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REAPRECIAÇÃO DA PROVA
DEPOIMENTOS CONTRADITÓRIOS
ERRO NA APRECIAÇÃO DA PROVA
PENA
Sumário
I. Nos casos de reapreciação probatória, a lei determina a forma e os limites da mesma – ou seja, que poderes de cognição tem o tribunal de apelo - bem como que tal reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas acima mencionadas, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão. II. O recorrente não cumpriu dois dos requisitos consignados no art.º 412 nº3 e nº 4 do C.P. Penal, designadamente: a) não indicou quais os excertos probatórios concretos, das declarações prestadas, por referência ao consignado na acta, pretendia que fossem reapreciados, limitando-se a realizar uma súmula pessoal do conteúdo de alguns segmentos de depoimentos; b) não especificou, relativamente aos pontos da matéria de facto dada como assente que critica, qual o conteúdo concreto que, em seu entender, aí deveria constar, antes optando por um relato adjectivado da sua pessoal convicção. E tanto bastaria para se concluir que o recurso, em sede de reapreciação, se mostraria de rejeitar. III. Não obstante, ainda que tais deficiências não ocorressem, de igual modo a presente reapreciação estaria votada ao insucesso, pois o julgador explicita, de forma detalhada, as razões que o levaram a entender como se convenceu de toda a matéria que deu como assente, designadamente quando refere e conjuga os diversos depoimentos ouvidos, com os elementos periciais e documentais existentes, fazendo-o com recurso às regras de experiência comum. Nada há aqui de arbitrário ou infundado. IV. A mera circunstância de poderem existir depoimentos parcialmente contraditórios entre si, não é fundamento suficiente para se poder entender que se verifica um erro na apreciação da prova. Efetivamente, este só existirá se, confrontado o tribunal de recurso com tais divergências depoimentais, tenha de concluir que se impõe que outra convicção fosse alcançada, mas não apenas quando se mostra possível que outro fosse o convencimento do julgador.
(Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam em conferência na 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
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I – relatório
1. Por acórdão de 13 de Janeiro de 2020, foi o arguido EF condenado pela prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão (tendo sido absolvido da prática deste ilícito na sua forma qualificada: artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e), i) e j) do Código Penal)
2. Inconformado, veio o arguido interpor recurso, nos seguintes termos:
i. Entende ter existido erro na apreciação da matéria de facto provada constante nos pontos 1.1, 1.4, 1.11, 1.12 e 1.13, pedindo reapreciação probatória;
ii. Entende que a pena imposta se mostra excessiva.
Termina pedindo que a pena seja especialmente reduzida.
3. O recurso foi admitido.
4. O Ministério Público respondeu à motivação apresentada pelo arguido, defendendo a improcedência do seu recurso.
5. Neste tribunal, a Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta nada aditou à resposta apresentada pelo seu Exº Colega de 1ª instância.
II – questões a decidir.
a. da reapreciação probatória.
b. da alteração da pena imposta.
III – fundamentação.
a. da reapreciação probatória.
1. É a seguinte a matéria de facto dada como provada pelo tribunal “a quo”: 1. Da instrução e discussão da causa, com interesse para a decisão da mesma, resultaram PROVADOS os seguintes factos: 1.1. No dia 25-01-2019, antes das 21:10 horas, o arguido EF e o seu irmão CF, envolveram-se numa discussão e desferiram mutuamente golpes no corpo um do outro usando as mãos, por motivos não concretamente apurados, na residência que ambos partilhavam com a mãe e a namorada do primeiro, sita na Rua …, n.º 26, em Loures. 1.2. Acto contínuo, CF decidiu sair para o exterior da residência. 1.3. Nessa altura, EF muniu-se de uma faca de cozinha, com o cabo em madeira, com o comprimento total de 32,5cm, sendo 19,5cm de lâmina, com o intuito de desferir golpes com a mesma no corpo do seu irmão, tirando-lhe a vida, e seguiu no encalço de CF. 1.4. Acto contínuo, pelas 21:10 horas, já no exterior da habitação, quando CF, depois de abandonar o local, se encontrava de costas, o arguido empunhou a faca de cozinha que trazia consigo e, sem que nada o fizesse prever, desferiu pelo menos um golpe nas costas deste, mais concretamente na região escapular esquerda, tendo-o atingido no pulmão esquerdo. 1.5. De seguida, CF dirigiu-se a uma oficina de reparação de automóveis “Euro Repair”, sita ao lado da sua residência, propriedade de JV, onde pediu ajuda para chamar uma ambulância. 1.6. Após proferir a expressão “AJUDA-ME, AJUDA-ME”, CF caiu no solo, tendo ficado em posição decúbito ventral. 1.7. Entretanto, o arguido chegou à oficina e, quando se deparou com o irmão caído no solo, saiu do local e ficou parado no exterior, virado para a frente daquele estabelecimento, com a faca na mão. 1.8. À chegada do Instituto Nacional de Emergência Médica, CF já se encontrava em paragem cardiorrespiratória, tendo sido verificado o óbito no local, pelas 22:10 horas. 1.9. Como consequência directa e necessária de tal conduta do arguido, CF veio a falecer e sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia médico-legal de fls. 228 a 230, cujo teor se dá por reproduzido, designadamente: - lesões traumáticas torácicas produzidas por acção de natureza corto-perfurante na região escapular esquerda que atingiu o pulmão esquerdo (laceração traumática da pleura pelo 5.º espaço intercostal com 10cm de comprimento, hemotórax de 1000ml e pulmão esquerdo colapsado com extensa laceração do lobo superior, medindo 9cm de comprimento e 7cm de profundidade), que provocou a sua morte; - escoriação na face anterior do pescoço com 2,5cm de comprimento, produzida por acção de natureza cortante; - laceração traumática da omoplata com 3,5cm de comprimento. 1.10. Tais lesões causadas pelo arguido da forma descrita foram a causa directa e necessária da morte de CF (tudo conforme consta do relatório de autópsia que aqui se dá por reproduzido para todos os efeitos legais). 1.11. EF agiu ciente que CF era seu irmão, conhecia bem as características da faca de cozinha acima melhor identificada, designadamente, a sua natureza corto-perfurante, e que, ao ser utilizada do modo como o foi, era apta a causar ferimentos profundos, a atingir órgãos importantes e, nessa medida, a provocar a morte do irmão, o que previu, quis e logrou. 1.12. Sabia ainda que, ao “surpreender” CF pelas costas, o colocava numa posição de impossibilidade de oferecer qualquer resistência, ou até de se colocar em fuga para evitar ser atingido, o que igualmente quis e logrou. 1.13. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Provou-se ainda: (do relatório social para determinação da sanção elaborado pela DGRSP) 1.14. EF, natural de Lisboa, constitui-se como o elemento mais novo de uma fratria de quatro elementos germanos (dois já faleceram por doença cardíaca outro por envenenamento acidental ainda criança), sendo os seus progenitores oriundos de Cabo Verde, tendo vindo para Portugal em busca de melhores condições de vida. O casal terá contribuído para a economia doméstica com base nas suas profissões, o progenitor como funcionário da Câmara Municipal de Loures e a progenitora como empregada de limpeza. Os rendimentos que auferiam nunca possibilitaram a manutenção de estilo de vida desafogado, tendo os encargos familiares necessitado sempre de gestão cautelosa, o que não obstou a vivência de dificuldades económicas. Ao nível relacional, foi descrito um ambiente caracterizado por violência doméstica exercida pelo progenitor sobre todos os elementos do agregado familiar, sendo notório o abuso de álcool, sob o efeito do qual o progenitor teria condutas agressivas, o que ditou a saída do arguido da casa dos pais ainda adolescente, no sentido de se autonomizar e abandonar um ambiente familiar disfuncional. 1.15. No domínio escolar, EF ingressou no ensino aos seis anos de idade vindo a completar o 12º ano de escolaridade. Concorreu à universidade no âmbito de processo de candidatura especial para maiores de 23 anos, tendo sido admitido, contudo, desistiu por falta de capacidade económica para pagamento de propinas. 1.16. Em relação ao seu percurso profissional, EF referiu ter iniciado actividade laboral aos quinze anos de idade, nos períodos de Verão, sendo a sua primeira experiência como paquete para um escritório de contabilidade, tendo posteriormente passado a aprendiz de contabilidade, sendo com esse dinheiro que assegurava o pagamento das obrigações escolares. 1.17. Aos vinte anos de idade, EF cumpriu Serviço Militar Obrigatório (SMO) pelo período de seis meses, não tendo referido ocorrências anómalas. Após ter cumprido o SMO, EF foi trabalhar para uma transportadora como ajudante de motorista, actividade que manteve durante dois anos, tendo saído para se inserir numa fábrica onde teve possibilidade de melhor oferta remuneratória, aqui permanecendo cerca de três anos. 1.18. Posteriormente, emigrou para Madrid, onde foi integrar o agregado familiar de um tio que exercia actividade como empreiteiro de construção civil, tendo passado a colaborar com este. Permaneceu em Espanha três anos, tendo regressado devido às saudades que sentia da família. Em Portugal, arranjou de imediato nova colocação laboral na construção civil, com funções de ajudante de electricista numa empreitada de construção de um centro comercial, tendo, finda a mesma, conseguido trabalho na bilheteira dos cinemas desse mesmo centro comercial, onde se manteve até ao final do contrato. 1.19. Em 2010, na sequência do início de uma relação de namoro, transferiu-se para a Figueira da Foz, onde passou a trabalhar para a empresa “NBK” (estruturas de edifícios) com as funções de condutor/empilhador, onde permaneceu durante um ano, tendo a sua saída decorrido de incompatibilidades com colega de trabalho. O arguido permaneceu na Figueira da Foz até 2014. 1.20. Na área afectiva, referiu dois relacionamentos mais significativos, dos quais nasceram dois filhos, com respectivamente sete anos, fruto da relação com MD, e um ano e meio, fruto de uma relação extraconjugal. 1.21. EF já teve contactos anteriores com o Sistema de Administração de Justiça Penal (SAJP), nomeadamente, condenação em pena de multa de 800 euros, a qual já liquidou; condenação em pena de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano e quatro meses no Processo Nº 1388/13.9PBLSB da 1º Secção Criminal, Juiz 9 da Comarca de Lisboa, onde foi condenado pelo crime de roubo qualificado; condenação em C.J. no processo nº 381/12.3PBFIG da Comarca de Coimbra, na pena de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução, por crimes de furtos qualificados, cujo termo está previsto para 26 de Janeiro de 2020. 1.22. À data dos factos, o arguido residia com os progenitores e com a vítima, seu irmão, encontrando-se separado de MD. O ambiente descrito relativamente à família de origem é de enorme conflito, em que seriam constantes as discussões entre o arguido e o irmão (vítima), devido a este não possuir hábitos de trabalho, subtraindo dinheiro ao pai e a EF para a aquisição de álcool, que consumia em excesso, foi ainda referido como notório o consumo de álcool por parte dos progenitores. O progenitor, inactivo profissionalmente, foi referenciado como muito agressivo sob o efeito de bebidas etílicas, conduta perpetrada desde a infância do arguido. A progenitora que havia sofrido um AVC, vindo a falecer em Setembro último. 1.23. Não obstante o ambiente disfuncional que caracterizava a família, tanto EF como a vítima tinham uma imagem sociocomunitária positiva, sendo alvo de pena por parte dos vizinhos. 1.24. EF, apesar das vicissitudes decorrentes do enquadramento socioeconómico da sua família, conseguiu realizar um percurso escolar acima do expectável, tendo mantido actividade profissional praticamente contínua, com excepção de um pequeno período em que apresentou alguma inércia traduzida no desemprego de média duração, demonstrando proactividade na promoção da sua autonomia financeira. 1.25. No plano social, é de realçar a manutenção por parte do arguido, de tipos de vivências e amizades distintas, mantendo um grupo de amigos de índole pró-social. Não foram referidas problemáticas de saúde ou aditivas. 1.26. Das suas características, ressaltam a facilidade em estabelecer relações interpessoais, aparentando manifestar alguma necessidade de reconhecimento pelo “outro”. Ainda que sejam verbalizados episódios de maior nervosismo/stress por parte do arguido em contexto de conflito familiar, não lhe são reconhecidos quaisquer comportamentos agressivos ou hostis. 1.27. Futuramente dispõe do apoio da ex-companheira, MD, que embora não perspective reatar o relacionamento marital entre ambos, estás disposta a recebê-lo em sua casa e a apoiá-lo na medida das suas possibilidades, uma vez que desenvolve actividade profissional de forma regular, como auxiliar de idosos no Colégio São V. em Lisboa. 1.28. EF manifesta receio pelo desfecho do presente processo, sobretudo nas consequências que uma condenação possa vir a ter para projectos de vida futuros, nomeadamente ao nível laboral. Apresenta alguns défices de avaliação crítica sobre os factos de que se encontra acusado, mas reconhece os bens jurídicos em causa, bem como a necessidade da sua protecção, denotando ainda, possuir capacidade de empatia em relação à vítima do crime de que se encontra acusado. 1.29. Aponta como impacto negativo da presente situação jurídico-penal a perda da actividade profissional e a ausência de convívio permanente com os filhos. 1.30. Em meio prisional tem vindo a apresentar uma postura consentânea com as normas internas. 1.31. EF é oriundo de uma família de origens modestas que, não obstante a sua disfuncionalidade, providenciou uma educação socialmente ajustada e que conseguiu providenciar as necessidades escolares do arguido. 1.32. A existência de um contexto familiar negativo do ponto de vista relacional, associado à postura agressiva por parte do progenitor, aparentam ter tido algumas implicações no domínio emocional do arguido que, ainda que seja descrito como detentor de capacidades de relacionamento interpessoal, sendo sociável, trabalhador e responsável, aparenta denotar algumas lacunas ao nível do controlo dos impulsos e de algumas dificuldades de resolução de problemas no âmbito de relações familiares. 1.33. Numa perspectiva de avaliação de risco e necessidades de intervenção, caso o arguido venha a ser condenado, consideramos como principal factor de risco a existência de anteriores condenações, o relacionamento intrafamiliar, (na possibilidade de decidir residir com o pai, que mantém a problemática alcoólica, fonte de comportamentos agressivos) a que acrescem as fragilidades ao nível emocional que denota. Assim, afigura-se-nos que uma futura reinserção social se encontrará sempre condicionada à devida introspecção das suas fragilidades, nomeadamente, emocionais e de consciencialização dos valores da vida e da normatividade, vigentes em sociedade. (Do certificado do registo criminal) 1.34. O certificado do registo criminal do arguido averba as seguintes condenações: - no Processo Comum (singular) n.º 253/08.6JBLSB, por sentença transitada em 22-02-2012, pela prática, em 15-12-2008, de um crime de simulação de crime, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de €6,00; esta pena veio a ser declarada extinta, por pagamento; - no Processo Sumaríssimo n.º 93/12.8PAPBL, por sentença transitada em 02-05-2013, pela prática, em 27-04-2012, de um crime de furto, na pena de 120 dias de multa, à taxa diária de €6,00; esta pena veio a ser convertida em prisão subsidiária, que cumpriu; - no Processo Comum (singular) n.º 103/12.9PAPBL, por sentença transitada em 02-10-2015, pela prática, em 22-05-2012, de um crime de ofensa à integridade física e de um crime de dano, numa pena única de 160 dias de multa, à taxa diária de €5,00; esta pena veio a ser declarada extinta, por pagamento; - no Processo Comum (colectivo) n.º 1388/13.9PBLSB, por acórdão transitado em 16-04-2015, pela prática, em 2013, de um crime de roubo qualificado na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa por igual período, vindo a pena a ser declarada extinta em 16-08-2016; - no Processo Sumário n.º 28/12.8PEFIG, por sentença transitada em 23-07-2012, pela prática, em 20-06-2012, de um crime de detenção ilegal de arma, na pena de 250 dias de multa, à taxa diária de €5,00; esta pena veio a ser declarada extinta, por pagamento; - no Processo Comum (colectivo) n.º 381/12.3PBFIG, por acórdão transitado em 26-01-2016, pela prática, em Março e Maio de 2012, de três crimes de roubo qualificado numa pena de 4 anos de prisão, suspensa por igual período, sujeita a regime de prova.
2. O Tribunal fundamentou a sua convicção nos seguintes termos: A convicção do Tribunal sobre a factualidade provada e não provada radicou na análise crítica e ponderada da prova produzida em julgamento, designadamente, as declarações prestadas pelo arguido em audiência de julgamento, o depoimento das testemunhas inquiridas e ainda o teor dos elementos de prova pericial e documental. O arguido, nas declarações que prestou em audiência de julgamento, referiu que no dia em que ocorreram os factos saiu de casa, onde vivia com a mãe, o irmão (vítima nos autos) e a sua namorada S…, quando eram cerca das 19 horas para ver o seu filho de sete anos de idade, pois a mãe do menor levava-o até perto de casa para que pudesse estar um pouco com o seu filho. Em casa tinham ficado a sua mãe e a sua namorada. Quando regressou a casa, cerca das 20 horas, viu o irmão a bater na sua mãe, no quarto desta, onde também dormia o arguido e a namorada, estando esta muito aflita, aos gritos, percebendo que ele queria que a mãe lhe desse dinheiro para gastar em álcool. Disse o arguido que resolveu então intervir, puxando o seu irmão para trás, e começaram a lutar um com o outro com pontapés e socos, tendo, a dada altura, o seu irmão saído porta fora, tendo o arguido permanecido em casa com a sua mãe e a sua namorada para cuidar daquela. Depois ouviu a porta de entrada a abrir e sentiu uma forte dor na cabeça e a partir daí, declarou o arguido, que não se lembra de mais nada, a não ser que estava deitado numa maca no hospital. Esclareceu que vivia naquela casa desde 2014 ou 2015, com o pai e a mãe e que o seu irmão vivia numa outra casa dos pais, sita em Montemor, mas foi gradualmente passando a ficar também naquela casa e como ele batia no pai, este acabou por ir viver para a casa de Montemor. Esta situação não é corroborada pelo relatório social, elaborado com base em entrevista ao arguido, ex-companheira deste, MD e vizinho CP, que refere ser o progenitor quem exercia violência doméstica contra todos os elementos do agregado familiar. Curioso é também o facto de o relatório social ser completamente omisso quanto ao relacionamento do arguido com S… que o arguido referiu ser sua namorada e viver consigo naquela casa desde há quatro ou cinco meses antes dos factos. Por lhe ter sido perguntado, o arguido disse ainda que o seu irmão bebia por vezes bebidas alcoólicas em excesso, porém naquele dia não se apercebeu que estivesse alcoolizado, mas apenas alterado. A testemunha S…, de 22 anos de idade, afirmou que, ao tempo, vivia maritalmente com o arguido. Confrontada com as fotografias da casa, constantes dos autos, em que se verifica que a casa tem apenas uma divisão destinada a cozinha e outra (sem porta) destinada a quarto de dormir, esclareceu que nesta última divisão dormia a depoente, o arguido e a D.ª G (mãe do arguido) e na cozinha dormia o CF (irmão do arguido). No dia em causa, declarou que estavacom a D.ª G no quarto a ver televisão quando chegou o CF, bastante alterado, aos berros, a gritar, pedindo dinheiro à mãe, que estava deitada na cama, crendo a depoente que o mesmo estaria alcoolizado pois isso era recorrente. Explicou que a mãe não falava porque tinha tido um AVC e apenas acenava com a cabeça dizendo que não, e então ele empurrou-a e esbofeteou-a, o que não era a primeira vez que acontecia. Nessa altura, o EF chegou a casa e pediu justificação ao CF para o que estava a acontecer e este começou a agredir o EF e envolveram-se numa discussão com palavras feias e agrediram-se com murros e empurrões, tendo visto o CF apertar o pescoço ao EF e depois o CF saiu de casa. Depois, como a situação acalmou, deram o jantar à D.ª G e deitaram-na, tendo-se igualmente deitado a depoente e tendo-se sentado o EF num banco junto à cama. Algum tempo depois, o CF entrou em casa (a depoente ouviu a porta), com um pau na mão e bateu com ele na cabeça do EF que caiu de lado no chão e ficou inanimado, não conseguindo a depoente acordá-lo, pelo que se dirigiu à cozinha perguntando ao CF o que ele tinha feito e ele não dizia nada. Então resolveu correr em direcção à rua com a intenção de pedir ajuda ao vizinho, senhor CP, e bateu à porta da casa deste, mas ele não terá ouvido, porque bateu apenas na rede, e então voltou para casa e cruzou-se, ainda na rua, com o CF tendo-lhe este dito: “é bom que pegues nas coisas porque na próxima és tu a morrer”. Nessa altura, viu o EF a sair de casa, a cambalear, respondendo a depoente que não se apercebeu que o mesmo tivesse nada na mão, designadamente, uma faca. Resolveu então entrar em casa para se calçar (pois tinha ido descalça até ao vizinho) e foi rapidamente atrás do EF, tendo visto este e o CF a agarrarem-se junto à porta da oficina e a caírem ambos ao chão. Depois levantaram-se e o EF deu dois passos para trás e ficou parado e o CF deu dois ou três passos para a frente e caiu ao chão. Disse ainda a depoente que se aproximou do EF, que estava de pé, perguntando-lhe se estava bem, mas ele não tinha qualquer reacção, só escorria lágrimas, sem falar, com uma faca de cozinha na mão (que reconheceu como sendo lá de casa). Acrescentou que, desde que vivia naquela casa (agosto de 2018) assistiu a outros desentendimentos entre o CF e a mãe, sobretudo porque ele se enervava com o barulho (tique) que a mãe fazia com os dentes, porém, problemas com dinheiro só assistiu nesse dia. Mais esclareceu que os irmãos discutiam muito, talvez uma, duas ou três vezes por semana, acrescentando que o CF tinha por hábito chegar a casa de madrugada, por vezes alcoolizado e acordava toda a gente. Mais disse que o CF não trabalhava, a depoente também não trabalhava e o EF fazia biscates. JV, de 50 anos de idade, dono de uma oficina de automóveis, referiu conhecer quer a vítima quer o arguido desde 2013, considerando ambos pessoas educadas, nada tendo a apontar-lhes. Disse ainda que o CF (nome pelo qual tratava a vítima, CF), por norma, não trabalhava e era normal beber, mas sempre educado e respeitador. Já o EF não bebia, desconhecendo se ele trabalhava, mas saía todos os dias de manhã, levava os filhos à escola e tomava conta da mãe. Disse o depoente que no dia em causa, após as 21 horas, viu o CF entrar na oficina, muito aflito a pedir para chamar uma ambulância para o irmão e o depoente aproximou-se da porta e até lhe disse: “o teu irmão está ali” e ouviu-os discutir, mas não ligou e quando o CF voltou a entrar e só disse: “ajuda, ajuda” e caiu para a frente no chão na entrada da oficina. Percebeu, então, o depoente que ele estava cheio desangue, a deitar sangue pela boca e, como não consegue ver sangue, afastou-se e ligou para o 112 e nessa altura viu o arguido com uma faca na mão, na entrada, estático, sem se mexer, e foi o vizinho CP que lhe tirou a faca da mão. Depois chegou a polícia e os bombeiros e só depois o INEM, tendo ido duas ambulâncias ao local. CP, de 71 anos de idade, vizinho de uma casa térrea contígua, referiu conhecer o arguido (EF) e a vítima (CF) desde que eles nasceram. Disse saber que o EF não bebia álcool, mas o CF de vez em quando “andava alegre”, acrescentando que os irmãos de tempos a tempos discutiam, mas estavam sempre bem um com o outro. Recordou que, no dia em causa estava em casa, sentado no maple, quando, cerca das 21 horas, ouviu os irmãos discutir e de seguida apercebeu-se que o CF saiu sozinho, pois ouviu-o resmungar, falando sozinho, ao passar junto à janela da sala de jantar onde o depoente se encontrava. Então, aproximou-se da janela e viu passar o EF, na mesma direcção, só o vendo de costas. Quando o depoente se preparava para se sentar novamente na sala viu passar um vulto e voltou à janela vendo a namorada do EF, S…, passar a correr. Como achou estranho passarem assim os três, saiu de casa e seguiu na mesma direcção, vendo a S… agarrada ao EF a dizer sempre a mesma coisa: “Não. O que é que fizeste?” e ele a tremer. O depoente pôs-lhe a mão no ombro e viu que ele tinha uma faca na mão, pelo que lha tirou e disse: “EF, acalma-te” porque ele tremia muito e não falava, acabando por se sentar no chão. Depois o depoente foi a casa para chamar o 112 e pôs a faca em cima de uma mesa e como lhe disseram que já tinham chamado a emergência, voltou para o local e viu uma bombeira a cortar as roupas do CF, que sónessa altura viu que estava dentro da oficina. Depois, entregou a faca à PSP. ND, de 30 anos de idade mecânico de automóveis na oficina de JV, recordou conhecer o arguido e a vítima desde 2014 e nunca ter assistido a qualquer desentendimento entre eles, sabendo que o EF não bebe e o CF bebe de vez em quando. Recordou que, no dia em causa, estava a trabalhar na oficina e a dada altura o CF entrou a pedir uma ambulância para o irmão, mas não ligaram porque ele de vez em quando ia lá fazer algumas brincadeiras com eles. Passado um pouco, ele foi lá aos gritos a pedir ajuda e depois caiu e o depoente viu de imediato sangue no chão, pelo que ligou para o 112 e para a polícia. Tendo sido pedido à testemunha que fosse muito preciso quanto à frase que ouviu a vítima proferir quando entrou pela primeira vez na oficina, o depoente disse que só ouviu a voz dele porque estava uma carrinha entre ambos e não o chegou a ver e ele só disse que queria uma ambulância, mas nem ligaram muito a isso porque às vezes ele ia lá pedir uma ambulância para a mãe e depois já não era preciso. Disse ainda que viu o arguido sentado no caminho que vai dar à casa deles e que tentou falar com ele, mas ele não respondia, parecia congelado, sendo que junto ao mesmo estavam o vizinho (senhor CP) e a namorada. VG, agente da PSP que se deslocou ao local, recordou ter visto o arguido sentado numa rua térrea, com a namorada junto a ele e depois apercebeu-se de um aglomerado de pessoas numa oficina, tendo então visto uma pessoa no chão, tapada com um cobertor. Percebeu que a vítima ainda respirava, mas já não reagia a estímulos. Quando o depoente tentou falar com o arguido, este não respondeu nem se mexeu, parecendo em estado de choque, tendo a namorada dito ao depoente que ele sofria de problemas cardíacos, pelo que optou por chamar uma segunda ambulância, tendo a mesma acrescentado que os irmãos se tinham desentendido e que depois o EF tinha ido atrás do irmão, mas que não viu nada. Foi ainda recolhida e apreendida uma faca que tinha sido levada por um vizinho para casa. RA, agente da PSP na esquadra de Loures há cerca de 21 anos, referiu que conhecia quer o arguido quer a vítima, bem como os pais dos mesmos, em razão das suas funções. O depoente afirmou ainda saber que a vítima e o pai tinham desentendimentos e ter conhecimento de que o arguido sempre tentou cuidar da mãe e preocupava-se com ela. Prova pericial: - Exame pericial de fls. 130-134 e 280-281 (à faca e vestígios); - Relatório da autópsia médico-legal de fls. 229-232; - Relatório do exame pericial de avaliação do dano corporal de fls. 441-443, prova requerida pelo arguido, e que em resposta aos quesitos, formulados a fls. 383 verso a 384, atesta a ausência de lesões no arguido; Prova documental: - Auto de apreensão e de exame e avaliação (faca) de fls. 19 a 22; - Documentação clínica do arguido de fls. 31-33, da qual não resulta a existência de qualquer lesão no arguido. Refira-se que as lesões que foram causa da morte da vítima resultaram provadas através do relatório da autópsia médico-legal, não decorrendo deste que tivesse existido mais do que um golpe de faca nas costas da vítima (daí que se desse como não provado mais do que um), mas apenas um golpe na região escapular esquerda (escápula, espádua ou omoplata é um osso grande, par e chato, localizado na porção póstero-superior do tórax) com intensidade tal que provocou várias lesões traumáticas torácicas, quer na própria omoplata, quer no pulmão esquerdo, que colapsou. Em situações como a dos autos é sempre muito difícil conseguir apurar, com segurança, o modo como se passaram os factos, porquanto não é possível conhecer a versão da vítima. Daí que haja necessidade de um rigor ainda maior ao analisar os relatos trazidos aos autos pelo arguido e pelas testemunhas e concatená-los com os restantes elementos prova, face às regras da experiência comum. Quanto aos factos ocorridos dentro da casa do arguido e da vítima, não duvidamos que existiu uma altercação entre os irmãos e que se terão agredido mutuamente, até porque a testemunha CP, morador numa casa contígua, os ouviu discutir e quer o arguido, quer a testemunha S…, também referiram que existiram agressões. O arguido referiu que, após a discussão, o seu irmão saiu porta fora e que ele e a sua namorada ficaram a tratar do jantar da mãe e só depois ouviu a porta a abrir e sentiu uma forte dor na cabeça e não se lembra de mais nada a não ser estar no hospital. Por outro lado, a testemunha S… refere que, após a discussão, deram o jantar à mãe do arguido e deitaram-na e só depois a vítima voltou com um pau na mão e, sem qualquer aviso ou palavra, com o mesmo atingiu o arguido na cabeça, tendo então a referida testemunha saído de casa para pedir ajuda ao vizinho CP, que não teráouvido a mesma bater à porta. Ora o depoimento da testemunha S… não mereceu qualquer credibilidade face ao relato pormenorizado feito precisamente pela testemunha CP, que teve oportunidade de ouvir discutir os irmãos, percebendo que na sequência dessa discussão, a vítima, CF, saiu de casa a resmungar, sendo de imediato seguida pelo arguido, EF, e pela namorada desta, S…. Por achar estranho, terem saído uns atrás dos outros, a testemunha saiu também de casa, seguindo na direcção que eles tinham levado, tendo visto a S… agarrada ao arguido e questionando-o acerca do que ele havia feito. Nesta conformidade e apesar de ninguém ter referido em audiência ter visto o arguido desferir o golpe nas costas da vítima (a única pessoa que poderia ter visto foi a namorada do arguido), o Tribunal não teve dúvidas de que o arguido o fez após ter ido no encalço do seu irmão. As razões pelas quais agiu não ficaram claras pois também não se apurou com rigor o que aconteceu imediatamente antes, ainda no interior da habitação. Não sabemos se a vítima chegou a ou não a agredir a mãe de ambos, mas é plausível que a discussão versasse o tema da necessidade de dinheiro da vítima para os seus gastos (em bebidas alcoólicas ou outros bens), pois resultou demonstrado que o mesmo não trabalhava e toda a família vivia em situação económica muito precária, como ressalta à evidência das condições habitacionais do agregado, designadamente das fotos da habitação. Por outro lado, dos depoimentos prestados, também ficou demonstrado que o arguido se preocupava com a mãe e cuidava da mesma. O facto de o arguido, após o seu irmão ter caído na oficina, se encontrar a tremer, sem responder a qualquer pergunta, “congelado”, naexpressão da testemunha ND, é absolutamente compatível com o facto de o mesmo se encontrar em estado de choque, com disse o agente da PSP VG. Com efeito, segundo a Wikipédia, Reação aguda ao stress, também conhecida como Choque psíquico, Estado de crise, Fadiga de combate ou mais popularmente conhecido como "estado de choque", refere-se a uma resposta não adaptativa a uma situação de risco de vida ou perigo de entes queridos. É um transtorno transitório que ocorre após eventos de extremo stress físico e/ou psíquico e geralmente desaparece em algumas horas ou em alguns dias. No caso dos autos, se pensarmos que o arguido e a vítima eram os dois últimos irmãos sobrevivos de uma fratria de quatro, sendo que o arguido havia acabado de desferir um golpe mortal no seu irmão e a sua mãe, debilitada por um AVC, residia com ambos, e com a qual o arguido se preocupava, faz todo o sentido, face às regras da experiência comum, que o mesmo estivesse em estado de choque. Não resultou provado que o arguido tivesse sofrido qualquer lesão traumática porquanto quer os documentos clínicos de fls. 31-33, quer a perícia de avaliação do dano corporal de fls. 441-443, não relatam a existência de lesões, mas apenas o que foi relatado no momento da admissão na urgência, sendo que o arguido foi no dia em que ocorreram os factos submetido a TAC crânio-encefálica e da face, exame esse que não revelou quaisquer alterações traumáticas. Em face dessas circunstâncias e do desconhecimento quanto às razões do desentendimento entre o arguido e a vítima imediatamente antes de o arguido ter desferido o golpe mortal na mesma, não pode oTribunal dar como provado que o arguido tivesse agido sem qualquer motivo ou que tivesse agido com frieza e insensibilidade. O elemento subjectivo – a intenção de tirar a vida a CF – é inequívoco, já que o arguido, após ter discutido e se ter envolvido em agressões com a vítima, se muniu de uma faca de cozinha, com 19,5cm de comprimento de lâmina e um comprimento total de 32,5cm, saiu de casa imediatamente atrás da vítima, desferindo pelo menos um golpe por trás na região escapular esquerda da vítima, atingindo-o na parte superior do tórax, bem sabendo que, ao desferir a referida facada nessa zona do corpo, onde estão alojados órgãos vitais, como os pulmões, lhe causaria a morte. Nesta conformidade, agiu o arguido com dolo directo. Porém não pode o Tribunal deixar de atender à circunstância de que o arguido se encontrava num estado de grande tensão. O conhecimento quanto à proibição da sua conduta, extrai-se das regras da experiência comum, na medida em que o cidadão comum sabe que tirar a vida a outra pessoa é um crime punido por lei, o mais grave do nosso ordenamento jurídico. O Tribunal atendeu ainda: - Ao certificado do registo criminal do arguido de fls. 427 a 434 verso, que permitiu dar como provados os seus antecedentes criminais. - Ao relatório social elaborado pela DGRSP, que consta a fls. 436 a 438 verso dos autos e que ilustra o percurso de vida do arguido.
3. Nas suas conclusões, e a este propósito, avança o recorrente as seguintes razões de discórdia: 1. O Recorrente não se conforma com a Decisão contra si proferida no Douto Acórdão de que se Recorre. 2. O Recorrente, para integral análise do seu Recurso, dá aqui por reproduzido tudo o que alegou supra nas suas Motivações. 3. O Recorrente impugnou os concretos Pontos de Facto Provados com os números 1.1, 1.4, 1.11, 1.12 e 1.13, tendo plasmado as passagens das declarações e testemunhos que o Tribunal “a quo” integrou no Acórdão, com referência a quem as prestou em Julgamento, pelo que das mesmas retirou os elementos fácticos que devem ser integrados ou retirados desses mesmos Pontos de Facto impugnados, requerendo a V.as Ex.as que assim seja por Vós Decidido. 4. Mais foi referido que a agressão que sofreu pelo seu irmão, ainda em casa, deverá ser valorada, bem como o consequente Traumatismo Crânio-Encefálico com perda de conhecimentos, assim como a sujeição à realização do exame de Tomografia Computorizada ao crânio, no Hospital Beatriz Ângelo, pugnando que por V.as Ex.as também assim o Decidam. 5. Tudo o que supra foi alegado e requerido, deverá ser conjugado com o teor dos Pontos n.º 1.22 a 1.33, os quais são uma clara demonstração da situação prévia, actual e de prognose favorável na vida do Recorrente, devendo ser ponderado e Decidido a favor do Recorrente. 6. Não faz qualquer sentido, nem tem qualquer lógica que uma pessoa com a prerrogativa de se puder escusar a testemunhar, decida contar o que viu, mesmo que tal possa ser entendido como prejuízo para o companheiro, não se compreendendo porque é que o seu testemunho não foi credível, quando foi a única pessoa que assistiu aos agarrões e à queda que veio a provocar a perfuração e o consequente ferimento mortal à vítima CF. 7. O Recorrente defende que a sua namorada/companheira teve um testemunho credível e deverá ser convenientemente valorado, devendo ser dado como provada a agressão com um pau que sofreu na cabeça, ainda em casa, bem como os agarrões e que a conjunta com o irmão CF que veio a causar o ferimento mortal ao irmão, mas que ocorreu inadvertidamente. 8. Tudo o que supra foi alegado, sendo devidamente visto e ponderado, impõe uma Decisão Final distinta da proferida, com a qual se discorda, por ser demasiado severa para o Recorrente. 9. A valoração das soluções apontadas aos Pontos impugnados, a serem decididas em conformidade por V.as Ex.as, conjugadas com os Pontos 1.22 a 1.33 provados, bem como com as restantes alegações, impõem que a Decisão Final que venha a ser proferida seja mais favorável ao Recorrente, o que se requer a V.as Ex.as Venerandos Desembargadores.
4. Apreciando.
i. O recorrente pretende que este tribunal proceda à reapreciação probatória de parte da matéria de facto dada como assente pelo tribunal “a quo”.
Cumpre assim enunciar quais são os pressupostos de reapreciação, em sede de recurso; ou seja, quais são os poderes de reapreciação de matéria de facto, pela Relação, quais os seus limites e os seus condicionalismos.
ii. Na verdade, este poder reapreciativo da 2ª instância não é equivalente ao poder original atribuído ao juiz do julgamento, não podendo ser arbitrariamente alterado apenas porque um dos intervenientes processuais expressa o seu desacordo face à convicção formada pelo julgador.
De facto, compete ao Tribunal (e não aos intervenientes processuais), julgar a matéria de facto, segundo os ditames previstos no artº127 do C.P.Penal, nomeadamente, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (desde que se não esteja perante prova vinculada), sendo estes os parâmetros determinantes do acto de julgar. Embora este acto tenha sempre, forçosamente, um lado subjectivo (o julgador não é uma máquina), a verdade é que estas regras, complementadas ainda pelo disposto no artº374 nº2 do C.P.Penal determinam que este acto de julgar não se possa fundar em arbitrariedade ou discricionariedade, pois balizam os fundamentos da decisão.
Assim sendo, a lei não considera relevante a pessoal convicção de cada um dos intervenientes processuais, no sentido de a mesma se sobrepor à convicção do Tribunal – até porque se assim não fosse, não haveria, como é óbvio, qualquer decisão final.
O que a lei permite é que, quem entenda que ocorreu um erro de apreciação da prova, o invoque, fundamentadamente, em sede de recurso, para que tal questão possa ser reapreciada por uma nova instância jurisdicional.
iii. Para além de a lei determinar a forma como tal reapreciação deve ser pedida, há ainda que estabelecer quais são os limites de tal reapreciação – ou seja, que poderes de cognição tem o tribunal de apelo.
Mesmo nos casos em que exista documentação dos actos da audiência, o recurso para a Relação não constitui um novo julgamento, no sentido que haja lugar a reapreciação integral da prova. O que esta instância pode e deve fazer em tal matéria, em sede de recurso (pois este serve, essencialmente, como remédio jurídico), é verificar, ponto por ponto, se os erros concretos de julgamento, indicados pelo recorrente, de facto existem e, na afirmativa, proceder à sua correcção.
A razão de ser desta forma de funcionamento do instituto do recurso, nomeadamente em sede de reapreciação de matéria de facto, prende-se com o princípio da oralidade, no sentido de o mesmo implicar uma imediação, um contacto directo entre o julgador e os elementos de prova (sejam eles pessoas, coisas, lugares, sons, cheiros), pois só através deste interagir pessoal, presencial, directo e imediato, é possível ao julgador formar a sua livre convicção.
Este tipo de contacto só existe, de facto, na primeira instância, pois a imediação permite ao julgador ter uma percepção dos elementos de prova que é muito mais próxima da realidade do que qualquer posterior análise, a realizar pelo tribunal de recurso, mesmo que se socorra da documentação dos actos da audiência. E em matéria de credibilidade de depoimento, esta imediação revela-se, muitas vezes, de importância fulcral, já que o desenrolar do depoimento, a posição corporal, os gestos, as hesitações, o tom de voz, o olhar, o embaraço ou desembaraço, enfim, todas as componentes pessoais ligadas ao acto de depor, que são muitas vezes insusceptíveis de serem registadas, mas que ficam na memória de quem realizou o julgamento, servem como elemento inestimável de formação da convicção do julgador, mas são praticamente insusceptíveis de serem reapreciadas em sede de recurso.
iv. Face ao que se deixa exposto, haverá que concluir que, em tal matéria, cabe apenas ao tribunal de recurso verificar, controlar, se o tribunal “a quo”, ao formar a sua convicção, fez um bom uso do princípio de livre apreciação da prova, aferindo da legalidade do caminho que prosseguiu para chegar à matéria fáctica dada como provada e não provada, sendo certo que tal apreciação deverá ser feita com base na motivação elaborada pelo tribunal de primeira instância, na fundamentação da sua escolha – ou seja, no cumprimento do disposto no art.º 374 nº2 do C.P.Penal.
v. Mas dentro destes parâmetros de reexame, haverá ainda que atender a um outro limite – a lei refere que, ainda assim, tal reapreciação só determinará uma alteração à matéria fáctica provada quando, do reexame realizado dentro das balizas acima mencionadas, se concluir que os elementos probatórios impõem uma decisão diversa, mas já não assim quando esta análise apenas permita uma outra decisão.
Neste último caso, havendo duas (ou mais) possíveis soluções de facto, face à prova produzida (o que sucede, com algum grau de frequência, nomeadamente nos casos em que os elementos de prova recolhidos são totalmente opostos ou contraditórios entre si), se a decisão de primeira instância se mostrar devidamente fundamentada e couber dentro de uma das possíveis soluções face às regras de experiência comum, é esta que deve prevalecer, mantendo-se intocável e inatacável, pois tal decisão foi proferida de acordo com as imposições previstas na lei (art.ºs 127 e 374 nº 2 do C.P.Penal), inexistindo assim violação destes preceitos legais.
5. Prosseguindo.
Antes de entrarmos na análise do recurso em si, haverá que fazer alguns reparos.
i. Como resulta quer da leitura da motivação, quer das inerentes conclusões, o recorrente não cumpriu dois dos requisitos consignados no art.º 412 nº3 e nº 4 do C.P. Penal, designadamente:
a) Não indicou quais os excertos probatórios concretos, das declarações prestadas, por referência ao consignado na acta, pretendia que fossem reapreciados, limitando-se a realizar uma súmula pessoal do conteúdo de alguns segmentos de depoimentos;
b) Não especificou, relativamente aos pontos da matéria de facto dada como assente que critica, qual o conteúdo concreto que, em seu entender, aí deveria constar (ex: no que se refere ao ponto 1.1, alega apenas que “a altercação ocorrida entre o arguido e a vítima na casa destes se deveu à postura e conduta da vítima para com a mãe de ambos, pelo que, tal causa deveria também constar do teor do Ponto n.º 1.1 dado como provado”; no que se refere ao ponto 1.4 limita-se a afirmar que “deveria ter dado como provado que o recorrente sofreu a descrita pancada com um pau na cabeça e que tal agressão foi causa suficiente para ter sido acometido de traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimentos”; no que concerne ao ponto 1.11 subsume a discórdia à afirmação de que “a queda do recorrente e do irmão em simultâneo é que terá propiciado o acto inadvertido de perfuração, que lamentavelmente causou a morte ao infortunado CF” e que tal situação “não foi por si prevista, não a quis produzir, mas infelizmente aconteceu por azar”; e, no que respeita aos pontos 1.12. e 1.13, afirma pretender que seja dado como provado que “o recorrente não surpreendeu o seu irmão CF, tendo existido sim uma dinâmica de agarrões que, azarada e inadvertidamente, culminaram numa morte que o recorrente não queria e muito o afecta, sem que para tal, conscientemente, tivesse feito algo nesse sentido, até porque continua a afirmar, tal como em julgamento, que não tem lembranças do ocorrido, sendo certo que apenas a testemunha S… relatou a dinâmica dos factos” pelo que “não agiu de forma livre, voluntária e consciente”).
ii. Como se constata pela mera leitura da alínea b), o que aí se mostra vertido pelo recorrente não corresponde a um elencar narrativo factual, inserível em sede de matéria de facto dada como assente, mas antes um relato adjectivado da sua pessoal convicção. E tanto bastaria para se concluir que o recurso, em sede de reapreciação, se mostraria de rejeitar, uma vez que se ignora que segmentos factuais concretos o recorrente entende deverem ser retirados dos factos provados e que elementos factuais também concretos entende que devem ser aditados.
iii. De igual modo, no que concerne à ausência de especificação a que fazemos referência na al. a) supra, se teria de considerar que, desconhecendo este tribunal quais os momentos concretos da gravação, através dos quais nos seria possível aferir se o relato que o recorrente aporta dos depoimentos a que alude, efectivamente se mostra correcto, o recurso, em sede de reapreciação, estaria votado à rejeição (note-se que, no caso, nem sequer se afiguraria possível proferir despacho de aperfeiçoamento, uma vez que as deficiências apontadas não surgem apenas em sede de conclusões, mas igualmente no âmbito da motivação).
iv. Não obstante, para paz e descanso das consciências, sempre se dirá que, ainda que tais deficiências não ocorressem, de igual modo a presente reapreciação estaria votada ao insucesso como, de seguida, de modo sucinto, explicitaremos.
A reapreciação sumária a que procederemos terá como base a análise da motivação realizada pelo tribunal “a quo”, uma vez que as sínteses testemunhais a que o recorrente alude se mostram consignadas na mesma, de forma similar à por si relatada. E, no que concerne à descrição dos acontecimentos, apreciaremos a questão de saber se se mostra fundada ou não a convicção alcançada pelo tribunal “a quo”, no que respeita a 3 questões:
Conteúdo da altercação entre arguido e vítima;
O arguido sofreu uma pancada na cabeça, desferida pelo seu irmão, que lhe provocou traumatismo craniano e perda de conhecimento;
A perfuração da lâmina ocorreu quando o arguido e a vítima se encontravam agarrados um ao outro e foi casual.
6. Os fundamentos que o recorrente invoca para basear a sua discórdia resumem-se à alegação que o tribunal deveria ter atendido na íntegra ao depoimento da testemunha S…, bem como ao que o arguido relatou, para fundar a sua convicção quanto a tais questões, uma vez que apenas os dois estiveram presentes nos momentos em que tais incidentes ocorreram.
7. Sucede, todavia, que tal nem é sequer o caso.
i. Desde logo e no que se refere à questão da pancada com o pau, a própria tese do recorrente é, em si mesma, contraditória.
Na verdade, o recorrente refere várias vezes que ficou inanimado, mas não explica quanto tempo demorou tal estado. Diga-se, aliás, em bom rigor, que a tese que defendeu em julgamento foi a de que perdeu os sentidos e só os recuperou quando chegou ao hospital. Assim, por explicar se queda como é que alguém inanimado esfaqueia uma outra pessoa, especialmente se atendermos que o local onde teria sido desferida tal pancada na cabeça se situa dentro de casa e o sítio do esfaqueamento se encontra no exterior da mesma, sendo certo que entre a dita pancada e o acto de espetar a faca, o arguido teria de ter ido buscar tal objecto à cozinha.
ii. Não obstante, a razão principal pela qual o tribunal “a quo” entendeu não ser credível a versão dos factos apresentada pelo arguido (parcialmente corroborada pela sua companheira, S…), prende-se com a descrição que é feita, em termos temporais, pela dita testemunha S…, da sucessão dos acontecimentos, que se mostra contraditada pelo depoimento prestado pela testemunha CP, nomeadamente em termos de sucessão temporal dos acontecimentos (a discussão precede imediatamente a saída de casa da vítima, seguida do arguido e o esfaqueamento ocorre de imediato, tudo em questão de minutos, no relato de CP, enquanto que, na versão da testemunha Sara, após a discussão, decorreu tempo suficiente para darem de comer à mãe do arguido, deitarem-na e sentarem-se ambos num banco): Ora o depoimento da testemunha S… não mereceu qualquer credibilidade face ao relato pormenorizado feito precisamente pela testemunha CP, que teve oportunidade de ouvir discutir os irmãos, percebendo que na sequência dessa discussão, a vítima, CF, saiu de casa a resmungar, sendo de imediato seguida pelo arguido, EF, e pela namorada desta, S…. Por achar estranho, terem saído uns atrás dos outros, a testemunha saiu também de casa, seguindo na direcção que eles tinham levado, tendo visto a S… agarrada ao arguido e questionando-o acerca do que ele havia feito.
iii. Por seu turno, e no que se refere ao traumatismo craniano que o arguido alega ter sofrido, a verdade é que, embora sujeito a exame médico, como afirma, este infirma a existência de tal tipo de lesão.
Se assim é, não se mostra corroborado, por exame médico específico, o que o arguido alega, sendo certo que uma pancada como a que descreve, com as consequências que lhe imputa, teria necessariamente, a existir, de ser detectada pelo exame médico realizado especificamente para esse fim (Não resultou provado que o arguido tivesse sofrido qualquer lesão traumática porquanto quer os documentos clínicos de fls. 31-33, quer a perícia de avaliação do dano corporal de fls. 441-443, não relatam a existência de lesões, mas apenas o que foi relatado no momento da admissão na urgência, sendo que o arguido foi no dia em que ocorreram os factos submetido a TAC crânio-encefálica e da face, exame esse que não revelou quaisquer alterações traumáticas.)
iv. No que concerne à questão da acidentalidade da perfuração, a versão do arguido deixa por explicar, desde logo, como é que a faca foi parar às suas mãos.
De facto, tratando-se de uma faca de cozinha, que era pelo arguido empunhada (e não pelo seu irmão), no exterior da casa onde habitavam, perto da oficina, a tese da inanimação ou do traumatismo craniano deixa por explicar as razões que levaram o arguido a resolver munir-se da mesma e sair da casa, atrás do seu irmão.
De igual modo, o local onde o corpo da vítima foi esfaqueado, denota que o golpe foi realizado quando esta se encontrava de costas para o seu agressor, o que arrasa com a tese de esfaqueamento ocasional, no seguimento de uma queda, quando ambos se encontravam envolvidos em luta frente-a-frente e nessa posição caíram ao chão.
Para além do mais, o golpe que foi perpetrado no corpo da vítima produziu laceração traumática da omoplata, comlesões traumáticas torácicas produzidas por acção de natureza corto-perfurante na região escapular esquerda que atingiu o pulmão esquerdo, com laceração traumática da pleura pelo 5.º espaço intercostal, o que bem denota a força com que tal golpe teve de ser desferido, atenta a zona óssea primeiramente atingida pela faca, como realça o tribunal “a quo”: um golpe na região escapular esquerda (escápula, espádua ou omoplata é um osso grande, par e chato, localizado na porção póstero-superior do tórax) com intensidade tal que provocou várias lesões traumáticas torácicas, quer na própria omoplata, quer no pulmão esquerdo, que colapsou.
v. E, para além destes meros elementos objectivos, resultantes da leitura do relatório da autópsia e das mais básicas regras de experiência comum (as facas não têm pernas para andarem sozinhas, nem têm por hábito consubstanciarem-se nas mãos das pessoas…), acresce o depoimento prestado pelas testemunhas JV, CP e ND - que nenhuma relação familiar ou outra têm com o arguido, nem com a vítima, o que os coloca numa posição de imparcialidade que credibiliza o seu depoimento - conforme enuncia o tribunal “a quo”: Nesta conformidade e apesar de ninguém ter referido em audiência ter visto o arguido desferir o golpe nas costas da vítima (a única pessoa que poderia ter visto foi a namorada do arguido), o Tribunal não teve dúvidas de que o arguido o fez após ter ido no encalço do seu irmão. As razões pelas quais agiu não ficaram claras pois também não se apurou com rigor o que aconteceu imediatamente antes, ainda no interior da habitação. Não sabemos se a vítima chegou a ou não a agredir a mãe de ambos, mas é plausível que a discussão versasse o tema da necessidade de dinheiro da vítima para os seus gastos (em bebidas alcoólicas ou outros bens), pois resultou demonstrado que o mesmo não trabalhava e toda a família vivia em situação económica muito precária, como ressalta à evidência das condições habitacionais do agregado, designadamente das fotos da habitação. Por outro lado, dos depoimentos prestados, também ficou demonstrado que o arguido se preocupava com a mãe e cuidava da mesma. O facto de o arguido, após o seu irmão ter caído na oficina, se encontrar a tremer, sem responder a qualquer pergunta, “congelado”, naexpressão da testemunha ND, é absolutamente compatível com o facto de o mesmo se encontrar em estado de choque, com disse o agente da PSP VG. (…) JV, de 50 anos de idade, dono de uma oficina de automóveis, referiu conhecer quer a vítima quer o arguido desde 2013, considerando ambos pessoas educadas, nada tendo a apontar-lhes. Disse ainda que o CF (nome pelo qual tratava a vítima, CF), por norma, não trabalhava e era normal beber, mas sempre educado e respeitador. Já o EF não bebia, desconhecendo se ele trabalhava, mas saía todos os dias de manhã, levava os filhos à escola e tomava conta da mãe. Disse o depoente que no dia em causa, após as 21 horas, viu o CF entrar na oficina, muito aflito a pedir para chamar uma ambulância para o irmão e o depoente aproximou-se da porta e até lhe disse: “o teu irmão está ali” e ouviu-os discutir, mas não ligou e quando o CF voltou a entrar e só disse: “ajuda, ajuda” e caiu para a frente no chão na entrada da oficina. Percebeu, então, o depoente que ele estava cheio desangue, a deitar sangue pela boca e, como não consegue ver sangue, afastou-se e ligou para o 112 e nessa altura viu o arguido com uma faca na mão, na entrada, estático, sem se mexer, e foi o vizinho CP que lhe tirou a faca da mão. Depois chegou a polícia e os bombeiros e só depois o INEM, tendo ido duas ambulâncias ao local. CP, de 71 anos de idade, vizinho de uma casa térrea contígua, referiu conhecer o arguido (EF) e a vítima (CF) desde que eles nasceram. Disse saber que o EF não bebia álcool, mas o CF de vez em quando “andava alegre”, acrescentando que os irmãos de tempos a tempos discutiam, mas estavam sempre bem um com o outro. Recordou que, no dia em causa estava em casa, sentado no maple, quando, cerca das 21 horas, ouviu os irmãos discutir e de seguida apercebeu-se que o CF saiu sozinho, pois ouviu-o resmungar, falando sozinho, ao passar junto à janela da sala de jantar onde o depoente se encontrava. Então, aproximou-se da janela e viu passar o EF, na mesma direcção, só o vendo de costas. Quando o depoente se preparava para se sentar novamente na sala viu passar um vulto e voltou à janela vendo a namorada do EF, S…, passar a correr. Como achou estranho passarem assim os três, saiu de casa e seguiu na mesma direcção, vendo a S… agarrada ao EF a dizer sempre a mesma coisa: “Não. O que é que fizeste?” e ele a tremer. O depoente pôs-lhe a mão no ombro e viu que ele tinha uma faca na mão, pelo que lha tirou e disse: “EF, acalma-te” porque ele tremia muito e não falava, acabando por se sentar no chão. Depois o depoente foi a casa para chamar o 112 e pôs a faca em cima de uma mesa e como lhe disseram que já tinham chamado a emergência, voltou para o local e viu uma bombeira a cortar as roupas do CF, que sónessa altura viu que estava dentro da oficina. Depois, entregou a faca à PSP. ND, de 30 anos de idade mecânico de automóveis na oficina de JV, recordou conhecer o arguido e a vítima desde 2014 e nunca ter assistido a qualquer desentendimento entre eles, sabendo que o EF não bebe e o CF bebe de vez em quando. Recordou que, no dia em causa, estava a trabalhar na oficina e a dada altura o CF entrou a pedir uma ambulância para o irmão, mas não ligaram porque ele de vez em quando ia lá fazer algumas brincadeiras com eles. Passado um pouco, ele foi lá aos gritos a pedir ajuda e depois caiu e o depoente viu de imediato sangue no chão, pelo que ligou para o 112 e para a polícia. Tendo sido pedido à testemunha que fosse muito preciso quanto à frase que ouviu a vítima proferir quando entrou pela primeira vez na oficina, o depoente disse que só ouviu a voz dele porque estava uma carrinha entre ambos e não o chegou a ver e ele só disse que queria uma ambulância, mas nem ligaram muito a isso porque às vezes ele ia lá pedir uma ambulância para a mãe e depois já não era preciso. Disse ainda que viu o arguido sentado no caminho que vai dar à casa deles e que tentou falar com ele, mas ele não respondia, parecia congelado, sendo que junto ao mesmo estavam o vizinho (senhor CP) e a namorada.
8. Assim, constata-se que, no que se refere às três questões que o recorrente suscita, o julgador explicita, de forma detalhada, as razões que o levaram a entender como se convenceu de toda a matéria que deu como assente, designadamente quando refere e conjuga os diversos depoimentos ouvidos, com os elementos periciais e documentais existentes, fazendo-o com recurso às regras de experiência comum. Nada há aqui de arbitrário ou infundado.
De igual modo, esclareceu o julgador que considerou credíveis os depoimentos das testemunhas que refere, precisamente por se mostrarem de acordo com a restante prova produzida e ainda atendendo ao modo coerente e espontâneo como depuseram, aliado à circunstância de não terem qualquer interesse no desfecho destes autos (ao contrário do que sucede com o arguido e com a testemunha S…), demonstrando isenção.
9. Resulta, pois, da fundamentação realizada pelo tribunal “a quo” que, pela conjugação dos elementos probatórios que refere, lhe foi possível alcançar a certeza jurídica da ocorrência dos factos que deu como assentes, bem como que, no que concerne a outros factos (razões da discussão; pancada na cabeça do arguido e facada casual) lhe não foi possível considerar os mesmos como provados, por os elementos probatórios existentes ou serem insuficientes (1º caso) ou não comprovarem a sua verificação (2º e 3º caso).
10. E se assim é, e se o fez de acordo com os poderes que a lei lhe confere, nos termos do art.º 127 do C.P. Penal - onde se consigna que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador (isto é, convicção devidamente fundamentada, como é o caso, em que o raciocínio conviccional se mostra claramente explanado pelo tribunal “a quo” em sede de fundamentação, inexistindo pois arbitrariedade ou discricionariedade) - haverá que daí extrair que não houve violação do acima referido princípio.
11. Não é essa a convicção do recorrente, o que é postura que tem direito a manter, mas, no caso, não é a sua convicção pessoal que releva, mas sim a do julgador, uma vez que esta se mostra alcançada em perfeito cumprimento das normas legais que regem tal matéria.
12. Diga-se, para além do mais, que como decorre do que supra se deixou já mencionado, a mera circunstância de poderem existir depoimentos parcialmente contraditórios entre si, não é fundamento suficiente para se poder entender que se verifica um erro na apreciação da prova. Efectivamente, este só existirá se, confrontado o tribunal de recurso com tais divergências depoimentais, tenha de concluir que se impõe que outra convicção fosse alcançada, mas não apenas quando se mostra possível que outro fosse o convencimento do julgador.
Ora, mostrando-se a convicção alcançada pelo tribunal “a quo” devidamente fundamentada e assente em elementos probatórios que a suportam, resta afirmar que não existem fundamentos, avançados pelo recorrente, que imponham qualquer alteração à matéria factual dada como provada, que se deve manter intocada.
b. da alteração da pena imposta.
1. O tribunal fundamentou a tipologia e a dosimetria da pena com base nos seguintes considerandos: A determinação concreta da pena faz-se atendendo aos critérios globais vertidos no artigo 71.º, n.º 1 do C. Penal. Deste preceito claramente se extrai que a determinação da medida da pena será feita em função das categorias da culpa e da prevenção, sendo nomeadamente as circunstâncias gerais enunciadas no n.º 2 daquele artigo, relevantes quer para a culpa quer para a prevenção. Resta saber como se combinam estas duas categorias no processo de fixação da sanção penal. Nesta operação, o Tribunal atende, em primeira linha, à culpa do agente, que constitui o fundamento e limite superior e inultrapassável da pena a aplicar, sob pena de, ultrapassando-o, se afrontar a dignidade humana do delinquente. Semelhante limitação resulta do princípio da culpa, que impregna o Código Penal, segundo o qual não há pena sem culpa, nem a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa. Por seu turno, o limite mínimo da moldura concreta há-de ser dado pela necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto. Assim, esse limite inferior decorrerá de considerações ligadas às exigências de prevenção geral, não como prevenção negativa ou de intimidação, mas antes como prevenção positiva ou de integração, já que a aplicação de uma pena visa a protecção de bens jurídicos com um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da validade e vigência da norma infringida. Estão em causa a integração e o reforço da consciência jurídica comunitária e o seu sentimento de segurança face à ocorrida violação da norma. Finalmente, o Tribunal deve fixar a pena concreta a aplicar de acordo com as exigências de prevenção especial, quer na vertente da socialização, quer na de advertência individual de segurança ou inocuização do delinquente (Ver Prof. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pp. 227 e seguintes).
* Aplicando agora as regras sumariamente expostas ao caso que nos ocupa, salienta-se que: - No que à ilicitude respeita, mostra-se esta mediana, atendendo a todas as circunstâncias que levaram ao nefasto desfecho, como já explanado. - A culpa do arguido é moderada, pois embora moldando-se no dolo directo com que actuou, não pode o Tribunal deixar de levar em conta, no que concerne a essa mesma culpa que o arguido se encontrava debaixo de uma situação de stress emocional, como já referimos em sede de fundamentação de facto. Aliás, é bem sintomático, o facto de, imediatamente após os factos, o arguido ter ficado em estado de choque. - As exigências de prevenção geral são medianas, face à ocorrência destes tipos de crime na sociedade. - As exigências de prevenção especial já apresentam alguma expressão, atentos os antecedentes criminais do arguido. Assim, tudo ponderado, entende o Tribunal como justa e equilibrada ao caso uma pena de nove anos e seis meses de prisão.
2. O recorrente apresenta a sua discórdia, com os seguintes fundamentos: 10. O Recorrente está consciente da forte necessidade de se punir com rigor e uniformidade os ilícitos que atentem contra a vida humana. 11. A pena concreta tem como finalidade principal ser um remédio que, não pondo entre parêntesis a censura do facto, potencie a ressocialização do agente do crime. 12. O desiderato da ressocialização, tendo de ser avaliado em concreto, não pode deixar de ter como parâmetro o inconveniente maléfico de uma longa separação do Recorrente da comunidade, especialmente filhos e namorada. 13. Em especial, sendo um adulto jovem, não faz sentido que o Recorrente cumpra uma longa pena de prisão que em nada contribui para a respectiva reintegração social posterior, quando é certo que estava social, familiar e laboralmente inserido. 14. Assim, uma melhor apreciação da prova produzida e uma correcta interpretação das normas legais aplicáveis, impõe que a condenação do Recorrente seja numa pena de período temporal mais curto. 15. Em face do exposto, da melhor apreciação da prova produzida e de uma correcta interpretação das normas legais aplicáveis, a pena a aplicar in casu deverá ser especialmente reduzida. 16. Tal, é o que resulta de uma correcta apreciação dos referidos factos e circunstâncias e a melhor interpretação dos artigos. 40º, 71º e 131º do Código Penal. Verifica-se efectivamente que o Douto Acórdão Recorrido violou o disposto nos artigos 20º, 29º, 32º e 266º da Constituição da República Portuguesa e ainda os artigos 40º, 71º, 77º e 131º, todos do Código Penal.
3. Apreciando.
i. O recorrente não questiona o enquadramento jurídico realizado pelo tribunal “a quo”, que se mostra, aliás, mais benéfico do que o que decorria da imputação constante na acusação (crime de homicídio simples versus crime de homicídio qualificado).
A moldura penal abstracta prevista na lei para o crime de homicídio simples é de 8 a 16 anos de prisão e foi dentro dessa moldura que foi determinada a pena de 9 anos e 6 meses de prisão imposta ao arguido.
ii. A este título, o recorrente aduz o seguinte:
- A sua inserção social, familiar e laboral, sendo que uma longa pena de prisão em nada contribui para a respectiva reintegração;
- O facto de ser um jovem adulto;
- As demais circunstâncias do crime que havia peticionado serem atendidas em sede de alteração da matéria de facto.
Requer, finalmente, uma especial redução da pena que, não obstante, não concretiza.
4. Vejamos então.
i. No que concerne a uma especial redução da pena, pese embora não seja claro se o recorrente pretende fazer apelo à atenuação especial prevista no art.º 72 do C. Penal, a verdade é que tal desiderato se mostra definitivamente arredado, uma vez que se não mostra assente nenhuma das circunstâncias enquadráveis em tal preceito legal. Efectivamente, não se mostram dadas como provadas, não estão presentes, não existem, quaisquer circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
ii. No que respeita à idade do arguido (à data dos factos tinha 39 anos), dificilmente é a mesma enquadrável no conceito de jovem adulto.
Por seu turno, diga-se que, conjugando a mesma com o número e o tipo de crimes por si praticados (de 2008 a 2016 o arguido cometeu nove crimes no total, a saber: de simulação de crime, de furto, de ofensa à integridade física, de dano, de roubo qualificado, de detenção ilegal de arma e três crimes de roubo qualificado, pelos quais foi condenado em penas de multa e de prisão suspensa), o que se retira é o inverso do que afirma, isto é, que as exigências de prevenção especial se mostram aqui com uma expressão acima da média, como aliás o tribunal “a quo” deixou correctamente consignado.
Resulta patente que as suas sucessivas passagens pelo sistema de justiça e as penas que lhe foram impostas, se mostraram manifestamente insuficientes para o impedirem de voltar a delinquir.
iii. No que concerne à invocada reinserção social, a mesma mostra-se mais formal do que substantiva.
De facto, a circunstância de ter um percurso laboral com alguma consistência, assim como apoio e suporte familiar, não só não o impediu de praticar os actos ora em apreciação como, de igual modo, face ao seu percurso criminal anterior, atenta a própria natureza dos bens jurídicos que o arguido violou com o seu cometimento, constata-se que, em termos substantivos, o arguido está longe de se poder considerar como um cidadão paradigmático e respeitador da lei, elementos que caracterizam a genuína inserção social.
A prática deste ilícito não constituiu um mero caso isolado, irrepetível, de lesão de bens jurídicos criminalmente tutelados, por parte do arguido.
iv. Finalmente, no que respeita às demais circunstâncias a que faz referência, estas prender-se-iam com questões de relato do sucedido que não se mostram demonstradas, razão pela qual nada há a seu respeito a decidir.
5. Face ao que se deixa dito e atento todo o circunstancialismo que o tribunal “a quo” aponta, constata-se que a pena encontrada (fixada pouco acima do limite mínimo legal) não se mostra excessiva nem desproporcional, situando-se, seguramente, muito abaixo do limiar da sua culpa (que rondaria, pelo menos, a média da moldura penal, ou seja, cerca de 12 anos).
Para além do mais, há que notar que, a nível de prevenção geral, se mostra especialmente relevante que a pena a impor ao arguido sirva de advertência para os cidadãos em geral de que as questões relacionadas com este tipo de matérias e nestes contextos (conflitos familiares) não podem, de forma alguma, ser decididas ou servirem de justificação, para um comportamento idêntico ao por si protagonizado.
6. Entende-se, pois, ser de manter a pena imposta ao arguido, pela prática de crime de homicídio.
iv – decisão.
Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido eF, mantendo-se a decisão recorrida.
Condena-se o recorrente no pagamento da taxa de justiça de 4 UC.
Lisboa, 22 de Abril de 2020
Margarida Ramos de Almeida
Ana Paramés