AÇÃO ESPECIAL DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
APROVAÇÃO DAS CONTAS
MÁ ADMINISTRAÇÃO
Sumário

I - Não cabe no objecto da acção de prestação de contas, apurar se houve má administração dos bens alheios e aprovar receitas que teriam sido obtidas ou recusar despesas que teriam sido evitadas se a administração tivesse sido cuidada, prudente e zelosa.
II - Todavia, no objecto e finalidade da acção inclui-se o julgamento das contas, a sua aprovação ou não aprovação, sendo que o juízo de aprovação não se confina ao apuramento das receitas obtidas e das despesas realizadas, podendo, por exemplo, aprovar-se receitas não indicadas na conta-corrente mas que se apurou corresponderem a vantagens alcançadas pelo administrador, ainda que sob outra forma, e/ou recusar-se a aprovação de despesas realmente efectuadas mas que excedem os poderes de administração do obrigado à prestação das contas.

Texto Integral

RECURSO DE APELAÇÃO
ECLI:PT:TRP:2023:826.20.9T8OAZ.A.P1

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SUMÁRIO:
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ACORDAM OS JUÍZES DA 3.ª SECÇÃO DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO:

I. Relatório:
AA, contribuinte fiscal n.º ..., residente no ..., Ovar, instaurou acção especial de prestação de contas, por dependência do processo de inventário nº 826/20.9T8OAZ, contra o cabeça de casal BB, contribuinte fiscal n.º ..., residente em ..., Porto.
Realizado julgamento foi proferida sentença, tendo as contas apresentadas pelo requerido em 04.05.2021, com a rectificação de 10.09.2021 sido julgadas prestadas e aprovadas as receitas obtidas e as despesas realizadas, e apurado o saldo a distribuir.
Do assim decidido, a autora interpôs recurso de apelação, terminando as respectivas alegações com as seguintes conclusões:
1- As contas devem ser instruídas com os documentos justificativos – Artº 944 nº 3 do CPC;
2- O cabeça de casal inscreveu na conta-corrente despesas sem as instruir com os documentos justificativos;
3- Relativamente a outras despesas limitou-se a juntar listagens do site E-facturas, não acompanhadas das verdadeiras facturas, não sendo, pois, possível analisar o seu conteúdo, pelo que não se lhes pode reconhecer valor probatório, não devendo ser aprovadas (excepto as que a autora aceitou, mesmo considerando que não estavam documentalmente justificadas);
4- Não tem fundamento legal e não tem a menor razoabilidade a afirmação de que se a autora dispensou documentos justificativos das receitas também devia ter dispensado os documentos justificativos das despesas;
5- O cabeça de casal tem a obrigação não só de provar que realizou as despesas como ainda a necessidade de proceder às mesmas;
6- Há uma contradição na sentença quando, por um lado, se afirma que a acção de prestação de contas não é a sede própria para apurar se houve boa ou má administração, ou questionar se certas despesas deviam ou não ter sido executadas e, por outro lado, se refere que deve ser apreciada a exactidão e justeza das receitas e das despesas apresentadas;
7- São coisas diversas provar que pagou e provar a necessidade da despesa e o rigor das contas está, justamente, na verificação simultânea destes pontos de facto;
8- Como resulta dos pontos 3 e 4 da sentença, não resultou provada a necessidade das despesas impugnadas pela autora pelo que não devem ser aprovadas;
9- Nos documentos 1 a 9 há referência a taxas de justiça, mas não se descortinaram quaisquer documentos comprovativos das mesmas, não sendo possível à interessada AA saber a que processo se referem, se respeitam a articulados, a incidentes ou a multas e, o que é essencial, se têm alguma conexão com os interessas da herança, havendo seguramente taxas que dizem respeito ao processo de inventário onde o cabeça de casal, o irmão CC e, após o repúdio deste, a filha DD, tinham a posição de interessados da herança. Pelo que tais despesas não devem ser aprovadas;
10- São várias as despesas inscritas com a rubrica «Advogado» sem que haja uma única justificação de qual o processo a que se referem tais verbas não sendo possível controlar pelo processo E-facturas os recibos emitidos pelo Advogado e, como é óbvio, os serviços jurídicos prestados ao cabeça-de-casal na qualidade de herdeiro, no âmbito do processo de inventário, não são despesas da herança;
11- Justificava-se - exigia-se! - que os recibos discriminassem que tipo de serviço foi prestado e se identificasse o respectivo processo.
12- Pelo que todas as despesas inscritas com a rubrica «Advogado» não devem ser aprovadas;
13- O cabeça de casal fez tábua rasa do princípio da precariedade e temporalidade do seu exercício de funções que lhe impunham a maior contenção, limitando-se a administrar conservando e não a administrar melhorando;
14- As obras feitas nos apartamentos de S. J. da Madeira, após os mesmos serem destinados à interessada DD, são reveladoras de um enorme despudor;
15- Não resultou provada a premência de fazer tais obras (cf. pontos 3 e 4 da sentença).
16- As obras foram feitas com o evidente propósito de beneficiar a interessada DD (leia-se: o seu irmão CC)!
17- Com estas obras o cabeça de casal acrescentou aos andares um valor substancialmente superior ao que eles tinham à data das licitações com o consequente proveito para a interessada DD e em manifesto detrimento da interessada AA.
18- O cabeça de casal imprimiu uma evidente oscilação de valor aos apartamentos adjudicados antes dos melhoramentos.
19- Havendo um enriquecimento da interessada DD à custa dos outros interessados.
20- Pelo que tais despesas não devem ser aprovadas;
21- Depois do prédio do EE ter sido licitado pelo cabeça de casal, a despesa com a limpeza do terreno mais do que quadruplicou, mais uma vez sem ter sido feita qualquer prova da necessidade e premência de limpezas tão grandes;
22- Pelo que tais despesas não devem ser aprovadas;
23- O saldo final deve ser corrigido de acordo com a eliminação das despesas não aprovadas;
Termos em que o recurso deve ser julgado procedente revogando-se a sentença na parte em que considerou justificadas todas as despesas e decidindo-se que as impugnadas pela autora não devem ser aprovadas.
O recorrido respondeu a estas alegações defendendo a falta de razão dos fundamentos do recurso e pugnando pela manutenção do julgado.
Após os vistos legais, cumpre decidir.

II. Questões a decidir:
As conclusões das alegações de recurso demandam desta Relação que decida se não devem ser aprovadas as despesas concretamente indicadas pela recorrente.

III. Fundamentação de facto:
Encontram-se julgados provados os seguintes factos:
1. Requerente e requerido foram herdeiros na herança aberta por óbito de FF e GG.
2. Para a partilha dos bens integrantes do acervo dessa herança correu termos processo de inventário nº 826/20.9T8OAZ a que os presentes se mostram apensos, processo esse já declarado findo.
3. O aqui requerido BB exerceu as funções de cabeça-de-casal durante o período compreendido entre 2014 a 2021, por referência a esse património.
4. O requerido apresentou as contas, com conta-corrente de saldo de receitas e despesas, nos presentes autos.

IV. Matéria de direito:
No nosso sistema processual civil vigora o princípio da legalidade das formas de processo, nos termos da qual cada forma de processo especial tem uma finalidade específica e para a prossecução desta a parte só pode lançar mão dessa forma de processo, ficando a forma do processo comum reservada para as acções cujo objecto não corresponda ao de nenhuma forma especial.
O processo de prestação de contas é uma das formas de processo especial previstas no Código de Processo Civil. Nos termos do artigo 941.º, a acção de prestação de contas tem por objecto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se. A finalidade desta acção é assim apurar e aprovar as receitas e as despesas realizadas pelo administrador de bens alheios e condenar no pagamento do respectivo saldo, se o houver.
Luís Filipe Pires de Sousa, in Acções Especiais de Divisão de Coisa Comum e de Prestação de Contas, página 153, afirma que «A acção de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração, não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado. Apenas pode discutir-se na acção de prestação de contas o valor ou a inscrição de receitas alegadamente efectivas e não de receitas virtuais. O disposto no artigo [actualmente 944.º] (apresentação das receitas e despesas em conta-corrente) não se compagina com a determinação de receitas ou despesas não realizadas efectivamente, virtuais (283 - cf. acórdão do STJ de 20.6.2002, Moreira Alves,03A073). Caso pretenda averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas, deve o autor recorrer ao processo comum e não ao processo especial de prestação de contas. Do mesmo modo não deverá ser instaurado processo especial de prestação de contas quando o autor deduzir pretensão que consista em: - (...) - condenação da ré no pagamento de determinada quantia com fundamento na sua apropriação ilícita, mesmo que exista a obrigação de prestar contas (285) cf. acórdão do T Rel. de Coimbra de 19.01.2010, Manuel Capelo, 579/08)».
Também A. Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, páginas 389/390, afirma que a «acção de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração; não visa a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem a fixação de rendimentos que não foram obtidos, por falta de diligência do obrigado. Apenas pode discutir-se na acção de prestação de contas se existe ou não a correspectiva obrigação de prestar contas e o valor ou a inscrição de receitas efectivas e não de receitas virtuais», motivo pelo qual «caso pretenda averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas o autor deve recorrer ao processo comum, e não ao processo especial de prestação de contas».
De facto, no Acórdão de 03-04-2003, Moreira Alves, in www.dgsi.pt, o Supremo Tribunal de Justiça manifestou que: «estranho seria que tal processo especial em vez de servir para apurar as receitas e despesas efectivamente verificadas, fosse utilizado para averiguar da boa ou má administração da pessoa obrigada a prestar contas e para a determinação dos rendimentos eventualmente deixados de auferir em consequência de má administração. Para isso, será adequado o processo comum, não o processo especial de prestação de contas. Como se observa no douto Ac. da R. do Porto de 20/6/78 - B.M.J. - 279/254, "A acção de prestação de contas não tem por fim determinar se a pessoa obrigada a prestá-las foi ou não diligente na administração... O objecto desta acção é determinar o montante das receitas cobradas e das despesas efectuadas, com indicação do saldo, se o houver...". E que assim é resulta também do disposto no artº. 1016º [nota: o actual 944.º] do C.P.C. que determina a apresentação das contas sob a forma de conta-corrente, especificando-se a proveniência das receitas e a aplicação das despesas, bem como o respectivo saldo, regime que, evidentemente não é adequado à determinação de receitas ou despesas não realizadas efectivamente. Prestar contas implica, por sua natureza, descriminar despesas e receitas efectivamente realizadas, mas não tem a ver com a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem com a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado.»
Também no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-02-2016, proc. n.º 17099/98.0TVLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, se defendeu que o processo especial de prestação de contas «não tem por escopo verificar um eventual incumprimento de contrato por uma das partes mas, tão somente, a apurar o montante das receitas e despesas que efectivamente foram cobradas ou efectuadas. Daí que não tendo a despesa/pagamento sido efectivamente realizada, e tratando-se, se fosse caso, de despesa futura eventual não há que reflecti-la no cotejo de entradas e saídas na conta-corrente, irrelevando para efeito de apuramento de saldo. Só se, e noutra sede, fosse declarada a obrigação da dívida peticionada e a mesma tivesse sido satisfeita, é que relevaria, como receita, mas em ulterior prestação de contas
Identicamente, no Acórdão da Relação de Lisboa de 16-04-2017, proc. n.º 40827/03.0TJLSB-B.L1-6, in www.dgsi.pt, defendeu-se que «o cabeça de casal só terá de prestar contas se, no exercício da sua administração tiver obtido receitas, realizado despesas ou ambas, uma vez que o artigo 941.º CPC refere o apuramento de eventual saldo. Não é, pois, esta a sede para apurar se houve boa ou má administração, … mas, apenas se as receitas e despesas foram efectivamente verificadas. Para aquilatar da diligência da administração o adequado será o processo comum, que não o processo especial de prestação de contas. Aqui, apenas se discute se as verbas foram diferentes das indicadas, se foram, ou não, bem escrituradas mas nunca receitas virtuais (cfr., a propósito Lopes Cardoso – “Partilhas Judiciais”, III, p. 74, nota 3045; e “(…) prestar contas implica, por sua natureza, discriminar despesas e receitas efectivamente realizadas, mas não tem a ver com a responsabilização do administrador por eventual má administração, nem com a fixação de rendimentos que não foram obtidos por falta de diligência do obrigado.” – Acórdão do STJ de 3.04.2003 – proc. nº 03A073).»
Este Acórdão é depois acompanhado pelo Acórdão da mesma Relação de 07-02-2019, proc. n.º 365/11.9TJLSB-A.L1-6, e pelo Acórdão da Relação de Guimarães de 26-05-2022, proc. n.º 3676/14.8T8GMR.G2, ambos in www.dgsi.pt.
Cremos, contudo, ser necessária uma precisão para evitar que de citação em citação se consolide uma ideia que peca certamente por excesso.
É óbvio que na acção de prestação de contas não podem ser aprovadas receitas que o obrigado à prestação de contas podia e devia ter obtido se tivesse exercido uma administração zelosa e cuidada, mas que de facto não obteve por ter feito uma administração desastrosa, leviana, descuidada.
Essa situação, ao remeter para a violação dos deveres do administrador e para a responsabilidade que advém do modo como ele exerceu a administração de bens alheios, terá de ser objecto de uma acção de responsabilidade que seguirá a forma do processo comum e terá por causa de pedir o exercício da administração e como pedido a condenação no pagamento do valor da indemnização dos danos que, por ter incumprido os deveres do cargo, causou aos titulares dos bens administrados, danos onde se poderão incluir os lucros cessantes (receitas que não obteve) e os danos emergentes (despesas injustificadas que provocou).
Todavia, isso não invalida que a acção especial de prestação de contas tenha por objecto, conforme expressamente indicado no artigo 941.º, 943.º, n.º 2, e 945.º, n.º 5, do Código de Processo Civil, não só o apuramento, mas também a aprovação, das receitas obtidas e das despesas realizadas. Por conseguinte, não se trata apenas de apurar, determinar, contabilizar o que se obteve e o que se despendeu na administração, trata-se igualmente de aprovar os respectivos movimentos financeiros.
Nessa medida, a mera demonstração de que determinados movimentos financeiros foram realizados não completa o objecto da acção. Para satisfazer integralmente esse objectivo é ainda necessário que a sua realização mereça ser aprovada, isto é, fazer recair sobre as receitas e despesas um juízo positivo de pertinência, adequação e justificação face aos objectivos da administração.
De outro modo não se compreenderia o disposto no n.º 2 do artigo 945.º do Código de Processo Civil segundo o qual o autor pode impugnar as contas apresentadas pelo autor com o fundamento de que a receita «foi ou devia ter sido superior à inscrita» ou de que «receita não incluída nas contas», tal como pode «impugnar as verbas de despesa apresentadas» ou exigir somente que «o réu justifique as verbas de receita ou de despesa que indicar».
Outra ideia que é necessário esclarecer no caso prende-se com o modo como pode ser feita a prova das receitas e das despesas.
O artigo 944.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, estabelece que as contas são apresentadas pelo réu «instruídas com os documentos justificativos». Porém daqui não decorre que só possam ser aprovadas verbas da receita ou da despesa para as quais existam documentos justificativos.
O próprio n.º 5 do artigo 945.º do Código de Processo Civil elimina qualquer dúvida a esse respeito ao estabelecer que para julgar as contas «o juiz ordena a realização de todas as diligências indispensáveis, decidindo segundo o seu prudente arbítrio e as regras da experiência, podendo considerar justificadas sem documentos as verbas de receita ou de despesa em que não é costume exigi-los».
Esta exigência compreende-se porque a prestação de contas não é compatível com qualquer liquidação ulterior; a sentença que julgar as contas há-de concluir necessariamente por um valor líquido, decorrente do saldo das contas «aprovadas», razão pela qual o juiz tem o poder dever de realizar todas as diligências indispensáveis para aprovar as contas e pode aprovar verbas para as quais não existem documentos, ou porque não é comum exigir documentos dessas receitas ou despesas ou, por exemplo, porque se justifica que os documentos se perderam ou foram destruídos.
Agora esta possibilidade não afasta a necessidade de o juiz ser criterioso nesse julgamento. Designadamente, o juiz não deve prescindir de documentos quanto o normal é que eles existam e nenhuma justificação válida é apresentada para a sua falta ou não apresentação.
Nesse caso o juiz deve seguir o critério de julgamento indicado na lei: nos termos do n.º 3 do artigo 944.º do Código de Processo Civil, a inscrição nas contas das verbas de receita faz prova contra o réu, logo, o juiz deve aprovar todas as verbas da receita apresentadas pelo réu mesmo que não sejam juntos documentos justificativos; como não se aplica a mesma presunção às verbas da despesa e é sobre o administrador que recai o ónus de prestar as contas, o juiz não deve aprovar as verbas da despesa apresentadas cuja realização não está documentada mas em relação à qual o normal é que haja um documento justificativo.
As alegações de recurso e a resposta às alegações de recurso impõem outra precisão prévia ao julgamento do recurso.
Cada uma das partes é livre de adoptar no processo em relação aos factos ou aos pedidos da parte contrária a atitude que entender. Trata-se de um conteúdo indissociável do seu direito de acesso à justiça e da natureza potestativa dos direitos de natureza processual. A parte não pode entrar em contradições, nem incorrer em litigância de má fé, mas fora esses limites nada a impede de, em conformidade com o seu interesse e a avaliação que faz do processo, aceitar determinados factos e não aceitar outros, prescindir de determinados meios de prova, mas continuar a defender a necessidade de serem produzidos outros.
Não faz, portanto, o mínimo sentido pretender que porque a autora aceitou determinadas verbas da conta apresentada, sejam elas da receita ou da despesa, estejam ou não documentadas, está obrigada a aceitar as demais verbas, a aceitar verbas que não estão documentadas, a prescindir dos documentos normalmente exigidos para justificar outras verbas. O que a autora aceitou está assente e pode ser aprovado; o que não aceitou não está assente e por isso carece de julgamento para que o tribunal possa decidir se aprova ou não as demais verbas das contas apresentadas.
Finalmente uma observação que nenhuma das partes levanta, mas que o caso suscita. Na fundamentação de facto, a sentença recorrida não contém, como devia, o elenco das verbas julgadas provadas e/ou qualquer explicação que permita em rigor o seu julgamento. A sentença limita-se a julgar como provado que «o réu apresentou as contas», o que, para além de não necessitar de constar da fundamentação de facto, não tem qualquer relevo para efeito do que importa decidir: a aprovação das contas … apresentadas.
Não obstante isso, as partes não arguiram a nulidade da sentença por falta de fundamentação, nem o recorrido, para acautelar a possibilidade de o recurso proceder, impugnou a decisão sobre a matéria de facto para que esta Relação pudesse julgar provadas ou não provadas as verbas impugnadas. Nessa medida, podia entender-se que o recurso da autora é imediatamente procedente, uma vez que se as verbas da despesa que ela impugna não constam dos factos provados, naturalmente não podem ser incluídas na conta-corrente e tidas em conta no apuramento do saldo da administração.
Desconsiderado este imbróglio processual, entremos, por fim, na análise da impugnação da recorrente que recai exclusivamente sobre verbas da despesa.
A] Despesas com taxas de justiça:
A recorrente tem razão. As taxas de justiça são despesas que estão necessariamente documentadas e cujos documentos permitem saber a que processo respeitam, o que é imprescindível para saber quem é responsável por essas despesas e/ou a quem ela aproveita.
Havendo notícia de mais que uma acção e de que pelo menos numa delas o interessado e responsável pelas custas não seria a herança indivisa administrada pelo cabeça de casal, mas os próprios herdeiros a título pessoal, na falta de apresentação dos documentos justificativos dessas despesas as mesmas não devem e não são aprovadas.
Refira-se, aliás, o que vale para todas as verbas subsequentes para as quais se remete para este meio de prova, que as listagens de facturas inseridas no portal das finanças no sitio das Finanças e-factura não são suficientes para o efeito, porque apenas nos permitem apurar que por referência a um determinado número de identificação fiscal foi emitida uma factura num determinado montante, mas não, conforme era necessário, a que serviço respeita essa factura, a que bem concreto corresponde o serviço, em beneficio de quem ele foi efectivamente prestado.
B] Despesas com data de 05.01.2015 nos valores de 168,59€ e 328,50€:
Na conta-corrente estas despesas estão identificadas como despesas com Lar. As partes sabem perfeitamente quem estava no Lar e dava causa a estas despesas, tal como tinham condições para apurar a despesa em causa, a qual não é, necessariamente uma despesa documentável.
Acresce que se trata das únicas despesas relacionadas com Lar constantes da conta-corrente, o que facilitava a compreensão do que se trata, sendo certo que na resposta às alegações o recorrido menciona mesmo tratar-se de despesas que a própria autora suportou.
Por conseguinte, julga-se improcedente a respectiva impugnação e confirma-se a aprovação da despesa.
C] Despesas com advogado:
Vale a este respeito integralmente o que se expôs relativamente às despesas com taxas de justiça.
Para além de ter de haver documentos que comprovem a despesa, a natureza do serviço, a pessoa em nome de quem ou no interesse de quem foram prestados os serviços ou que tirou benefício dos mesmos, as despesas em causa não são tantas que dificultem a obtenção e organização dessa informação documental, sendo certo que aparentemente se trata do mesmo mandatário que agora representa o réu e obrigado à prestação de contas, coincidência que mais facilitava a demonstração dos factos atinentes às despesas.
Perante tantas facilidades (não afastadas pelos requisitos suficientes para satisfazer as exigências puramente contabilística relacionadas com a actividade) não há razão para não exigir a prova possível e indispensável e, consequentemente, não tendo esta sido junta, recusa-se a aprovação das verbas correspondentes.
D] Despesas de €12.915,00 com obras nos apartamentos de S. J. Madeira:
As partes estão de acordo quanto à realização destas obras, o respectivo custo e os imóveis em que foram realizadas. Encontra-se junta a factura no valor global de €12.915,00 que documenta essa despesa.
A recorrente opõe-se à aprovação destas despesas dizendo que as mesmas foram efectuadas em proveito exclusivo dos herdeiros aos quais os bens couberam na partilha, tendo sido realizadas já depois das licitações e, portanto, quando já era possível determinar quem iria receber os bens beneficiados pelas obras. O cabeça-de-casal defende que as obras em causa eram necessárias, foram de verdadeira conservação dos imóveis e não de mera manutenção, apenas tendo sido possível realizá-las na data em que tiveram lugar e que a adjudicação aos herdeiros só ocorreu depois.
Qualquer das duas construções parece verosímil o que dificulta a nossa decisão uma vez que, como referido, a fundamentação de facto da decisão recorrida não ajuda a esclarecer o contexto das obras e, não tendo havido impugnação da decisão sobre a matéria de facto esta Relação não pode ir ouvir a prova testemunhal produzida à cata dos factos que permitiriam formar um juízo.
Afigura-se-nos, no entanto, que apesar disso estas despesas não devem ser aprovadas. Com efeito, o que está em causa na acção é a administração realizada pelo cabeça-de-casal dos bens da herança, ou seja, o que cumpre apurar e aprovar são as receitas e as despesas que estiverem compreendidas no âmbito dos seus poderes de administração, não todas aquelas que ele, em virtude do exercício desse cargo e invocando-o, decide realizar, ainda que excedendo os poderes de que dispunha.
Ora despesas em imóveis no valor de praticamente €13.000 são despesas que a nosso ver excedem os poderes de administração do cabeça-de-casal e que, pela sua dimensão, careciam de ser aprovadas previamente pela totalidade ou, pelo menos, pela maioria dos herdeiros.
Pouco importa para o efeito se se tratavam de despesas de conservação e necessárias, porque a sua necessidade não pode ter surgido instantaneamente, logo no preciso momento em que o cabeça-de-casal decidiu realizá-las e, excepto se houvesse perigo de derrocada ou de causação de danos a terceiros, o que não está demonstrado nos autos, essa necessidade, a existir, nunca seria suficiente para obrigar à execução imediata das obras (o próprio cabeça-de-casal reconhece que a sua execução foi retardada), isto é, não seria de tal modo grave que a sua execução não pudesse esperar mais algum tempo, designadamente até que a partilha fosse realizada e depois cada um dos herdeiros se ocupasse de gerir o património recebido em herança.
Acresce que é inerente à administração de bens alheios a adopção de critérios de prudência, bom senso, equilíbrio e respeito pelos vários interesses conflituantes. Por esse motivo, uma vez feitas as licitações no inventário, uma vez que estas são feitas em função do valor que os herdeiros atribuem aos bens no momento em que fazem essas licitações, ou seja, em função do estado de conservação que eles apresentam nesse momento, viola as regras da boa fé e dos bons costumes qualquer comportamento do cabeça-de-casal que se traduza numa modificação desse valor relativo, a qual irá sempre redundar em benefício de uns herdeiros e prejuízo dos outros. Só por isso, para estar de boa fé e actuar como administrador zeloso e prudente, o cabeça-de-casal devia obrigatoriamente abster-se de executar essas obras sem obter previamente a concordância de todos os herdeiros.
Nessa medida, uma vez que não parece estar afastado que noutra sede os herdeiros discutam a distribuição entre eles desse custo que efectivamente foi feito e traduziu um incremento do valor dos imóveis que pode traduzir um enriquecimento sem causa, decide-se não aprovar esta despesa apresentada pelo cabeça-de-casal.
E] Despesas com a limpeza do EE:
Também estas despesas não devem ser aprovadas.
Não propriamente por não estarem documentadas, o que já seria razão suficiente, mas sobretudo por não estarem em consonância com as despesas da mesma natureza realizadas nos anos anteriores, situação que essa sim tornava imperiosa a existência de documento justificativo da natureza dos trabalhos realizados para que o tribunal pudesse verificar se a sua necessidade era nova e de natureza legal como refere o cabeça-de-casal e por essa via aprovar a despesa em causa.
Acresce que vale aqui de novo o que se referiu quanto ao modo criterioso como o cabeça-de-casal devia ter passado a exercer o seu cargo após a realização das licitações para evitar que pela via das despesas se modificasse a situação de facto que presidiu àquelas e em função da qual se iria apurar o valor dos bens a partilhar.
É certo que as despesas em causa não têm uma dimensão que nos permita dizer que a sua realização excede os poderes de administração do cabeça-de-casal, mas, ainda assim, tratando-se de mais que triplicar o valor dos dois anos anteriores, sem documentos cabais e sem uma explicação idónea esta despesa não deve ser aprovada.

V. Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, alteram a sentença recorrida, não aprovando as verbas da despesa acima assinaladas e alterando em conformidade o saldo das contas aprovadas.
Custas do recurso por ambas as partes na proporção do respectivo decaimento.
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Porto, 12 de Julho de 2023.
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Os Juízes Desembargadores
Aristides Rodrigues de Almeida (R.to 764)
Paulo Dias da Silva
António Vasconcelos

[a presente peça processual foi produzida pelo Relator com o uso de meios informáticos e tem assinaturas electrónicas qualificadas]