TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
ATIVIDADE DE SEGURANÇA PRIVADA
Sumário


I- Sendo a atividade de segurança privada uma atividade que repousa fundamentalmente sobre a mão de obra, inexiste transmissão de estabelecimento quando uma empresa deixa de prestar serviços de vigilância e segurança junto de determinado cliente, na sequência de adjudicação (por este) de tais serviços a outra empresa, sem que para esta tenha transitado daquela qualquer trabalhador ou quaisquer outros recursos, competências ou instrumentos organizatórios, suscetíveis de consubstanciar uma “unidade económica”.
II- Para efeitos da transmissão de empresa ou estabelecimento regulada no artigo 285.º, do CT, apenas releva a “unidade económica” que para o adquirente seja transferida por parte do transmitente.

Texto Integral



Revista n.º 1150/20.2T8EVR.E1.S1


MBM/JG/RP


Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1.1. AA (conjuntamente com mais três autores) intentou ação emergente de contrato individual de trabalho, com processo comum, contra (i) SECURITAS – SERVIÇOS E TECNOLOGIA DE SEGURANÇA, S.A., e (ii) 2045 – EMPRESA DE SEGURANÇA, S.A., pedindo:


a) Que seja declarado que o A. foi admitido pela R. SECURITAS em 31.10.1988, tendo as relações de trabalho passado a contrato de trabalho sem termo, o qual se transmitiu para a 2.ª R. em 01.01.2020, nos termos do artigo 285.º, do Código do Trabalho (CT).


b) Que seja declarada a ilicitude do despedimento do A. e, em consequência, que a 2.ª R. seja condenada a reintegrá-lo ou, em alternativa, condenada a pagar-lhe a quantia 27.692,30 €, a título de indemnização pela ilicitude do despedimento, bem como no pagamento dos salários vincendos e das importâncias que se vencerem até ao trânsito em julgado da decisão, tudo acrescido de juros de mora, vencidos e vincendos, até integral pagamento.


c) Que a 2.ª R. seja condenada a pagar-lhe a quantia de 1.786,60 €, a título de subsídio de férias e de Natal respeitantes ao ano de 2019, acrescida dos juros vencidos e vincendos, até integral pagamento.


d) Caso se venha a provar que não houve transmissão de estabelecimento, que a R. SECURITAS seja ainda condenada nos termos mencionados em supra b) e c).


1.2. Para tanto, alega, em síntese, que: a partir do 01.01.2020 e na sequência da sucessão na prestação de serviços de vigilância ocorrida nas instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ (D.....), nem a R. Securitas, nem a 2ª R. o aceitaram como seu trabalhador; a R. Securitas não liquidou todos os créditos laborais devidos ao A., que se encontravam vencidos a 31.12.2019.


2. Na 1.ª instância, a R. Securitas foi absolvida de todo o peticionado, julgando-se a ação inteiramente procedente na parte relativa à R. 2045 – EMPRESA DE SEGURANÇA, S.A.


3. Interposto recurso de apelação por esta R., foi o mesmo julgado improcedente pelo Tribunal da Relação de Évora (TRE).


4. Inconformada, veio a mesma R., 2045 – EMPRESA DE SEGURANÇA, S.A., interpor recurso de revista excecional.


5. Contra-alegaram o A., representado pelo Ministério Público, e a 1ª R.


6. Considerando preenchido o pressuposto previsto no art. 672.º, n.º 1, a), do CPC, a revista excecional foi admitida pela formação dos três Juízes desta Secção Social a que se refere o n.º 3 do artigo 672.º, do mesmo diploma.


7. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), em face das conclusões das alegações de recurso, a única questão a decidir1 consiste em determinar se ocorreu a transmissão de uma unidade económica da recorrida R. SECURITAS para a recorrente, com a consequente transmissão para esta da posição de empregadora, no contrato de trabalho relativo ao A.


Decidindo.


II.


8. Com relevância para a decisão do recurso de revista, foi fixada pelas instâncias a seguinte matéria de facto:2


1 - A 1.ª Ré Securitas – Serviços e Tecnologia de Segurança, S.A. e a 2.ª Ré 2045 – Empresa de Segurança, S.A. são sociedades comerciais que se dedicam à prestação de serviços de segurança privada.


(…)


5 - Entre o Autor AA e a SONASA- Sociedade Nacional de Segurança e Sanidade, Lda. foi celebrado escrito denominado de ‘contrato de trabalho a prazo’, em 1 de Outubro de 1988, mediante o qual declararam que a segunda admitia o primeiro ao seu serviço para exercer as funções inerentes à categoria de vigilante, a partir da referida data e pelo período de 1 mês, mediante o pagamento da quantia de 201$00, a título de retribuição.


6 - Entre o Autor AA, a SONASA - Sociedade Nacional de Segurança e Sanidade, Lda. e a 1.ª Ré Securitas foi celebrado escrito denominado de ‘acordo de transferência’, em 23 de Dezembro de 1996, mediante o qual declararam que a segunda cedia à 1.ª Ré a posição contratual que resultava do contrato individual de trabalho celebrado com o 4.º Autor AA e, bem assim, que este aceitava a referida transferência.


(…)


11 - Em data não concretamente apurada, a 1.ª Ré Securitas e a D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ (D.....) celebraram um acordo para a prestação de serviços de vigilância pela primeira nas instalações da segunda.


12 - Os serviços acordados consistiam em assegurar durante 24 horas por dia quatro vigilantes, em regime de turnos rotativos e alternados, nas instalações pertencentes à D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, sitas em ..., os quais deveriam executar: (i) funções de controlo e registo de acessos e permanência de pessoas às instalações, (ii) abertura e encerramento das instalações, (iii) monitorização de sistemas de alarme de deteção de intrusão e deteção de incêndios, (iv) prestação de informações e orientação aos utentes da D....., (v) atendimento e encaminhamento de chamadas telefónicas, (vi) rondas de vigilância às referidas instalações.


13 - Desde data não concretamente apurada, mas não posterior a 1 de Janeiro de 2019, e até 31 de Dezembro de 2019, os [quatro] Autores exerceram as suas funções de vigilantes, por conta, sob as ordens e autoridade da 1.ª Ré Securitas, nas instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, sitas ....


14 - Os referidos vigilantes atuavam de forma organizada, executando as funções descritas em 12.


15 - Para o exercício das referidas funções, os [quatro] Autores utilizavam o sistema de deteção de intrusão, o sistema de deteção de incêndios, as chaves das instalações, uma secretária, uma cadeira e um telefone fixo, pertencentes à D...... ........ .. ........... . ...... .. .........


16 - Para além dos instrumentos acima referidos, os Autores utilizavam no exercício das suas funções fardas, registos e impressos de relatórios, que pertenciam à 1.ª Ré Securitas e que continham o modelo e imagem identificativos da mesma.


(…)


17- Por cartas datadas de 17 de Dezembro de 2019, enviadas pela 1.ª Ré Securitas a cada um dos [quatro] Autores, e por estes recebidas, a primeira comunicou aos mesmos que:


«(…) Informamos que o serviço prestado pela nossa empresa nos estabelecimentos do Cliente D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ em ..., foi adjudicado à empresa, 2045 – Empresa de Segurança, SA, através de informação recebida daquele cliente “Adjudicação Direta para a Prestação de Serviços de Segurança Preventiva das Instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ em ....


Considerando que estamos perante uma unidade económica e que as gestões dos Serviços estão subordinadas ao Cliente D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ em ..., transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho.


Como resultado desta adjudicação e consequentemente a cessação do serviço de vigilância à Securitas, pela adjudicação do mesmo serviço à empresa supra indicada, constata-se que se mantém e transmite aquele, enquanto unidade económica para o novo operador, o qual deve receber a transmissão e a manutenção dos postos de trabalho e respetivos contratos de trabalho dos vigilantes que prestam funções no local – D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ em ..., ao abrigo do regime de transmissão de estabelecimento previsto no artº 285 do Código do Trabalho.


(…)».


18 - Por carta datada de 17 de Dezembro de 2019, enviada pela 1.ª Ré Securitas à 2.ª Ré 2045, e por esta recebida, a primeira comunicou à segunda que:


«(…)


Considerando que estamos perante uma unidade económica em que a gestão dos Serviços estão subordinadas ao Cliente D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ em ..., transmitem-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho.


Como resultado desta adjudicação e consequentemente a cessação do serviço de vigilância, a que se sucede a adjudicação do mesmo serviço à vossa empresa, constata-se que se mantém e transmite aquele enquanto unidade económica para o novo operador, o qual deve herdar, manter os postos de trabalho e respetivos contratos de trabalho dos vigilantes que prestam funções no local – D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ em ..., ao abrigo do regime de transmissão de estabelecimento previsto no artº 285 do Código do Trabalho.


. (…)».


19 - Por carta datada de 17 de Dezembro de 2019, a 1.ª Ré Securitas comunicou à Autoridade para as Condições do Trabalho – ... a transmissão dos contratos de trabalho celebrado com os Autores para a 2.ª Ré 2045, a partir do dia 1 de Janeiro de 2020.


20 - Por e-mail enviado pela 2.ª Ré 2045 à 1.ª Ré Securitas, em 31 de Dezembro de 2019, e por esta recebida, a primeira comunicou à segunda que:


«(…) Acusamos a receção da vossa comunicação de 17 de Dezembro do corrente, que nos mereceu a melhor atenção.


Em resposta, esclarecemos que não ocorreu transmissão dos contratos de trabalho dos trabalhadores indicados na vossa comunicação e que, além do mais, iremos proceder à colocação de vigilantes do nosso quadro no posto de trabalho em causa.


(…)».


21 - Por cartas datadas de 16 e 17 de Janeiro de 2020, enviadas por cada um dos Autores à 1.ª Ré Securitas, e por esta recebida, os primeiros comunicaram à segunda que:


«(…) [(…) AA] com relação jurídica de trabalho sem termo com a empresa Securitas – Serviços e Tecnologia de Segurança S.A., tendo sido notificado por esta empresa da ocorrência de transmissão de estabelecimento do Cliente D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, sita na Quinta ..., AV. ... em ..., onde tem prestado funções, para a empresa 2045 – Empresa de Segurança S.A., com efeito a 01 de Janeiro de 2020, e tendo-se apresentado ao serviço, de acordo com o horário de trabalho estabelecido, fui confrontado com a presença de um trabalhador da referida empresa cessionária, não me tendo sido possibilitado exercer a minha função.


A vossa empresa (…) não entrou em contracto até à data como signatário ou qualquer dos colegas que exerciam funções no mesmo cliente, incumprindo com o artigo 285º do Código do Trabalho, bom como o preceituado na CCT aplicável ao sector.


Caso V. Exa não reverta a situação que se verifica terá que assumir formalmente a cessação da relação jurídica de trabalho, como reconhecimento dos devidos direitos, designadamente pagamento de salário, a compensação indemnizatória emissão dos documentos obrigatórios relativos à cessação da relação de trabalho, nomeadamente mod. 5.044RP, que se junta, bem como certificado de trabalho, nos termos do artº 341 do CT, tendo para o efeito 5 dias nos termos da lei. (…)».


22 - Por cartas datadas de 16 e 17 de Janeiro de 2020, enviadas por cada um dos Autores à 2.ª Ré 2045, e por esta recebida, os primeiros comunicaram à segunda que:


«(…) [(…) AA] com relação jurídica de trabalho sem termo com a empresa Securitas – Serviços e Tecnologia de Segurança S.A., tendo sido notificado por esta empresa da ocorrência de transmissão de estabelecimento do Cliente D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, sita na Quinta ..., AV. ... em ..., onde tem prestado funções, para a empresa 2045 – Empresa de Segurança S.A., com efeito a 01 de Janeiro de 2020, e tendo-se apresentado ao serviço, de acordo com o horário de trabalho estabelecido, fui confrontado com a presença de um trabalhador da referida empresa cessionária, não me tendo sido possibilitado exercer a minha função.


A vossa empresa (…) não entrou em contracto até à data como signatário ou qualquer dos colegas que exerciam funções no mesmo cliente, incumprindo com o artigo 285º do Código do Trabalho, bom como o preceituado na CCT aplicável ao sector.


Caso V. Exa não reverta a situação que se verifica terá que assumir formalmente a cessação da relação jurídica de trabalho, como reconhecimento dos devidos direitos, designadamente pagamento de salário, a compensação indemnizatória emissão dos documentos obrigatórios relativos à cessação da relação de trabalho, nomeadamente mod. 5.044RP, que se junta, bem como certificado de trabalho, nos termos do artº 341 do CT, tendo para o efeito 5 dias nos termos da lei. (…)».


23- Por cartas datadas de 21 de Janeiro de 2020, enviadas pela 2.ª Ré 2045 a cada um dos [quatro] Autores, e por estes recebidas, a primeira comunicou aos mesmos que:


«(…) Acusamos a receção da sua comunicação que nos mereceu a melhor atenção. Tal como já tivemos oportunidade de informar a Empregadora de V. Exa. Securitas, em virtude de não ter ocorrido transmissão de estabelecimento nos termos previstos no disposto no artº 285º do Código do Trabalho, esclarecemos que não integrou os quadros desta empresa, mantendo-se para todos os efeitos legais, ao serviço daquela empresa.


(…)».


24 - Por cartas datadas de 22 de Janeiro de 2020, enviadas pela 1.ª Ré Securitas a cada um dos [quatro] Autores, e por estes recebidas, a primeira comunicou aos mesmos que:


«(…) Acusamos a receção da sua carta identificada em assunto no dia 20 de janeiro de 2020 a qual mereceu a nossa melhor atenção.


(…)


Considerando que estamos perante uma unidade económica, transmitiu-se para o adquirente a posição do empregador nos contratos de trabalho dos vigilantes que prestam funções no referido Cliente.


(…)


Lamentamos que a 2045, S.A., não tenha aceite ser a sua entidade empregadora, mas como compreende a posição da SECURITAS é que houve uma transmissão de estabelecimento.


A Securitas não cessou o seu contrato de trabalho.


Assim sendo, a SECURITAS não o pode reconhecer como desempregado, porque não existiu a cessação do contrato de trabalho, pelo que não podemos emitir a declaração de situação de desemprego, Modelo RP 5044 – DGSS. Junto anexamos o seu certificado de trabalho. (…)».


(…)


25 - Em data não concretamente apurada, a 2.ª Ré 2045 e a D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ celebraram um escrito denominado de ‘contrato de prestação de serviços’, na sequência de um procedimento de adjudicação/contratação pública, mediante o qual declararam que a primeira prestaria à segunda os serviços de vigilância/segurança, nas instalações desta, sitas em ... e em ..., com início no dia 1 de Janeiro de 2020, e mediante o pagamento de um preço acordado pelas partes.


26 - A partir de 1 de Janeiro de 2020, a 2.ª Ré 2045 passou a prestar os referidos serviços de vigilância nas instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, sitas em ....


27 - Os serviços prestados pela 2.ª Ré 2045 nas instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, a partir de 1 de Janeiro de 2020, coincidem com os serviços até então prestados pela 1.ª Ré Securitas à referida entidade e melhor discriminados no ponto 12., tendo a mesma ao seu serviço 4 vigilantes no referido local, igualmente organizados em regime de turnos rotativos e alternados.


28 - Os vigilantes da 2.ª Ré 2045 dependem hierarquicamente de um supervisor, que organiza, coordena e fiscaliza o seu trabalho, e, em segunda linha, de um gestor de operações, a nível regional, e de um diretor de operações, a nível nacional.


29 - Em Janeiro de 2020, cada um dos Autores apresentou-se nas instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. .........


30 - Nem a 1.ª Ré Securitas, nem a 2ª Ré 2045 aceitaram os Autores como seus trabalhadores, a partir do dia 1 de Janeiro de 2020.


31- A partir de 1 de Janeiro de 2020, passaram a exercer funções de vigilantes nas instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, por conta e sob as ordens e direção da 2.ª Ré os trabalhadores BB, CC, DD e EE.


(…)


32 - A 2.ª Ré 2045 não utiliza, nos serviços por si prestados à D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, fardas, impressos, alvarás ou licenças da 1.ª Ré Securitas.


33 - Os trabalhadores da 2.ª Ré 2045 que exercem funções nas instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. ........ utilizam um telemóvel e fardas e registos de relatórios (de ocorrências ou registo de entradas/saídas de pessoas) fornecidas pela 2.ª Ré, com o modelo e imagem identificativos da mesma.


34 - Além dos equipamentos acima referidos, os trabalhadores da 2.ª Ré 2045 utilizam igualmente, no âmbito das respetivas funções, o sistema de deteção de intrusão, o sistema de deteção de incêndios, as chaves das instalações, uma secretária, uma cadeira e um telefone fixo pertencentes à D...... ........ .. ........... . ...... .. .........


35 - A 2.ª Ré 2045 tem métodos de trabalho próprios, alvarás e procedimentos internos próprios, diversos dos da 1.ª Ré Securitas.


36 - A 1.ª Ré Securitas não entregou à 2.ª Ré 2045 alvarás ou licenças para o exercício da atividade, nem quaisquer informações sobre as instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. .........


(…)


38- No ano de 2019, o Autor AA auferira € 839,30, a título de retribuição mensal base.


III.


9. A propósito da matéria em discussão nos autos, o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, proferido a 16 de fevereiro de 2023, processo n.º C-675/21 (“Strong Charon – Soluções de Segurança, SA”, contra “2045 – Empresa de Segurança, SA, FL”), firmou o seguinte entendimento3:


1) A Diretiva 2001/23/CE do Conselho, de 12 de março de 2001, relativa à aproximação das legislações dos Estados Membros relativas à manutenção dos direitos dos trabalhadores em caso de transferência de empresas, de estabelecimentos ou de partes de empresas ou de estabelecimentos, deve ser interpretada no sentido de que:


– A inexistência de vínculo contratual entre o cedente e o cessionário de uma empresa ou de um estabelecimento, ou de uma parte de empresa ou de estabelecimento, é irrelevante para a determinação da existência de uma transferência, na aceção desta diretiva.


2) O artigo 1.º, n.º 1, da Diretiva 2001/23 deve ser interpretado no sentido de que:


– Não é suscetível de ser abrangida pelo âmbito de aplicação desta diretiva uma situação em que uma empresa prestadora de serviços que, para fazer face às necessidades de um dos seus clientes, tinha afetado a este último uma equipa composta por um certo número de trabalhadores que é substituída por esse cliente, passando os mesmos serviços a ser prestados por uma nova empresa prestadora e em que, por um lado, esta última assume apenas um número muito limitado dos trabalhadores que integravam essa equipa, sem que os trabalhadores reintegrados tenham competências e conhecimentos específicos indispensáveis para a prestação dos serviços ao referido cliente, e, por outro, não se verificou a transmissão para a nova prestadora de bens corpóreos ou incorpóreos necessários para a continuidade desses serviços.


10. Esta decisão do TJUE foi proferida na sequência de um pedido de reenvio prejudicial ao TJUE formulado pelo STJ no âmbito do Processo n.º 445/19.2T8VLG.P1.S1, com base no qual veio a ser proferido o acórdão de 08.03.2023, desta Secção Social, assim sumariado: Em uma atividade que repouse essencialmente sobre a mão-de-obra a identidade da entidade económica não se mantém – e não há transmissão – quando o novo prestador de serviços não retoma o essencial dos efetivos, em termos de número e de competências, tanto mais que não foi provada a transmissão de know-how.


Neste caso, tendo-se provado que apenas um dos quatro trabalhadores afetados pelo primeiro prestador de serviços de vigilância e segurança transitou para o segundo, bem como que não houve qualquer transmissão de know-how, conclui-se pela inexistência de transmissão de entidade económica.


11. Por inteiro subscrevemos esta linha jurisprudencial, que vem sendo uniformemente reafirmada pela Secção Social do STJ, mormente nos seguintes arestos:


– Ac. de 08.03.2023, Proc. n.º 2442/20.6T8PRT.P1.S2:


“À luz da decisão do TJ de 16 de fevereiro de 2023, no processo C-675/21, é claro que sendo a atividade de segurança privada uma atividade que repousa essencialmente sobre a mão de obra, a identidade da entidade económica não pode nestes casos manter-se se o essencial dos efetivos, em número e competências, não foi retomado pelo novo prestador do serviço de vigilância.”


– Ac. de 08.03.2023, Proc. n.º 1644/20.0T8BRR.L1.S1:


“I – (…)


II - Para que se verifique transmissão do estabelecimento para efeitos do disposto no artigo 285.º do CT, é essencial que o negócio ou atividade transmitida constitua uma unidade económica autónoma na esfera do transmitente.


III - Inexiste transmissão de estabelecimento quando uma empresa deixa de prestar serviços de vigilância e segurança junto de determinado cliente, na sequência de adjudicação, por este, de tais serviços de vigilância a outra empresa, sem que se tivesse verificado a assunção de qualquer trabalhador da anterior empresa e tão pouco qualquer transferência de bens ou equipamentos de prossecução da atividade suscetível de consubstanciar uma “unidade económica” do estabelecimento.”


– Ac. de 24.05.2023, Proc. n.º 10691/19.3T8PRT.P1.S1:


“Em atividades essencialmente assentes na mão de obra, como certas atividades de segurança de instalações, um conjunto organizado de trabalhadores especial e duradouramente afetos a uma tarefa comum pode, mesmo na ausência de outros fatores de produção, ser uma unidade económica, que se transmite quando o novo prestador de serviços decide manter a maioria ou o essencial dos efetivos, “aproveitando” a organização já existente para desenvolver a sua própria atividade produtiva.”


Neste caso, tendo o novo prestador de serviços mantido 12 dos 15 trabalhadores, julgou-se comprovada a transmissão de unidade económica.


– Ac. de 24.05.2023, Proc. n.º 545/20.6T8PNF.P1.S1:


“1. No caso de sucessão de prestadores de serviços para o mesmo cliente e em atividades que assentam essencialmente na mão-de-obra assume especial relevo a manutenção pelo novo prestador da maioria ou essencial dos efetivos do anterior.


2. Não tendo ocorrido a reassunção da maioria dos efetivos e não se demonstrando nem que os trabalhadores reintegrados tivessem competências e conhecimentos específicos indispensáveis para a prestação dos serviços ao referido cliente nem a transmissão para o novo prestador de bens corpóreos ou incorpóreos necessários para a continuidade desses serviços, não há transmissão da unidade económica.”


12. In casu, também uma empresa (a recorrida, R. SECURITAS) deixou de prestar serviços de vigilância e segurança a determinado cliente, na sequência da adjudicação (por este) de tais serviços a outra empresa (a recorrente, R. 2045 – EMPRESA DE SEGURANÇA, S.A.). Nenhum dos trabalhadores daquela transitou para esta, tal como não se verificou, sequer, qualquer transferência – da primeira para a segunda destas empresas – de bens, equipamentos, competências ou instrumentos organizatórios exigidos pela prossecução da atividade em causa (cfr., maxime, pontos 15, 16, 27 e 31 a 36 da matéria de facto).


Vale por dizer que entre as mesmas não teve lugar a transmissão de qualquer unidade económica, para efeitos do artigo 285.º, do CT, sendo desde logo irrelevantes, do ponto de vista da caracterização jurídica da realidade apurada no processo, as interações e trocas de comunicações que a tal propósito tiveram lugar entre as rés, bem como entre estas e o A.


13. À conclusão contrária chegou o acórdão recorrido, considerando, em síntese, “que se verifica uma transmissão de unidade económica (…) quando uma empresa de prestação de serviços de vigilância e segurança sucede, sem interrupções, a outra empresa de prestação de serviços de vigilância e segurança, por ter ganhado o concurso público e lhe ter sido adjudicado tal serviço, realizando-se a prestação com o mesmo cliente, no mesmo local, com o mesmo número de vigilantes, utilizando-se os mesmos indispensáveis meios de vigilância e segurança, pertencentes ao cliente, e tendo por objetivo a execução do serviço nas mesmas condições essenciais” 4.


Afigura-se-nos que esta interpretação não encontra suporte nas premissas concetuais e axiológicas da disposição legal em questão, nem, tão pouco, no seu elemento literal, sendo certo que, embora a interpretação não deva cingir-se a ele, “não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso” (art. 9º, nº 2, do Código Civil); e, conexamente, que “na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados” (nº 3 do mesmo artigo).


É indiscutível, como entenderam as instâncias, que o conjunto de quatro trabalhadores que integravam a equipa de vigilância que se encontrava, em 31 de Dezembro de 2019, ao serviço da R. Securitas, nas instalações da D...... ........ .. ........... . ...... .. ........, constituíam uma unidade económica, para efeitos de aplicação do regime previsto no art. 285.º, do CT.


Todavia, estes quatro trabalhadores não transitaram da R. SECURITAS – SERVIÇOS E TECNOLOGIA DE SEGURANÇA, S.A., para a R. 2045 – EMPRESA DE SEGURANÇA, S.A., tal como não se vê que tenha transitado qualquer outro elemento integrante dessa unidade económica, sendo certo que para efeitos da transmissão de empresa ou estabelecimento em apreço apenas relevam os recursos e competências transferidos para o novo prestador do serviço de vigilância por parte do transmitente (ou seja, pelo anterior prestador do serviço).


Ao cliente/beneficiário de serviços de vigilância e segurança estará sempre associada uma organização mais ou menos estruturada e dotada de determinados recursos e fatores de produção, que são seus, integrando por isso a sua empresa/estabelecimento, a sua unidade económica. Por isso, independentemente do grau em que os recursos próprios do cliente (ou o modelo organizacional por ele praticado) estejam afetos à atividade contratada, eles são naturalmente insuscetíveis de integrar a unidade económica do transmitente, a qual é a única que releva no plano da esfera do bloco normativo em análise.


14. Deste modo, não se tendo verificado entre as rés a transmissão de qualquer “unidade económica”, conclui-se que o contrato de trabalho em causa cessou por vontade unilateral da R. Securitas, situação que configura um despedimento ilícito, desde logo por não ter sido precedido do respetivo procedimento [art. 381.º, c), do CT], sendo esta ré responsável pelas correspondentes consequências ressarcitórias.


Vale por dizer que – em face do preceituado nos arts. 389.º, 390.º e 391.º, do CT – procede o pedido subsidiário formulado pelo A., consistente, como se consignou em supra nº 1.1., d), na condenação R. SECURITAS nos exatos termos peticionados no tocante à 2ª R. (pedido cujo acerto foi reconhecido pelas instâncias), no caso de não se comprovar a invocada transmissão de estabelecimento, sendo que, não tendo o A. optado pelo pagamento de indemnização em substituição da reintegração até ao termo da audiência final, se impõe a condenação da 1ª R. na sua reintegração (art. 391.º, n.º 1 do CT).


IV.


15. Em face do exposto, concedendo a revista e revogando o acórdão recorrido, acorda-se:

• Em declarar que entre o A. (AA) e a R. Securitas – Serviços e Tecnologia de Segurança, S.A., vigorou uma relação de trabalho entre 31.10.1988 01.01.2020, data em que a mesma cessou por despedimento ilícito levado a cabo pela empregadora.

• Em condenar a mesma R. a reintegrar o A., sem prejuízo da respetiva categoria e antiguidade, bem como a pagar-lhe a quantia correspondente às retribuições que o mesmo deixou de auferir desde a data do despedimento, até ao trânsito em julgado da decisão, acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, à qual deverão ser deduzidas (i) as importâncias que o trabalhador tenha auferido com a cessação do contrato e que não receberia se não fosse o despedimento, (ii) a retribuição relativa ao período decorrido desde o despedimento até 30 dias antes da propositura da ação não proposta nos 30 dias subsequentes ao despedimento, e (iii) o subsídio de desemprego atribuído ao trabalhador no período em causa, devendo a mesma R. entregar essa quantia ao Instituto da Segurança Social, I.P. (quantia a liquidar, se necessário, em sede de ulterior incidente de liquidação).

• Em condenar ainda a mesma R. a pagar a quantia de1.786,60 € (mil setecentos e oitenta e seis euros e sessenta cêntimos), a título de subsídio de férias e de Natal vencidos no ano de 2019, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde o vencimento deste crédito e até integral pagamento.

• Em absolver a R. 2045 – EMPRESA DE SEGURANÇA, S.A., quanto a tudo o peticionado pelo A.


Custas da revista, bem como nas instâncias, a cargo da R. Securitas.


Lisboa,13 de setembro de 2023


Mário Belo Morgado (Relator)


Júlio Manuel Vieira Gomes


Ramalho Pinto





___________________________________________________

1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. Transcrição expurgada dos factos destituídos de relevância para a decisão do recurso de revista.↩︎

3. O texto original, em língua francesa, é o seguinte:

1) La directive 2001/23/CE du Conseil, du 12 mars 2001, concernant le rapprochement des législations des États membres relatives au maintien des droits des travailleurs en cas de transfert d’entreprises, d’établissements ou de parties d’entreprises ou d’établissements, doit être interprétée en ce sens que:

– l’absence de lien conventionnel entre le cédant et le cessionnaire d’une entreprise ou d’un établissement ou d’une partie d’entreprise ou d’établissement est sans incidence sur l’établissement de l’existence d’un transfert, au sens de cette directive.

2) L’article 1er, paragraphe 1, de la directive 2001/23 doit être interprété en ce sens que :

– n’est pas susceptible de relever du champ d’application de cette directive une situation où une entreprise prestataire de services qui, pour les besoins de l’un de ses clients, avait affecté auprès de ce dernier une équipe composée d’un certain nombre de travailleurs est remplacée, par ce client, pour fournir les mêmes services, par une nouvelle entreprise prestataire et que, d’une part, cette dernière ne reprend qu’un nombre très limité des travailleurs composant cette équipe, sans que les travailleurs repris disposent de compétences et de connaissances spécifiques indispensables pour la fourniture des services audit client, et, d’autre part, le nouveau prestataire ne reprend pas de biens corporels ou incorporels qui auraient été nécessaires pour la continuité de ces services.↩︎

4. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎