SEGUNDA PERÍCIA
Sumário

Até à reforma do processo civil de 1995/96, o requerente da realização de segunda perícia não tinha de justificar o pedido, pelo que o juiz não podia indeferir esse requerimento; com a exigência de invocação das razões da discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (artigo 589.º do CPC-1961 após 1995/96, e artigo 487.º do CPC-2013), o juiz passou a ter de decidir sobre o requerimento de segunda perícia, devendo indeferi-la quando ela se mostre impertinente ou meramente dilatória.

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa

I. Relatório
LUSITANIA COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., ré na ação declarativa com processo comum contra si intentada por S…, notificada do despacho que indeferiu o seu requerimento de uma segunda perícia, e com ele não se conformando, interpôs o presente recurso.
No processo principal discute-se responsabilidade civil emergente de acidente de viação.
Tendo o autor sofrido danos na sua pessoa, foi-lhe realizada perícia médico-legal com quesitos de ambas as partes.
Em 07/02/2020, foi junto aos autos o relatório pericial de avaliação do dano corporal em direito civil, emitido em 03/02/2020, por perita médica do Instituto Nacional de Medicina Legal.
Notificada, veio a ré, por requerimento de 26/02/2020, deduzir reclamação e pedir esclarecimentos.
Por despacho de 02/09/2020, a reclamação foi deferida, oficiando-se ao INML, ao cuidado da senhora perita, para que esta prestasse os esclarecimentos e justificações solicitados pela ré.
No mesmo despacho, o tribunal ordenou, motu proprio, que a senhora perita respondesse de forma individualizada a cada um dos temas de prova/quesitos colocado.
Por relatório de 12/10/2020, entrado em juízo em 20/10/2020, a senhora perita prestou os esclarecimentos ordenados na sequência da reclamação da ré.
As partes foram notificadas em 10/11/2020 e nada disseram.
Em 23/03/2021, é junto aos autos o relatório de 15/03/2021, que dá resposta à determinação do tribunal de pronúncia individualizada sobre cada quesito.
É na sequência da notificação deste último (relatório pericial de 15/03/2021, junto aos autos em 23/03/2021), que a ré veio novamente reclamar e, pela primeira vez, requerer a realização de segunda perícia.
Por despacho de 06/05/2021, foram ambas indeferidas nos seguintes termos:
«Notificada das respostas individualizadas às questões sujeitas a perícia constantes do relatório elaborado pela Sra. Perita do INML em 15/03/2021, veio a Ré apresentar nova reclamação e requerer a realização de 2.ª perícia, com as razões constantes do requerimento em epígrafe. Relativamente à realização de uma segunda perícia, defende que o relatório pericial enferma de obscuridades que originam a falta de fundamentação das conclusões e que não foram colmatadas pelos esclarecimentos prestados.
Notificado, o Autor pugnou pelo indeferimento deste requerimento por não se mostrarem preenchidos os requisitos legais.
Vejamos.
Conforme resulta dos autos, a Sra. Perita do INML apresentou o relatório final de avaliação de dano com data de 03/02/2020 (fls. 311 a 321), relativamente ao qual a Ré apresentou reclamação. Na sequência desta reclamação, foi determinado, por despacho de 02/09/2020, que a Sra. Perita prestasse os esclarecimentos e as justificações solicitadas pela Ré e respondesse individualmente a cada um dos temas da prova/quesitos alvo de perícia.
A Sra. Perita prestou os esclarecimentos solicitados pela Ré no seu relatório de 12/10/2020 (fls. 328 a 330), os quais não mereceram qualquer objeção das partes, e respondeu individualmente aos temas da prova/quesitos no seu último relatório de 15/03/2021 (fls. 334 a 338).
Importa sublinhar que este último relatório (de 15/03/2021) com respostas individualizadas foi solicitado pelo Tribunal oficiosamente por entendermos que face à extensão e nível de concretização dos temas da prova/quesitos colocados à perícia, a mera leitura do relatório pericial final nem sempre tornava evidente a resposta a cada um deles. E logo previmos que nessa resposta individualizada a Sra. Perita pudesse em parte ter de repetir o que já constava do relatório, podendo em alternativa, neste caso, remeter para um ponto exato do relatório.
Como é sabido, as perícias médico-legais são realizadas pelos serviços médico-legais ou peritos médicos contratados, nos termos previstos no diploma que as regulamenta, estando cometidas ao INML (cfr. Lei nº 45/2004 de 19/08).
Realizada uma perícia e apresentado o respetivo relatório médico-legal, as partes, em caso de discordância com o seu teor, têm duas possibilidades de reação: a) apresentar reclamação nos termos do art.º 485.º do C.P.C., se entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas; b) solicitar a realização de 2ª perícia, nos termos do art.º 487.º do C.P.C., alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
A Ré começa por dizer que relativamente aos quesitos colocados a Sra. Perita limita-se a remeter para outros relatórios, a considerar alguns deles prejudicados, ou apresentar opiniões evasivas como “admito que sim”.
Neste conspecto, entendemos que numa perícia com tantas questões como é o caso da dos autos, é normal e aceitável que a resposta a algumas questões prejudique a resposta a outras, sendo que, a Sra. Perita não estava impedida de remeter para o relatório; o que importava era responder de forma discriminada às questões e isso acabou por ser feito (aliás, nas questões em que remete para o relatório, a senhora perita responde antes “sim” ou “não”). Por outro lado, também na medicina nem sempre as respostas podem ser absolutamente perentórias (a medicina não é uma ciência exata), daí ser de tolerar em algumas questões respostas como “admite-se que sim”.
Prosseguindo, no que toca à reclamação propriamente dita, nos pontos 7 a 26 do requerimento em epígrafe, a Ré repete o que já constava da reclamação anterior e foi alvo de despacho, tendo sido prestados os correspondentes esclarecimentos (relativamente aos quais a Ré nada disse), nada mais havendo que esclarecer ou justificar. Com efeito, além de mais, a Sra. Perita esclareceu a razão da desvalorização pelo código Mc1102, a razão pela qual considera a existência de dano futuro, e a razão da necessidade de ajudas técnicas permanentes - veículo automóvel com caixa de mudanças automática – não obstante a atividade profissional do Autor não exigir o exercício da condução (importa lembrar que a avaliação do dano corporal em matéria cível é mais ampla que a que a avaliação a que se procede em matéria laboral por acidente de trabalho, sendo que, como refere a senhora perita nos esclarecimentos de 12/10/2020, a atividade de condução não foi valorada na afetação profissional).
É no ponto 27 do requerimento em epígrafe que a Ré requer, em jeito de conclusão, a realização de uma segunda perícia, repetindo as afirmações que havia feito para justificar as reclamações apresentadas e que já foram alvo dos devidos esclarecimentos, e formulando o seu juízo acerca da pontuação que deve ser fixada como défice funcional permanente da integridade físico-psíquico. A Ré também (re)afirma que “o sinistrado já tomava medicação antidepressiva e ansiolítica antes do sinistro”, contudo, este facto não consta do relatório preliminar nem do relatório final, e, nos esclarecimentos de 12/10/2020 a Sra. Perita refere que o Autor foi questionado neste particular tendo negado a existência de antecedentes do foro psiquiátrico.
Ora, como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 08/03/2018 (proferido no processo nº 468/15.0T8PDL-B.L1-6 in www.dgsi.pt) “Esta segunda perícia tem por objeto a averiguação dos mesmos factos sobre que incidiu a primeira e destina-se a corrigir a eventual inexatidão dos resultados desta. A reclamação prevista no art.º 485 do C.P.C. e a segunda perícia prevista no art.º 487 do C.P.C., têm objetivos diversos, visando a primeira que o(s) perito(s) que a elaborou(raram) a corrijam ou completem e a segunda que outros peritos corrijam a eventual inexatidão de que enferma o relatório pericial. Mas, em princípio, se por via da reclamação forem sanadas as faltas apontadas, (…), até por razões de economia processual, não é de admitir a 2ª perícia. Esta só tem razão de ser perante o manifesto e inultrapassável erro ou insuficiência da 1ª. (…)” (o destacado a bold é nosso).  É o que se passa na situação vertente. O Autor não apresentou novas faltas ou omissões que importasse dilucidar. As eventuais incompletudes ou inexatidões do relatório pericial foram corrigidas com os esclarecimentos prestados em 12/10/2020 e com as respostas individualizadas de 15/03/2021.  Destarte, pelas razões expostas, indefere-se a reclamação em epígrafe bem como o pedido de realização de segunda perícia.
A ré não se conformou e recorreu, concluindo as suas alegações de recurso da seguinte forma:
«1 - O presente recurso vem do douto Despacho proferido nestes Autos, correspondente à ref. 405177571, que indeferiu o pedido de realização de segunda Perícia;
2 - Foi elaborado aditamento ao Relatório da Perícia de Avaliação do Dano Corporal em Direito Cível, relativo ao Autor;
3 - Todavia, ao preparar as respostas em apreço, a Senhora Perita do INML não habilitou os Autos com elementos os elementos necessários, suscetíveis de clarificar os parâmetros de Dano vertidos no Relatório Pericial;
4 - Por inerência, o Relatório em apreço não aprofundou os diversos temas que foram colocados, nem foram fornecidas explicações completas sobre as questões enunciadas;
5 - Se houve o especificado cuidado de individualizar concretas questões, as respetivas respostas que se limitam a remeter para o Relatório Preliminar, para o Relatório Final e para outros documentos, não podem ser consideradas suficientes;
6 - A norma do art.º 487º nº 1 do C.P.C. exige à parte que requerer a realização de segunda Perícia, que explicite os pontos em que se manifesta a sua discordância do resultado atingido na primeira, com apresentação das razões, segundo as quais, entende que esse resultado devia ser diferente;
7 - Este ónus foi respeitado de perto pela Ré/Recorrente, porque salientou que existem deficiências e obscuridades, tanto no Relatório Pericial como no aditamento com os esclarecimentos em crise, cujas conclusões não estão devidamente fundamentadas;
8 - As críticas apresentadas pela ora Recorrente foram separadas e individualizadas por temas;
9 - Além disso, ao concluir o seu Requerimento, salientou as obscuridades que não foram colmatadas pelos esclarecimentos prestados, sintetizando as suas alegações em 17 tópicos, identificados de a) a r);
10 - Este Venerando Tribunal ad quem deve aceitar que a Recorrente evidenciou os pontos com os quais não concordou;
11 - Alegando especificadamente as razões da sua discordância, a Recorrente cumpriu o único requisito legal previsto pelo art.º 487º nº 1 do C.P.C.;
12 - A Jurisprudência dominante estabelece que, a alegação fundamentada das razões da discordância, não impõe que estas sejam razões de convencimento do Tribunal a quo;
13 - Para saber se as razões invocadas para realização da segunda Perícia são pertinentes, é preciso conhecer o resultado do pretendido segundo Exame;
14 - Face ao exposto, o Despacho recorrido violou o disposto no art.º 485º nº 2 e no art.º 487º nº 1 do CPC, que estabelecem direitos inalienáveis da Recorrente.»
O autor não contra-alegou.
Foram colhidos os vistos e nada obsta ao conhecimento do mérito.
Objeto do recurso
Sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso, são as conclusões das alegações de recurso que delimitam o âmbito da apelação (artigos 635.º, 637.º, n.º 2, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
Tendo em conta o teor daquelas, coloca-se a questão de saber se a segunda perícia deve, nas peculiares circunstâncias do caso, ser admitida.
II. Fundamentação de facto
Os factos relevantes são os que constam do relatório.
III. Apreciação do mérito do recurso
Nos termos do disposto no artigo 487.º do CPC, qualquer das partes pode requerer que se proceda a segunda perícia, no prazo de 10 dias a contar do conhecimento do resultado da primeira, alegando fundadamente as razões da sua discordância relativamente ao relatório pericial apresentado.
O artigo 485.º do mesmo código estabelece, por sua vez, que a apresentação do relatório pericial é notificada às partes (n.º 1) e estas, se entenderem que há qualquer deficiência, obscuridade ou contradição no relatório pericial, ou que as conclusões não se mostram devidamente fundamentadas, podem dele reclamar (n.º 2), no prazo legal supletivo de 10 dias (artigo 149.º do CPC), uma vez que não há prazo expressamente estabelecido para o ato em causa.
Havendo reclamação, a partir de quando se conta o prazo para requerer segunda perícia? O regime jurídico processual da prova pericial, nomeadamente os citados artigos 487.º e 485.º, não dão resposta direta.
Tem-se entendido, e concordamos, que, havendo reclamação e despacho que a defira, o conhecimento do resultado da primeira perícia apenas se obtém com o relatório complementar que preste os solicitados esclarecimentos (v.g., Paulo Pimenta, Processo Civil Declarativo, Almedina, 2016, nota 857).
O caso dos autos é peculiar, pois, a ré reclamou, a perita prestou os esclarecimentos e, notificada do respetivo relatório complementar, a ré nada disse.
Apenas meses depois, quando é junto aos autos um relatório, também complementar da primeira perícia, mas que foi solicitado por exclusiva iniciativa do tribunal, a ré vem requerer
a segunda perícia.
Vamos admitir, com dúvidas, que a ré estava em tempo para a requerer.
Até à reforma do processo civil de 1995/96, o requerente de realização da segunda perícia não precisava de justificar o pedido, pelo que o juiz não podia indeferir o requerimento; com a exigência de invocação das razões da discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (artigo 589.º do CPC-1961 após 1995/96, e artigo 487.º do CPC-2013), passou o juiz a ter de decidir sobre o requerimento de segunda perícia, devendo indeferi-la quando ela se mostre impertinente ou meramente dilatória.
Os tribunais superiores tendem a julgar admissíveis os requerimentos de segunda perícia, mesmo quando parcamente fundamentados, especialmente quando a mesma é requerida pelo autor (o que não é o caso dos autos). Leiam-se, a título de exemplo, os Acórdãos do TRG de 29/10/2015, proc. 5532/13.8TBBRG-A.G1; 05/11/2015, proc. 1399/13.9TBCBT-A.G1; 12/07/2016, proc. 559/14.5TJVNF.G1; 12/01/2017, proc. 117/14.4TBMGD-B.G1; e, 09/03/2017, proc. 3904/14.0T8VNF-A.G1; o Ac. do TRE de 22/03/2018, proc. 2207/15.7T8STR-A.E1; ou, o Ac. do TRL de 26/03/2019, proc. 15426/17.2T8LSB-A.L-7.
Nem sempre, porém. Por exemplo, no Ac. do TRG de 13/03/2014, proc. 548/11.1TBCBT-D.G1, a segunda perícia, requerida pela executada, não foi admitida, com fundamento em insuficiente fundamentação (esta não preencheria as exigências do artigo 589.º do CPC então vigente – idêntico ao artigo 487.º do CPC-2013); e, no Ac. TRL de 28/09/2017, proc. 3290-12.2TJLSB-A.L1-8, foi indeferida a segunda perícia de avaliação do dano corporal, pedida pela ré.
Ao requerer a segunda perícia, na sequência do relatório complementar que, a pedido do tribunal, respondeu às questões de forma individualizada, a ré começa por alegar que «a Senhora Perita não habilitou os Autos com elementos novos, suscetíveis de clarificar e de esclarecer o conteúdo do primitivo Relatório», tendo respondido a parte dos quesitos com: remissões para elementos clínicos dos autos e para dados dos anteriores relatórios; «admito que sim»; prejudicado por resposta anterior.
Estes reparos afiguram-se-nos injustificados, pois tais respostas não geram por si qualquer dificuldade na leitura do relatório, nem qualquer deficiência do mesmo. A ré não pôs em causa que as respostas dadas como prejudicadas por outras não o estivessem de facto; assim como não pôs em causa que as respostas «admito que sim» não fossem dadas sobre questões de facto de que a perita (ou qualquer outro no seu lugar) não podia ter cabal conhecimento; muito menos as remissões para elementos dos autos são contestáveis, tanto mais que, no despacho de 02/09/2020, pelo qual se solicitou as respostas individualizadas, o tribunal previu, em parte, essa possibilidade – «ainda que em parte possa ter de repetir o que já consta do relatório (podendo em alternativa neste caso remeter para um ponto exato do relatório)».
Nos pontos 7 a 26 do requerimento, a ré repete o que já constava dos pontos 2 a 19 da reclamação de 26/02/2020, deferida por despacho de 02/09/2020, sobre a qual foi produzido o relatório complementar junto aos autos em 20/10/2020, o qual, após notificação, não mereceu reação das partes.
Esta nova reclamação foi indeferida, com o que a ré se conformou.
Finalmente, no ponto 27 do requerimento, a ré pede a realização de uma segunda perícia, fundamentando-a nas mesmas alegações que havia feito para justificar as reclamações apresentadas e que já tinham sido alvo de esclarecimentos, sem reação da ré.
Por tudo o exposto, afigura-se-nos que o requerimento de segunda perícia é meramente dilatório e substancialmente infundado.
Sumariando, nos termos do artigo 663.º, n.º 7, do CPC:
Até à reforma do processo civil de 1995/96, o requerente da realização de segunda perícia não tinha de justificar o pedido, pelo que o juiz não podia indeferir esse requerimento; com a exigência de invocação das razões da discordância relativamente ao relatório pericial apresentado (artigo 589.º do CPC-1961 após 1995/96, e artigo 487.º do CPC-2013), o juiz passou a ter de decidir sobre o requerimento de segunda perícia, devendo indeferi-la quando ela se mostre impertinente ou meramente dilatória.

IV. Decisão
Face ao exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar a apelação totalmente improcedente, mantendo o despacho recorrido.
Custas pela recorrente.
Dê conhecimento ao processo principal, cujo recurso da sentença final corre na 8.ª Secção deste Tribunal.

Lisboa, 14/09/2023
Higina Castelo
Carlos Branco
António Moreira