COMPETÊNCIA
ALIMENTOS
INTERDIÇÃO
Sumário

Para conhecer de acção proposta por interdito maior contra seu pai para fixação de alimentos é competente o tribunal com competência em matéria cível.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação do Porto

I. Nas Varas Cíveis da Comarca do Porto, B....., solteiro, maior e interdito, representado pela sua mãe, propôs acção contra Dr. C....., seu pai, requerendo:

a) se fixe em € 1.200,00 mensais a prestação alimentar a que tem direito dos seus progenitores, sem prejuízo das comparticipações médicas, medicamentosas e de internamento, que se venham a comprovar documentalmente;
b) que esse prestação alimentar seja assegurada na proporção de 2/3 pelo Réu, a pagar no domicílio do requerente até ao dia 5 de cada mês;
c) que essa prestação seja complementada pelo convívio do requerente com cada progenitor, por períodos de 4 meses, alternados, momentos em que o progenitor que faz o acolhimento fica dispensado do pagamento do valor fixado em b);
d) que cada um dos progenitores comparticipe com 50% nas despesas médicas, medicamentosas e de internamento que venham a ser clinicamente julgadas adequadas e
e) que a prestação seja revista anualmente de acordo com os índices de actualização da renda habitacional.

II. A petição foi liminarmente indeferida, julgando-se o tribunal incompetente em razão da matéria, por se entender que a mesma está no âmbito da competência do Tribunal de Família e Menores do Porto.

III. Deste despacho recorre o autor que, encerra as suas alegações nos seguintes termos:
“a) - Porque o regime de competência deslocada, como se vê do artigo 1º do Dec.Lei 272/01, de 13/10, visou os “processos especiais”, e se reporta a situações de competência em razão da matéria – artº 8º da citada lei -
a.1) – e, no âmbito do C.P.C., o processo especial, até de jurisdição voluntária – artigo 1412º do C.P.C. , era o que tinha por objecto “alimentos a filhos maiores ou emancipados, nos termos do artigo 1880 do Código Civil” -,
b) - ou há atribuição de “competência especializada”, ou a mesma radica nos tribunais de competência genérica – artigo 77º, nº 1, a), da LOFTJ.
c) - Como o artigo 82 da mesma LOFTJ, só fixa a competência dos tribunais de Família para alimentos, quando não devidos a menores, para a situação de alimentos a prestar por força do artigo 1880 do C.C.,
d) - e a presente acção visa outra situação – a prestação de alimentos devidos a descendentes – artigo 2009º, nº 1, b), e 1935, que remete para o artigo 1878º, nº 1, do C.C., a competência cabe assim a um tribunal com competência genérica.
e) - Numa comarca onde há tribunais de competência específica, há que atentar na forma do processo – artigo 64º, nº 2 – IIª - da LOFTJ-, pelo que a competência se radica nas Varas cíveis – artigo 97, nº 1, a), da LOFTJ.

O entendimento adoptado na douta decisão violou, por erro de aplicação, o regime dos artigos 1880, 2009, nº 1, b), e 1935, que remete para o artigo 1878, nº 1, todos do C.C. e 77, nº 1, a), e 97, nº 1, a), da LOFTJ.

Revogando a douta decisão, desde logo pela reparação do agravo, fixando a competência na Vara Cível do Porto, no caso, a -ª Vara
far-se-á JUSTIÇA”

IV. Não foram apresentadas contra-alegações.
A Exma Juíza sustentou a decisão recorrida
Colhidos os legais vistos cabe decidir.

V. Sendo pelas conclusões que se delimita o objecto do recurso, cabe apenas decidir se para conhecer da presente causa são competentes as Varas Cíveis (no caso, a -ª Vara) do Porto.

VI. Na decisão em recurso refere-se que os pedidos de alimentos (a filhos maiores ou emancipados) devem ser apresentados na conservatória do registo civil e que no caso de oposição será o processo remetido ao tribunal competente (arts. 5º e 8º do DL 272/2001). E entendeu-se que o tribunal competente seria o de família e menores.
Como não resulta do processo ter este sido remetido por qualquer conservatória, e apesar da referência na decisão por implicação do disposto no citado artigo 5º, não se extraiu qualquer consequência do facto de a esse processo se não haver recorrido, colocando-se, sem essa fase, a questão da competência material em confronto com o tribunal de família e menores.

Diz o recorrente que o único processo especial (ponto 3 das alegações) para a fixação de alimentos a maiores era o previsto no artigo 1412º do CPC – que parece entender não ser aplicável na situação -, mas, no entanto, “requer processo especial de fixação de alimentos” (sem fazer qualquer referência ao regime especial) e não é a natureza especial do processo que determina a competência do tribunal (Varas Cíveis).

VII. A competência de um tribunal é a medida de jurisdição que lhe é atribuída ou a determinação das causas que lhe tocam e, em concreto, consiste no poder de julgar determinado pleito. Afere-se, essencialmente, pelo pedido formulado em conexão com a causa porque se pede, ou o direito para que se pede tutela e o facto ou acto donde emerge esse direito. Na definição da competência em razão da matéria atende-se ao objecto da causa, à natureza da relação substancial pleiteada, obedecendo a demarcação da respectiva competência a um princípio de especialização.
A competência do tribunal é um pressuposto, a apreciar em concreto, perante cada acção, em ordem a determinar se entre esta e aquele existe a conexão considerada relevante e decisiva pela lei, atribuindo-lhe o poder para apreciar a causa (v. Anselmo de Castro, Proc. Civil Declaratório, II, 20).

Nos termos do artigo 1879º do C.C., os pais ficam desobrigados de prover ao sustento dos filhos e de assumir as demais despesas com a segurança, saúde e educação na medida em que em estes estejam em condições de, pelo seu trabalho, suportar esses encargos.
Essa obrigação termina, em princípio, com a maioridade dos filhos.

Porém, “se no momento em que atingir a maioridade ou for emancipado o filho não houver completado a sua formação profissional, manter-se-á a obrigação a que se refere o artigo anterior na medida em que seja razoável exigir aos pais o seu cumprimento e pelo tempo normalmente requerido para que aquela formação se complete” (artigo 1880º do CC).
Trata-se das situações que, apesar da maioridade legal, continua a haver como que uma menoridade económica/financeira, porque o filho ainda não se encontra, do ponto de vista da formação técnica e profissional, com autonomia suficiente para angariar por si os meios de subsistência, para autonomamente prover ao seu sustento.
O dever dos pais prover ao sustento, saúde, segurança e educação dos filhos continua, nestas circunstâncias, mesmo depois de estes atingirem a maioridade se nesse momento ainda não completaram a sua formação profissional, mantendo-se pelo tempo normalmente necessário para que essa formação se complete. A solidariedade familiar exige que essa obrigação persista pelo tempo necessário (normal) para se completar a formação profissional.

Com o DL 272/2001, de 13/10, transferiram-se competências para as conservatórias do registo civil em matérias respeitantes a um conjunto de processos de jurisdição voluntária relativos a relações familiares, nomeadamente em matéria de alimentos a filhos maiores (como resulta do preâmbulo desse DL), com vista a aliviar os tribunais judiciais de processos em que, por natureza, não se consubstanciam verdadeiros litígios ou conflitos de interesses, privilegiando-se o acordo como forma de solução, e, dessa forma, efectivar a tutela dos direito em causa de uma forma mais célere.
E resulta do seu artigo 1º que por esse diploma legal se determina atribuição de competências relativas a um conjunto de processos especiais dos tribunais judiciais para o Ministério Público e as conservatórias do registo civil.

E o processo para o efeito, incluindo para fixação de alimentos a filhos maiores, é regulado nos arts. 5º e segs. desse diploma legal, excepcionadas as situações previstas no nº 2 desse artigo 5º (e, na situação destes autos, nem sequer se peticiona apenas uma prestação alimentar, o que afastaria o recurso a esse processo).
Havendo oposição ou não havendo acordo, é o processo remetido ao tribunal competente em razão da matéria (artº 8º desse DL). A intervenção da conservatória (ao contrário das situações previstas no artigo 12º, da sua exclusiva competência) e o processo delineado visam a obtenção do acordo das partes, a composição pelas próprias partes, e não proferir decisão em desacordo com alguma delas. Daí que não obstante esse procedimento, a estas fica sempre aberto acesso à via judicial quando haja oposição ao requerido ou não for possível o acordo (artigo 8º). Nesta situação é ao tribunal (competente em razão da matéria) que cabe decidir.

No âmbito dos processos de jurisdição voluntária a para a fixação de alimentos a filhos maiores, nos termos do artº 1880º do CC, regulava o artº 1412º do CPC. Era este o único processo especial para a fixação de alimentos a filhos maiores.
E trata-se de processo especial e de jurisdição voluntária.
Estipula esse artigo 1412º do C.P.C. que “1 - quando surja a necessidade de se providenciar sobre alimentos a filhos maiores ou emancipados, nos termos do artigo 1880º do Código Civil, seguir-se-ão, com a necessárias adaptações, o regime previsto para os menores”.
2 – Tendo havido decisão sobre alimentos a menores e estando a correr o respectivo processo, a maioridade ou a emancipação não impedem que o mesmo se conclua e que os incidentes de alteração ou cessação de alimentos corram por apenso”.
Não se previa nesse normativo o processo para se peticionar alimentos em situações diversas, ou seja, que não fossem os requerentes filhos maiores na situação do artigo 1880º do CC.

Estabelece o artigo 66º do CPC que “são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”. Se não houver lei a atribuir a competência a tribunal especial para conhecer de determinada causa, essa competência cabe aos tribunais judiciais. Por sua vez, prescreve o 67º do mesmo código que “as leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais dotados de competência especializada”.
Essas leis são, antes de mais, a LOFTJ (Lei nº 3/99, de 13/01 e o seu Regulamento aprovado pelo DL nº 186-/A/99, de 31/5, com as alterações do DL 290/99, de 30/7).

Prescreve o artº 64º da Lei nº 3/99, de 13/02, «que “pode haver tribunais de 1ª instância de competência especializada e de competência específica” (nº 1) e “os tribunais de competência especializada conhecem de matérias determinadas, independentemente da forma de processo aplicável; os tribunais de competência específica conhecem de matéria determinadas pela espécie de acção e pela forma do processo aplicável,...” (nº 2).
Por sua vez, preceitua o artigo 77º desta Lei que:
“1-compete aos tribunais de competência genérica:
a) Preparara e julgar os processos relativos a causas não atribuídas a outro tribunal”.
Os tribunais de comarca podem desdobrar-se em varas, com competência específica, quando o volume e a complexidade do serviço o justifiquem (artigo 65º, nº 3, da mesma Lei).
As varas cíveis são definidas na lei como tribunais de competência específica - art. 96º, nº 1. a) - a qual está fixada no artº 97º da referida Lei.

Os tribunais de família e menores são de competência especializada (artigo 78º, b) e c), da Lei nº 3/99. O âmbito da sua competência está expressamente prevista na lei (arts. 81º a 83º da LOFTJ), não tendo competência para dirimir conflitos ou conhecer de outras matérias que não as aí especificadas. A sua jurisdição está limitada às matérias expressamente previstas nos arts. 81º a 83º dessa Lei.
Ora, estipula no artigo 82º, nº 1, e), da mesma Lei, que compete igualmente aos tribunais de família “fixar os alimentos devidos a menores e aos filhos maiores ou emancipados a que se refere o artigo 1880º do Código Civil e preparar e julgar as execuções por alimentos”.
A situação vertida na petição não se enquadra no âmbito do artigo 1880º do CC, não cabendo na competência do tribunal de família.
Nos termos ao artigo 140º do CC “pertence ao tribunal por onde corre o processo de interdição a competência atribuída ao tribunal de menores nas disposições que regulam o suprimento do poder paternal” (embora algumas dessas competências estejam atribuídas ao MP, nos termos dos arts. 2º a 4º do citado DL)..
Ora, essa competência não é do tribunal de família e menores, mas do tribunal de competência genérica e, onde os haja, dos juízos ou varas cíveis (tribunais de competência específica – arts. 96º a) e c), 97º, a), e 99º da Lei nº 3/99).

O único processo de jurisdição voluntária (e especial) relativo a fixação de alimentos a filhos maiores é o previsto no artigo 1412º do CPC. Esse processo de jurisdição voluntária não é o adequado fora do seu âmbito de aplicação, nomeadamente para nele se providenciar a fixação de alimentos a filhos maiores fora das situações previstas no artigo 1880º, em que apesar da maioridade legal, continua a dependência económica dos filhos, enquanto não completaram a sua formação técnico-profissional. Não é o processo próprio para a fixação a alimentos a descendentes (artº 2009º do CC), que não se encontrem na situação prevista no artigo 1880º do CC.

A fixação de alimentos a descendentes (com excepção dos filhos menores e dos maiores que se encontrem na situação prevista no artigo 1880º do CC) é da competência dos tribunais de competência genérica (arts. 77º, nº 1 a) da Lei 3/99) ou dos juízos ou varas cíveis (onde os haja), seguindo a acção os termos do processo comum, e de acordo com o valor da causa, o que pode importar a alteração da forma de processo ou a necessária adequação processual à pretensão formulada, por se escolher forma errada de processo.
“A competência material dos tribunais civis é aferida por critérios de atribuição positiva e de competência residual” e segundo o critério de competência residual, incluem-se na competência dos tribunais civis todas as causas que “não são legalmente atribuídas a nenhum outro tribunal. Isto é, os tribunais judicias são os tribunais com competência material residual (art. 211º, nº 1, da Constituição da Republica Portuguesa; 18º, nº 1, da LFOTJ) e no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais civis aqueles que possuem competência residual” (Miguel Teixeira de Sousa, em “A Nova Competência dos Tribunais Civis”, Edições Lex, 1999, págs.31/32)
Os tribunais de família e menores são de competência especializada (artigo 78º, b) e c), da Lei nº 3/99. E o âmbito da sua competência está expressamente prevista na lei (arts. 81º a 84º da LOFTJ), não tendo competência para dirimir conflitos ou conhecer de outras matérias não previstas. Não são os competentes para a presente acção.
Conclui-se que competentes para conhecer do objecto da acção instaurada pelo recorrente são os tribunais com competência em matéria cível. As Varas Cíveis da Comarca do Porto (no caso, a 8ª vara) – artº 97º, nº 1. a), da LOFTJ – não são incompetentes em razão da matéria para a causa, pelo que o recurso merece provimento.

VIII. Pelo exposto, acorda-se em dar provimento ao agravo, revogando-se o douto despacho impugnado e julgando-se o tribunal recorrido materialmente competente para causa.
Sem custas.

*
Porto, 13 de Janeiro de 2005
José Manuel Carvalho Ferraz
Nuno Ângelo Rainho Ataídes das Neves
António do Amaral Ferreira