AUTORIDADE DO CASO JULGADO
EMBARGOS À EXECUÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
FIANÇA
RENOVAÇÃO
Sumário

I – Se a validade da fiança prestada no contrato de arrendamento já foi apreciada na decisão de mérito proferida no âmbito da oposição à execução, que é anterior e se tonou definitiva, tal não obsta à renovação da discussão na ação declarativa posterior, sobre a extinção da fiança por ausência de nova convenção quanto aos limites temporais, por força do efeito preclusivo do caso julgado absoluto, nos termos do artigo 580º nº 1 e 732º nº 5 do C.P.C.

II – Se não foi estipulada nova convenção após o decurso do prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação do contrato, a fiança extinguiu-se por ter decorrido a limitação temporal imposta no nº 2 do artigo 655º do C.C., na versão ainda aplicável ao arrendamento celebrado.

Texto Integral

Acordam na 6ª Seção do Tribunal da Relação de Lisboa:

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RELATÓRIO

“Fundação M….” intentou ação declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra A…, AR, ARR.., J…e AJ.., pedindo a condenação solidária dos réus no pagamento da quantia de 22.559,00€, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos à taxa de juros desde a data de vencimento de cada renda e, quanto ao valor da indemnização, desde a citação, até integral pagamento.

Para tanto alega, em síntese, que deu de arrendamento por 500,00€ mensais um andar na avenida (…), em Almada, sendo arrendatários os dois primeiros réus e fiadores o 3º réu e a sua, entretanto falecida, esposa, de que são herdeiros os 2º a 5º réus. A ré entregou o locado em 30 de dezembro de 2016, mas não pagava rendas desde janeiro de 2013. Aquando da entrega, o locado encontrava-se danificado, e a sua reparação tem um custo de 4.059,00€.

Na contestação, os 2º a 5º réus invocam, a título de exceção, a nulidade da cláusula do contrato de arrendamento que estabelece uma fiança sem limite de prazo. Se assim não se entender, existe abuso de direito por parte da autora quanto aos fiadores, face à sua prolongada inércia perante o incumprimento pela arrendatária. Finalmente, os fiadores não foram interpelados, não se lhes podendo exigir juros de mora. Impugnam ainda os danos no locado.

A 1ª ré também contestou, alegando que foi devido a dificuldades financeiras que deixou de pagar as rendas. 

Foi proferido despacho saneador. Definiu-se o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova.

Realizou-se audiência final e foi elaborada a sentença que julgou a ação parcialmente procedente, com o seguinte dispositivo:

«a) Condeno a Ré A… no pagamento das rendas vencidas e não pagas no valor total de 18.500,00€ (dezoito mil e quinhentos euros), bem como nos juros de mora à taxa de juros de 4%, desde a data de vencimento de cada renda, isto é, desde o dia 1 de novembro de 2013 e os dias 1 dos meses subsequentes até 1 de novembro de 2016, sobre o capital de quinhentos euros de cada uma das rendas e até efetivo pagamento.

b) Condeno a Ré A…. no pagamento de indemnização do valor da reparação das deteriorações do locado provadas nas alíneas 2) a 5), ou seja, no valor da substituição das fitas dos estores,  da substituição do vidro de um armário, da reparação do botão do autoclismo ou, não sendo esta possível, da sua substituição e da tapagem dos buracos nas paredes da fração e subsequente pintura das mesmas, em valor a liquidar no incidente próprio previsto no artigo 358º, n.º 2 do CPC, bem como juros de mora à taxa de juros de 4%, desde a citação para o incidente de liquidação.
 
c)  Absolvo os réus AR, ARR… J… e AJ… do pedido.»

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Não se conformando, a autora interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação da sentença e provimento integral dos pedidos formulados.


A apelante formula as seguintes conclusões das alegações de recurso:

«1. Na Sentença sob recurso, o Tribunal a quo considerou extinta a fiança prestada no Contrato de Arrendamento dos autos, após o decurso de cinco anos desde o início da primeira renovação, nos termos do n.º 2 do artigo 655.º do Código Civil, por as partes não terem fixado o número de períodos de renovação do contrato abrangidos pela fiança, ou seja, a partir de 31 de janeiro de 2014.
2. Acontece, porém, que a validade da fiança aqui em discussão já foi objeto de apreciação e decisão por parte do Juízo de Execução de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, e do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito processo n.º 6363/13.0TBALM-A, tendo ambas as instâncias concluído pela validade e manutenção da cláusula inerente à fiança prestada no contrato de arrendamento dos presentes autos (cfr. Sentença e Acórdão juntas como docs. n.ºs 1 e 2). 
3. A este respeito, concluiu a Veneranda Relação de Lisboa que a cláusula ora em análise «estipulada no tempo em que estava em vigor o art.º 655, do CC, face ao regime supletivo previsto neste artigo, era válida, mantendo-se válida face às normas vigentes atualmente, não sendo nula, não se tendo verificado a sua extinção, sendo certa e determinável por referência às obrigações que decorrem do contrato em que foi estipulada». 
4. As decisões proferidas pelas sobreditas instâncias já transitaram em julgado.
5. Ora, no processo n.º 6363/13.0TBALM-A, os sujeitos, o pedido e a causa de pedir eram os mesmos do caso sub judice, discutindo-se ali igualmente a validade da Cláusula Décima Segunda do Contrato de Arrendamento e, portanto, a responsabilidade dos RR., ali Executados, quanto às obrigações emergentes do arrendamento.
6. Por conseguinte, formou-se caso julgado quanto à questão da validade e manutenção da cláusula inerente à fiança prestada.
7. Como é consabido, o caso julgado constitui exceção dilatória, de conhecimento oficioso, que, a verificar-se, obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa e conduz à absolvição da instância. 
8. No caso vertente, o caso julgado determina a improcedência da matéria de exceção invocada pelos RR., ora Apelados, e a sua condenação no pedido, a título solidário com a 1.ª R.
9. Por conseguinte, carece a decisão em crise de ser substituída por douto Acórdão que julgue improcedente a exceção deduzida pelos RR. e reconheça a validade e a manutenção da cláusula da fiança e, em consequência, condene os RR. no pedido, a título solidário com a 1.ª R.
SEM PRESCINDIR
10. Resultou assente nos autos que, no contrato de arrendamento, o 2.º R. e a esposa, M…, declaram constituir-se fiadores e, renunciando ao benefício da excussão prévia, assumiram-se solidariamente com os arrendatários o cumprimento de todas as cláusulas do mesmo, subsistindo a fiança ainda que houvesse alterações da renda fixada e mesmo depois do prazo de 5 anos previsto no n.º 2 do artigo 655.º do Código Civil (Cfr. Facto F) da matéria assente constante da Sentença de fls….).
11. O artigo 655.º do Código Civil tinha natureza supletiva, uma vez que apenas tinha aplicação quando nada fosse estipulado em sentido diferente, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, nos termos do artigo 405.º do Código Civil.
11. O artigo 655.º do Código Civil tinha natureza supletiva, uma vez que apenas tinha aplicação quando nada fosse estipulado em sentido diferente, ao abrigo do princípio da liberdade contratual, nos termos do artigo 405.º do Código Civil. 
12. Ou seja, nada impedia que o fiador assumisse o risco – pensado e querido – inerente à fiança.
13. No caso vertente, é inequívoco que os fiadores quiseram logo, de forma livre e consciente, abranger com a mesma as eventuais renovações do contrato, bem como as alterações de renda. 
14. O que significa que os fiadores, prevendo a aplicação do disposto no artigo 655.º, n.º 2, do Código Civil, quiseram afastá-la, não querendo ponderar mais, opção que, à data, lhes era permitido, atento o carácter supletivo daquela norma.
15. Por conseguinte, a cláusula aposta no contrato é, ab initio, válida, sendo perfeitamente determinável e certa, pelo que a fiança não se tem por extinta nem se tem por nula.
16. No mesmo sentido, já concluiu o Tribunal da Relação do Porto (Cfr. Acórdão de 30-032009, processo n.º 906/08.9TJPRT.P1, acessível em www.dgsi.pt) e o Tribunal da Relação de Lisboa (Cfr. Acórdão de 19-12-2006, processo n.º 9696/2006-2, acessível em www.dgsi.pt).
17. Reiterando-se que a cláusula aqui em discussão já foi objeto de apreciação e decisão por parte do Juízo de Execução de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, e do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito processo n.º 6363/13.0TBALM-A, tendo ambas as instâncias concluído pela validade e manutenção da cláusula inerente à fiança prestada no contrato de arrendamento dos presentes autos (cfr. Sentença e Acórdão juntos como docs. n.ºs 1 e 2). 
18. Em conformidade com supra exposto, a cláusula inerente à fiança prestada mantinha-se, à data dos factos em discussão, plenamente válida e eficaz.
19. Por conseguinte, carece a decisão em crise de ser substituída por douto Acórdão que julgue improcedente a exceção deduzida pelos RR. e reconheça a validade e a manutenção da cláusula da fiança e, em consequência, condene os RR. no pedido, a título solidário com a 1.ª R.
SEM PRESCINDIR
20. Ainda que assim não se entendesse e se considerasse extinta a fiança prestada, certo é que a extinção teria ocorrido, de acordo com a douta Sentença em crise, no dia 31 de janeiro de 2014.
21. Ora, à data de 31 de janeiro de 2014, já se encontravam em dívida as rendas vencidas em dezembro de 2013 e em janeiro de 2014, no montante global de €1.000,00.
22. Pelo que, ainda que a fiança se tivesse por extinta a 31 de janeiro de 2014, os RR. sempre seriam responsáveis, a título solidário, pelo pagamento à A. das rendas vencidas em dezembro de 2013 e em janeiro de 2014, razão pela qual não podiam os RR. ter sido absolvido totalmente do pedido.
23. Por conseguinte, carece a decisão em crise de ser substituída por douto Acórdão que, em condene os RR. no pagamento à A., a título solidário, das rendas vencidas em dezembro de 2013 e em janeiro de 2014, no montante global € 1.000,00, acrescidas de juros de mora, contabilizados à taxa legal, desde a data de vencimento de cada renda, até integral pagamento.
 
A decisão sob censura violou, entre outros, os seguintes preceitos legais:
 
▪ Artigo 581.º do C.P.C.;
▪ Artigo 405.º do Código Civil.
Nestes termos e nos mais de Direito, deverá o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa dar provimento ao presente recurso e, por via dele, revogar a Sentença recorrida por douto Acórdão favorável in totum às Alegações da Apelante, nos termos acima melhor aduzidos,
Fazendo-se, assim, a habitual e necessária JUSTIÇA!»

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Foram oferecidas contra-alegações pelos réus, pugnando pela manutenção da sentença recorrida, com as seguintes conclusões:

a). De acordo com o art.º 573.º, n.º 2 do CPC depois da contestação só podem ser deduzidas exceções que sejam supervenientes ou de que se deva conhecer oficiosamente;
b). Dispõe o art.º 588.º, n.º 1 do CPC que os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão;
c). No n.º 2 do mesmo art.º do CPC dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência;
d). No n.º 3 do citado art.º do CPC o novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento, nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia, na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores;
e). De acordo com os documentos juntos pela Autora, no processo n.º 6363/13.0TBALM-A a sentença foi proferida em 07/07/2016 e o Acórdão em 28/06/2018;
f). A Autora foi notificada da sentença no dia 11/07/2016 e do Acórdão no dia 03/07/2018;
g). A Autora deu entrada dos presentes autos no dia 02/03/2017, já depois de ter conhecimento da sentença proferida no processo n.º 6363/13.0TBALMA;
h). Os Réus contestaram a presente ação no dia 12/04/217, em que alegaram a extinção da fiança;
i). No dia 05/03/2018 a Autora apresentou um requerimento a responder às exceções deduzidas pelos Réus na contestação, sem nada dizer quanto à sentença proferida no processo n.º 6363/13.0TBALM-A;
j). Por douto despacho 31/01/2019, a fls., foi dispensada a audiência prévia e designada data para a realização da audiência final;
k). De acordo, com o citado art.º 588.º, n.º 3 al. c), do CPC a Autora deveria no prazo de 10 dias posteriores à notificação da data designada data para a realização da audiência final apresentar articulado em que deduzisse o, alegado, caso julgado com fundamento na sentença proferida em 07/07/2016 ou do Acórdão proferido em 28/06/2018;
l). Porém, não o fez, vindo apenas em sede de recurso, manifestamente fora de prazo, deduzir a exceção do caso julgado;
m). Improcede, por extemporânea, a dedução do caso julgado;
n) Na execução a que se refere o processo n.º 6363/13.0TBALM-A a exequente, ora Autora, reclamou o pagamento das rendas referentes aos meses de janeiro, fevereiro, março, abril, maio, junho, julho, agosto, setembro, outubro e novembro de 2013;
o) Foi relativamente a esses meses de renda que as decisões proferidas no processo n.º 6363/13.0TBALM-A se pronunciaram quanto à fiança;
p) Nos presentes autos, a Autora reclama rendas de dezembro de 2013 a dezembro de 2016 e reparação de danos, alegadamente, existentes no locado;
q) O processo n.º 6363/13.0TBALM-A e os presentes autos são ações distintas com períodos de rendas distintas e obras/danos;
r) A demanda nos presentes autos é sobre factos diferentes dos discutidos no processo n.º 6363/13.0TBALM-A;
s) Não há identidade de pedidos e não há identidade de causa de pedir; t) As decisões proferidas nos processos n.º 6363/13.0TBALM-A não se pronunciaram sobre a validade da fiança relativamente aos meses de dezembro de 2013 a dezembro de 2016 e à reparação de danos, alegadamente, existentes no locado;
u) Improcede a dedução do caso julgado;
v) O contrato foi celebrado com duração de cinco anos, prorrogável por três anos, com início no dia 1 de fevereiro de 2004 – cfr. cláusula 1.ª do contrato;
w) A cláusula 12.º do contrato de arrendamento não fixou qualquer limite para a obrigação dos fiadores além do limite a que se referia o art.º 655.º n.º 2 do CC (entretanto revogado);
x) De acordo com o art.º 655.º n.º 2 do CC, em vigor à data da celebração do contrato, “Obrigando-se o fiador relativamente aos períodos de renovação, sem se limitar o número destes, a fiança extingue-se, na falta de nova convenção, logo que haja alteração da renda ou decorra o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação”;
y) As partes, no contrato, não limitaram o número de períodos de renovação abrangidos pela fiança, nem o convencionaram posteriormente;
z) Deste modo, e como as partes não fixaram o número de períodos de renovação abrangidos pela fiança, e como resulta do art.º 655.º n.º 2 do CC, a fiança extingue-se decorridos que sejam cinco anos desde o início da primeira prorrogação;
aa) Consequentemente, a obrigação dos Réus, na qualidade de fiadores, extinguiu-se decorridos cinco anos sobre a primeira renovação (ocorrida em 1 de fevereiro de 2009), isto é, em 1 de fevereiro de 2014;
bb) Em caso de procedência do recurso, o que não se admite, a decisão não poderia ser a condenação dos Réus, porque como refere a douta sentença que a Autora censura, da conclusão da extinção da fiança resulta, sem mais, a absolvição dos 2.º a 5.º Réus do pedido, ficando prejudicada a apreciação das restantes exceções por estes invocadas;
cc) E entre estas, o abuso de direito deduzido pelos Réus e provado pelo depoimento de parte do procurador da Autora, (..)pela testemunha da Autora, (..) que o Advogado da Autora é o Dr. (..);
dd) Que ao mesmo tempo é advogado da Ré e inquilina, A.., no processo n.º 2199/08.9TBCSC, Juízo de Família e Menores, Juiz 2, conforme documentos juntos aos presentes autos a fls.;
ee) A única explicação para que a Ré tenha estado desde janeiro de 2013 a dezembro de 2016 sem pagar rendas e sem ser alvo de ação de despejo é o Advogado da senhoria (ora Autora) e da Ré A..ser o mesmo;
ff) O que não lhe permitia dar entrada de uma ação de despejo contra a sua cliente;
gg) Preferindo, a Autora em manifesto abuso de direito, deixar uma inquilina sem pagar rendas 48 meses, o que não é de todo normal, para as tentar cobrar dos fiadores. Como se os fiadores tivessem também que suportar a inação da senhoria, Autora, durante 48 meses.
 
Nestes termos, deverá o recurso apresentado pela Autora ser julgado improcedente, por não provado, e ser a sentença do tribunal a quo confirmada.»


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Obtidos os vistos legais, cumpre apreciar.

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Questões a decidir:

O objeto e o âmbito do recurso são delimitados pelas conclusões das alegações, nos termos do disposto no artigo 635º nº 4 do Código de Processo Civil. Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Similarmente, não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas (Abrantes Geraldes, Recursos no N.C.P.C., 2017, Almedina, pág. 109).

Importa apreciar unicamente as seguintes questões:

a). Se o tribunal recorrido incorreu em erro de interpretação e aplicação do disposto nos artigos 405º e 655º nº 2 do C. Civil quanto à apreciação da validade da fiança prestada, bem como violou a autoridade do caso julgado?

b). Subsidiariamente, caso se considere extinta a fiança, se são ainda devidas as rendas vencidas em dezembro de 2013 e em janeiro de 2014 pelos motivos invocados?


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FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade provada e não provada consignada na sentença recorrida é a seguinte:

«
2.1.1. Factos Assentes
Estão assentes por não impugnados, ou por resultarem de documento autêntico, os factos seguintes:
A) No dia 23 de janeiro de 2004, a autora deu de arrendamento a A.. e AR  o terceiro andar direito do prédio urbano sido na avenida (…)em Almada, inscrito na matriz sob o artigo 736, sendo as cláusulas do contrato as que constam da sua cópia junta a fls. 7 a 8 verso.
B) O arrendamento foi feito pelo prazo de 5 anos, com início em 1 de fevereiro de 2004, sendo prorrogável por períodos sucessivos de 3 anos (cláusula 1ª).
C) Foi estipulada a renda mensal de 500,00€, a pagar no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que respeita (cláusula 2ª).
D)
No momento da celebração do contrato, o locado encontrava-se em normais condições de conservação, como se fez constar na cláusula sétima do contrato de arrendamento.
E) Ficou estabelecido na cláusula nona do contrato de arrendamento que, findo o mesmo, os arrendatários tinham a obrigação de devolver o locado em bom estado de conservação.
F) O réu ARR e a sua esposa (…) outorgaram o contrato de arrendamento como fiadores e principais pagadores, assumindo solidariamente com os 1º e 2º réus o cumprimento de todas as cláusulas do mesmo, subsistindo a fiança ainda que haja alterações da renda fixada e mesmo depois do prazo de 5 anos previsto no n.º 2 do artig0 655º do Código Civil, renunciando ao benefício da excussão prévia.
G) Desde janeiro de 2013 que não mais foram pagas as rendas do locado.
H) Em 1 de abril de 2012 faleceu a fiadora M...
I) Foram habilitados como herdeiros da falecida fiadora AR, ARR.., J… e AJ....
J) Por sentença proferida em 21 de setembro de 2009, transitada em julgado em 22 de outubro de 2009, no processo de divórcio litigioso n.º 2199/08.9TBCSC do 3º Juízo de Família e Menores do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, foram homologados os acordos celebrados entre as partes, AR e A…, designadamente o seguinte: “Quanto ao destino da casa de morada de família sita na Avenida (…), Almada, que a mesma seja destinada à habitação da ré, transferindo-se para esta o arrendamento da mesma, pelo que se requer que seja notificado o senhorio – Fundação M..) que o arrendamento se transfere para a Ré mulher”; tendo igualmente sido ordenada a notificação do senhorio.
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2.1.2. Factos Provados
Provou-se que: 
1) Em 30 de dezembro de 2016, a ré A… entregou as chaves do locado à autora.
2) Na data referida em 1), as fitas dos estores encontravam-se partidas/rasgadas.
3) Na data referida em 1), existia na fração um vidro partido, de um armário.
4) O botão que aciona o autoclismo estava avariado, na data referida em 1).
5) Na data referida em 1) existiam diversos buracos nas paredes da fração, efetuadas para suporte de cortinados, candeeiros, TV.
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2.1.3. Factos Não Provados
Não se provou:
a) Que tenham sido retiradas do locado duas portas interiores – a da cozinha e a da despensa – sem conhecimento e autorização da autora ou que tenham sido retiradas com autorização e entregue ao filho do Sr. (..).
b) Que os estores, propriamente ditos, estivessem estragados/danificados aquando da restituição da fração à autora.
c) Que a ré tenha danificado a instalação elétrica existente na fração, e que esta apresentasse na data referida em 1) cabos elétricos descarnados, cortados e sem ligação; ou que a ré tenha mandado efetuar uma instalação de TV por cabo na cozinha.
d) Que na data indicada em 1) existissem condensações resultantes de falta ou deficiente arejamento do imóvel.
e) Que o vidro partido seja de uma janela; ou já se encontrasse nesse estado aquando do arrendamento, tendo sido colado com fita-cola.
f) Que a autora tenha de despender 3.300,00€ na reparação da fração, mais concretamente, na reparação das situações identificadas em 2) a 5).
g) Que a ré tenha comunicado ao procurador da autora danos na fração, designadamente de estores e vidros partidos, sem que tenha havido qualquer reparação/substituição.
h) Que a autora tenha mandado efetuar uma instalação duma calha com fios elétricos e seis tomadas.
 i) Que as janelas da casa sejam muito antigas, sem isolamento, e com frechas que permitem a passagem de frio, chuva e humidade.»
j) Que o telhado nunca tenha sido alvo de qualquer reparação e permita que chova nas escadas do prédio e na marquise junto à cozinha, que chegava a acumular mais de dois centímetros de água.»


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FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

a). Se o tribunal recorrido incorreu em erro de interpretação e aplicação do disposto nos artigos 405º e 655º nº 2 do C. Civil quanto à apreciação da validade da fiança prestada, bem como violou a autoridade do caso julgado?


Em sede de Contestação, os 2.º a 5.º Apelados sustentaram, a título de exceção, a extinção da fiança, constituída nos termos da Cláusula Décima Segunda do Contrato de Arrendamento, após o decurso de cinco anos desde o início da primeira renovação, nos termos do n.º 2 do artigo 655.º do Código Civil, por as partes não terem fixado o número de períodos de renovação do contrato abrangidos pela fiança.  Entendimento que o Tribunal a quo acolheu, absolvendo os 2.º a 5.º Apelados do pedido.

A apelante discorda deste entendimento, desde logo, porque a validade da cláusula aqui em discussão já foi objeto de apreciação e decisão por parte do Juízo de Execução de Almada, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, e do Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do processo n.º 6363/13.0TBALM-A, tendo ambas as instâncias concluído pela validade e manutenção da cláusula inerente à fiança prestada no contrato de arrendamento dos presentes autos (cfr. Sentença e Acórdão que aqui se juntam como docs. n.ºs 1 e 2). O Tribunal da Relação de Lisboa concluiu que a cláusula ora em análise «estipulada no tempo em que estava em vigor o art.º 655, do CC, face ao regime supletivo previsto neste artigo, era válida, mantendo-se válida face às normas vigentes atualmente, não sendo nula, não se tendo verificado a sua extinção, sendo certa e determinável por referência às obrigações que decorrem do contrato em que foi estipulada». Ambas as decisões acima mencionadas já transitaram em julgado. Em conformidade, a apelante sustenta que se formou caso julgado quanto à validade e manutenção da cláusula inerente à fiança prestada.

A primeira questão que se coloca é a de averiguar da tempestividade da dedução da exceção do caso julgado, suscitada pelos apelados nas contra-alegações de recurso, nos seguintes termos:

«Sem prejuízo de se entender que não se verifica a exceção do caso julgado, importa em primeiro lugar apurar o prazo para a dedução do caso julgado.
De acordo com o art.º 573.º, n.º 2 do CPC depois da contestação só podem ser deduzidas exceções que sejam supervenientes ou de que se deva conhecer oficiosamente.
E dispõe o art.º 588.º, n.º 1 do CPC que os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.
E no n.º 2 do mesmo art.º do CPC dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência. 
 
E no n.º 3 do citado art.º do CPC que o novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido:  a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento;  b) Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia;  c) Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores.
Vejamos então em que data a Autora teve conhecimento da sentença e do Acórdão proferidos no processo n.º 6363/13.0TBALM-A.
De acordo com os documentos juntos pela Autora, naqueles autos a sentença foi proferida em 07/07/2016 e o Acórdão em 28/06/2018.
A Autora foi notificada da sentença no dia 11/07/2016 e do Acórdão no dia 03/07/2018 – docs. 1 e 2
A Autora deu entrada dos presentes autos no dia 02/03/2017, já depois de ter conhecimento da sentença proferida no processo n.º 6363/13.0TBALM-A.
Os Réus contestaram a presente ação no dia 12/04/2017, em que alegaram a extinção da fiança.
No dia 05/03/2018 a Autora apresentou um requerimento a responder às exceções deduzidas pelos Réus na contestação, sem qualquer referência à sentença proferida no processo n.º 6363/13.0TBALM-A.
Por douto despacho 31/01/2019, a fls., foi dispensada a audiência prévia e designada data para a realização da audiência final.
Ora, e de acordo, com o citado art.º 588.º, n.º 3 al. c), do CPC a Autora deveria no prazo de 10 dias posteriores à notificação da data designada data para a realização da audiência final apresentar articulado em que deduzisse o, alegado, caso julgado com fundamento na sentença proferida em 07/07/2016 ou do Acórdão proferido em 28/06/2018.
Porém, não o fez, vindo agora em sede de recurso, manifestamente fora de prazo, deduzir a exceção do caso julgado.»

A litispendência ou o caso julgado são exceções dilatórias, de conhecimento oficioso e obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa, conforme decorre do disposto nos artigos 577º alínea i), 576º n 2 e 578º do C.P.C.

Nesta medida, não está em causa a apreciação de um articulado superveniente, necessariamente associado à ocorrência de factos suscetíveis de assumirem essa natureza, nos termos do artigo 588º e seguintes do C.P.C., tal como é equacionado pelos apelados, mas sim o conhecimento de uma exceção dilatória, que constitui um verdadeiro pressuposto processual, e que pela primeira vez foi introduzida em sede de recurso, com a junção por parte da apelante dos documentos com a sentença e acórdão proferidos no processo n.º 6363/13.0TBALM-A .

Ora, dispõe o art.º 651 nº1 do C.P.C. que “As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425º ou no caso da junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na primeira instância.”
Por sua vez, o art.º 425 do C.P.C., consigna que “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.”, norma esta excecional, semelhante à prevista no nº3 do art.º 423, no que se reporta à fase de junção de documentos em sede de aferição da prova em julgamento.
Sendo esta uma fase excecional, a junção de documentos em sede de recurso, depende de alegação por parte do apresentante de uma de duas situações:
- a impossibilidade de apresentação deste documento em momento anterior ao recurso. A superveniência em causa, pode ser objetiva ou subjetiva: é objetiva quando o documento foi produzido posteriormente ao momento do encerramento da discussão; é subjetiva quando a parte só tiver conhecimento da existência desse documento depois daquele momento (Ac. Tribunal Relação de Coimbra de 20/01/2015, proferido no proc. nº 2996/12.0TBFIG.C1).

- o ter o julgamento efetuado na primeira instância, introduzido na ação, um elemento adicional, não expectável, que tornou necessário esta junção, até aí inútil. Pressupõe esta situação, todavia, a novidade da questão decisória justificativa da junção pretendida, como questão operante (apta a modificar o julgamento) só revelada pela decisão, sendo que isso exclui que a decisão se tenha limitado a considerar o que o processo já desde o início revelava ser o thema decidendum. Com efeito, como refere expressivamente António Santos Abrantes Geraldes, “podem (…) ser apresentados documentos quando a sua junção apenas se tenha revelado necessária por virtude do julgamento proferido, maxime quando este se revele de todo surpreendente relativamente ao que seria expectável em face dos elementos já constantes do processo.” (Recursos no Novo Código de Processo Civil, p. 184)

No caso vertente, não se verifica uma superveniência objetiva ou subjetiva, pois a decisão judicial proferida no processo n.º 6363/13.0TBALM-A tornou-se definitiva antes da realização do julgamento e necessariamente conhecida por ambas as partes nessa altura, não tendo a apelante apresentado qualquer justificação para a junção do documento apenas em sede de recurso. Mas é certo que se trata de uma questão nova suscetível de influir de uma forma decisiva na solução jurídica consagrada pelo tribunal de 1ª Instância, como ocorrência posterior, pelo que o documento deve ser admitido, com a condenação do apresentante em multa, por força do disposto no nº 3 e nº 2 do artigo 423º citado. Assim, admite-se o documento e condena-se a ora apelante na multa de 2 UC’S.

Conforme estatui o artigo 580º nº 1 do C.P.C., as exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção de caso julgado. Segundo dispõe o artigo 581º do C.P.C., repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto: aos sujeitos (isto é quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica); ao pedido (isto é, quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico, isto é, do mesmo princípio gerador do direito, da mesma sua causa eficiente).

Quer a exceção da litispendência, quer a exceção de caso julgado, têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer, ou de reproduzir, uma decisão anterior (nº 2 do artigo 580º do C.P.C.). Importa ainda precisar os efeitos e alcance da figura jurídico processual do caso julgado, tendo presente que, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados nos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º (artigo 619º nº 1 do C.P.C.) e a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (artigo 621º do C.P.C.).

Na situação presente, e tal como é assinalado pelos apelados, na «execução a que se refere o processo n.º 6363/13.0TBALM-A a exequente, ora Autora, reclamou o pagamento das rendas referentes aos meses de Janeiro, Fevereiro, Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 2013 – doc. 3… Foi relativamente a esses meses de renda que as decisões proferidas se pronunciaram quanto à fiança… Nos presentes autos a Autora reclama rendas de dezembro de 2013 a dezembro de 2016 e reparação de danos, alegadamente, existentes no locado…. O processo n.º 6363/13.0TBALM-A e os presentes autos são ações distintas com períodos de rendas distintas e obras… A demanda nos presentes autos é sobre factos diferentes dos discutidos no processo n.º 6363/13.0TBALM-A. Não há identidade de pedidos e não há identidade de causa de pedir.»
           
No entanto, na oposição à execução apresentada no processo n.º 6363/13.0TBALM-A, foi suscitada pelo aí embargante/executado (ora apelado), na qualidade de fiador, a validade da fiança prestada, face à cláusula 12ª do contrato de arrendamento, que não fixou qualquer limite para a obrigação do fiador, tornando «a fiança incerta, ilimitada e indeterminável». Esta questão, que constituiu um dos fundamentos esgrimidos pelo embargante na oposição à execução, foi expressamente apreciada pelo tribunal de primeira instância, sufragando o entendimento de «que as partes afastaram a aplicação da norma do artigo 655º nº 2 do C.C., razão pela qual a cláusula aposta no contrato, ab initio, é válida, sendo perfeitamente determinável, certa e passível de determinação, donde a fiança não se ter extinguido nem, muito menos, se ter por nula». Os embargos foram consequentemente julgados improcedentes, com o reconhecimento expresso na decisão de que «o título executivo apresentado nesta ação é válido contra o ora embargante, na qualidade de fiador».

O Tribunal da Relação de Lisboa concluiu, por seu turno, que a cláusula ora em análise «estipulada no tempo em que estava em vigor o art. 655, do CC, face ao regime supletivo previsto neste artigo, era válida, mantendo-se válida face às normas vigentes atualmente, não sendo nula, não se tendo verificado a sua extinção, sendo certa e determinável por referência às obrigações que decorrem do contrato em que foi estipulada». No entanto, o tribunal de 2ª Instância concedeu provimento ao recurso interposto, «extinguindo a execução contra o recorrente», com base na ausência, em relação ao fiador, das «comunicações exigíveis, por equiparação à posição da arrendatária, para se formar o título executivo do artigo 14º-A do NRAU», tendo concluído que «não se formou título executivo contra o fiador».
Importa, assim, precisar os efeitos e alcance da figura jurídico processual do caso julgado, tendo presente que, transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados nos artigos 580º e 581º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696º a 702º (artigo 619º nº 1 do C.P.C.) e a sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (artigo 621º do C.P.C.).

Com efeito, partindo sempre do pressuposto da prévia existência de uma decisão que resolveu uma questão que entronca na relação material controvertida apreciada, ou que versou sobre a relação processual constituída, pretende-se evitar que essa mesma questão venha mais tarde a ser validamente definida, em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal, nem sempre se torna claro precisar o concreto alcance do caso julgado formado (Acórdãos do S.T.J, de 20.06.2012, de 15.11.2012, de 21.03.2012, no sítio da internet do IGFEJ ).

Impõe-se, por consequência, distinguir entre a exceção dilatória de caso julgado – pressupondo o confronto de duas ações (uma delas contendo uma decisão já transitada em julgado), e a tríplice identidade entre ambas já descrita (de sujeitos, de causa de pedir e de pedido) -, que visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda ação, por forma a evitar a repetição de causas. E a força e autoridade de caso julgado – decorrente de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo sobre a matéria em discussão -, que se prende com a sua força vinculativa, visando o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito, e que pode funcionar independentemente da tríplice identidade exigida pela exceção. Pressupõe apenas que a decisão de determinada questão não pode voltar a ser discutida, pois é «entendimento dominante que a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado» (Acórdão do S.T.J. de 21.03.2012, já citado). 
Consequentemente, «o trânsito em julgado de uma qualquer sentença de mérito é suscetível de produzir outros efeitos, mais difusos, mas não menos importantes quando se trata de relevar os valores da certeza e da segurança jurídica que qualquer sistema deve buscar e proteger» (Acórdão do S.T.J. de 02.10.2011, proferido no processo nº1999.11.7TBGMR.G1.S1.6B, disponível https://jurisprudencia.csm.org.pt/). «Em suma, a autoridade do caso julgado implica, independentemente da verificação de uma tríplice identidade integral, o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreva, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa» (Ac. S.T.J. de 27.09.2018, proferido no processo nº10248.16.0T8PRT.P1.S1.E3, no mesmo sítio da internet).

Neste segundo caso (de força e autoridade do caso julgado) «não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressuposto da decisão» (Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, pág. 579).

Por exemplo, se «numa ação de condenação o réu for condenado a entregar certa coisa ao autor, a sentença proferida, uma vez transitada, obstará a que, em nova ação proposta pelo vencedor para obter a indemnização do dano proveniente da falta de cumprimento da obrigação de entrega, o réu volte a levantar a questão da existência desta obrigação. Essa questão prejudicial está definitivamente julgada» (Antunes Varela, Sampaio e Nora, J.M. Bezerra, obra citada, p.309, em nota).

 No tocante aos efeitos extraprocessuais dos embargos, o N.C.P.C, introduziu o nº 5 ao artigo 732º, um preceito novo, estatuindo que para além dos efeitos sobre a instância executiva, a decisão de mérito proferida nos embargos à execução constitui, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda. «A consagração desta norma põe termo à querela surgida a este respeito no domínio da lei anterior, onde se previa o processamento da oposição à execução como processo sumário, menos garantístico, independentemente do valor em discussão» (Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao N.C.P.C., Vol. II, pág. 253)

No Acórdão do S.T.J de 04.04.2017 (disponível no sítio da internet do IGFEJ) é referido a propósito da natureza processual da oposição à execução, não como uma contestação ao pedido executivo (e, assim, não se lhe aplica a regra do nº 1 do art.º 573º do C.P. Civil), mas como uma petição de uma ação declarativa autónoma cujo objeto é definido pelo executado (valendo cada um dos fundamentos materiais invocados como verdadeiras causas de pedir), o seguinte:
«Diferentes serão as coisas se o executado enveredar pela dedução de oposição à execução, e a oposição for objeto de decisão de mérito. Pois que nos termos do nº 5 do art.º 732º do C.P. Civil atual (que veio consagrar um princípio que já correspondia a uma corrente de opinião bem estabelecida; v. a propósito Jorge de Almeida Esteves, Themis, nº 18, pp. 47 e seguintes), a decisão de mérito proferida na oposição constituirá, nos termos gerais, caso julgado quanto à existência, validade e exigibilidade da obrigação exequenda (esta norma, aliás, confirma a contrario a ideia de que a decisão simplesmente de forma - a que incide sobre a relação processual - não se impõe senão na oposição). Mas se, por qualquer razão, não chega a haver decisão de mérito na oposição à execução que o executado efetivamente apresentou, então nada impedirá que este venha posteriormente (e à semelhança do que sucederia no processo declarativo), em nova ação, renovar a discussão sobre a existência da obrigação exequenda que foi atuada em seu prejuízo na execução, e a extrair daí as pertinentes consequências reintegrativas do seu património (tudo sem prejuízo da eficácia ou validade do processo executivo). Nesta hipótese, não há qualquer caso julgado material a levar em conta, e só este imporia a sua força obstativa na ação subsequente.»
 
Na oposição à execução apresentada no processo n.º 6363/13.0TBALM-A pelo ora apelado, na qualidade fiador, a questão da nulidade da fiança prestada foi objeto de apreciação, tendo ambas as instâncias concluído pela respetiva improcedência, por entenderem que a cláusula 12ª aposta no contrato era válida face às normas vigentes à época, não contrariando o disposto no artigo 1076º nº 2 do NRAU e artigo 655º, nº 2 do C.C., ou seja, a fiança era certa e determinável por referência às obrigações decorrentes do contrato em que foi estipulada.

No entanto, no âmbito do recurso interposto, os embargos foram julgados improcedentes, com a revogação do decidido nessa parte pelo tribunal de 2ª instância, mas a questão da validade da fiança não foi alterada. O fundamento que determinou essa decisão de procedência dos embargos foi, não a questão da extinção ou validade da fiança, mas que, por inobservância do artº 10º nº 3 do NRAU, “…não se formou título executivo contra o fiador, pelo que faltando título executivo procedem os embargos.” Pode dizer-se que, neste caso, o que se verifica na sentença dos embargos é um juízo de não verificação do título:  Negou-se a demonstração da dívida, mas não se negou a própria dívida em si mesma. A decisão de indeterminação da obrigação por ser incerta ou ser ilíquida apenas pode obstar a essa concreta execução. (Cf. Rui Pinto, A Ação Executiva, pág. 434).


Daqui decorre que a sentença dos embargos à execução se fundou na inexistência de título executivo e não em factos extintivos, modificativos ou impeditivos da obrigação exequenda.

Na decisão recorrida, foi equacionada a seguinte solução jurídica:

«É hoje entendimento pacífico que esta norma, revogada e inaplicável aos contratos celebrados posteriormente à sua revogação, se continua a aplicar aos contratos celebrados durante a sua vigência, por força do disposto nos artigos 59º, n.º 1 do NRAU (Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro) e 12º, n.º 2 do Código Civil, ou seja, é aplicável ao contrato identificado nos presentes autos.
Sendo aplicável, coloca-se nova questão, a de saber se tem caráter imperativo ou supletivo, tendo em conta que da mesma resulta a extinção da fiança ao fim de 5 anos do início da primeira prorrogação do contrato de arrendamento, ao passo que a cláusula décima segunda do contrato de arrendamento em discussão nos autos prevê expressamente a manutenção da fiança mesmo após esse prazo.
Sendo questão controversa na doutrina e jurisprudência - controvérsia para a qual não trazemos qualquer contributo inovador – consideramos mais consentânea com a letra da lei a interpretação que lhe confere caráter imperativo e que não admite como sendo uma “nova convenção” a declaração ou cláusula constante do contrato de arrendamento, a cláusula inicial.
Neste sentido, que se nos afigura atualmente o maioritário, remetemos para o expendido nos acórdãos do STJ de 6/3/2014 (Abrantes Geraldes) e de 3/3/2016 (Fernanda Isabel Pereira), bem como nos acórdãos da Relação de Guimarães de 15/3/2018 (José Alberto Moreira Dias), da Relação do Porto de 13/4/2015 (Soares de Oliveira) todos in www.dgsi.pt.
Assim sendo, aplica-se à fiança constituída pela cláusula 12ª do contrato de arrendamento identificado nos autos a limitação temporal prevista no referido 655º, n.º 2, prevalecendo o comando da norma imperativa sobre o estipulado na referida cláusula.»

Será que esta decisão contraria o entendimento formado na sentença de mérito proferida na oposição à execução no processo n.º 6363/13.0TBALM-A, que é anterior e por isso deve prevalecer, por força do efeito preclusivo do caso julgado absoluto, nos termos do artigo 580º nº 1, parte final, e 732º nº 5 do C.P.C.?
Conforme já se referiu, o fundamento que determinou a decisão de procedência dos embargos foi, não a questão da extinção ou validade da fiança, mas que, por inobservância do art.º 10º nº 3 do NRAU, «…não se formou título executivo contra o fiador». Assim sendo, por força do que é estabelecido no art.º 609º nº 1 do C.P.C., a interpretação desse acórdão está limitada pelo objeto do processo, circunscrito, desde logo, pela causa de pedir invocada que, no caso, se restringia às rendas até 01/02/2014: o executado/embargante defendia que só era responsável pelas rendas que se vencessem até essa data. Por isso, não é admissível que se faça uma interpretação do acórdão no sentido de ter-se pronunciado pela validade da fiança enquanto perdurasse a relação jurídica de arrendamento, como pretende o apelante.

Acresce que, no caso dos autos, a decisão recorrida concluiu igualmente pela não verificação da «invocada nulidade da fiança», e pela aplicabilidade do disposto no artigo 655º nº 2 do C.C. ao contrato celebrado, por força das disposições legais então vigentes. Em aditamento, pronunciou-se sobre outra questão, relativa ao caráter imperativo ou supletivo da norma citada, tendo considerado «mais consentânea com a letra da lei a interpretação que lhe confere caráter imperativo e que não admite como sendo uma “nova convenção” a declaração ou cláusula constante do contrato de arrendamento, a cláusula inicial». Como consequência, a decisão recorrida pronunciou-se sobre a aplicabilidade à «fiança constituída pela cláusula 12ª do contrato de arrendamento identificado nos autos a limitação temporal prevista no referido artigo 655º nº 2», daí retirando a conclusão de que a fiança se extinguiu, após a primeira renovação, e por força da referida norma, em 31.01.2014, considerando a ausência de uma convenção em contrário que afastasse o disposto no nº 2 do artigo 655º do C.C.

Em suma, na decisão recorrida julgou-se extinta a fiança prestada, não com base na sua invalidade, mas por ausência de estipulação pelas partes de um concreto número de renovações ou de um período de duração da fiança, face ao disposto na cláusula 12ª do contrato de arrendamento. Nesta medida, a decisão de mérito proferida no âmbito do processo 6363/13, por acórdão desta Relação, não fez caso julgado material quanto à questão da apreciação dos limites temporais da fiança, não se verificando assim a violação do caso julgado anteriormente formado.

A apelante sustenta, ainda, nas alegações que a cláusula 12ª estabelecida no contrato de arrendamento deve prevalecer, por força do disposto no artigo 405º do C.C., como estipulação convencionada entre as partes.
No acórdão do S.T.J. de 03.03.2016, citado na sentença impugnada, e proferido no processo nº 5429/11.6YYPRT-B.P2.S1, é afirmado a este propósito o seguinte:
«No campo da fiança relativa a créditos futuros, consentida pelo disposto no artigo 628º nº 2 do Código Civil, não era pacífica quer na doutrina, quer na jurisprudência a interpretação do nº 2 do artigo 655º do mesmo código, relativo à fiança do locatário, constituindo exemplo dessa divergência os dois acórdãos em sentido oposto proferidos nestes autos pelo mesmo Tribunal da Relação.
Estava, essencialmente, em causa saber se a fiança prestada para garantia das obrigações emergentes do contrato de arrendamento urbano abrangia também as suas prorrogações.
Para uma corrente, na qual pontuava Antunes Varela, todas as limitações à responsabilidade do fiador do locatário contidas naquele preceito (artigo 655º) revestiam carácter supletivo, podendo as partes convencionar livremente um regime inteiramente autónomo e sem limites temporais definidos (cfr. Das Obrigações em Geral, Vol. II, Reimpressão da 7ª ed., Almedina, págs. 511 e 512).
Outra corrente, de que se destaca Cunha de Sá (Caducidade do Contrato de Arrendamento, I, págs. 122 e ss), sustentava o carácter imperativo da norma em questão, do qual derivava a necessidade de fixação de um limite máximo de prorrogações – extinguindo-se a garantia uma vez atingido o número de prorrogações – ou, na ausência de um limite, de nova convenção, sob pena de a fiança se extinguir decorridos cinco anos sobre o início da primeira prorrogação. A nova convenção relevante para efeitos de impedir a extinção da fiança, decorrido o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação, teria de ser, segundo Januário Gomes, uma convenção autónoma, necessariamente posterior à assunção da vinculação fidejussória (Assunção Fidejussória de Dívida, Sobre o sentido e o âmbito da vinculação como fiador, Colecção Teses, Almedina, 2000, pág. 319).
De harmonia com a tese da imperatividade da norma, que sufragamos por melhor corresponder à letra e à razão de ser do preceito, também acolhida no citado acórdão de 06.03.2014, a fiança manter-se-ia para além do período de cinco anos, após a primeira renovação do contrato, havendo indicação precisa no seu clausulado do número de renovações ou tendo sido outorgada nova convenção, posterior e autónoma, que traduzisse a reafirmação da vontade de o fiador continuar vinculado à garantia que prestara, permitindo-lhe a reavaliação dos riscos inerentes à responsabilidade daí adveniente para si.
Perante isto e volvendo ao caso em apreço, verifica-se que na cláusula 12º do contrato de arrendamento o oponente – assim como os demais fiadores – vinculou-se ao cumprimento de todas as obrigações emergentes daquele contrato para a sociedade locatária quer pelo seu período inicial, quer pelas suas renovações, renunciando expressamente ao benefício de excussão e mantendo-se a fiança mesmo havendo alterações de rendas e para além do decurso do prazo de cinco anos sobre a primeira renovação. A fiança subsistiria ainda enquanto a sociedade locatária não restituísse o arrendado, livre e desembaraçado de pessoas e coisas, em perfeitas condições de conservação e passível de pronta ocupação e uso, após vistoria e aceitação pela locadora.
Não obstante alguma concretização, ao nível, fundamentalmente, das obrigações garantidas, é aquela cláusula omissa quanto à expressa previsão de um concreto número de renovações ou de um período de duração da fiança.
Por outro lado, a dita cláusula não pode valer como nova convenção por ser contemporânea com a outorga do contrato, faltando-lhe a necessária autonomia.
Tem de concluir-se, por conseguinte, como se concluiu no mencionado acórdão de 06.03.2014 (proferido em caso similar e envolvendo outros fiadores vinculados no mesmo contrato), que a declaração inserta na falada cláusula 12ª não observa as exigências contidas no referido artigo 655º nº 2 do Código Civil necessárias para que a garantia persistisse para além do prazo de cinco anos após a primeira renovação do contrato, em 1 de Junho de 2003.»
           
Sufraga-se o entendimento de que a norma do artigo 655º nº 2 tem caráter imperativo, por melhor corresponder à letra e à razão de ser do preceito, como se depreende desde logo das restrições impostas no artigo 654º do C.C. relativamente à constituição de fiança para garantia de obrigação futura.

No caso vertente, é inequívoco que não houve uma nova convenção, suscetível de conferir autonomia pela reafirmação da vontade de os fiadores continuarem vinculados à garantia que prestaram, e que não se verificou relativamente à estipulação inicial qualquer tipo de concretização quanto ao número de renovações futuras. Nas palavras de Cunha de Sá: «Em regra a fiança só abrange o prazo inicial, mas tal regra pode ser afastada por convenção em contrário. Esta convenção pode comportar duas hipóteses: 1) ou se limita o número de períodos de prorrogação relativamente aos quais o fiador se obriga — e, neste caso, a fiança extinguir-se-á uma vez que tal número seja preenchido e não haja nova convenção; 2) ou nada se prevê a tal respeito — e, então, de duas uma: a) ou, decorrido que seja o prazo de cinco anos sobre o início da primeira prorrogação, se celebra nova convenção, pela qual o fiador se obrigue a outros períodos de prorrogação; b) ou, na falta dessa nova convenção, a fiança extinguir-se-á decorrido aquele mesmo prazo” (Caducidade do Contrato de Arrendamento Urbano»,  Lisboa, 1968, pp. 123-124).

Nesta medida, acompanha-se a posição defendida pelo tribunal recorrido de que a fiança se extinguiu decorrido o prazo da primeira prorrogação, ou seja, em 31.01.2014, por não existir uma convenção em contrário que afastasse o disposto no nº 2 do artigo 655º do C.C.


b). Subsidiariamente, caso se considere extinta a fiança, se são ainda devidas as rendas vencidas em dezembro de 2013 e em janeiro de 2014 pelos motivos invocados?

Resta apreciar, por último, se os réus fiadores sempre seriam responsáveis, a título solidário, pelo pagamento das rendas vencidas em dezembro de 2013 e em janeiro de 2014, tal como sustenta a apelante.

Com efeito, a regra geral sobre as rendas e encargos contemplados no artigo 1075º nº 2 do C.C. é a de que na falta de convenção em contrário a primeira vencer-se-á no momento da celebração do contrato e cada uma das restantes no 1º dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que diga respeito. No contrato de arrendamento objeto dos autos nada foi estipulado que afaste esta normal geral, pelo que o recurso deverá proceder nesta parte.

Nas contra-alegações, é suscitada a questão do eventual abuso de direito suscitado pelos réus na sua contestação, nos artigos 46º e seguintes, na medida em que a autora em vez de intentar contra a arrendatária, 1ª ré, «ação de despejo por falta de pagamento de rendas, permitiu o contínuo incumprimento do contrato, sem nada fazer desde dezembro de 2013 (cfr. art.º 13º da p.i.)».

Nas conclusões bb) a gg), os apelados aduzem novos argumentos em caso de procedência do recurso, sobre este abuso de direito, que não podem ser conhecidos por configurarem uma questão jurídica nova, pois não foi esgrimida na contestação anteriormente apresentada, e não foi requerido pelos recorridos a ampliação do objeto do recurso, nos termos do nº 8 do artigo 638º do C.P.C.

O abuso do direito – art.º 334º, do C. Civil – traduz-se no exercício ilegítimo de um direito, resultando essa ilegitimidade do facto de o seu titular exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.


Nos últimos tempos, este instituto tem sido analisado nas modalidades de «venire contra factum proprium», de «inalegabilidades formais», de «supressio», de «tu quoque» e de «desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados». O abuso de direito na modalidade do «desequilíbrio entre o exercício do direito e os efeitos dele derivados», abrange subtipos diversificados, nomeadamente: i) o do exercício de direito sem qualquer benefício para o exercente e com dano considerável a outrem; ii) o da atuação dolosa daquele que vem exigir a outrem o que lhe deverá restituir logo a seguir; iii) e o da desproporção entre a vantagem obtida pelo titular do direito exercido e o sacrifício por ele imposto a outrem. (António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, V, Parte Geral, Exercício Jurídico, Almedina, 2ª edição, 2015, págs. 295 a 381, e págs. 372-381).

Na situação em apreço, os ora apelados pretendem imputar à autora o abuso de direito, nesta última modalidade, mas não se vislumbra que lhes assista razão. Na verdade, com a petição inicial foram juntas diversas missivas remetidas aos réus com a interpelação de pagamento das rendas vencidas, posteriores às reclamadas na ação executiva já identificada, bem como relativamente à indemnização para reparação dos danos constatados, após a entrega do locado, que ocorreu em 30.12.2016. Acresce que a devolução das chaves do andar foi feita de forma voluntária, e a presente ação deu entrada cerca de dois meses após esse facto.
 
Finalmente, importa determinar se aos réus fiadores deve ser exigido o pagamento dos juros de mora, nos termos gerais, relativamente àquelas rendas vencidas em dezembro de 2013 e em janeiro de 2014, uma vez que desconheciam a falta de pagamento pontual das rendas, tal como é defendido nos artigos 50º e seguintes da contestação. Tendo presente o disposto no artigo 634º do C.C. de que a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor e que nada foi estipulado em contrário no contrato de arrendamento, os fiadores são igualmente responsáveis pelo pagamento dos juros de mora, desde a data de vencimento destas rendas e até efetivo pagamento, nos mesmos termos da condenação proferida.

Nesta sequência, entende-se que as conclusões do recurso merecem apenas o acolhimento parcial.


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DECISÃO

Em face do exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente, alterando-se a decisão recorrida com a condenação dos segundo a quinto réus, solidariamente com a 1ª ré, no pagamento à autora das rendas vencidas em dezembro de 2013 e em janeiro de 2014 no valor de mil euros e respetivos juros de mora, mantendo no mais o decidido.

Condena-se a ora apelante na multa de 2 UC’S, devido à junção tardia de documento, nos termos do artigo 423º nº 2 e nº 3 do C.P.C.  
           
Custas a cargo da apelante e dos apelados, nos termos do artigo 527º nº 1 e nº 2 do C.P.C., na proporção de 8/10, e 2/10, respetivamente.


Lisboa, 14.05.2020,
Ana Paula A. A. Carvalho
Gabriela de Fátima Marques
Adeodato Brotas