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REAPRECIAÇÃO DA PROVA
CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
Sumário
A reapreciação de prova, ao abrigo do disposto no artigo 412º/3 e 4 do CP, só é legalmente possível se os fundamentos aduzidos forem abstractamente aptos a impor convicção diversa daquela que foi vertida na decisão recorrida. O crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21º do DL 15/93 consuma-se pela prática de quaisquer das condutas cabidas na previsão legal, sendo que a ausência de prova de venda não funciona como circunstância atenuante quando o crime foi cometido pela mera detenção. (sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes, em conferência, na 3ª Secção Criminal, deste Tribunal:
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I – Relatório:
Em processo comum, com intervenção do Tribunal colectivo os arguidos:
- R__________, casado, cozinheiro, reformado, filho de … e de …, nascido a 22/10/1946, em Inglaterra, titular do passaporte nº _, residente em _____ Alicante, Espanha, detido preventivamente à ordem destes autos no EPL;
- S____________, casada, secretária reformada, filha de … e de …, nascida a 29/03/1948, em Inglaterra, titular do passaporte nº …, residente em …, Guardamar Dei Segura, Alicante, Espanha, detido preventivamente à ordem destes autos no EP de Tires,
Foram condenados pela co-autoria de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punível pelo artigo 21º/1 do DL nº 15/93, de 22/01, com referência à Tabela I-B, na pena de oito anos de prisão cada um.
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Os arguidos recorreram, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem: «I. Foram os Recorrentes S____________ e R__________ condenados pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punível pelo artigo 21º nº 1 do DL 15/93, de 22/01, com referência á tabela I-B anexa, na pena de 8 anos de prisão. II. No entanto, considera-se que a presente acusação viola, por um lado, o Princípio da Exatidão, III. E por outro, e sobretudo ao que à Recorrente S____________ diz respeito, o Principio in dúbio pro Réu, como melhor se explica em sede de alegações. IV. No entanto, refira-se: V. Os Recorrentes prestaram declarações em sede de primeiro interrogatório, sendo que na audiência de discussão e julgamento somente o Arguido contou a sua versão dos factos. VI. No entanto, em ambos as ocasiões, estes negaram a prática dos factos alegando, grosso modo, o desconhecimento do conteúdo existente nas malas. VII. Andou mal o Tribunal a quo nestas condenações primeiramente porque não existe prova suficiente nos autos que comprove o efetivo conhecimento da existência de 9 kg de cocaína nas malas transportadas pelos Arguidos. VIII. Isto é, nem a investigação feita, nem as testemunhas apresentadas pelo Ministério Público, demonstraram factos suficientes que afastem a versão dos Arguidos. IX. Mais! Na presente data desconhece-se a quantidade efetivamente transportada por cada um dos Arguidos em cada uma das malas. X. Mais se desconhecendo que malas e, por conseguinte, que quantidade de estupefaciente era transportada por cada um dos Arguidos. XI. Ora, o Tribunal a quo trata os Recorrentes como sendo um só imputando a ambos o transporte de 9 kg de cocaína. XII. Porém, e salvo melhor entendimento, ainda que se trate aqui de uma alegada co-autoria, tal não pode suceder. XIII. Em primeiro lugar porque cada um dos Recorrentes é uma individualidade, XIV. Em segundo porque cada um deles transportou somente duas malas. XV. Ora, se considerarmos que estes transportavam 9 kg, estamos a considerar a existência de uma apreensão de 18 kg. XVI. O que, refira-se, não sucedeu. XVII. No entanto, a Polícia Judiciária Portuguesa negligenciou a investigação ficando-se pela prova sumária do flagrante delito. XVIII. Em nenhum momento os órgãos de investigação criminal portuguesa apuraram a quantidade efetivamente transportada em cada mala – 2 kg? 0,5 g? XIX. E, afinal, que quantidades foram, efetivamente, transportadas por cada um dos Recorrentes. XX. Refira-se ainda que em nenhum momento ficou provado que a Recorrente S_______ tenha saído ao mesmo tempo que o Recorrente R________ no porto de Santa Lúcia para levantar as malas. XXI. Aliás, a Recorrente S_________ apenas carregou consigo as malas por forma a ajudar o seu marido, como consta dos registos de entrada no navio. XXII. Refira-se ainda que não é possível dar como provado que os Recorrentes mantinham contactos com o intuito de entregar as substâncias estupefacientes em Portugal. XXIII. Mais uma vez a polícia judiciária, tendo apreendido todos os meios de comunicação dos Recorrentes, como telemóveis e tablets, nada investigou nesse sentido. XXIV. Não tendo, inclusivamente, pesquisado as mensagens e chamadas telefónicas trocadas pelos Recorrentes. XXV. O mesmo se diga quanto à agenda e cartões bancários apreendidos. XXVI. Em momento algum se descobriu destinatários dos produtos ou pessoas ligadas a qualquer tipo de organização de tráfico. XXVII. Ainda menos existindo prova de que os Recorrentes tinham quantias monetárias do produto da venda ou do tráfico dessas substâncias. XXVIII. Questiona-se assim, desta forma, como pode o tribunal considerar como provado o ponto 2,3,5,6,7,8 e 9 do Douto Acórdão!? Como podem ser dados como provados esses factos? XXIX. Salvo melhor entendimento tal aconteceu fruto de uma verdadeira contradição entre aquilo que existe objetivamente como prova e aquilo que é dado como provado. XXX. Existindo, ainda, uma clara violação do Princípio da exatidão pois em nenhum momento se consegue definir, afinal, a participação e os moldes dessa participação de cada um dos Recorrentes. XXXI. O que num estado de Direito não pode acontecer, sendo da mais elementar justiça que havendo dúvidas, ou, no caso presente, não existindo provas suficientes que refutem a versão dos Recorrentes, XXXII. Estes sejam absolvidos. XXXIII. No entanto, sem conceder e por mero dever de patrocínio, caso o Tribunal A quem concorde com a condenação proferida pelo Tribunal A quo, sempre se dirá que a medida da pena é excessiva. XXXIV. Na condenação o Tribunal A quo apenas se importou em fazer da presente condenação um exemplo, considerando o mediatismo do caso. XXXV. Não foi, em momento algum, considerados os factos da idade e fraca saúde dos Recorrentes. XXXVI. Tal como não foi considerado que ao colocarem os Recorrentes em regime de reclusão em estabelecimento Português estes não terão qualquer socialização possível considerando que têm a barreira linguística e ainda o facto de não receberem qualquer visita dos seus familiares que se encontram em Espanha e Reino unido. XXXVII. Motivo pelo qual se requer, que no caso de ser aplicada a condenação de ambos os Recorrentes, a mesma seja reduzida e neste caso, que possam ser transferidos para cumprir pena no seu país de origem através de delegação de execução da sentença penal, tornando possível, desta forma, uma melhor reintegração social, dessa forma repondo a tão aclamada justiça! Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso, devendo em consequência revogar-se o douto acórdão recorrido, assim se repondo a costumada justiça!».
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Contra-alegou o Ministério Público, concluindo as respectivas alegações no sentido da improcedência do recurso.
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto secundou a contra-motivação.
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II- Questões a decidir:
Do art.º 412º/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso ([1]), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso ([2]).
As questões colocadas pelos recorrentes, arguidos, são:
- Violação dos princípios da exactidão e do in dubio pro reo quanto aos factos contidos nos pontos 2, 3, 5, 6, 7, 8 e 9 do provado;
- Excesso da medida das penas.
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III- Fundamentação de facto: Na sentença recorrida foram considerados provados os seguintes os factos:
1. No dia 5 de Novembro de 2018 os arguidos embarcaram no navio de passageiros denominado "MV Marco Polo", no Porto de Tilbury, em Londres, no Reino Unido.
2. Os arguidos levaram consigo, para o interior da cabine 469 que ocupavam, após visita à ilha de Santa Lúcia no dia 21/11/2018, quatro malas de viagem, do tipo trolley.
3. Sucede que as referidas malas continham, dissimulada nas respectivas estruturas, cocaína (cloridrato) como peso líquido de 9.015 kg.
4. O aludido navio zarpou de Londres na referida data de 5 de Novembro de 2018 e atracou no terminal de Santa Apolónia, em Lisboa, no dia 4 de Dezembro de 2018.
5. Nessa data, pelas 4h45, no interior do referido camarote nº 469, ocupado pelos arguidos, foram encontrados e apreendidos:
- Quatro malas, tipo trolley, sendo duas de cor azul e da marca "Expandable Airliner", e duas de cor castanha, da marca "YUANFAN", no interior das quais se encontrava a cocaína, com o peso referido no ponto 3;
- A quantia monetária de 540 libras inglesas;
- 2 telemóveis de marca SAMSUNG, um do modelo DUOS GT-E1207Y e outro modelo SM G357FZ;
- 5 folhas de tamanho A4, relativas à viagem de cruzeiro no navio "Marco Polo", efectuada pelos arguidos;
- 6 etiquetas relativas à cabine 419, do navio "Marco Polo" (cabine atribuída inicialmente aos arguidos e trocada posteriormente para a cabine 469);
- 1 tablet da marca "Apple - iPad" Modelo A1432, com FCCBCGA1432 e com o nº de série;
- 1 agenda pessoal, com capa dourada, do ano de 2018, com diversos apontamentos e três pequenos papéis com nomes e contactos manuscritos.
6. Os arguidos agiram em conjugação de vontades e esforços, com o propósito concretizado de receber e carregar consigo a cocaína, cujas características, natureza e quantidade conheciam, de Santa Lúcia para Portugal, com o fito de a entregar a terceiros, a troco de quantias monetárias.
7. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, em conjugação de esforços e intentos, sabendo que a detenção, o transporte e a comercialização de cocaína eram proibidos e punidos por lei.
8. Os telemóveis e tablet apreendidos aos arguidos, acima identificados, destinavam-se a ser utilizados para efectuar contactos entre estes e suspeitos não identificados que lhes davam orientações para a viagem e para receberam a cocaína transportada.
9. Os documentos apreendidos aos arguidos destinavam-se a ser utilizados na actividade de tráfico de estupefacientes.
10. Os arguidos não têm familiares, amigos ou emprego em Portugal.
11. Os factos praticados pelos arguidos são graves e envolvem consequências sociais irreversíveis.
12. Existe perigo de que continuem a praticar idênticos crimes, caso seja autorizada a sua entrada e permanência em Portugal.
13. Os arguidos já foram condenados pela prática de crime de tráfico de estupefacientes.
Quanto à situação económico-social do arguido R__________ provou-se que:
14. É oriundo do condado de Kent, Inglaterra, tendo o seu desenvolvimento decorrido no núcleo familiar de origem constituído pelos progenitores e quatro irmãos, contexto onde se manteve até aos dezoito anos de idade.
15. Ingressou no sistema de ensino na idade normal e completou o equivalente ao 9º ano de escolaridade.
16. Desistiu dos estudos após ter optado pelo ingresso como cadete no regimento de artilharia real, onde se manteve até aos 24 anos de idade.
17. Nesse período como militar, o arguido viria a autonomizar-se na sequência do seu matrimónio que apenas durou dois anos e do qual nasceram dois filhos.
18. Após o regresso à vida civil optou pela carreira como motorista de longo curso, actividade que terá desenvolvido durante cerca de duas décadas.
19. Nessa fase contraiu um segundo casamento, aos 27 anos de idade, relação que durou cerca de 20 anos e da qual nasceu uma filha.
20. Após ter deixado de ser motorista, refere ter concluído uma formação profissional como cozinheiro tendo dedicado os anos seguintes no exercício dessa função em diferentes sectores de restauração, nomeadamente em hotéis, restaurantes e também lares da terceira idade.
21. Em 2002 viria a contrair um terceiro matrimónio em Gibraltar, tendo o casal fixado residência em Benidorm, onde terão investido num negócio próprio na exploração de um bar/restaurante.
22. Este negócio viria a registar problemas financeiros após ano e meio de abertura, tendo contraído dívidas.
23. Começou a beneficiar da sua reforma em meados de 2010, data em que menciona ter sido extraditado para a Noruega, juntamente com a mulher, no âmbito de um processo relacionado com tráfico de estupefacientes no qual foi condenado em pena de prisão efectiva.
24. Após ter sido colocado em liberdade regressou a Espanha optando por regressar a Inglaterra após ter perdido o negócio do restaurante.
25. No período que mediou a sua saída de Espanha para Inglaterra e até à sua extradição para a Noruega fixou residência com a mulher em Surrey e, com receio de represálias de terceiros em Espanha, alterou o nome juntamente com a mulher.
26. Nesse período manteve-se laboralmente activo como cozinheiro, no âmbito de ofertas disponibilizadas por agências de emprego temporário.
27. Em 2015 viria a alterar a residência para a zona de Kent, mantendo nos mesmos moldes a actividade laboral exercida,
28. Após a passagem à reforma passou alguns períodos de lazer em cruzeiros, por vários países, juntamente com a mulher.
29. Em meio institucional o arguido tem mantido um comportamento institucional correcto e embora já tenha solicitado ainda não lhe foi atribuída qualquer função laboral.
30. Beneficia apenas do apoio da mulher, co-arguida, uma vez que os filhos e restante família residem em Inglaterra.
Quanto à situação económico-social da arguida S____________ provou-se que:
31. Constituiu família aos 21 anos, tendo o casamento durado quase 30 anos.
32. Divorciou-se quando tinha cerca de 50 anos da idade.
33. Tem 3 filhos com idades entre os 40 e os 38 anos com quem, no entanto, não mantém grandes contactos dado que os mesmos não aceitaram a sua decisão de separação/divórcio do pai deles.
34. A seguir ao divórcio estabeleceu uma nova relação com o aqui co-arguido com quem casou aos 53 anos.
35. Mantém uma boa relação familiar com os familiares do actual marido e com a sua irmã.
36. Iniciou a sua actividade profissional aos 16 anos de idade, numa fábrica da localidade onde residia, como escriturária/secretária.
37. Desenvolveu a referida actividade em crescente responsabilidade e amplitude nas tarefas, de modo aparentemente consistente, até se reformar por idade aos 65 anos como secretária de direcção.
38. Apenas interrompeu a sua vida profissional num curto período de tempo quando teve os 3 filhos, altura em que trabalhou como freelancer a partir de casa.
39. Aos 21 anos mudou da fábrica para um banco, mas refere ter trabalhado fundamentalmente na indústria aeronáutica em algumas empresas do ramo.
40. À data dos factos residia na morada dos autos, em Espanha, numa casa arrendada.
41. Desde há 3/4 anos que se mudou do Reino Unido para Espanha, vivendo do montante da sua reforma e da do marido que totalizam cerca de 1.300/1.400€.
42. Em meio prisional tem assumido um comportamento adaptado.
43. Ao nível de saúde apresenta problemas de hipertensão e síndrome vertiginoso, sendo seguida pelos serviços do EP também ao nível de problemas mamários e de stress.
44. Beneficia de visitas inter-EP's do co-arguido e corresponde-se com a irmã que se encontra a residir no Reino Unido, com uma amiga e com familiares do marido que residem em Espanha.
45. Cumpriu pena de prisão anteriormente na Noruega por factos da mesma natureza dos do presente processo.
Relativamente aos antecedentes criminais do arguido R__________ provou-se que:
46. Em Portugal não tem antecedentes criminais.
Relativamente aos antecedentes criminais da arguida S____________ provou-se que:
47. Em Portugal não tem antecedentes criminais.
*** Factos não provados:
Não se provou que:
- Os arguidos tenham carregado consigo a cocaína desde o Reino Unido;
- A quantia apreendida era parte do lucro que iriam obter com o transporte de cocaína.
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IV- Fundamentação probatória: O Tribunal a quo justificou a aquisição probatória nos seguintes termos: «O Tribunal formou a sua convicção a partir da análise crítica de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, segundo juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigo 127º do CPP). "A livre apreciação da prova a que alude o artigo 127º do Código de Processo Penal, não é reconduzível a um íntimo convencimento, a um convencimento meramente subjectivo, sem possibilidade de justificação objectiva, mas a uma liberdade de apreciação no âmbito das operações lógicas probatórias que sustentem um convencimento qualificado pela persuasão racional do juízo e que, por isso, também externamente possa ser acompanhado no seu processo formativo segundo o princípio da publicidade da actividade probatória." (Cfr. o Ac. do 517 de 3/03/1999, in MJ 485, pág. 248). Assim, para prova da factualidade dada por provada louvou o tribunal a sua convicção, em parte e desde logo, no teor do no auto de apreensão de fls. 44 a 46 relativo às quatro malas transportadas pelos arguidos, respectivo conteúdo e, bem assim, nos demais objectos apreendidos, nomeadamente telemóveis, tablet, etiquetas relativas à cabine 419 (a inicialmente atribuída aos arguidos e trocada posteriormente para a 469), documentação de viagem e agenda, descritos a fls. 45 e 46. Em especial, e no que respeita à forma como a cocaína apreendida vinha acondicionada no interior da estrutura das malas de viagem apreendias, atendeu-se também às fotografias de fls. 48, 49 e 108 a 116, onde são visíveis não apenas as identificadas malas no momento em que foram apreendidas no camarote dos arguidos, como as respectivas estruturas depois de separas, sendo claramente perceptível a forma como a cocaína estava acondicionada/dissimulada no interior daqueles objectos, exactamente nos termos descritos na matéria de facto provada. Atendeu-se ainda aos autos de teste rápido e de pesagem relativos a cada uma das malas (fls. 104 a 107) e ao resultado do exame pericial levado a cabo pelo Laboratório de Polícia Científica, relativo à cocaína apreendida, e cujo relatório consta de fls. 225. Afiguraram-se relevantes as declarações prestadas no início da audiência de julgamento pelo arguido R__________ que, excepção feita ao conhecimento do que se encontrava dissimulado na estrutura das quatro malas, descreveu ao tribunal as circunstancias em que as mesmas chegaram ao seu poder e a forma como foram apreendidas no dia 4 de Dezembro de 2018. Com efeito, o arguido após a descrição dos factos descritos na acusação começou por afirmar "diria que é tudo verdade embora eu não soubesse que havia droga nas malas". Referiu que as malas não eram suas, nem da sua mulher S__________, antes pertenciam a um amigo a quem as iriam entregar assim que regressassem ao Reino Unido. Explicou que tinha um amigo, de nome "Let", que sabia que o arguido e a sua mulher costumavam fazer cruzeiros pela zona das Caraíbas e que lhe pediu ajuda para negociar a importação de frutas exóticas e lhe trazer umas malas, de grande qualidade, que supostamente o mesmo fazia intenções de vender a comercializar em Londres. O tal amigo para além do negócio de frutas exóticas pretenderia começar a importar malas de viagem e por forma a verificar da viabilidade económica de tal negócio pediu-lhe para trazer, de Santo Lúcia, estas quatro malas. Assim, na sequência da indicação que lhe foi dada pelo seu amigo de forma precisa já durante a viagem, limitou-se a recolher as malas desconhecendo por completo que as mesmas tivessem dissimulada na sua estrutura cocaína. Acrescentou que não era a primeira vez que lhe pediam para trazer malas e que nunca teve qualquer problema com elas até porque foram sempre sujeitas a revistas como, certamente, sucederia com estas. Instado sobre se o pedido feito pelo amigo Let não lhe tinha levantado quaisquer suspeitas, referiu confiar totalmente no mesmo uma vez que se tratava de pessoa amiga com quem, tanto ele como a mulher, haviam convívio anteriormente. Afirmou, aliás, que a sua esposa e a esposa do Let eram bastante amigas e falavam várias vezes ao telefone. As pessoas que vieram ter consigo ao porto, em Santa Lúcia, eram aquelas com quem negociou o preço das frutas que o Let ia importar e que lhe deram as malas que foram apreendidas. Questionado porque motivo não foram encontradas outras malas na cabine que juntamente com a mulher ocupava explicou que, devido à falta de espaço no interior da mesma, para poder trazer estas malas para o seu amigo teve de se "livrar" das suas. Deu uma a um dos camareiros do navio e as outras deitou fora. No final da viagem seriam estas que teriam que utilizar para guardarem as suas próprias coisas. Apesar de a maior parte da roupa se encontrar arrumada em gavetas e no armário da cabine, já tinha colocado roupa sua e da sua mulher dentro delas, como aliás é visível nas fotografias. Convidado a explicar melhor os contornes do negócio da fruta desenvolvido pelo amigo Let, e cuja negociação lhe coube fazer com as mesmas pessoas que lhe entregaram as malas, acabou por reconhecer nem sequer saber o nome da empresa do amigo ou das pessoas com quem contactou. Afirmou que tal elemento não era para si importante uma vez que próprio Let estava em contacto permanente com os vendedores de fruta sendo que a si só lhe caberia falar com eles e tentar negociar o preço. Relativamente à forma como as quatro malas chegaram ao navio esclareceu que no dia em que chegaram a Santa Lúcia num primeiro momento a sua mulher ficou no navio, enquanto foi negociar com os indivíduos o preço da fruta, e que ao regressar para ir ter com ela levou logo uma mala. Depois a mulher saiu consigo e ao regressarem ao navio levaram as restantes. Referiu que o "Marco Polo" tinha o sistema de raio x avariado pelo que as malas foram apenas objecto de revista, ou seja, abertas. Questionado sobre se apesar de ter visto as mesmas vazias não tinha achado que as tinham um peso estranho, dado que estamos a falar de 9 kilos de cocaína, referiu que não notou qualquer diferença de peso uma vez que há malas com estruturas mais pesadas. No que respeita à ausência de qualquer documento relativo à empresa de fruta do amigo ou mesmo aos preços da fruta que diz ter negociado em Santa Lúcia afirmou nada ter uma vez que não precisava. O arguido afirmou já ter estado preso, juntamente com a sua mulher, na Noruega pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes ainda que sem qualquer ligação/semelhança com os factos aqui em apreço. Instado pelo tribunal sobre se essa experiência, aliada à idade e informação, não o fez desconfiar do pedido para trazer estas malas das Caraíbas referiu sempre ter confiado no amigo que lhe efectuou o pedido. Acrescentou, aliás, que se soubesse o que as malas continham jamais as traria dado que sabia que as mesmas iriam se revistadas, inclusivamente por cães pisteiros, assim que chegasse ao Reino Unido. A arguida S_________ referiu não querer acrescentar nada mais às declarações prestadas pelo seu marido e não pretender sobre as mesmas prestar quaisquer esclarecimentos, excepção feita à marca das malas em causa nos presentes autos que afirmou ser diferente das que haviam trazido anteriormente. Tanto quanto se pôde aperceber o Let ainda não teria decidido qual das marcas quereria comercializar em Londres. Confirmou as circunstâncias pessoais descritas no Relatório Social cujo teor demonstrou ter conhecimento. Relevante para a formação da convicção do tribunal afigurou-se o depoimento prestados pelas testemunhas CN e RS, inspectores da PJ, que estiveram presentes nas buscas realizadas à cabine em que os arguidos viajavam e, como tal, demonstraram ter conhecimento directo da factualidade dada por provada. Explicaram que a investigação nos presentes autos surge na sequência de um pedido de colaboração feito pela congénere Inglesa e que dava conta da identificação dos arguidos e da suspeita dos mesmos transportarem consigo produto estupefaciente que, segundo as informações que tinham, teria sido recolhido em Santa Lúcia, nas Caraíbas, e se destinaria a Portugal. Assim, inicialmente e após terem recebido a informação, decidiram abordar os arguidos no primeiro porto em que o navio aportasse em território nacional e que seria o do Funchal. Pese embora o exposto, souberam que devido a uma avaria no motor o navio não atracaria no Funchal e viria directamente para o porto de Lisboa. Assim, no dia 4 de Dezembro de 2018, de madrugada, dirigiram-se ao navio onde falaram com o agente de navegação e com o Comandante a quem explicaram a situação, dando cumprimento a um conjunto de formalidades, e mostraram os mandados de busca que deveriam ser cumpridos. Nessa altura já estavam na posse da indicação da alteração do número de cabine, efectuada pelos arguidos, pelo que se dirigiram de imediato à mesma. Aí foram encontradas as malas, documentos e mais objectos que se encontram descritos no Auto de Apreensão. Esclareceram que as malas, que ainda se encontravam com as etiquetas, estavam acondicionadas por baixo da cama dos arguidos e que ao ser feito um furo na respectiva estrutura, de imediato, saiu um pó branco que sujeito a Teste Rápido indiciou tratar-se de cocaína. Os arguidos, à semelhança do que sucede em casos semelhantes, mostraram-se surpresos e não ofereceram qualquer tipo de oposição ou resistência à busca. Na data solicitaram, ainda, ao agente de navegação que fornecesse à investigação informações sobre anteriores viagens efectuadas pelos arguidos e relatórios sobre as indicações das saídas e entradas dos arguidos nos diversos portos em que o navio tinha atracado no decurso desta viagem. Após tal informação ser junta aos autos, verificaram que normalmente os arguidos saíam e entravam juntos nas visitas que eram efectuadas nos portos excepção feita à Ilha de Santa Lúcia onde, alegadamente, as malas haviam sido recolhidas. Foi possível constatar que o arguido saiu inicialmente sozinho, regressou ao navio, saindo novamente pouco tempo depois com a arguida S__________; analisaram ainda os passaportes dos arguidos e a agenda da arguida S__________. De salientar que o teor do depoimento das testemunhas inquiridas se mostra totalmente consentâneo e corroborado pela documentação junta aos autos mormente a de fls. 2 (informação remetida pelas autoridades Inglesas - NCA Nacional Crime Agency), fls. 5 a 12 (lista de passageiros do cruzeiro "Marco Polo"), fls. 37 (auto de diligência), fls. 44 (Auto de busca e apreensão), fls. 47 a 49 (fotografias do navio, do camarote 469 e malas), fls. 50 (etiquetas das malas apreendidas), fls. 51 a 103 (documentos e cópia da agenda apreendida), fls. 108 a 116 (fotografias das malas onde é visível a perfuração efectuada na estrutura das mesmas e o produto estupefaciente dissimulado), fls. 119 a 122 (cópia do passaporte do arguido R__________), fls. 125 a 129 (cópia do passaporte da arguida S__________), fls. 315 (informação da empresa dona do navio "James Rawes - Navegação Lda." a identificar o seu agente de navegação - VT), fls. 318 a 321 (informação fornecida pelo armador sobre as saídas e entradas dos arguidos nos diversos portos, assumindo especial relevância o de fls. 319 relativo à ilha de Santa Lúcia). Instadas, as testemunhas afirmaram que tudo o que se encontrava na referida cabine foi recolhido, tendo as malas sido utilizadas para trazer toda a roupa e pertences dos arguidos, não tendo sido recolhido qualquer documento relacionado com fruta exótica ou qualquer empresa relacionada com tal actividade. Mais acrescentaram não ter sido possível investigar qualquer relação dos arguidos com o tal "Let", de que os arguidos falaram, em nome de quem dizem ter negociado fruta e a quem se destinavam as malas apreendidas, uma vez que os mesmos desconheciam qualquer informação sobre o mesmo à excepção do primeiro nome. Explicaram que investigar alguém de nome Let em Inglaterra seria o mesmo que investigar alguém com o nome "St" em Portugal. Prestou, ainda em julgamento, depoimento VT que desempenhava as funções de agente de navegação e que explicou as suas funções e intervenção no âmbito dos presentes autos. Como se conclui pelo elenco da matéria de facto dada por provada, a versão dos factos apresentada pelos arguidos em sua defesa não mereceu da parte do Tribunal qualquer credibilidade. Desde logo, porque a "estória" por eles engendrada para justificar as circunstâncias em que aceitaram transportar as quatro malas apreendidas, contraria - julga-se - as regras de bom senso e de experiência comum de qualquer cidadão médio normal chamado a apreciar a mesma. Aceitar a versão apresentada pelos arguidos seria aceitar um conjunto de circunstâncias que, quer consideradas em si mesmas, quer conjugadas umas com as outras, não podem merecer qualquer atendimento perante tal crivo que deve aqui orientar o percurso que conduz à formação da convicção deste Tribunal. Desde logo, seria aceitar como plausível que alguém que vai de férias num cruzeiro pelas Caraíbas é incumbido e aceita negociar fruta exótica para um amigo que apenas conhece por Let. É achar plausível que alguém o possa fazer sem saber identificar, sequer, a empresa para a qual está a negociar e que ainda aceite, como extra, trazer quatro malas de viagem, com qualidade supostamente superior à existente na Europa, por forma a esse mesmo amigo aferir da viabilidade económica de um outro negócio - importação de malas para venda em lojas da especialidade em Londres. Acresce ao exposto que, tal espírito de voluntariedade, implicava sempre que os arguidos ficassem sem as suas próprias malas uma vez que o espaço existente na cabine não lhes possibilitaria traze-las todas. Ora, é por demais evidente que o teor das explicações alvitradas pelos arguidos não merece qualquer credibilidade. Qualquer empresário que se dedique à importação de frutas exóticas e que já tivesse negócios nas Caraíbas não teria que recorrer a uma pessoa, ainda que amiga, que vai de férias num cruzeiro para "negociar" os preços dessa mesma fruta. Também não é crível que se o fizesse, por um motivo que não vislumbramos, recorresse a uma pessoa que não só não soubesse o nome da empresa em nome da qual negociava como também desconhecesse a identificação da própria pessoa em nome de quem negociava. A explicação dada pelo arguido, de que não precisava de saber tais elementos uma vez que o Let estava em contacto directo com os vendedores, só corrobora o absurdo da explicação dada. Pois se o Let estava em contacto com os vendedores negociaria ele próprio, na qualidade de responsável pela empresa, os preços das frutas. Alguém acredita que um empresário que se dedica à importação de fruta exótica para o Reino Unido está dependente dos cruzeiros realizados em férias por um amigo para proceder importação/negociação do preço dessa mesma fruta? Será crível olhando para as malas apreendidas nos autos, cujas fotografias são particularmente explícitas, acreditar que se tratam de malas de qualidade superior passíveis de serem vendidas em lojas da especialidade em Londres? Para além de, tal como salientado por uma das testemunhas inquiridas em julgamento, estarmos perante vulgares malas vendidas em qualquer loja de produtos chineses, a verdade é que quem se quer dedicar a um negócio de importação de malas não pede a um amigo para lhe trazer quatro exemplares de Santa Lúcia. Dizem as regras da lógica e da experiência que as próprias fábricas se dispõem a enviar os seus produtos para possíveis compradores. Por outro lado, não podemos ignorar que estamos a falar de quatro malas que os arguidos admitem terem levado para o navio vazias e que tinham dissimulados na respectiva estrutura cerca de 9 kilos de cocaína. Também não é plausível que pessoas com a experiência dos arguidos a carregar malas, atentas as inúmeras viagens que faziam, não percebessem que as mesmas tinham um peso estranho. Com efeito, muito mal se compreende que não se tivessem apercebido da alteração de peso daquelas malas. Em suma, e em si mesma, a situação descrita pelo arguido R__________ e corroborada integralmente pela arguida S__________, apreciada à luz de qualquer lógica minimamente coerente, não merece credibilidade. E se o que até agora, e nesta parte, se tem vindo a explanar é no sentido de pura e simplesmente se considerar dever ter-se por afastada a versão dos factos apresentada pelos arguidos, a verdade é que, por contraponto à mesma, temos a realidade dos factos. E a realidade dos factos é que ficou demonstrado, objectivamente e fora de qualquer dúvida, que os arguidos tinham a guarda e procederam ao transporte desta quantidade de cocaína, desde Santa Lúcia até Lisboa, onde foi detectada e apreendida. E a verdade é que, a jusante daquela versão dos arguidos, e mesmo dando por ultrapassadas todas as apontadas estranhezas, necessariamente sempre se teria de concluir com absoluta segurança que quem idealizou e executou o transporte daquelas malas sabia que a respectiva estrutura continha cocaína e pretendia, assim, concretizar por intermédio dos arguidos o transporte das mesmas das Caraíbas para a Europa passando necessariamente por Portugal. Ora, sendo assim, os arguidos pretenderam afinal fazer crer ao Tribunal que alguém lhes teria entregue aquelas quatro malas contendo quase nove quilogramas de cocaína para eles transportarem incautamente para a Europa, sem que essa pessoa pudesse controlar minimamente o percurso e todos os movimentos dos arguidos até chegarem à Europa - com passagem por Portugal -, por forma a poder assegurar também o recebimento daquele produto pelo respectivo destinatário. Aliás, como poderia sequer a pessoa que lhes entregou aquelas malas estar seguro que os arguidos não decidiriam ficar com elas para si, atenta a sua suposta qualidade e valor comercial; ou como poderia saber que, perante algum tipo de desconfiança, não se livrariam delas. Se tivermos em conta o custo económico do produto aqui em causa e a logística normalmente associada aos seus percursos distributivos, facilmente se conclui que a pessoa interessada neste transporte teria necessariamente de o confiar a alguém a quem pudesse vir a pedir as devidas responsabilidades pela concretização (ou não) do mesmo. Ou seja, mais uma vez, não é de todo crível que as coisas possam ter ocorrido como os arguidos alegaram. De todas estas circunstâncias decorre, pois, e no entender do tribunal colectivo com total segurança probatória, que os arguidos teria necessariamente de ter conhecimento de que transportavam aquele produto estupefaciente e a correspondente vontade de o fazer. É esta a convicção do tribunal, e daí a decisão de facto que fica adoptada. No que concerne às condições socioeconómicas dos arguidos, atendeu-se ao teor dos Relatórios Sociais elaborados juntos aos autos a fls. 482 a 483 e 494 a 498. No que tange aos antecedentes criminais, atendeu-se ao teor do CRC’s de fls. 446 e 447. Relativamente à factualidade dada por não provada diremos que a mesma resultou da total ausência de prova que sobre a mesma foi feita. Com efeito, é normal que quem faz cruzeiros e se encontra de férias viaje com algum dinheiro pelo que não tendo sido feita prova da relação entre a quantia apreendida e o suposto lucro que os arguidos necessariamente iriam auferir com a cocaína que transportavam deverá a mesma ser-lhes restituída.».
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V- Fundamentos de direito: 1- Da violação dos princípios da exactidão e do in dubio pro reo quanto aos factos contidos nos pontos 2, 3, 5, 6, 7, 8 e 9 do provado:
Desconhece-se o que seja o princípio da exactidão, como figura autónoma do princípio da descoberta da verdade material. É uma figura nova ([3]) que os recorrentes criaram para afirmar pretensos defeitos aos factos provados e à sua imputação em co-autoria, mas sem êxito.
No direito processual penal existe a possibilidade de provocar uma reapreciação de prova mas apenas nas condições estabelecidas pelo artigo 412º/3 e 4 do CPP, sendo que é condição dessa reapreciação, não só o cumprimento dos ónus formais e materiais a que alude o preceito mas, sobretudo, a aptidão de essa reapreciação para permitir a prova de factos relevantes para a descoberta da verdade material da factualidade assente, subsumida ao tipo legal.
A reapreciação depende do cumprimento de requisitos de forma e conhece condicionantes e limites, nos termos do art.º 412º/CPP.
No que se refere a requisitos formais, o recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um duplo ónus, a saber:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados – o que só se satisfaz com a indicação individualizada dos factos que constam da decisão, sendo inapta ao preenchimento do ónus a indicação genérica de todos os factos relativos a determinada ocorrência;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação – o que determina que se identifique qual o meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa, que decisão se impõe face a esse meio de prova e porque se impõe. Caso o meio de prova tenha sido gravado, a norma exige a indicação do início e termo da gravação e a indicação do ponto preciso da gravação onde se encontra o fundamento da impugnação (as concretas passagens a que se refere o nº 4 do art.º 412º/CPP).
Nos termos do recente AUJ nº 3/2012, publicado no DR- I.ª, de 18/04/2012, estabeleceu-se que «Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
O que se pretende é a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que o recorrente se propõe. Impõe-se-lhe o dever de tomar posição clara, nas conclusões, sobre o objecto do recurso, especificando o que, no âmbito factual, pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação, especificando as provas que devem ser renovadas (alínea c) do nº 3 do artigo 412º/CPP). «Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e a sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o Tribunal» ([4]). «O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto» ([5]). «A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso» ([6]).
No caso, os recorrentes não cumpriram nenhum dos ónus acima referidos, o que só por si é determinante da improcedência da impugnação que fazem a toda a matéria de facto relevante para a decisão da causa.
Contudo, mais do que falta de ónus formais há uma manifesta inaptidão dos argumentos invocados se subsumirem aos ónus materiais de que depende essa impugnação.
O recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial ([7]). Dito de outro modo o recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes ([8]). A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção "cirúrgica", no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação. «O tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito» ([9]).
A doutrina e jurisprudência penais entendem que a reapreciação da prova, na segunda instância, deverá limitar-se a controlar o processo da convicção decisória da primeira instância e da aplicação do princípio da livre apreciação da prova, tomando sempre como ponto de referência a motivação da decisão. Na apreciação do recurso da matéria de facto, o Tribunal de segundo grau vai aferir se a convicção expressa pelo Tribunal recorrido tem suporte adequado naquilo que a gravação da prova (com os demais elementos existentes nos autos) pode exibir perante si e, consequentemente, a Relação só pode alterar a decisão sobre a matéria de facto em casos excepcionais, de falta desse suporte.
Assim, a reapreciação só pode determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. Os condicionamentos ou imposições a observar no caso de recurso de facto, referidos nos nºs 3 e 4 do artigo 412º constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas tão só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra) decisão diversa indicadas pelo recorrente.
Entendem os recorrentes que:
A- Os factos contidos em 2 e 3 não podem ser considerados assentes por violação do referido princípio porque, em seu entender:
1- Não se provou que a Arguida S_________ tenha tido contacto com alguém no exterior do cruzeiro, no porto de Santa Lúcia;
2- Dos autos consta que a Arguida S________ somente ajudou o seu marido a carregar as malas para o quarto
3- Desconhece-se a quantidade de cocaína que se continha por cada conjunto de duas malas «já que era essa a forma de transporte por cada um dos arguidos» (sic) e qual delas foi transportada por cada um.
Qualquer dos fundamentos invocados é absolutamente indiferente para a impugnação do provado em 2 e 3, que se resume a que foram encontradas 4 malas na posse de ambos os arguidos, contendo determinado peso em cocaína, malas essas transportadas pelos dois, para o barco, depois da visita à ilha de Santa Lúcia no dia 21/11/2018.
Saber quem carregou o quê é absolutamente inócuo, porque a detenção do estupefaciente – que é aquilo que é punido, no caso – foi feita e mantida pelos dois, em conjugação de actuações, no respectivo quarto do barco.
A figura jurídica da co-autoria, cujos contornos se encontram em qualquer manual de direito penal, visa precisamente as situações em que mais do que uma pessoa pratica os mesmos factos puníveis – no caso a detenção da cocaína – executando-os por si e por outrem e/ou tomando parte directa na execução juntamente com outrem, mediante acordo (que é tácito, por regra), conforme dispõe o artigo 26º/CP. Ora, os factos provados redundam na prova de que ambos os arguidos executaram o crime, em toda a sua dimensão, acolhendo a cocaína junto a si e transportando-a consigo até ao local de destino, tendo sido interceptados em Portugal. Para o caso é absolutamente irrelevante saber quem carregou mais ou menos malas ou mais ou menos peso. A actividade criminosa não se consumou com o carregamento da cocaína para o barco. Perdurou com a sua detenção.
B- Os factos contidos em 6 não se provaram, porque não se provou que o produto era para entregar a terceiros. Os recorrentes raiam a litigância abusiva com os termos em que colocam a questão porque sabem perfeitamente que quem afirmou, em julgamento, que o estupefaciente era para terceiros foram eles próprios - mais concretamente, o arguido, cujas declarações foram confirmadas pela arguida, genericamente. Eles é que chamaram à colação um destinatário com o nome de Let.
Se, afinal, não existia nenhum destinatário, dono da cocaína – o que a prova indicia, porque não há ninguém que carregue malas com cocaína para um desconhecido, sendo que “Lets” há muitos pelo mundo inteiro e os arguidos já sofreram condenação por tráfico – então a configuração do crime piora, porque se chega à conclusão de que os arguidos a transportavam não enquanto correios mas para benefício deles próprios. O que de todo se admite como fortemente possível, mas não foi considerado provado.
C- Os factos provados em 8 e 9 não se provaram, porque não se chegou à conversa com o tal Let. Continuamos na litigância abusiva. Pois se o próprio arguido referiu contactos com esse Let e com o vendedor de fruta exótica – a planta de coca está nesse rol! – durante a viagem e se foram encontrados meios de comunicação que serviam para o efeito não há como acreditar que a comunicação se tenha feito de outra forma.
Em face do exposto, verifica-se que as pretensas dúvidas dos recorrentes são artificiais em face do teor das suas próprias declarações e são inócuas para qualquer alteração do provado – pedido que nem estruturaram de acordo com a lei processual penal portuguesa.
Nestes termos, não se concebe, sequer, dúvida nos respectivos espíritos acerca da correspondência do provado à prova efectivamente produzida em audiência.
Mas ainda que assim não fosse, o princípio in dubio pro reo tem por âmbito de aplicação os factos a provar e cinge-se à dúvida do julgador. Não colidindo o alegado com a correspondência do provado à prova, não há matéria a que se possa aplicar o princípio. E, analisado o teor da sentença, percebe-se claramente que todos os factos provados resultaram da firme convicção do Tribunal acerca da sua ocorrência, nos termos descritos. Significa isto que o referido princípio não se mostra beliscado na sentença recorrida.
*** 2- Do excesso das penas aplicada:
Pretendem ainda os recorrentes que a arguida S________ seja absolvida e que a pena do arguido R_______ seja diminuída por:
1- Não haver prova da implicação da S_________ nos factos criminosos;
2- Os arguidos serem pessoas idosas e de débil saúde;
3- Não ter sido considerado o facto de o produto estupefaciente não ter sido entregue, nem introduzido no mercado para venda;
4- Ser altamente prejudicial aos arguidos cumprirem a pena de prisão em Portugal, atendendo a que em território nacional não terão visitas de familiares e pela dificuldade na língua sofrerão inevitavelmente de exclusão no meio prisional;
5- O Tribunal ter pretendido aplicar uma sanção exemplar para a opinião pública nacional e internacional, já que este é um caso mediatizado.
Não se percebendo se a recorrente S________ só quer a sua absolvição ou pretende, eventualmente, uma diminuição da pena, porque ambos os conceitos estão misturados na argumentação. Admitamos que formula os dois pedidos, em termos subsidiários.
Perante o provado é obvio que os factos imputados a ambos os arguidos configuram a prática, por ambos, de um crime de tráfico, em co-autoria. A questão está analisada no acórdão recorrido, não havendo mais nada a acrescentar. Daqui decorre a improcedência manifesta do pedido de absolvição da arguida S__________.
Quanto à argumentação para a diminuição das penas há que perceber que a falta de uma agravante não se transforma numa atenuante. O facto de não se ter provado que destinavam a cocaína à venda não significa que daí advenha qualquer atenuante. O crime tipifica-se quer pela detenção quer pela venda, quer por outras circunstâncias. A condenação foi expressamente pela detenção pelo que a ausência de qualquer outra forma de cometimento do crime não releva como atenuante nem agravante. Releva apenas a apreciação da acção tipificada, com as características que lhe são inerentes.
No que se refere à idade e à debilidade da saúde é assunto da esfera de determinação dos arguidos. Pela idade e pela experiência criminal que têm sabiam perfeitamente ao que se sujeitavam a partir do momento em que passaram a deter a cocaína em Santa Lúcia. Mais sabiam que podiam ser interceptados em qualquer porto onde o barco atracasse, pelo que se sujeitavam à penalização em qualquer dos respectivos países. O facto de terem sido detidos em Portugal não significa que a cocaína tivesse por destino este país. Aliás, os próprios referem, implicitamente, que o destino não era Portugal. Portanto a argumentação da falta de conhecimento com portugueses não é nada que não seja plausível e expectável pelos próprios porque está de acordo com a experiência comum.
Se os arguidos, conhecedores dos riscos que corriam, os quiseram assumir, é porque, em seu entendimento, estavam em condições de suportar as consequências impostas pela ordem jurídica onde pudessem ser interceptados que, digamos, são civilizadamente menos pesadas em Portugal do que em muitos outros países, até da Europa. Aliás, eles próprios nem esclarecem o que terá a sua saúde de especial que implique uma atenuação da medida da pena, pelo que a alegação é inócua.
Quanto à questão do cumprimento de pena em Portugal, estando os arguidos devidamente patrocinados sabem perfeitamente que o lugar da condenação pode não coincidir com o do cumprimento da pena, sendo que esta última questão não cabe apreciar ao Tribunal da condenação.
Quanto à mediatização da questão, não se sabe o que isso possa significar, nem em termos absolutos nem em termos de relevância penal. É absolutamente irrelevante, no sistema português, para a aplicação de uma pena, saber se o “caso” é comentado aqui ou ali, em casa dos vizinhos ou nos jornais das televisões, onde quer que seja. A lei tem cânones que têm que ser cumpridos, rigorosamente, e seguramente que os arguidos não esperavam que a detenção de 9 quilos de cocaína fosse punida com a pena mais baixa do leque legal, sobretudo quando já houve cumprimento de pena pelo mesmo tipo de crime.
Não havendo invocação de nenhuns factos susceptíveis de determinar a alteração das penas, impõe-se a respectiva manutenção.
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VI- Decisão:
Acorda-se, pois, negando provimento ao recurso, em manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.
Custas pelos recorrentes, com taxa de justiça de 4 ucs cada um.
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Lisboa, 22/ 01/2020
Texto processado e integralmente revisto pela relatora.
(Maria da Graça M. P. dos Santos Silva)
(A. Augusto Lourenço)
_______________________________________________________ [1] Cf. Germano Marques da Silva, em «Curso de Processo Penal», III, 2ª edição, 2000, pág. 335, e Acs. do S.T.J. de 13/5/1998, em B.M.J. 477-º 263; de 25/6/1998,em B.M.J. 478º-242 e de 3/2/1999, em B.M.J. 477º-271. [2] Cf. Art.ºs 402º, 403º/1, 410º e 412º, todos do CPP e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R., I – A Série, de 28/12/1995. [3] Existe no Direito Constitucional Brasileiro, mas com um sentido e alcance sem par com a forma como foi articulado. [4] Cf. Ac STJ, de 05/12/2007, no proc. nº 3460/07. [5] Cf. AC STJ, de 08/03/2006, no proc. nº 185/06-3ª. [6] Cf acs. STJ, de 10/01/2007, no proc. 3518/06-3º e de 15/10/2008, no proc. 2894/08-3º. [7] Cf. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal” 7ª edição, actualizada aumentada, 2008, pág. 105. [8] Cf Ac. do TC n 59/206, de 18/01/2006, no proc. 199/2005, em www.tribunalconstitucional.pt, e Acs. dos STJ de 27/01/2009, e de 20/11/2008, tirados respectivamente nos procs. 08P3978 e 08P3269, em www.dgsi.pt, e de 17/05/2007, na CJSTJ, 2007, II, 197. [9] Cf. Ac TC. Nº 59/2006, de 18 de Janeiro de 2006, proferido no processo n° 199/05, da 2.a secção, publicado no DR - II Série, de 13-04-2006.