

O entrar um bocadinho ocorre a partir do momento em que o arguido invade o espaço íntimo da criança, para além daquilo que até então havia feito, e que se traduzia no manipular pelas mãos ou no simples encostar do seu pénis à parte exterior da genitália da criança.

Ora, para uma criança de 10 anos o seu órgão sexual é apenas o “pipi” não havendo divisão das várias partes anatómicas que compõem o mesmo, apenas distinguindo a parte exterior onde, no passado, o arguido se encostou com o seu pénis e a parte interior onde o arguido terá entrado de forma mais invasiva, sem contudo romper-lhe o hímem.

Ora, da consulta do relatório pericial, junto a fls. 492 e ss, se retira que as respectivas conclusões periciais confirmam os factos relatados pela menor pois pode ler-se o seguinte:
“Não foram observadas lesões na região ano-genital, o que é compatível com a história da examinanda. O hímem da examinanda tem características de ser íntegro. Estes achados estão de acordo com a história de contacto do pénis com a vulva, sem penetração.” – sublinhado nosso
Por isso mesmo é que a menor, nas suas declarações para memória futura, prestadas em 19-06-2019, e aqui impugnadas pelo o ora recorrente, referiu que o arguido tinha entrado “um bocadinho”, isto é, sem penetração total dentro da vagina.

Ou seja, claro se torna ver que a versão da menor é absolutamente credível e consentânea com o resultado pericial.

Quanto ao facto da menor ter referido que sangrou um bocadinho, também essa situação não é incompatível com uma introdução parcial do pénis na vulva da menor, sem rompimento do hímen, uma vez que a menor também referiu que o arguido fez movimento com o pénis o que é fácil de ver que a simples fricção de um pénis de um homem adulto na vulva de uma criança com 9 anos ao tempo pode perfeitamente provocar sangramento dos respectivos e delicados tecidos sem que isso implique rompimento do hímen.

Aliás, nas suas declarações a menor referiu que esta actuação do arguido foi a única que lhe terá provocado dor física, não tendo nenhum dos anteriores contactos – porque menos invasivos da zona genital – lhe causado dor física.

Não há, assim, qualquer dúvida que os factos vertidos em 19 a 22 devem manter-se e, assim, terá de improceder esta parte do recurso do arguido.

Quanto aos restantes factos, vertidos em 12 a 18, e 23 a 38, os mesmos são impugnados de forma genérica e com base na violação do princípio do in dúbio pro reo o que se analisará infra.

b) Da violação do princípio in dúbio pro reo:
Entende o arguido que o facto do Tribunal a quo ter dado crédito às declarações da menor em detrimento da sua versão e até mesmo das declarações da irmã e do irmão, que nada viram que permitisse confirmar aquelas declarações, viola o princípio do in dúbio pro reo.

Vejamos, detendo-nos um pouco na análise do respectivo instituto.

“Haverá violação do princípio in dubio pro reo, sempre que o tribunal do julgamento tenha julgado provado facto desfavorável ao arguido, não obstante a prova disponível não permitir, de forma racional e objectiva, à luz das máximas de experiência comum, das regras da lógica, dos conhecimentos científicos aplicáveis, ou das normas e princípios legais vigentes em matéria de direito probatório, com o grau de certeza ou convencimento «para além de toda a dúvida razoável», dar por verificada a realidade desse facto.”[3]

O que significa que, existindo uma séria dúvida sobre determinado facto, essa dúvida deve ser resolvida a favor do Arguido, atento o princípio da presunção da sua inocência.

Ou conforme muito bem explicitado no Acórdão do STJ de 12-03-2009, cuja relator é Soreto de Barros[4]:
“III- O princípio do in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa; como tal, é um princípio que tem a ver com a questão de facto, não tendo aplicação no caso de alguma dúvida assaltar o espírito do juiz acerca da matéria de direito.
IV- Este princípio tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto, quer seja nos pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer seja nos factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
V- Não existindo um ónus de prova que recaia sobre os intervenientes processuais e devendo o tribunal investigar autonomamente a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre a prova do facto; isto porque o princípio in dubio pro reo, uma das vertentes que o princípio constitucional da presunção de inocência (art.º 32.º, n.º 2, 1.ª parte, da CRP) contempla, impõe uma orientação vinculativa dirigida ao juiz no caso da persistência de uma dúvida sobre os factos: em tal situação, o tribunal tem de decidir pro reo.
VI- Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. Já o saber se, perante a prova produzida, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida é uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada.
VII - A apreciação pelo STJ da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio, ou seja, quando, seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção, se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção.” – sublinhado nosso

Ora, da fundamentação oferecida pelo Tribunal a quo não vislumbramos a invocada violação do princípio in dúbio pro reo.

Em primeiro lugar, porquanto o Tribunal a quo não hesitou em acreditar na versão da menor, cuja credibilidade justificou, revelando, assim, não ter ficado com qualquer dúvida.

O simples facto do Tribunal a quo ter decidido dar mais crédito à versão da menor do que à versão do arguido não implica, de forma alguma, a violação do princípio in dúbio pro reo.

Nem a presunção de inocência do arguido, constitucionalmente consagrada, implica que tudo que o arguido diz é certo ou credível.

O facto da vítima ser menor e de se expressar de uma forma mais atabalhoada não retira à sua credibilidade como testemunha.

Antes, pelo contrário, confere veracidade ao respectivo depoimento pois que uma criança com 10 anos – idade com que prestou declarações – não pode ter um discurso adulto, elaborado, circunstanciado no tempo e no espaço.

A psicologia infantil revela que uma criança desta idade tem dificuldade em elaborar um discurso contínuo que seja lógico e temporalmente exacto.

A criança vai explicando ao nível que lhe vão fazendo as perguntas.

E muitas das vezes há “saltos” no seu raciocínio porque a criança não retém a informação, que presenciou, de forma linear e temporal mas de forma emotiva.

Nada disto implica, como pretende o arguido, que as declarações da menor fossem inconsistentes e incongruentes ao ponto de colocar em crise a sua credibilidade.

O que interessa analisar no discurso da criança – e podemos afirmá-lo por experiência própria adquirida ao longo de 12 anos a ouvir menores desde os 5 anos até aos 18 – é a consistência na descrição pontual que faz de cada grupo fáctico que relata.

Assim, e no que tange aos factos vertidos em 30 a 38 a menor revela coerência na cadência factual que descreve, em especial quando interpelada, e no fundo interrompida, várias vezes quer pela Mmª Juiz que presidiu, quer pela ilustre defensora para descrever com mais pormenor ou clarificar os factos.

A menor é consistente naquilo que relata em relação a cada incidente visto isoladamente, ainda que o seu discurso salte em termos temporais ou quando se lembra de outra coisa.

Ou seja, a menor conta os factos, ainda que interrompida, da mesma forma, embora depois tenha dificuldade em certos casos em fixá-los no tempo e na sua ordem em relação a outros acontecimentos.

Mas isso é perfeitamente normal para uma criança de 10 anos.

E o que a menor relata no que tange aos contactos sexuais por si sofridos é não só consentâneo com a perícia médico-legal, que confirma a versão da menor com os resultados clínicos, como é consistente com os respectivos contextos em que as várias experiências de abuso foram perpetradas.

Nomeadamente no que tange aos respectivos espaços físicos em que os abusos ocorreram, ora na cama dos arguidos, ora no banho, ora na cozinha.

É irrelevante se a menor não se recorda se, quando foi dormir com os arguidos na cama destes, a menor já não tinha o seu quarto ou se haviam bichos no sofá da sala que a obrigassem a dormir com aqueles.

O que interessa é que a menor foi dormir com os arguidos na cama destes e nessa ocasião foi alvo de um abuso sexual por parte do arguido.

Abuso esse que a menor conseguiu travar por que, entretanto, fugiu e foi ter com o irmão a quem contou o sucedido, facto confirmado pelo irmão.

O facto do irmão nada ter presenciado pode parecer estranho à primeira vista mas temos de ter em atenção quer a dinâmica familiar em causa, quer os momentos em que o arguido teria agido.

Assim, e no que tange à dinâmica familiar resulta da informação veiculada no âmbito do processo de promoção e protecção – relatório da Santa Casa de fls. 237 e ss – que não só a relação entre os três irmãos era conflituosa, como em relação às capacidades parentais a arguida tinha dificuldades no estabelecimento de regras e limites que impunha aos filhos – a menor e seu irmão – nomeadamente no que se referia às actividades de lazer e saídas nocturnas do filho J_____ – cfr. fls. 246 – o que explicará porque motivo o irmão, muitas das vezes não se teria apercebido do que estava a acontecer com a irmã.

Ora, a menor referiu que o irmão fechava-se sobre si no seu quarto e que os arguidos até tiraram a televisão da sala e puseram-na no quarto para evitar que o irmão estivesse sempre a ver televisão.

Por outro lado, as ocasiões de abuso relatadas pela menor ou ocorriam à noite – na cama e na cozinha – já o irmão estaria no seu quarto, ou quando o irmão não estaria sequer em casa.

Também resulta do relatório social junto ao processo de promoção e protecção que o irmão da menor tinha uma relação cordial com o arguido evitando, assim, gerar conflitos com o “padrasto” o que revela uma personalidade pouco afirmativa por parte desse irmão, e, assim, perfeitamente consentâneo com o facto deste não ter presenciado nenhuma situação.

Até conviria que o irmão nada visse para não gerar problemas para a mãe e a irmã como o mesmo terá referido à técnica da Santa Casa quando referiu “…a mãe sabe o risco que corre” (sic) – fls. 240

Em todo o caso, não resulta dos autos que a menor e o seu irmão tivessem uma relação particularmente chegada ou que esse irmão fosse especialmente protector da irmã.

E resulta dos autos que a família onde a menor se inseria é perfeitamente disfuncional e não equiparável a uma vivência familiar que pudesse ser tida por normal com entreajuda dos vários membros.

Pois que, da vivência familiar com ambos os progenitores da menor, a mãe acabaria por se separar do pai dos filhos, a quem se imputa hábitos de alcoolismo, sendo que do relatório social junto ao processo de promoção e protecção (fls. 237 e ss), bem como do depoimento da filha mais velha V______ resulta que essa separação não foi só em função das queixas da irmã mais velha mas, também, fruto de violência doméstica perpetrada parte a parte entre os ex-cônjuges (pais da menor).

E da nova dinâmica familiar, entretanto adoptada pela mãe da menor, a mesma, à revelia de tudo e de todos, decide juntar-se com um condenado por violação reiterada da própria filha, colocando essa pessoa no seio da sua intimidade familiar com os seus filhos ainda menores.

Por isso, as declarações, quer da menor, quer dos seus irmãos têm de ser contextualizados com esta realidade familiar disfuncional.

Não há, assim, qualquer violação do princípio in dúbio pro reo tendo o Tribunal a quo valorado de forma adequada toda a prova produzida, tendo em atenção o contexto familiar, as regras da experiência comum e o resultado da perícia médico-legal, em conjugação com os elementos do processo de promoção e protecção.

Não, há, assim, qualquer fundamento para se alterar a matéria de facto dada como provada e muito menos para considerar como factos não provados os vertidos em 12 a 38, improcedendo o recurso do arguido L___ também nesta parte.

c) Da qualificação jurídica dos crimes imputados ao arguido e do trato sucessivo:

Entende o arguido que apenas lhe deve ser aplicado um único crime, em forma de trato sucessivo, uma vez que os alegados abusos sexuais foram sempre perpetrados pelo arguido na mesma ofendida, S____ num espaço de tempo prolongado, que mediou entre Junho de 2017 a Março de 2018.

Vejamos.

O nosso código penal prevê apenas a figura do crime continuado, que não se confunde com o crime de trato sucessivo[5], no art.º 30º que diz o seguinte:

“1 - O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
2 - Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
3 - O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.” – sublinhado nosso

Como se pode ver do texto do citado art.º 30º a figura do crime continuado não se aplica aos crimes de abuso sexual por estes crimes serem de natureza pessoal.

Ora, a jurisprudência começou por desenvolver a figura do crime de trato sucessivo a propósito do crime de tráfico de estupefacientes, tendo depois transposto essa figura para os crimes sexuais.

Conforme se pode retirar do Ac. do STJ de 29-11-2012 do proc.º nº 862/11.6TAPFR.S1[6]:

“I - Quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.
II - O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “atividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “atividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objetiva e subjetivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a atividade.
III - A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.
IV - Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.
V - O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua atividade sem ter de renovar o respetivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).
VI - Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.” – sublinhado nosso

Daqui se retira, em primeiro lugar, que o crime de trato sucessivo, ao contrário do crime continuado e daquilo que parece ser a vontade do arguido, implica um agravamento da culpa do agente e não a sua diminuição.

A seguir o raciocínio do acórdão do STJ acabado de citar, no caso em apreço, teríamos a seguinte situação:
Ao arguido L__ foi imputada a prática de seis crimes de abuso sexual de criança previstos no nº 1 do art.º 171º do CP, agravado pelo art.º 177º nº 1 al. b) do mesmo CP, e um crime de abuso sexual de criança previsto no nº 3 do art.º 171º CP, agravado nos mesmos moldes pelo art.º 177º CP.

Sendo o ilícito mais grave o previsto no nº 1 do art.º 171º do CP a moldura penal em causa, atenta a gravação efectuada pelo art.º 177º nº 1 al. b) do CP, traduz-se em 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses.

Assim, a graduação da pena concreta a aplicar ao arguido teria sempre de considerar uma culpa elevada e não atenuada, como ocorre no crime continuado, o que poderia levar, à mesma, em nosso entender, à manutenção da pena aplicada em sede de cúmulo, ou seja, 10 anos e 4 meses, não retirando o arguido qualquer benefício da figura do crime de trato sucessivo.

No entanto, num trabalho jurídico elaborado pela Sr.ª Juiz Conselheira Helena Moniz, publicado na Revista “Julgar On-Line” de Abril de 2018 verifica-se que a figura do trato sucessivo, além de não beneficiar o arguido no caso em concreto, não se mostra aplicável pelos seguintes motivos que nesse artigo são referidos e com os quais concordamos:
“E é este entendimento do crime de trato sucessivo — como uma “unificação das condutas ilícitas sucessivas, desde que essencialmente homogéneas e temporalmente próximas, quando existe uma mesma, uma só resolução criminosa, desde o início assumida pelo agente” — que foi transposto para os crimes sexuais considerando-se que aquele que abusa sexualmente de uma pessoa decide uma única vez (sem que haja constantemente renovação da resolução criminosa em cada ato que realiza, em cada circunstância que cria propiciadora da realização daquela conduta), e considerando-se que os diferentes atos (mais ou menos idênticos quanto ao modo de atuação e realização e quanto à vítima, sempre a mesma) realizados sucessivamente, reiteradamente, sequencialmente no tempo, apenas integram um único crime.
É em 2012 que se vê na jurisprudência a aplicação desta ideia aos crimes sexuais, em particular, ao crime de abuso sexual de criança, e mais tarde aplicada ao crime de violação.
Mas, se aquilo que caracteriza o crime de tráfico de estupefacientes é o facto de se tratar de um crime de empreendimento e de um crime de múltiplos atos, o mesmo não podemos dizer quanto aos crimes de abuso sexual. Estes não são crimes de empreendimento, dado que a conduta punida não é o empreendimento de uma certa atividade, nem se pode dizer que se trata, como no crime de tráfico de estupefacientes, de um crime de múltiplos atos. Na verdade, quer no crime de violação (164.º), por exemplo, quer no crime de abuso sexual a conduta punida é a prática de ato sexual (cf. art.ºs 165.º, 166.º167.º, 171.º, 172.º, 173.º, 174.º, do CP).
Ou seja, ainda que se possa considerar que um possível crime de abuso poderia integrar diversos atos, verificamos, todavia, que o tipo pune a conduta não de abuso, enquanto integrante de múltiplos atos, mas cada ato individualmente considerado. Na verdade, olhando, por exemplo, para o disposto no art.º 171.º, do CP, é punido todo aquele que pratica ato sexual de relevo com menor, e logo que pratica cada ato, e em cada ato que pratica. É o ato ainda isolado que já constitui um caso de abuso.
Ora, o entendimento dos crimes sexuais como crimes de trato sucessivo pretende abarcar uma multiplicidade de atos, a que corresponde uma multiplicidade de resoluções, num único ato globalmente unificado a partir de uma unidade resolutiva, todavia salientando que não estamos perante uma única resolução, mas perante uma “unidade resolutiva”, querendo com isto apenas evidenciar uma homogeneidade resolutiva. Mas, este entendimento que agrega múltiplos atos típicos e ilícitos numa globalidade de comportamento ilícito com uma unificação resolutiva aproxima-nos, contra a lei, da figura do crime continuado, pese embora a jurisprudência expressamente afirme não haver uma menor culpa do agente, ou uma situação de menor exigibilidade.
Ou seja, a jurisprudência começou por considerar que, no âmbito do tipo, a conduta nele descrita abrange uma multiplicidade de atos (o que de todo está para lá da letra da lei, transformando o crime de abuso num crime de atentado, o que não foi o pretendido pelo legislador), para depois unificá-los sob uma ideia de unidade resolutiva, à semelhança do crime continuado e ao arrepio do entendimento, consagrado no atual art.º 30.º, n.º 3, do CP, de que não existe crime continuado quando estamos perante condutas lesivas de bens jurídicos pessoais.
Isto é, tendo em conta o critério de uma mesma resolução inicial, a jurisprudência unifica os diversos atos praticados subsumindo-os a apenas um tipo legal de crime e considerando que este somente é preenchido uma vez. Perante este entendimento, cabe perguntar porque não entende como sendo também apenas um crime de violação da integridade física aquele que agride fisicamente a vizinha todos os dias?
Criticando a unificação dos diversos atos típicos num só crime, cabe perguntar: havendo a realização de diversos atos típicos podemos considerar estarmos perante um concurso de crimes?
A maneira mais eficaz para sabermos se estamos ou não perante um concurso de crimes será verificar se, através do critério consagrado no art.º 30.º, do CP, se pode concluir pela existência (ou não) de um caso de concurso de crimes.
O critério usado naquele dispositivo para que se possa considerar estarmos perante um caso de concurso de crimes não é um critério baseado no número de acções praticadas pelo agente (o que nos crimes de abuso sexual, por exemplo, ou de violação, permitiria entender que haveria tanto crimes quantas as ações de abuso ou de violação), mas um critério baseado no número de tipos legais de crime violados. Na verdade, o “critério de identificação do concurso pelo legislador é o número de tipos legais de crime preenchidos pelo agente, ou o número de vezes que um tipo legal se deixou preencher, sendo indiferente o número de ações em sentido naturalístico que são absorvidas por um só tipo legal de crime”. Sendo indiciador de uma pluralidade de crimes a ocorrência de uma pluralidade de bens jurídicos violados e de uma pluralidade de processos volitivos, o decisivo, para afirmar a pluralidade de infrações, deve ser o critério do significado social do facto. Pelo que, é “em face do significado efectivo do comportamento à luz das valorizações essenciais e prévias acerca da ilicitude de uma conduta (valorações de natureza social) que deve ser resolvida a questão da unidade ou multiplicidade de crimes. (…) No fundo, a decisão sobre a existência da unidade ou pluralidade de infracções vai depender de uma valoração prévia e global do sentido do facto à qual o aplicador do direito terá de adequar a relação entre os tipos legais de crime que tem perante ele, e não o inverso”.
Ou seja, o critério da pluralidade de processos volitivos não é decisivo, pois também no crime continuado se pode dizer que existe uma pluralidade de processos volitivos a partir do momento em que se entende que o “dolo continuado” “se traduz numa renovação da intenção criminosa, o que quer dizer que pode haver vários dolos parcelares e mesmo assim ser de reconhecer o crime continuado que depende fundamentalmente (…) da configuração externa da sucessão de factos, sem deixar evidentemente de fora, mas também relacionada com a ilicitude material revelada, a culpa mais reduzida do agente”.
No crime continuado, um elemento fundamental é a menor culpa do agente fundada numa menor exigibilidade. E a partir daqui facilmente se pode entender não podermos integrar no crime continuado a realização plúrima e homogénea sobre a mesma vítima de diversos atos sexuais contra a sua vontade, integrando estes apenas num crime de abuso sexual ou num crime de violação.
Na verdade, já Eduardo Correia parecia excluir o crime continuado no caso de estar em jogo bens eminentemente pessoais. E por isso, perante a redação, anterior a 2010, do art.º 30.º, n.º 3, do CP, já se devia concluir que “só em hipóteses muito limitadas é que seria possível tomar várias ofensas de natureza pessoal praticadas contra a mesma vítima como um todo menos grave, ou considerar a situação exterior em que ocorriam como determinante de uma menor exigibilidade em relação ao agente, e uma menor censurabilidade”. Na verdade, a simples realização homogénea de vários atos e a conexão entre os factos realizados não dilui a ofensividade de cada ato e ainda mais naqueles casos em que se aproveita a vulnerabilidade da vítima menor, pelo que deve entender-se que a subsunção de tais situações à figura do crime continuado iria beneficiar o arguido “numa lógica óbvia de abuso do direito”.
(…)
“Até à L 40/2010, crime continuado poderia existir se se verificasse uma pluralidade de actos sexuais de relevo com a mesma vítima, todos recondutíveis ao uso continuado de coação; isto suposta, naturalmente, a pluralidade de contexto situacional espácio-temporal, uma vez que, de outra forma, existiria unidade “típica” (…) de acção (…). Esta doutrina deixou todavia de poder subsistir, de jure dato, em face do novo n.º 3 do art.º 30.º, introduzido por aquela L 40/2010 (…). Os casos assinalados deverão assim, em princípio, assumir a forma de concurso puro ou efectivo”.
Temos, pois, situações de concurso de crimes quando o agente pratica vários atos sexuais de relevo, ainda que sobre a mesma vítima.
Desde logo, deve afirmar-se que haverá concurso efetivo de crimes sempre que o contexto espácio-temporal seja distinto, bastando para tanto que aqueles atos sejam realizados em momentos temporais distintos. Além disto, deve também ser entendido como um caso de concurso aquele em que o agente procura oportunidades, ou cria situações para a prática dos atos típicos do crime — no seguimento da doutrina que entende que é de recusar “a figura do crime continuado sempre que seja o próprio agente a criar a circunstância facilitadora que conduz à prática do crime”.
(…)
Excluindo o entendimento de que os crimes como o de abuso sexual de menor ou o crime de violação sejam crimes de múltiplos atos, excluindo que sejam crimes de atentado ou empreendimento (em que há uma equiparação entre a tentativa e a consumação), excluindo que haja lugar a uma unificação das diversas resoluções numa unidade resolutiva, excluindo que possam ser subsumidos à figura do crime continuado, fica apenas a possibilidade da punição de cada ato sexual de relevo realizado, com todas as dificuldades que se possam encontrar, nomeadamente, de prova.
Na verdade, há (ou pode haver) alguma dificuldade em determinar de forma exata todos os factos que estiveram na base do abuso sexual. É muitas vezes difícil provar se os atos foram praticados todas as semanas, ou todos os dias, ou todos os meses, e ainda provar o início e o fim da prática de tais atos. E por isso, não raras vezes, se dá apenas como provado que o arguido, entre o período x e y, por diversas vezes, mas não menos que duas por semana, por exemplo, ou num número de vezes superior a 4 por semana, por exemplo, praticou aqueles atos; ou seja, não se determinam com rigor todos os factos, pelo que objetivamente não se determina com rigor o número de vezes que a conduta do arguido preencheu o tipo legal de crime, o que poderá causar alguma dificuldade no exercício do direito de defesa, e até mesmo alguma limitação deste direito. O que terá ainda a consequência de se agrupar vários atos e punir cada grupo de atos como se se estivesse apenas perante um crime de abuso sexual (isto no caso de estarmos perante uma mesma vítima, dado que este agrupamento não tem ocorrido quando são várias as vítimas).
Porém, não nos podemos bastar com imputações genéricas, devemos, tanto quanto possível, especificar a conduta típica e ilícita praticada, com indicação do tempo, lugar e modo da prática do ato; imputações genéricas e imprecisas constituem uma possível lesão do contraditório e do efetivo exercício do direito de defesa. Assim sendo, ter-se-á que provar tantos atos quantos for possível, e apenas punir por estes; com a certeza de que não se tratando de um crime de múltiplos atos, ou de um crime continuado, não vale a regra de que o caso julgado abrange todos os atos realizados no período tempo do “crime continuado impróprio” / “crime de trato sucessivo” julgado e pelo qual foi condenado. Assim sendo, o agente deverá ser punido por tantos crimes quantos os atos levados a cabo e provados, em concurso efetivo de crimes. Deverá sempre tentar apurar-se, tanto quanto possível, quantos atos foram efetivamente realizados. De outra forma, dispensando a investigação de determinar (o mais possível) o número de atos singulares que foram praticados, abrindo mão do necessário rigor na investigação, impede-se a valoração jurídico-penal de cada facto relevante praticado pelo arguido.
Porém, se da matéria de facto provada resultar, por exemplo, que a violação ou o abuso/prática sexual de relevo ocorreu por diversas vezes e em número concretamente não apurado então deverá o agente, em atenção ao princípio in dubio pro reo, ser apenas punido por um crime.
4. E com isto não podemos deixar de concluir que: unificar jurisprudencialmente várias condutas integradoras de tipos legais de crimes sexuais num único crime constitui uma clara violação do princípio da legalidade.
Na verdade, ainda que as condutas criminosas estejam próximas temporalmente, ou sejam sucessivas, não podemos considerar estarmos perante um único crime atento os tipos legais de crimes previstos na nossa legislação. A punição de uma certa conduta a partir da reiteração, sem possibilidade de análise individual de cada ato, apenas pode decorrer da lei, ou dito de outro modo, do tipo legal de crime. Ora, unificar diversos comportamentos individuais que têm subjacente uma resolução distinta sem que a lei tenha procedido a essa unificação constitui uma clara violação do princípio da legalidade e, portanto, uma interpretação inconstitucional.
Enquanto se mantiver a legislação que temos, cabe fazer a prova do maior número possível de atos individuais, devendo ser excluídos, em nome do princípio in dubio pro reo, aqueles cuja prova se não consegue obter de forma segura.” – negrito nosso

Ora, no caso em apreço, o Tribunal a quo conseguiu isolar, embora sem conseguir identificar o exacto dia e mês, actos sexuais de relevo praticados pelo arguido L___ e consentidos pela arguida M________ .

Tendo conseguido isolar em termos fácticos intervenções específicas do arguido – na sala, na cama, na cozinha, no aniversário da arguida etc. – dúvidas não podem restar, na esteira do entendimento da referida Sr.ª Juiz Conselheira e da letra da lei penal aplicável, que deve obediência ao disposto no art.º 29º nºs 1e 3 da Constituição da República Portuguesa, que ao arguido devem ser computados e contabilizados, em sede de concurso real de crimes, todas as actuações que de cada vez preenchem o disposto no art.º 171º do CP.

Pelo que se mantém a condenação do arguido no número e tipos legais de crime que lhe foram imputados pelo Tribunal a quo, improcedendo o recurso também nesta parte.

d) Da Medida da Pena:

Entende ainda o arguido que a pena concretamente aplicada se mostra exagerada, desproporcional e desmedida.

Vejamos, olhando primeiro o quadro legal no que à determinação da pena diz respeito.

O art.º 40º do Código Penal (CP), cuja epígrafe é "finalidades das penas e das medidas de segurança" dispõe o seguinte:
"1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente."
           
O art.º 70º do CP, cuja epígrafe é "critério de escolha da pena" dispõe o seguinte:
"Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."

E o art.º 71º CP, subordinado à epígrafe "determinação da medida da pena" diz o seguinte:
"1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de criem, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena."

Em termos doutrinais, ensina-se nos Figueiredo Dias[7] que "as finalidades de aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, na medida possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. Nestas duas proposições reside a fórmula básica de resolução das antinomias entre os fins das penas; pelo que também ela tem de fornecer a chave para a resolução da medida da pena."

Temos presente o que consta do acórdão sob escrutínio no que tange à determinação da medida da pena e de todos os elementos de que se socorreu o Tribunal a quo na respectiva fixação.

Nada há a apontar ao percurso que o Tribunal a quo levou para determinar quer as penas parcelares, quer a pena em cúmulo.

No nosso entendimento, a haver algo a apontar à pena concretamente aplicada ao arguido seria a de que a mesma peca por branda.

Repare-se que o arguido, que já havia sido condenado por ter violado, durante anos, a sua própria filha, com contornos ainda mais gravosos – porque chegou a desflorar, ao tempo com 3 anos de idade (!) e repetidamente penetrar a filha até aos 11 anos desta, conforme se retiram dos factos dados por provados no primeiro processo crime – em plena liberdade condicional que lhe tinha sido concedida na condição de não se aproximar de menores, volta a abusar sexualmente de uma outra menina, à qual tem acesso porque é filha da sua companheira e, portanto, encontra-se a conviver consigo num pequeno espaço habitacional.

O arguido, além do gravíssimo antecedente criminal criou todas as condições para estar próximo de outra menor, bem sabendo que isso lhe estava vedado por decisão judicial, e assim se colocou numa posição de fácil acesso a uma criança em relação a quem utilizou o seu ascendente, a sua força física e a sua influência junto da progenitora para subjugar e aproveitar-se sexualmente.

O arguido revela uma personalidade torpe, desconforme com as regras mais basilares de convivência social e familiar sendo que, nada no seu passado justifica essa persona uma vez que resulta do relatório social que o arguido “nasceu no seio de uma família numerosa…sendo o seu contexto familiar de origem harmonioso e estabilizador…”

Nem mesmo as perdas traumáticas do pai aos 16 anos e da mãe aos 19 anos podem justificar de qualquer forma os comportamentos atípicos do arguido.

Considerando o número de vezes que o arguido agiu sobre a menor num ambiente que era suposto dar à mesma segurança e conforto, a elevada ilicitude dos seus actos, o dolo mais que directo, o elevadíssimo grau de culpa, a total falta de arrependimento, a desconsideração total pela integridade física e acima de tudo moral de uma criança e as exigências de prevenção especial, que saem reforçadas pelo facto desta ser a segunda vez que abusa sexualmente de uma criança, o que só revela que a primeira pena que lhe foi aplicada não surtiu qualquer efeito na sua ressocialização, este Tribunal de Recurso não tem quaisquer dúvidas em manter nos seus precisos termos a pena que foi concretamente determinada em relação a cada crime, bem como a pena final fruto do cúmulo jurídico, devendo o recurso improceder também quanto a este aspecto.

e) Do Valor Indemnizatório:

Por fim, o arguido impugna o valor que foi fixado em função do arbitramento realizado pelo Tribunal a quo ao abrigo do art.º 82º-A do Código de Processo Penal por entender o valor excessivo, quer em função da sua situação económica, quer por que não foram provados quaisquer factos que demonstrem que a menor terá sofrido danos morais.

Vejamos, olhando primeiro, o que determinou o Tribunal a quo quanto a este aspecto.

“Do arbitramento:
Dispõe o Art.º 82.º-A, do Código de Processo Penal que: “Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72º e 77º, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a titulo de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham. ”
Não existe, por parte da ofendida, oposição expressa à aplicação deste dispositivo legal, nem deduziu a mesma contra os arguidos pedido de indemnização cível.
Pelo que, e no caso, haverá que atender ao contexto dos actos sexuais perpetradas, a idade em concreto da menor ofendida aquando da prática desses actos, o hiato temporal em que os mesmos ocorreram (entre Junho de 2017 e 05.03.2018), bem como às consequências quer psicológicas, quer emocionais que os factos tiveram para a ofendida, o que se afigura de particular relevância e censurabilidade, dado o manifesto ascendente físico e psicológico que os arguidos detinham sobre a pessoa da ofendida, menor de idade, filha da arguida e filha da companheira do arguido, aquando do cometimento dos factos, do que ambos os arguidos estavam bem cientes.
A que acresce o significativo, intenso e reiterado sofrimento - quer físico, quer psicológico e emocional - vivenciado pela ofendida, numa fase particularmente sensível e vulnerável da sua vida - durante a infância, no seio do ambiente familiar e no interior da sua residência e advindo essas condutas por parte de quem tinha o especial dever de protecção, cuidado e educação, a sua mãe, aqui arguida e o companheiro desta, o arguido.
Sem olvidar o impacto emocional, bem como na formação da personalidade, que comportou para a ofendida, em tão terna idade, ser exposta ao visionamento de vídeos, nos moldes acima descritos.
Sendo assim, de calcular o dano moral ou não patrimonial merecedor da tutela do direito (cfr. Art.º 496.º, n.º 1, do Código Civil), a indemnização é fixada de acordo com a equidade tendo em conta as circunstâncias do Art.º 494.º, do Código Civil (cfr. n.º 3, do Art.º 496.º).
Nestes termos e atendendo aos elementos apurados, em face dos factos dados provados, atendendo por um lado, aos actos sexuais de relevo concretamente perpetrados pelos arguidos, ao período temporal e às lesões sofridas decorrentes das condutas dos arguidos, quer no domínio no sofrimento físico, quer de natureza psicológica e emocional, julga-se adequado e justo condenar os arguidos a pagar uma indemnização, a título de arbitramento, pelos danos não patrimoniais sofridos, no montante de € 8.000,00 (oito mil euros) à pessoa da ofendida, S____ -, nos termos do Art.º 82.º-A, do Código de Processo Penal.”

Ora, o arguido insurge-se porque não consta dos factos nenhuma menção ao sofrimento da menor, nem das sequelas por esta sofridas.

No entanto, há factos que são notórios e fruto da convivência familiar e social.

É por demais óbvio que uma criança de 8 anos, que é sujeita a contactos sexuais, não consentidos, por si não desejados e que implicam um contacto físico não próprio para a sua idade afecta, sem sombra de qualquer dúvida, o seu são desenvolvimento e o seu estado psicológico.

O grau das sequelas, só será verdadeiramente apreendido no futuro quando a menor se tornar adulta, podendo a sua experiência levá-la a não desenvolver uma relação amorosa e íntima com outro ser humano por medo e vergonha daquilo por que passou, ou, pelo contrário, torná-la promíscua e incapaz de estabelecer uma relação estável e duradoura, com a possibilidade ainda de vir a sujeitar uma filha sua ao mesmo comportamento.

Por motivos muito sérios e abalizados – aceite em praticamente todas as culturas humanas em todos os continentes – as crianças não podem ser expostas a comportamentos sexuais com adultos, sendo a sexualidade humana uma importante parte da sua psique e desenvolvimento que carece de tempo, maturação e sentimento de pertença.

Quando um homem adulto, força uma criança, ademais uma menina impúbere, a encetar consigo contactos sexuais (mesmo sem penetração que implique rompimento do hímen) não há qualquer dúvida que esse homem, além de violar os mais sagrados direitos à autodeterminação e integridade física e moral da criança, que é um ser especialmente carecido de cuidado e protecção, provoca nesta um solavanco no seu normal desenvolvimento cognitivo, intelectual e emocional.

E quando esse adulto é uma pessoa conhecida da criança que consigo convive em espaço habitacional e em intimidade com a sua mãe, tendo, assim, o especial cuidado de proteger e de zelar pelo bem-estar dessa criança, viola esse dever as repercussões são seguramente sentidas no consciente e no inconsciente dessa criança.

 Todos os psicólogos, pedopsiquiatras e estudiosos do desenvolvimento infantil, são unânimes em afirmar que o abuso sexual deixa sequelas, a longo prazo.

Não é normal uma menina de 8 anos ter um adulto a mexer-lhe na sua zona genital, sem qualquer respeito pela sua intimidade.

Não é normal uma menina de 8 anos ter um homem adulto a encostar por diversas vezes e, por fim, penetrar parcialmente o seu pénis erecto, na sua zona genital.

Nada do que o arguido (e também a arguida) fez é normal, em qualquer cultura humana que se preze.

Pelo que, perpetrando sobre uma menina de 8 anos actos que não são normais e em relação aos quais ninguém tem dúvidas que provocam sequelas, quer a nível físico, quer a nível psicológico e emocional, não há a mínima dúvida que a menor sofreu danos irreparáveis.

Os arguidos roubaram a inocência à S_____.

Os arguidos tiraram à S____ de forma irremediável, a possibilidade de continuar criança em toda a sua plenitude, no seu tempo e espaço.

Os arguidos tiraram à S____ a possibilidade de escolher o seu primeiro parceiro e de experienciar um acto de forma bela que liga dois seres humanos numa união única.

Estes danos são irreparáveis.

Irreparáveis.

Conforme ensinam Diana Carolina Isidro Logrado Cardoso e Prof. Dr. Hernâni Pombas Carriço, da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra[8]:

“Torna-se evidente que o abuso sexual infantil é um problema mundial, transversal às sociedades, que excede os limites impostos pelas diferentes culturas. Trata-se de um tema complexo, com consequências graves, a curto e longo prazo, que afeta não só as crianças, mas também os seus cuidadores e a sociedade envolvente. Em última instância, acarreta também um impacto económico que não deve ser desprezado, pelo que urge implementar programas preventivos e estratégias terapêuticas que minimizem as nefastas consequências que advêm do abuso.
(…)
(…) a atenção que deve ser prestada ao crime que ocorre no âmbito familiar, neste subtipo de abuso, as crianças estão sujeitas a menor violência física, mas a maior dano emocional e psicológico, com perda da noção de segurança que o lar e respetiva família deveriam oferecer. Adicionalmente à gravidade destas consequências, surge o atraso na revelação/notificação do abuso ou até a permanente negação do mesmo, levando ao subdiagnóstico. A ocorrência do abuso na privacidade do lar, a relação de proximidade afetiva que os agressores estabelecem com a vítima e a frequente inexistência de evidências dificultam também a descoberta. Todos estes elementos condicionam maior duração e frequência do crime, correlacionando-se diretamente com o impacto psicopatológico que a criança sofre.
(…)
Falar de abuso sexual infantil implica, inexoravelmente, reconhecer as consequências que daí advêm. Não é necessário um tipo de abuso específico, nem tão pouco uma determinada altura da vida de um indivíduo para que as consequências resultantes do crime sejam profundas e marquem indelevelmente a vítima. Todavia, não existirá crime mais destrutivo que o abuso sexual infantil. Como tem vindo a ser explorado, a grande prevalência deste crime, a par da longa duração e da muito frequente ocorrência dentro do agregado familiar coloca este tipo de abuso no topo da lista dos mais nocivos para as vítimas. Para corroborar este facto, vários estudos mostram uma forte relação entre abuso sexual infantil e abuso emocional e físico. Verifica-se ainda, frequentemente, coexistência de violência, abuso de substâncias, distúrbios psiquiátricos, divórcios e antecedentes criminais no agregado familiar. Todos estes fatores potenciam-se entre si, conferindo ainda maior gravidade à situação abusiva.
Nenhuma criança reage de igual modo ao abuso sexual. Tal facto depende, em parte, do apoio e suporte que o menor encontra na família, amigos e sociedade. Contexto ambiental e atitudes positivas por parte dos pais são fundamentais para minimizar o impacto na vítima. Ainda assim, a grande maioria das crianças, em algum momento da sua vida, desenvolverá sintomas moderados a severos resultantes do abuso sofrido.
No caso do género masculino, estes indivíduos tendem a comportamentos exteriorizadores, exibindo condutas delinquentes, com abuso de substâncias, como álcool ou drogas. Por outro lado, as raparigas manifestam comportamentos internalizadores, como depressão e distúrbios alimentares (anorexia, bulimia ou obesidade).” – negrito e sublinhado nossos

Além destes danos, em face do processo de promoção e protecção e do depoimento da irmã da menor, V_____, há que atender ao facto da menor ter sido retirada de casa e colocada junto da sua irmã e de ter sido obrigada a mudar de escola, o que implica alterações drásticas na sua vivência habitual.

São mudanças a mais, embora necessárias.

No caso em apreço, o Tribunal a quo, e bem, arbitrou um valor que entendeu adequado aos elementos de facto que efectivamente tinha tendo em atenção “as particulares exigências de protecção da vítima (que) o imponham.”

Ora, o valor arbitrado de €8.000,00 traduz um valor mensal de cerca de €667,00, o que corresponde a pouco mais de um salário mínimo.

Ou seja, o valor arbitrado traduz sensivelmente 12 salários mínimos.

O que, face à experiência suportada pela menor durante meses, e à alteração nas suas rotinas, revela-se, até, e talvez porque não se provaram danos mais específicos, abaixo daquilo que seria aceitável arbitrar.

Quanto à situação económica do arguido esta não pode ser relevada com o peso que o mesmo pretende pois que, estando preso, o mesmo não conseguiria liquidar, em princípio qualquer valor, o que seria impeditivo de fixar um valor e não é isso que resulta da aplicação do art.º 82º-A CPP.

Além do mais o valor foi fixado a ambos os arguidos pelo que, se repartirem entre si o valor, constata-se que, na prática, e embora a obrigação seja solidária, que a cada um cabe apenas suportar €4.000,00 que traduz uns meros €333,00 mensais, cerca de metade do ordenado mínimo nacional.

Tivesse o arguido pensado nesta situação antes de ter abusado da menor.

Não, há, assim, qualquer censura a efectar ao acórdão sob escrutínio, devendo improceder, na íntegra, o recurso interposto pelo arguido L______.

II. Do recurso interposto pela arguida M________.

 a) Dos vícios previstos no art.º 410º nº 2 als. a), b) e c) do Código Processo Penal:

Embora não tenha subsumido no art.º 410º do Código de Processo Penal os vícios que aponta ao acórdão recorrido, a verdade é que a arguida invoca a existência de:
- insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
- a contradição insanável da fundamentação ou entre fundamentação e a decisão;
- erro notório na apreciação da prova.

Diz o art.º 410º do Código de Processo Penal o seguinte:
“1. Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respectivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2. Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;     
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório na apreciação da prova.
3. O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.”  
                       
Conforme esclarecem Simas Santos e Leal Henriques[9] “Deve notar-se que a al. a) do nº 2 se refere à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art.º 127º), que é insindicável em reexame da matéria de direito.
Por sua vez a contradição a que se reporta a al. b) é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência.
Finalmente o erro notório na apreciação da prova a que alude a al. c) é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente. Esse erro existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, v.g., quando se dá por assente que o arguido está num determinado local a determinada hora e ao mesmo tempo se tem como provado que ele estava em local longínquo minutos depois; ou quando se dá por assente que o arguido disparou três tiros de pistola a 4 metros de uma mesa onde estavam sentadas várias pessoas, no interior de um café apinhado e se dá por provado que ele não previu a possibilidade de atingir mortalmente alguém.(…)
Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ao as legis artis.
Não pode esquecer-se que, como se prescreve na 2ª parte do corpo do nº 2, os vícios apontados nas suas alíneas têm de resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou com recurso às regras da experiência comum, não sendo permitida a consulta de outros elementos constantes do processo.”

Assim, os vícios previstos no art.º 410º do CPP, embora de conhecimento oficioso, são vícios que têm de resultar da análise da sentença em si, sem recurso a outros elementos processuais, e têm de ser vícios patentes que sobressaem da sentença pela simples leitura desta.
Ou conforme se refere no recente Acórdão do STJ de 06-02-2019 (in stj.pt) tratam-se de vícios que “decorrem do texto da própria decisão”.

No caso em apreço, e no que tange ao primeiro vício indicado – insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a) do nº 2 do art.º 410º do CPP – entende a arguida que não podia ser condenada pelos crimes constantes da decisão judicial porquanto não praticou qualquer acto de execução, faltando, assim, matéria de facto provada para a decisão de direito.

Vejamos o que consta do acórdão no que tange ao enquadramento penal dos factos provados e da participação da arguida (transcrição):

“Provados que estão os factos acima descritos, compete proceder à sua sindicância legal, em termos de imputação penal.
O arguido encontra-se acusado da prática de 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171º n.º 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal, 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 3, alínea b) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal e 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 3, alínea c) e 177.º, n.º 1, alínea b), ambos do Código Penal:
A arguida encontra-se acusada da prática de 5 (cinco) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos Arts.0171.º, n.º 1 e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal, 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 1 e n.º 2 e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal e 1 (um) crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelos Art.ºs 171.º, n.º 3, alíneas b) e c) e 177.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Estatui o Art.º 171.º - “Abuso sexual de crianças”
1 - Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.
2 - Se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando acto previsto no artigo 170. º; ou
b) Actuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espectáculo ou objecto pornográficos;
c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a actividades sexuais;
é punido com pena de prisão até três anos.
4 - Quem praticar os actos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.
5 - A tentativa é punível.”
Nos termos do Art.º 177.º, os crimes são agravados na sua moldura penal:
{...] 1 - As penas previstas nos artigos 163.º a 165.º e 167.º a 176.º são agravadas de um terço, nos seus limites mínimo e máximo, se a vítima:
a) For ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente;
b) Se encontrar numa relação familiar, de coabitação, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação.”
Antes do mais importa apurar o que é acto sexual de relevo.
“O conceito indeterminado confere ao aplicador uma certa margem de manobra, cobrindo, na sua plástica moldura penal abstracta, as hipóteses de actos graves e daqueles que, muito menos graves, não deixem de atentar contra a autodeterminação sexual do ofendido, o bem jurídico protegido: a liberdade de se relacionar sexualmente ou não e com quem, para os adultos; a liberdade de crescer na relativa inocência até se atingir a idade da razão para então e aí se poder exercer plenamente aquela liberdade ”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, de 9 de Janeiro de 2017, processo n.º 1099/15.0JABRG.G1, disponível no sítio da DGSI.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência têm integrado este conceito, a partir da concretização de factos concretos, como por exemplo: Acto sexual de relevo é um comportamento activo, o qual objectivamente considerado assume uma natureza, um conteúdo e um significado directamente relacionado com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem a sofre ou pratica; II-Tendo o arguido acariciado com a sua mão, exercendo pressão sobre uma das mamas de uma menor do sexo feminino de ll anos de idade, quer, tendo noutra ocasião colocado uma das suas mãos sobre uma das mamas de outra menor do sexo feminino de 10 anos de idade, apalpando-a, tais actos integram e perfectibilizam o conceito legal de acto sexual de relevo”, cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, processo n.º 362/09.4GDSNT.L1-9, disponível no citado sítio.
Delimitado deste modo, dúvidas não restam de que os actos provados integram actos sexuais de relevo, pois o arguido colocava as mãos na vagina da menor e friccionava o pénis junto à zona genital da menor, actos que a arguida viu, dos quais se apercebeu e permitiu que o arguido os levasse a cabo.
Com efeito, os arguidos praticaram todo um conjunto de actos que atentam contra a autodeterminação sexual de um ser humano, quando praticados por um adulto perante, e para com, uma criança.
Resulta assim, demonstrado o tipo de crime previsto no n.º 1 do acima citado preceito.
Todavia, não resultou demonstrado, cabal e plenamente, o crime estatuído no n.º 2 do citado Art.º 171.º, do Código Penal, porquanto não se provou que o arguido tivesse introduzido o pénis ou qualquer outra parte do corpo na vagina da menor, pelo que, se impõe a absolvição dos arguidos do crime previsto no n.º 2 do Art.º 171.º, do Código Penal, sendo sim a sua conduta subsumível ao n.º 1 do mesmo preceito, dado que resultou inequivocamente demonstrado a prática de um acto sexual de relevo.
Em cada uma das situações que se provaram, e acima descritas, individualizando-as, os arguidos renovaram a sua resolução criminosa, sem que nenhum circunstancialismo externo o tenha propiciado, pois para tal não basta, obviamente, ficar a sós com a menor, porquanto essa acessibilidade é aquela que é própria de qualquer ambiente familiar em que as crianças ficam aos cuidados de qualquer dos adultos de referência, o que, no caso, determina o agravamento do ilícito típico, é o facto de a menor ser filha da arguida e coabitar com o arguido, o qual se aproveitava desse relacionamento adveniente da relação amorosa que mantinha com a arguida, nos termos previstos no n.º 1 alíneas a) e b) do artigo 177.º, do Código Penal.
Assim, a agravação advém do facto de a vítima menor ser descendente do agente (cfr. Art.º 177.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal) e por com este coabitar, aproveitando-se dessa relação de coabitação (alínea b) do citado preceito).
Provou-se que a ofendida era menor de 14 (catorze) anos e mais se provou que a mesma era descendente da arguida, sua filha, e filha da companheira do arguido, com quem coabitava, aproveitando-se o arguido dessa relação e dessa coabitação.  Igualmente se provou que foram praticados actos sexuais de relevo, nas seis citadas situações, nos moldes acima descritos, mais resultando provado que o arguido por meio de conversa de conteúdo pornográfico actuava sobre a menor S____ bem como em situação distinta lhe deu a ver, fazendo-a assistir, a tais vídeos de conteúdo pornográfico, e a arguida assim actuou pela realização/exíbição do mesmo vídeo de conteúdo pornográfico.
No que tange à coautoria, estatui o Art.º 26.º, do Código Penal que é coautor quem “tomar parte directa na execução do facto, por acordo ou juntamente com outro ou outros.”
Resulta desta definição legal, que a coautoria, na sua forma mais definida, passa pela existência de um acordo, não necessariamente prévio nem expresso, e por uma execução conjunta, bastando para tanto uma mera anuência tácita revelada da execução de comportamentos concludentes que permitem a ilação de uma prática concertada entre os agentes, actuando por essa via em comunhão de esforços e de intentos, tendo em vista o alcançar do mesmo desiderato.
Mas também existe coautoria quando há a consciência e vontade de colaboração de vários agentes na realização de um tipo legal, juntamente com outro ou outros (cfr. Prof. Faria Costa, in Formas do Crime, Jornadas, 170).
Como consta do teor do Acórdão de 18 de Outubro de 1989, BMJ 390, pág. 142 que refere “que a essência da coautoria consiste “em que cada comparticipante quer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas
Deve, contudo, notar-se que, se por um lado, para que exista coautoria, se exige a intervenção do coautor na fase de execução, por outro, o exercício conjunto do domínio do facto não exige que todos os coautores pratiquem todos os actos de execução do crime, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja necessária à produção do resultado visado (cfr. Acs. do S.T.J. de 17/2/93, CJ, S, I, I, 197, de 14/6/95, CJ, S, 111,11, 230, de 27/9/95, CJ, S, III, III, 197, de 09/02/00, BMJ, 494, 106 e de 12/07/00, S, CJ, VIII, II, 239).
A coautoria exige a verificação do elemento subjectivo, que se consubstancia numa decisão conjunta e de comum acordo, ainda que tácita ou adveniente de comportamentos concludentes, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado criminoso, e exige igualmente o preenchimento do elemento objectivo, ou seja, uma execução igualmente conjunta e concertada, não sendo porém, indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar, decorrendo, aliás, das regras da experiência comum que normalmente a acção concertada se alicerça na conjugação de esforços, sendo que cada um dos perpetradores assume uma tarefa distinta num plano delineado, ainda que combinada de forma instantânea e instintiva, sendo que é dessa actuação conjunta que se concretiza o resultado previsto.
Ora, não subsiste qualquer dúvida que a arguida agiu, em concertação de esforços, vontades e intentos com o arguido, proporcionando que a menor dormisse na sua cama, no meio de si e do arguido, ao invés de a fazer dormir noutro local, mormente junto do irmão mais velho, criando as condições para que a menor S____ ficasse sozinha com o arguido em casa, ausentando-se, ao invés de levar a menor consigo ou mandar o arguido fazer os recados, ao proporcionar que o arguido desse banho à menor, vendo e permitindo que este lhe tocasse, ao permitir e proporcionar que a menor estivesse sozinha com o arguido num piso distinto, na cozinha, ao mostrar vídeos/mensagens de conteúdos pornográficos à menor, e na verdade, todos estes comportamentos deliberada e voluntariamente praticados pela arguida consubstanciam a execução de actos de comparticipação, bem sabendo a arguida o que o arguido fazia com a menor, tanto mais que a mesma já lho tinha relatado, o filho J_____ também, para além da manifesta violação dos termos fixados no acordo de promoção e protecção, o que arguida sabia, conhecia e ao que foi indiferente.
Os arguidos sabiam que tais condutas eram (e são) proibidas por lei, ao que foram indiferentes, conformando a sua vontade com a verificação de tais resultados.
Actuaram, pois, com dolo directo (Art.º 14.º, n.º 1, do Código Penal).
Não se verificam quaisquer causa de exclusão de ilicitude e/ou da culpa, nem falta qualquer condição de punibilidade.
Pelo que, se impõe a condenação dos arguidos, em coautoria material, da prática de 6 (seis) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelo Art.º 171.º, n.º 1, do Código Penal; o arguido ainda, em concurso real e efectivo, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pelo Art.º 171.º, n.º 3, alínea b), do mesmo Código, este em autoria material, e de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pela alínea c) do n.º 3 do art.º171.º, do Código Penal; e a arguida, em concurso real e efectivo, em coautoria material, de um crime de abuso sexual de crianças agravado, previsto e punido pela alínea c) do mesmo preceito.
Advindo a agravação do Art.º 177.º, n.º 1, alínea a), quanto à arguida, e alínea b), em relação ao arguido, do Código Penal.” – sublinhado nosso

Note-se que o art.º 171º nº 1 do Código Penal se preenche, não só com a prática activa de acto sexual de relevo mas também quando o agente leva a criança a praticar esse acto com outra pessoa.

É quanto a este aspecto que se conclui que a arguida, embora não tivesse tocado na sua filha nem com ela tido acto sexual de relevo directamente, expôs a sua filha à mercê das vontades libidinosas do companheiro, vontades essas por si conhecidas e aceites, sendo que a arguida coloca o companheiro acima dos interesses dos filhos e à frente da sua própria dignidade.
 
Não fora a arguida ter deixado a filha sozinha com o companheiro e a ter deixado completamente entregue às vontades do mesmo, este não teria conseguido agir da forma como o fez.

E, num caso em particular – correspondente aos factos vertidos em 15 a 17 – ao deixar a filha dormir na mesma cama consigo, junto do companheiro, e ao deixar este tocar na filha na mesma cama junto a si, pode dizer-se que a participação da arguida é mais do que directa.

Da fundamentação oferecida pelo Tribunal a quo para justificar a imputação à arguida dos crimes pelos quais esta veio a ser condenada se consegue retirar que existe matéria de facto para o respectivo enquadramento jurídico e consequente imputação à arguida dos crimes em apreço.

Aliás, nos termos do disposto no art.º 10º do Código Penal, subordinado à epígrafe “comissão por acção e por omissão” a actuação da arguida sempre seria punível nos seguintes termos:
“1 - Quando um tipo legal de crime compreender um certo resultado, o facto abrange não só a acção adequada a produzi-lo como a omissão da acção adequada a evitá-lo, salvo se outra for a intenção da lei.
2 - A comissão de um resultado por omissão só é punível quando sobre o omitente recair um dever jurídico que pessoalmente o obrigue a evitar esse resultado.
3 - No caso previsto no número anterior, a pena pode ser especialmente atenuada.”

No caso em apreço dúvidas não restam de que sobre a arguida recaía um dever jurídico, e até especialíssimo de proteger a sua filha, e, portanto, de evitar a exposição ao contacto com o companheiro, não só pelo conteúdo legal das responsabilidades parentais (delineado no nº1 do artº 1878º do Código Civil[10]) como do próprio acordo de promoção e protecção que a arguida assinou e do qual tinha plena consciência.

Quanto à natureza do crime – material ou formal – o art.º 10º do CP exige que se trate de um crime material, ou de resultado.

Conforme Cavaleiro de Ferreira[11] “As normas incriminadoras de crimes comissivos por acção são extensivas, por força do art.º 10º, aos correspondentes crimes comissivos por omissão.
O que são crimes comissivos por omissão?
São, como aliás se infere do contexto do mesmo artigo, os crimes em cujos elementos essenciais, além da acção, se exija um resultado ou evento material. São também denominados «crimes materiais».
Todos os crimes produzem um evento jurídico, dano ou perigo de dano de um bem jurídico. Mas nem todos os crimes, e nem mesmo a maior parte dos crimes, têm um evento ou resultado material. Para tanto é necessário que a lesão ou perigo de lesão do bem jurídico se realize através do objecto material contra o qual se dirige a acção.
Nos bens jurídicos materiais, o bem jurídico ou objecto jurídico encorpora-se no objecto material e é ofendido através deste. Por isso se verifica em princípio nos crimes materiais uma separação entre a acção e o evento material, entre a execução e a consumação do crime.
Os crimes materiais ou crimes de evento material são os crimes comissivos do art.º 10º; se incriminados na parte especial do Código como crimes comissivos por acção serão, em princípio, também incriminados, quando cometidos por omissão, por força do citado artigo.”

Ora o crime de abuso sexual de criança, previsto no art.º 171º do Código Penal é um crime material ou de resultado.

Assim, e atendendo aos factos vertidos em 6, 8, 9, 10, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 19 a 24, 25, 26, 27, 32, 33, 34, 35, 37, 38, 41, 42, 47, 49, 55 e 56, dúvidas não podem restar de que à arguida é imputável, nos termos do art.º 10º do Código Penal, em conjugação com o disposto no art.º 171º do mesmo Código Penal, a prática de abuso sexual da filha.
 
Assim, não se verifica o vício elencado na al. a) do nº 2 do art.º 410º do CPP.

No que tange ao vício constante da al. b) do nº 2 do art.º 410º do CPP – contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão – entende a arguida que o Tribunal a quo revela uma certa confusão entre o dever da recorrente na protecção da sua filha, claramente violado, e a respectiva participação em acto de execução dos crimes, que não aconteceu.

Ora, não conseguimos retirar do texto do acórdão qualquer confusão entre uma figura jurídica e outra, nem qualquer contradição insanável.

O simples facto da arguida discordar do enquadramento jurídico-penal que foi efectuado quanto à sua “participação” nos crimes não implica a verificação dos vícios do nº 2 do art.º 410º do CPP que, como já aqui referimos, são vícios que têm de resultar do próprio texto da decisão sem recurso a outros elementos processuais.

A divergência quanto à qualificação jurídica do crime não traduz o vício apresentado pela arguida.
Aliás, o crime que a arguida entende poder ser-lhe imputado – crime de exposição ou abandono previsto no art.º 138º do Código Penal – tem outro alcance sendo diferente o bem jurídico tutelado.

Vejamos.

No art.º 138º do Código Penal, o qual se insere sistematicamente no Capítulo 1 do Título 1 do Livro II, dedicado aos crimes contra a vida, visa-se tutelar o bem jurídico vida em toda a sua plenitude.

Já no art.º 171º do mesmo Código Penal, o qual se insere no Capítulo V do mesmo Título e Livro do Código Penal, dedicado aos crimes contra a autodeterminação sexual, visa-se tutelar o bem jurídico relacionado com a autodeterminação sexual e, em especial, tutela-se a particular fragilidade e inocência das crianças (menores de 14 anos) e sua incapacidade para de forma livre e consciente decidir sobre o momento e forma de iniciarem a sua vida sexual.

O art.º 171º do Código Penal trata de uma norma penal mais específica na sua abrangência, dirigida a um aspecto fundamental para o desenvolvimento de uma criança, enquanto que o art.º 138º do Código Penal tem uma actuação mais geral, referente à colocação de uma criança numa situação de perigo para a sua vida ou integridade física, embora o abuso sexual de crianças possa também implicar esses perigos, em especial, para a integridade física, o dolo que esta norma exige é diferente do dolo exigido para o preenchimento do art.º 138º CP.

No caso em apreço, o que resulta da matéria de facto provada é que a arguida sabia do passado criminoso do arguido, em especial, a natureza dos crimes por si praticados contra crianças, e mais concretamente que o arguido havia sido condenado por abuso sexual da sua própria filha (!), sabia que não podia, de forma alguma, deixar a filha sozinha na companhia do mesmo, e sabia das actuações que o arguido tinha para com a filha, sendo que numa ocasião tudo se passou na mesma cama onde se encontravam os três (!).

Assim, não se considera estar em causa apenas a prática pela arguida do crime previsto no art.º 138º do CP mas a participação da mesma no abuso sexual que o seu companheiro vinha perpetrando na sua filha.

Quanto ao último dos vícios anunciados pela arguida – erro notório na apreciação da prova (al. c) do nº 2 do art.º 410º do CPP) – temos a referir o seguinte:

Entende a arguida que “apesar da prova ter sido equilibradamente apurada” não concorda com o facto vertido em 23 quando este refere que a arguida tinha “visto tudo”.

Isto porquanto a arguida diz ser praticamente cega desde nascença não podendo ter visto nada à distância a que se encontrava.

Relembremos o que diz o facto vertido em 23 e o respectivo contexto em que se insere:
“19. Em data não concretamente apurada do ano de 2017, após o jantar e alguns dias após a situação acima descrita, a arguida encontrava-se no 1.º piso da habitação, enquanto o arguido se encontrava no rés-do-chão, na cozinha, na companhia da menor;
20. A dado momento, o arguido, que se encontrava vestido com um robe, desnudado, apenas em cuecas, solicitou à menor S____ que estava vestida com um pijama, que lhe fizesse um café, ao que esta acedeu, pedindo para que a menor mexesse o café, aproveitando para se aproximar da menor;
21. Após, o arguido dirigiu-se à menor e deitou-a por cima da mesa que aí se encontrava e despiu-lhe as calças de pijama que esta envergava e as cuecas;
22. Tendo colocado a menor nessa posição, o arguido aproximou-se da menor, retirou o pénis erecto das cuecas que trajava e friccionou o pénis junto da vagina da menor, sem que tivesse ejaculado;
23. Entretanto, a arguida que tinha descido as escadas e que tinha visto tais actos a serem praticados pelo arguido, voltou a subir as escadas, sendo que o arguido nesse momento, ouvindo os passos, largou a menor e esta vestiu-se;”

Se é certo que a arguida tem uma deficiência ocular e que, como resulta do relatório social transcrito no facto vertido em 61 que: “em virtude de problemas oftalmológicos que comprometiam a sua visão, a arguida foi acolhida numa instituição do Funchal, com programa educativo para jovens, com este género de limitações, tendo permanecido nesta instituição entre os sete e os dezassete anos de idade, durante esse período manteve contacto regular com os pais, com quem estava nos períodos de fins-de-semana” nada resulta dos autos que indique que a arguida não pudesse ter visto o que consta nos factos vertidos em 19 a 22, até porque, da cuidada análise dos elementos documentais juntos aos autos, nomeadamente os acordos de Promoção e Protecção (fls. 259 e 271 e ss) e a cópia do cartão de cidadão da arguida, junta a fls. 204, se retira que esta é perfeitamente capaz de assinar o seu nome.

Por outro lado, não está determinado nos autos o grau de incapacidade de que sofrerá a arguida, nem esta o alega, pelo que não se pode concluir, sem mais, que esta nunca poderia ter visto os acontecimentos referidos nos factos vertidos em 19 a 22, tanto mais que os mesmos terão ocorrido na habitação da arguida que, do que resulta dos autos, é uma habitação social, pequena, em que no piso térreo existe apenas a cozinha e uma casa de banho, estando os quartos no piso de cima, cfr. se retira da consulta dos elementos do processo de promoção juntos aos autos, bem como das declarações da menor e do depoimento da testemunha V______.
Ora, o erro notório a que alude a al. c) do nº 2 do art.º 410º do CPP tem de ser de tal ordem que a sua detecção é perceptível pelo homem comum da simples leitura da decisão.

Quando se lê – e se relê – a decisão na sua totalidade não se retira qualquer incapacidade da arguida no que tange ao possível visionamento dos factos perpetrados pelo arguido.

A arguida poderá não ver bem e não conseguir discernir certos pormenores, mas não é cega, nem há qualquer prova disso no processo, não constando do mesmo qualquer atestado médico que confirme que a mesma é “praticamente cega de nascença”.

Não se detecta, assim, a existência do vício previsto na al. c), nem nenhum dos outros vícios plasmados nas alíneas anteriores, do nº 2 do art.º 410º do CPP tendo o recurso da arguida que soçobrar quanto a esta parte.

b) Da Medida da Pena:
 
Entende a arguida que o cômputo das penas parcelares não teve em consideração a ausência de antecedentes criminais, os seus problemas de visão, a sua pobreza e fraco discernimento, o seu baixo nível de instrução e a sua dependência emocional do arguido.

Ora, à arguida foi imputada a prática de dois crimes de abuso sexual de criança, p. e p. pelo nº 1 do art.º 171º do CP, no que tange à situação da “cama” e da “cozinha”, mais quatro crimes de abuso sexual de criança, p. e p. também pelo nº1 do art.º 171º do CP quanto às restantes 4 situações fácticas provadas e ainda um crime de abuso sexual de criança p. e p. pelo nº 3 do art.º 171º do CP.
São um total de 7 crimes.

Da cuidada análise do acórdão se verifica que todas as circunstâncias, quer favoráveis, quer desfavoráveis foram ponderadas, sendo de notar que o simples facto da arguida não ter antecedentes criminais, embora valorado pois que à mesma não foram aplicadas penas tão elevadas como as do arguido, não pode significar uma atenuação na medida da pena pois que todos nos devemos comportar em sociedade de modo a não gerar condenações criminais, não havendo qualquer especial mérito no facto da arguida não ter, antes deste momento, qualquer condenação penal.

Quanto aos seus problemas de visão os mesmos nada têm a ver com a graduação da pena pois que as incapacidades físicas não são factores atenuantes e não diminuem, de per si, a culpa do agente na actuação criminosa por si levada a cabo.

Quanto à pobreza da arguida não se compreende como é que a mesma pode justificar ou atenuar os crimes em questão.

Na sua óptica, nunca as pessoas pobres poderiam ser condenadas, porque essa singela situação de per si justifica tudo.

A sua pobreza poderia, quando muito, contextualizar (mas nunca justificar) um crime contra o património, por exemplo um furto, mas nunca um crime desta natureza, ou seja, um crime de abuso sexual de uma criança, ademais da própria filha da arguida.

Quanto ao alegado “fraco discernimento” da arguida, a existir, tal não implica uma diminuição da imputabilidade do crime pois que a arguida tem plena consciência de que tem de resguardar a filha e protegê-la de agressões exteriores, tendo feito uma escolha clara e livre em defender o companheiro acima dos interesses da filha.

Como resulta dos autos, nomeadamente do facto vertido em 61 “a arguida considera que o principal impacto da presente situação judicial foi a prisão do coarguido e companheiro, perda que prioriza em relação ao afastamento da filha menor, possuindo a arguida fraca capacidade de empatia para com aquela”
 
A arguida fez uma clara opção – para isso não lhe faltou discernimento – defender o companheiro em detrimento da filha, cuja ausência não releva como a da ausência do companheiro.

Se algum valor se pode atribuir à falta de “discernimento” da arguida é precisamente para agravar a sua culpa e não diminuí-la.

Até os mamíferos revelam mais cuidado com as suas crias, defendendo-os de todos os perigos, mesmo da presença dos machos.

E quanto a uma possível atenuação especial da pena, prevista no nº 3 do citado art.º 10º do Código Penal, entende-se que o mesmo não é de aplicar à arguida, porquanto não se verificam os respectivos pressupostos.

Vejamos.
 
A atenuação especial da pena vem prevista nos art.ºs 72º e 73º do Código Penal.

É do artº 72º do Código Penal que se retiram os seguintes requisitos legais:
“1 - O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2 - Para efeito do disposto no número anterior, são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta.
3 - Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou conjuntamente com outras circunstâncias, der lugar simultaneamente a uma atenuação especialmente prevista na lei e à prevista neste artigo.”

Ora, podem ser desde logo afastadas as alíneas b), c) e d) do nº 2 do art.º 72º do CP, uma vez que, a conduta da arguida não foi por qualquer motivo honroso ou a pedido da própria vítima, a arguida jamais mostrou arrependimento nem vontade em reparar o dano (irreparável) que causou à filha nem se passou muito tempo sobre a prática do acto.

Quanto à alínea a) também não existe qualquer contexto de ameaça grave pois a arguida sempre agiu livremente e não consta dos factos que o seu companheiro alguma vez a constrangisse a assistir ao abuso que ele perpetrava na filha da arguida.

Invoca, contudo, a arguida, a “sua dependência emocional do arguido”.

Ora, essa dependência não se mostra provada.

O que se retira dos factos provados é que a arguida, bem sabendo o passado criminal do arguido, e os seus desejos libidinosos direccionados a meninas menores, e ainda a proibição imposta ao companheiro de se manter afastado de menores, decidiu, livremente, com o mesmo encetar uma relação amorosa e aceitá-lo em sua casa mesmo sabendo que a Santa Casa da Misericórdia o proibia.

A arguida agiu como agiu porque quis e não porque está emocionalmente dependente do companheiro, aliás, se essa dependência de facto existir foi a arguida que se colocou deliberadamente nessa dependência.

Assim, não se verificam quaisquer factores que pudessem levar o Tribunal a quo a atenuar especialmente as penas que aplicou à arguida.

E, se considerarmos que cada um dos crimes imputados à arguida têm como limite mínimo 1 ano e como limite máximo 8 anos, na sua forma simples (art.º 171º do CP) e que, nos termos do art.º 177º do CP, esses limites passam para 1 ano e 4 meses e 10 anos e 8 meses de prisão, verifica-se que à arguida foram fixadas penas abaixo do meio da moldura penal e relativamente próximo do limite mínimo.
Não, há, assim, nada a pontar à graduação que o Tribunal a quo fez das penas parcelares.

No que tange ao cúmulo diz o art.º 77º do Código Penal – cuja violação a arguida também invoca – o seguinte:

“1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores.
4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”

Ora a soma das penas concretamente aplicadas à arguida traduz 20 anos de prisão, pelo que este é o limite máximo, e o limite mínimo corresponde a 3 anos e seis meses de prisão por ser a pena concreta mais elevada.

À arguida foi aplicada uma pena única de 7 anos e três meses de prisão, o que fica bastante aquém da metade da moldura penal concursal e relativamente próximo do limite mínimo.
Essa pena única mostra-se adequada quer ao conjunto dos factos, quer à personalidade da arguida que se revela disforme com o que a sociedade considera ser uma boa mãe, revelando a arguida total falta de instinto materno e até de consideração pelo bem estar de outras pessoas, nomeadamente, a sua filha.

Há uma especial censurabilidade no que tange à arguida pois esta é mãe da vítima, sendo totalmente incompreensível que a arguida deixasse de agir de acordo com o seu estatuto parental para defender um terceiro que até já foi condenado vários anos por ter violado a sua própria filha desde os 3 anos até aos 11 anos.

A preocupação da arguida em ficar sem o companheiro sobrepõe-se de forma muito clara à preocupação que a mesma deveria ter em perder a guarda da filha.

Mesmo com todo o percurso do companheiro, a arguida insiste em arguir a inocência deste, em culpar terceiros pelos seus males e em imputar aos filhos a culpa dos seus problemas.

A arguida acabou por ter de sair da sua única habitação – a qual sendo social beneficiava de ajuda financeira da Santa Casa da Misericórdia – tornando-se, assim, uma sem-abrigo, só porque não quer deixar de coabitar com o companheiro, tendo-se tornando totalmente dependente da caridade alheia, neste caso da filha mais velha a quem culpa pelo falecimento do seu anterior casamento.

Não se vislumbra, assim, que tenha sido violado o disposto no art.º 77º do CP, mostrando-se o cúmulo efectuado de acordo com as regras aplicáveis, tendo o recurso da arguida que improceder também quanto a este aspecto.
c) Da suspensa da execução da pena:

Por fim, entende a arguida que, soçobrando todos os seus argumentos, deve à mesma ser determinada a suspensão da execução da pena.

Vejamos, olhando o quadro legal, jurisprudencial e doutrinal.

O artº 50º do Código Penal subordinado à epígrafe "Pressupostos e duração" (da suspensão da execução da pena de prisão) diz o seguinte:
"1. O Tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3. Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente.
4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5. O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos." – sublinhado nosso

 A suspensão da execução de uma pena de prisão exige dois pressupostos, conforme bem explicitado no Ac. da Relação de Coimbra de 29-11-2017 (proc.º nº 202/16.8PBCVL.C1)[12]:
“O pressuposto formal de aplicação da suspensão da execução da prisão é apenas que a medida concreta da pena aplicada ao arguido não seja superior a 5 anos.
O pressuposto material da suspensão da execução da pena de prisão é que o Tribunal conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do arguido, ou seja, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
No juízo de prognose deverá o Tribunal atender, no momento da elaboração da sentença, à personalidade do agente (designadamente ao seu carácter e inteligência), às condições da sua vida (inserção social, profissional e familiar, por exemplo), à sua conduta anterior e posterior ao crime (ausência ou não de antecedentes criminais e, no caso de os ter já, se são ou não da mesma natureza e tipo de penas aplicadas), bem como, no que respeita à conduta posterior ao crime, designadamente, à confissão aberta e relevante, ao seu arrependimento, à reparação do dano ou à prática de atos que obstem ao cometimento futuro do crime em causa) e às circunstâncias do crime (como as motivações e fins que levam o arguido a agir).
A prognose exige a valoração conjunta de todas as circunstâncias que tornam possível uma conclusão sobre a conduta futura do arguido, pois a finalidade político-criminal visada com o instituto da suspensão da pena é o afastamento da prática pelo arguido, no futuro, de novos crimes.
As finalidades das penas, designadamente das penas de substituição, é «a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.» (art.40.º, n.º 1 do Código Penal).
A proteção, o mais eficaz possível, dos bens jurídicos fundamentais, implica a utilização da pena como instrumento de prevenção geral, positiva ou de integração, servindo para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das normas do Estado na tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal.
A reintegração do agente na sociedade, outra das finalidades da punição, está ligada à prevenção especial ou individual, isto é, à ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do agente, com o fim de evitar que no futuro, ele cometa novos crimes, que reincida.
Todavia, no entendimento do Prof. Figueiredo Dias, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada, mesmo em caso de conclusão do tribunal por um prognóstico favorável (à luz de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização), se a ela se opuserem as finalidades da punição (art.º 50.º, n.º 1 e 40.º , n.º1 do Código Penal), nomeadamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigência mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, pois que «só por estas exigências se limita – mas por elas se limita sempre – o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto…».
A suspensão da execução da pena é, sem dúvidas um poder vinculado do julgador, que terá de a decretar sempre que se verifiquem os respetivos pressupostos. Deste modo, o tribunal, quando aplicar pena de prisão não superior a 5 anos deve suspender a sua execução sempre que, reportando-se ao momento da decisão, possa fazer um juízo de prognose favorável ao comportamento futuro do arguido.”
No caso em apreço à arguida foi aplicada uma pena única de 7 anos e 3 meses o que leva a que não se verifique, desde já, o elemento formal, previsto no nº 1 do art.º 50º do Código Penal.

Mas, ainda que se considerasse que se poderia, eventualmente, suspender a execução de uma pena de prisão superior a 5 anos, a verdade é que sempre se teria de verificar a existência de uma prognose favorável, o que, no caso em apreço, revela-se impossível.

Porquanto a arguida não revela qualquer arrependimento, nem sequer instinto materno, preferindo ser expulsa de sua habitação, e de perder a guarda da filha, do que “abrir mão” da sua relação com um homem que já foi condenado por violar a própria filha dele, desde tenra idade, e que abusou da menor, filha da arguida.

Não, há, assim, qualquer fundamento legal para se suspender a execução da pena que concretamente foi aplicada à arguida, motivo pelo qual, o recurso por si interposto tem de improceder na sua totalidade.

Decisão:
Em face do acima exposto nega-se provimento a ambos os recursos interpostos, respectivamente, pelos arguidos M________ e L_______, e, em consequência, confirma-se o acórdão recorrido.
Custas a cargo de ambos os Recorrente fixadas em 3 UC’s cada (art.ºs 513º nº 1 CPP e 8º e 9º do Regulamento das Custas Processuais conjugando este com a Tabela III anexa a tal Regulamento).

Lisboa, 06 de Abril de 2020.
Florbela Sebastião e Silva
Alfredo Costa
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[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc.º 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc.º nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art.º 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art.º 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” - proc.º 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc.º 05P1577,] (art.ºs 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] Ac. Rel. Évora de 28-05-2013 no procº nº 166/11.4IDFAR.E1 in dgsi.pt.
[3] Acórdão de 30-10-2019 no proc.º nº 405/14.0TELSB.L1 desta mesma 3ª Secção da Relação de Lisboa em que a signatária é adjunta, sendo Relatora Cristina Almeida e Sousa.
[4] In dgsi.pt
[5] “Trata-se de uma categoria, não dogmática, criada pela jurisprudência” – cfr. Helena Moniz in Julgar On-Line, Abril de 2018.
[6] In dgsi.pt
[7] In Direito Penal Português As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas Editorial Notícias, p. 227 e ss.
[8]Https://estudogeral.uc.pt/bitstream/10316/33713/1/Abuso%20Sexual%20Infantil%2C%20FMUC%2C%202016%2C%20Diana%20Cardoso.pdf
[9] In Código de Processo Penal Anotado, Vol. 2, Editora Rei dos Livros, p. 514 e 515.
[10] Que diz o seguinte: “Compete aos pais, no interesse dos filhos, velar pela segurança e saúde destes prover ao seu sustento, dirigir a sua educação, representá-los, ainda que nascituros, e administrar os seus bens.”
[11] In “Lições de Direito Penal” – Parte Geral, Editorial Verbo, 1992, p. 99.
[12] In dgsi.pt.