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ADMISSIBILIDADE DE DOCUMENTO
NULIDADE SANÁVEL
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ABUSO DE CONFIANÇA
Sumário
1. A omissão de pronúncia sobre a admissibilidade de documento cuja junção se pretendia fazer nos autos consubstancia uma questão prévia situada a montante da decisão recorrida pelo que tal vicio não é da decisão recorrida, que apreciou o que tinha de apreciar, mas sim de uma omissão situada a seu montante. Trata-se de uma nulidade sanável, isto porque nem o legislador referiu tratar-se de uma nulidade insanável, nem a mesma integra o elenco taxativo das situações previstas como nulidades insanáveis do art.º 119.º do Código de Processo Penal. 2. Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando da factualidade vertida na decisão se constata que faltam dados e elementos que, podendo e devendo ser investigados não o foram, sendo de considerar que são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 3ª Secção (Criminal) do Tribunal da Relação de Lisboa
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I - RELATÓRIO
1.1. No processo n.º 5824/18.0T9LSB, foram julgados em processo comum (Tribunal singular), pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Lisboa - JL Criminal - Juiz 4, os arguidos V ________ e J___________, com os demais sinais dos autos, a quem o MP imputara a prática de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos art.ºs 107º, n.º 1, e 105º, n.ºs 1, 2 e 4, do Regime Geral das Infrações Tributárias, e no art.º 30º, n.º 2, do Código Penal.
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1.2. Realizada a Audiência de discussão e julgamento foi proferido o seguinte segmento decisório: a) Condenar o(a) arguido(a) V ________ pela prática, em coautoria, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos art.ºs 107º, n.ºs 1 e 2, e 105º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e no art.º 30º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia global de € 500,00 (quinhentos euros) de multa; b) Condenar o(a) arguido(a) J___________ pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, na forma continuada, p. e p. nos art.ºs 107º, n.ºs 1 e 2, e 105º, n.º 1, do Regime Geral das Infracções Tributárias (RGIT), e no art.º 30º, n.º 2, do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia global de €500,00 (quinhentos euros) de multa; c) Condenar o(a)(s) arguido(a)(s)/demandado(a)(s) a pagar(em) solidariamente ao(à) demandante Instituto de Segurança Social a quantia de €27.772,45 (vinte e sete mil setecentos e setenta e dois euros e quarenta e cinco cêntimos) a título de danos patrimoniais, acrescido de juros vencidos e vincendos desde a data do vencimento de cada prestação e até integral pagamento, à taxa legal, actualmente de 1% ao mês - mas sem prejuízo de subsequentes alterações a esta taxa; d) Condenar, ainda, o(a)(s) arguido(a)(s) de harmonia com o disposto nos art.ºs 513º e 514º, do Código de Processo Penal, no pagamento cada um das custas do processo crime, fixando-se a taxa de justiça em 2 (duas) UC, conforme o disposto no art.º 8º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à tabela III que lhe está anexa; e) Condenar o(a) demandante e o(a)(s) demandado(a)(s) nas custas cíveis, na proporção do decaimento, nos termos do disposto no art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art.º 523º do Código de Processo Penal.
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1.3. Inconformado, recorreu o arguido J___________ o qual formulou as seguintes conclusões: A) A sentença sob recurso julgou procedente a acusação que impendia sobre o ora recorrente, condenando-o pela prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, previsto e punido nos artigos 107º, nº 1 e 2 e 105º, n. 1 do RGIT, e no artigo 30.º, n.º 2 do CP, aplicando uma pena que perfaz a quantia global de €500,00 de multa, bem como, a pagar solidariamente com o co-arguido o montante de €27.772,45 a título de danos patrimoniais, ao Instituto da Segurança Social, acrescido de juros; B) Sem prejuízo da matéria que foi dada como provada nos autos, o Recorrente apresentou, em sede de audiência de julgamento, um elemento probatório que foi simplesmente ignorado pelo Tribunal a quo, qual seja, a decisão de arquivamento do processo de inquérito n. 650/18.9IDLSB, o qual havia sido instaurado relativamente aos mesmos factos aqui controvertidos, pela prática da mesma alegada infração criminal e, mais relevante, quanto ao(s) mesmo(s) arguido(s); C) Nessa sede, considerou o Ministério Público que os autos deveriam ser arquivados, por considera desde Jogo o seguinte: "Por isso mesmo, torna-se essencial que no momento da consumação o arguido tenha o domínio funcional dos factos, quer dizer, que quem no momento em que a obrigação fiscal se vence tenha o poder de decisão quanto à mesma seja o arguido, o que não ocorre no caso dos autos relativamente ao arguido J___________, já que decorre das declarações dos arguidos e da contabilista da sociedade, que o arguido J___________ não exerciam quaisquer funções decisórias, sendo as mesmas tomadas pelo arguido V ________"; D) Conforme ficou plasmado no despacho em causa, o Recorrente não tinha "nas suas mãos a tomada de quaisquer decisões relativamente à sociedade, pelo que não poderá ser considerado como gerentes de facto e em consequência ser a sua conduta integrante da prática do ilícito criminal em causa"; E) Ora, essa circunstância - que era do conhecimento direto do Tribunal a quo, de julgamento - foi absolutamente ignorada, não lhe tendo sido dada qualquer relevância na sentença recorrida; F) Mais até do que não lhe ter sido dada relevância, o Tribunal a quo nem sequer fez qualquer tipo de referência à decisão de arquivamento acima identificada, o que inculca no Recorrente a convicção de que a mesma não foi tida em consideração na decisão proferida; G) Com efeito, o Tribunal a quo centrou a sua argumentação e suportou a decisão condenatória, apenas e só, na prova testemunhal produzida e na convicção que da mesma resultou para o próprio Tribunal, o que, face à existência de outros elementos probatórios relevantes, não é admissível; H) A junção daquela decisão aos autos configura, salvo melhor opinião, uma efetiva questão a dirimir: a existência de uma decisão de arquivamento proferida num outro processo, em tudo idêntico ao vertente, com a nuance de se tratar de dívidas à AT e não à Segurança Social, mas que corrobora a posição assumida pelo Recorrente, deve ou não ser relevada, no que concerne aos seus argumentos e aos factos aí dada como assentes, para a decisão final a proferir nestes autos?; I) Pelo que, entende o Recorrente que a decisão agora proferida deverá ser declarada nula, por omissão de pronúncia, ao abrigo do disposto na alínea c), do n. 1, do artigo 379º, do CPP, devendo tal despacho de arquivamento e os factos e fundamentos que lhe estão subjacentes serem apreciados e, em consonância com os mesmos, ser proferida nova decisão; J) Decisão essa que deverá ser de absolvição do Recorrente da prática da infração pela qual vem acusado, na medida em que do conjunto da prova produzida nos autos - aqui se incluindo o despacho de arquivamento proferido no processo de inquérito n. 650/18.91DLSB - resulta que não estão preenchidos os pressupostos para a imputação de um crime de abuso de confiança fiscal; K) Caso não se entenda que o Tribunal a quo incorreu em omissão de pronúncia, então a ausência de qualquer referência, na sentença recorrida, ao facto de ter sido arquivado o processo de inquérito instaurado contra o Recorrente, pela alegada prática da mesma infração, por dívidas fiscais do período aqui em crise, não pode deixar de configurar uma contradição entre a fundamentação e a decisão, vício que constitui fundamento de recurso, nos termos do disposto na alínea b), do nº 2, do artigo 410.º, do CPP; L) De facto, resultando evidenciado, da factualidade dada como assente pelo próprio Tribunal a quo, que o coarguido do ora Recorrente, V________, foi anteriormente condenado pela prática do mesmo crime de abuso de confiança fiscal, por facto praticados em 25/02/2016, uma, ou mesmo duas, conclusões facilmente poderiam, e deveriam ter sido alcançadas; M) A primeira conclusão é de que a eventual responsabilidade criminal do coarguido, pela prática dos mesmos ou de factos idênticos aos ora controvertidos, certamente suportou-se na constatação de que aquele era o gerente da sociedade e que, uma vez mais, tomou decisões (ou não evitou outras) de que resultou a falta de entrega de verbas à Segurança Social ou à Autoridade Tributária e Aduaneira; N) A segunda conclusão é a de que o ora Recorrente não foi condenado pela prática desses factos; O) Ora, se a acusação formulada no presente procedimento criminal assentou na alegação de que o Recorrente era o gerente da sociedade, juntamente com o co-arguido, e que ambos tomaram as decisões de não proceder à entrega dos montantes devidos à Segurança Social, por serem ambos os "patrões" e os "donos" da sociedade, por que motivo naqueloutro processo em que o co-arguido foi condenado pela prática do crime de abuso de confiança fiscal não foi o Recorrente também condenado?; P) E perante esta pergunta - que o Tribunal a quo deveria ter feito a si próprio antes de condenar o Recorrente -, a resposta, ainda que especulativa, só poderia ser uma de três. Q) Ou o Recorrente não foi sequer acusado no referido processo n.º 959/16.6IDLSB, por não terem sido reunidos indícios suficientes, na fase de inquérito, de que tenha praticado atos suscetíveis de se subsumir na prática de um crime de abuso de confiança fiscal; R) Ou o Recorrente foi pronunciado e/ou acusado e, em sede de instrução ou de julgamento, não foram reunidas provas de que tenha praticado um ilícito criminal enquadrável no crime de abuso de confiança fiscal; S) Ou o Recorrente foi pronunciado e/ou acusado e, em sede de instrução ou de julgamento, foram reunidas provas de que não praticou um ilícito criminal dessa natureza; T) O Tribunal a quo deu como assente, por um lado, a condenação que sobre o co-arguido impendia anteriormente, pelos mesmos factos e pela prática do mesmo crime e, por outro lado, que o Recorrente não tinha qualquer antecedente criminal, sem ter retirado qualquer consequência, no que tange à decisão final, que foi de condenação de ambos os arguidos pela prática em co-autoria de um crime de abuso de confiança fiscal; U) Houve, da parte do Tribunal a quo, um absoluto alheamento da prova já produzida quanto aos mesmos arguidos e aos mesmos factos, de que resultou uma insanável contradição entre a fundamentação e a decisão e que, como acima se referiu, constitui fundamento de recurso, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP; V) Acresce que o Tribunal a quo procedeu a uma errada valoração da prova produzida em juízo - veja-se por todos o acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul, de 19/02/2015, proferido no recurso n.º 05484/12 e o acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 11/05/2015; W) Nos presentes autos, em momento algum, foi realizada, relativamente ao Recorrente, a prova considerada essencial pela jurisprudência para demonstrar que uma determinada pessoa assume as funções de gerente na sociedade ou que tem a capacidade de decidir o futuro da vida dessa mesma sociedade, de forma autónoma; X) Nomeadamente, não foi feita prova de que o Recorrente tinha poderes para assinar cheques; Y) Do probatório não consta a indicação de 1 único facto potencialmente indiciador de que o Recorrente era o gerente da sociedade e que tomou a decisão de não entregar estas quantias à Segurança Social; Z) Pelo contrário e por exemplo, foi produzida prova nos autos de que o Recorrente, a partir de um determinado momento, no final de 2015, esteve a maior parte do tempo ausente da empresa, em virtude uma formação profissional que estava a realizar durante cerca de 1 ano - facto confirmado pelo próprio co-arguido quando inquirido; AA) Relativamente às funções concretamente exercidas pelo Recorrente, o mesmo teve oportunidade de esclarecer o Tribunal de que era o responsável administrativo, de recursos humanos e de produção, o que lhe conferia uma exposição e responsabilidades relevantes e era efetivamente um "empregado por conta de outrem"; BB) O Recorrente nunca negou que, por exercer funções relacionadas com 3 departamentos da empresa, tinha obviamente ascendente sobre muitos dos outros funcionários, mas apenas por razões funcionais, daí não se podendo extrapolar, ou retirar a conclusão, de que o Recorrente era o "dono" da empresa, que mandava em todos os funcionários e, em concreto, que tomou as decisões de não entregar as quantias à Segurança Social; CC) A prova produzida em sede de audiência ditaria, no entendimento do Recorrente, que alguns dos factos que foram implicitamente dados como assentes pelo Tribunal a quo, na realidade, não o deveriam ter sido, por não terem qualquer sustentação na lógica e nas regras da experiência comum; DD) Mais, no inquérito criminal realizado no processo n.º 650/18.9IDLSB – que acabou por ser arquivado - foi produzida prova, positiva, clara, direta e não indiciária, de que o Recorrente não exerceu, no período em questão, poderes de gerência da sociedade "O .", nomeadamente, no que se refere à tomada de decisão de não entregar, nesse caso à AT, os valores retidos aos trabalhadores; EE) Pelo que não pode a decisão sob recurso deixar de ser anulada, por manifesto erro na valoração da prova produzida, ao abrigo do disposto na alínea c), do n. 2, do artigo 410º, do CPP; FF) Subsidiariamente e caso o Recorrente venha a ser efetivamente condenado, entende o mesmo que a medida da pena aplicada ao Recorrente não se mostra adequada em face, quer da medida da pena aplicada ao co-arguido, quer das circunstâncias atenuantes de que o Recorrente beneficiava e que foram expressamente reconhecidas pelo próprio Tribunal a quo; GG) Houve nesta matéria uma violação do princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13.º da CRP, bem como, dos princípios da proporcionalidade e da justiça, implicitamente consagrados no artigo 2.º da mesma CRP, como princípios basilares do Estado de Direito; HH) Pelo que se requer, caso os vícios acima não procedam e se considere que deverá ser aplicada uma pena ao Recorrente, que a mesma seja revista, em função das circunstâncias acima referidas e da violação das normas e princípios constitucionais elencados.
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1.4. - Notificado para o efeito, o MP junto do tribunal a quo apresentou as suas respostas, com a seguintes conclusões: 1ª O presente recurso vem interposto da douta sentença proferida de fls. 453 a 463 dos presentes autos que condenou o arguido e a sociedade arguida pela prática de um crime abuso de confiança contra a segurança social, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 107º, n.º 1 e 2, 105º, n.º 1 do Regime Geral das Infracções Tributárias e 30º, n.º 2 do Cód. Penal, na pena de cem dias de multa à taxa diária de cinco euros, perfazendo a quantia global de 500 euros. 2ª Relativamente à alegada insuficiência da matéria de facto provada, não se verifica qualquer lacuna, deficiência ou omissão na investigação por parte da Mma. Juiz a quo da matéria de facto sujeita à sua apreciação, uma vez que a mesma, em cumprimento do disposto no artigo 374.º n.º 2 do CPP, se pronunciou sobre a totalidade do objecto dos presentes autos, delimitado pela acusação, contestação e pelos factos resultantes da prova produzida em audiência, conforme resulta do disposto no artigo 339.º n.º 4 do mesmo Código. 3ª Nas suas conclusões de recurso, o recorrente invoca que a douta sentença recorrida padece de vícios de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova, afirmando ainda que os factos provados não integram o crime pelo qual o arguido foi condenado e que a pena aplicada não se mostra adequada ao crime cometido. 4ª De acordo com o disposto no artigo 410º, n.º 2, do Cód. de Processo Penal, tais vícios têm de resultar da decisão recorrida, por si, ou conjugada com as regras da experiência comum. 5ª Acresce que, não se verifica qualquer erro notório na apreciação da prova, já que, o que resulta da motivação do recorrente é efectivamente a discordância quanto ao modo como o Tribunal avaliou e apreciou em concreto a prova produzida, o que, como também já se adiantou supra, não se confunde, com os vícios que pretende invocar. 6ª A douta sentença mostra-se adequadamente fundamentada, procedendo à indicação dos meios de prova que serviram para formar a sua convicção, bem como dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do Tribunal se formasse em determinado sentido, ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência. 7ª Por outro lado, não se verifica qualquer erro de julgamento, dado que a livre apreciação da prova não se confunde com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova. A prova livre tem como pressupostos valorativos a obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica. 8ª Saliente-se ainda que não procede a argumentação do recorrente, suscitando a incorrecta apreciação da prova, por esta não ter sido decidida no sentido pretendido, visto que a produção de prova está sujeita ao princípio da livre apreciação consagrado no artigo 127º do Cód. de Processo Penal, nada havendo a apontar à douta sentença dado o cabal cumprimento daquele princípio (neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 209/09.1PBFIG.C1, datado de 10-11-2010 - disponível em dgsi.pt). 9ª Com efeito, o ora recorrente, prestando declarações em audiência de julgamento, negou receber ordenados em 2016, assumindo-se como mero empregado da sociedade, negando a gerência de facto da sociedade arguida por ser exercida pelo co-arguido V______. Como refere a Mmª Juiz, conjugando as declarações com a prova documental e o depoimento da testemunha J___________-, é manifesto que o arguido co-herdou a empresa juntamente com o arguido V________e ambos pretendiam revitalizar a empresa que pertencera aos seus pais. 10ª Em face do teor da douta sentença condenatória, os factos provados e não provados resultaram da análise da prova produzida em audiência de julgamento tomando em consideração todos os parâmetros acima referidos.
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1.5. Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto apresentou o seu parecer, limitando-se a apor o seu “visto”.
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1.6. Considerando o teor do Parecer emitido pelo MP junto desta Relação entendeu-se que não ser suscetível de invocar o cumprimento do art.º 417º, nº 2 do CPP.
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1.7. Colhidos os vistos legais e tendo os autos ido à conferência, cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. O objeto dos recursos definem-se pelas conclusões que os recorrentes extraíram da motivação, de harmonia com o art.º 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, como sejam as cominadas com nulidade do acórdão (art.º 379.º, n.º 1, do CPP) e os vícios da decisão e as nulidades que não se considerem sanadas (art.º 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), designadamente conforme jurisprudência fixada pelo acórdão do Plenário Secção Criminal STJ n.º 7/95, de 19.10, publicado in D.R. I-A Série de 28.12.1995 e, ainda, entre outros, os acórdãos do STJ: de 25.06.1998, em BMJ n.º 478, pág. 242; de 03.02.1999, em BMJ n.º 484, pág. 271; e de 12.09.2007, no proc. n.º 07P2583, in www.dgsi.pt ; Simas Santos/Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 3.ª edição, pág. 48; e Germano Marques da-, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, págs. 320/321. In casu, as questões que o arguido suscita nas respetivas conclusões e que, portanto, importa decidir, são as seguintes, independentemente de o conhecimento de alguma delas ficar prejudicado pela decisão dada a outras que, logicamente, as precedam, ou de as mesmas questões serem reconfiguradas de acordo com o quadro legal recursório:
a) Nulidade da sentença por omissão de pronúncia;
b) Contradição entre a fundamentação e a decisão;
c) Erro notório da apreciação da prova;
d) Medida da pena aplicada.
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2.2. Os factos provados e não provados, e a motivação de facto da sentença recorrida é a seguinte: II - Fundamentação: 2.1. Factos provados: 2.1.1. Referentes à acusação: Discutida a causa e produzida a prova, resultam assentes os seguintes factos: a) A sociedade O F... - Serviços Hoteleiros, Lda. foi uma sociedade que se dedicava à actividade de restauração e serviços hoteleiros, estabelecimentos de bebidas, catering, restaurante e exploração de refeitórios; b) Os arguidos V________ e J___________- foram gerentes dessa sociedade, pelo menos, entre Junho de 2015 e o fim de 2016; c) No exercício dessa actividade, teve a sociedade O F… sob a sua dependência laboral trabalhadores e corpo gerente, recebendo estes o seu ordenado nos períodos e termos indicados na alínea i), estando sujeita à retenção na fonte das contribuições por si devidas à Segurança Social, calculadas por incidência de percentagem fixadas na lei sobre as remunerações auferidas; d) Das remunerações por si pagas a esses trabalhadores e corpo gerente a sociedade O F… efectuou os descontos referentes às contribuições pelos mesmos devidas à Segurança Social nos termos estipulados; e) Contribuições essas que deveriam ser entregues até ao dia 15 do mês seguinte àqueles a que dissessem respeito; f) Essa sociedade entregou à Segurança Social as declarações de remunerações dos trabalhadores e corpo gerente ao seu serviço; g) Porém, deixou de cumprir a obrigação de entregar à Segurança Social tais contribuições, retidas mensalmente das remunerações pagas aos trabalhadores e corpo gerente; h) Passando a sociedade O F… a usar essas disponibilidades monetárias na prossecução de outros interesses da mesma; i) Durante os períodos seguidamente referidos as quantias que foram descontadas dos ordenados dos trabalhadores por conta de outrem e das remunerações do corpo gerente, bem como os respectivos montantes não entregues, foram as seguintes:
ANO/MÊS
Trabalhador(es)
Gerente(s)
Junho de 2015
€2.079,90
€69,12
Julho de 2015
€2.691,16
€101,02
Agosto de 2015
€2.414,67
€69,12
Setembro de 2015
€2.374,60
€69,12
Outubro de 2015
€2.419,62
€69,12
Novembro de 2015
€2.122,31
€66,46
Dezembro de 2015
€3.490,37
€103,68
Janeiro de 2016
€2.146,99
€69,12
Fevereiro de 2016
€1.690,42
€69,12
Março de 2016
€1.706,35
€69,12
Abril de 2016
€1.758,60
€69,12
Maio de 2016
€1.984,22
€69,12
j) No total, nesse período, retiveram o quantitativo total de €27.772,45; k) Sabiam os arguidos V________ e J___________- que a sociedade O F... estava obrigada a entregar à Segurança Social as quantias monetárias resultantes dos descontos efectuados nos ordenados dos seus empregados e do corpo administrativo, até ao dia 15 do mês seguinte àqueles a que se referiam; l) Todavia, não entregaram dentro dos respectivos prazos legais as quantias acima indicadas, nem nos 90 dias subsequentes; m) Após terem sido notificados para tanto, nem a sociedade O F..., nem os arguidos, efectuaram no prazo de 30 dias o respectivo pagamento integral dessas quantias em falta, acrescidas dos juros respectivos; n) Agiram os arguidos livre, deliberada e conscientemente, actuando nesse período em nome e interesse da sociedade O F…, com vista a fazer ingressar na mesma as quantias monetárias que sabiam não lhes pertencerem e que deveriam ser entregues à Segurança Social no prazo legal; o) Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei; p) A sociedade O F… sofreu dificuldades económicas no período em causa; q) O arguido V________ confessou quase totalmente os factos; r) O arguido V________ tem como habilitações literárias licenciatura em economia; encontra-se desempregado; vive com companheira que como engenheira civil aufere por mês a quantia de € 1.250,00; tem dois filhos, de 2 e 4 anos, respectivamente; paga prestação para amortização de empréstimo bancário para aquisição de casa própria no valor de €350,00 por mês; os avós maternos pagam colégio dos filhos; s) O arguido J___________- tem como habilitações literárias o 12º ano de escolaridade; encontra-se desempregado e aguarda atribuição de subsídio de desemprego referente a ordenado de €1.000,00 por mês; vive com a esposa que como gestora de projectos aufere por mês a quantia de €2.200,00; tem dois filhos, de 20 e 16 anos, respectivamente, ambos estudantes; encontra-se, bem como a esposa, declarado insolvente recebendo por isso o equivalente a três ordenados mínimos nacionais; t) O arguido V________ tem antecedentes criminais, tendo sido condenado: - Por sentença de 30.05.2017, transitada em 30.05.2017, proferida no Proc. n.º 959/16.6IDLSB do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local de Pequena Criminalidade, Juiz 4, pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. no art.º 105º do Regime Geral das Infracções Tributárias, por factos praticados em 25.02.2016, na pena de 90 dias de multa, à taxa de €5,50, no total de €495,00, declarada extinta pelo pagamento; u) O arguido J___________- não tem antecedentes criminais conhecidos. 2.1.2. Referentes ao pedido cível: Além dos que ficaram assentes referentes à acusação, nenhum. 2.1.3. Referentes à contestação do arguido V________: Além dos que ficaram assentes referentes à acusação e pedido cível, nenhum. 2.2. Factos não provados: 2.2.1. Referentes à acusação: Com relevância para a decisão da causa, não se provou que: a) Os arguidos foram gerentes da sociedade apenas desde Junho de 2015 e só até Setembro de 2016; b) Durante os períodos seguidamente referidos as quantias que foram descontadas dos ordenados dos trabalhadores por conta de outrem e das remunerações do corpo gerente, bem como os respectivos montantes não entregues, foram as seguintes:
ANO/MÊS
Trabalhador(es)
Gerente(s)
Junho de 2016
€1.975,10
€69,12
Julho de 2016
€1.683,79
€69,12
Agosto de 2016
€1.962,60
€101,02
Setembro de 2016
€1.491,91
€69,12
c) No total, no período em causa, retiveram o quantitativo total de €34.043,49. 2.2.2. Referentes ao pedido cível: Com relevância para a decisão da causa, nenhum. 2.2.3. Referentes à contestação do arguido V________: Com relevância para a decisão da causa: a) A sociedade ______ pagou “diversas” daquelas prestações. 2.3. Motivação da decisão de facto: A convicção do tribunal quanto à factualidade provada assentou, desde logo, nas declarações do arguido V________ que, de uma forma clara, coerente e sentida, admitiu a factualidade vertida nos factos assentes, afirmando, porém, que desde o mês de Junho de 2016, inclusive, houve ordenados que não foram pagos, apesar de declarados. Explicou, ainda, este arguido que geria a sociedade com o arguido J___________, decidindo ambos em conjunto, incluindo quanto aos pagamentos ao ISS, apesar de estar mais ligado à área comercial e esse outro arguido à àrea financeira, afirmando que a sociedade O F… foi constituída na sequência de uma outra que foi dissolvida e em que eram gerentes os pais de ambos, pelo que nesta, quando os progenitores abandonaram a sociedade, o próprio ficou como sócio gerente desta sociedade e, como o arguido J___________ tinha problemas vários que o impediam de ter algo em seu nome, ficaram como sócias as filhas menores desse arguido, o qual, porém, era quem na prática geria consigo a sociedade. O arguido J___________, por seu lado, apesar de confirmar no essencial o demais afirmado pelo arguido V________, que admitiu ser seu amigo e nada terem um contra o outro, além de negar ter recebido ordenados em 2016, insistiu que era mero empregado da sociedade O F…, sendo o arguido V________ quem na mesma mandava exclusivamente, adiantando que se negou inclusivamente a ser sócio ou gerente dessa sociedade expressamente. Ora, não logrando este arguido apresentar uma explicação plausível para o arguido V________(nada tendo este a ganhar com tal imputação e sendo inclusive seu amigo até ao presente) ter maquiavelicamente inventado a co-gerência para o mesmo, tendo inclusive admitido que actualmente se encontra declarado insolvente (o que se coaduna com o referido pelo arguido V________) e constando da certidão de registo comercial como sócias duas “menores” com o seu apelido, temos que a sua versão se apresenta, por si inverosímil. Na verdade, os recibos de ordenado que juntou, de fls. 389 verso a 392 nada acrescentam, pois que se o mesmo não estava declarado como gerente teria, obviamente, de receber o seu ordenado como sendo mero empregado, independentemente de tal não corresponder à realidade; os e-mails trocados juntos de fls. 393 a 409, cuja fidedignidade desconhecemos e que manifestamente não correspondem à totalidade de e-mails no universo da sociedade, nada revelam como pretende o arguido J___________-, sendo manifestamente meras mensagens cirurgicamente escolhidas e, diga-se, inócuas; e de fls. 406 verso a 408 temos apenas o que parece ser um contrato societário, ilegível, mas que a respeitar à sociedade O F… natural que esteja reflectido o aí constante no registo respectivo, o que, conforme resulta das regras da experiência comum, não significa por si que corresponda ao que sucedeu de facto. Mas, além das declarações coerentes e espontâneas, merecedoras de credibilidade, do arguido V________, as testemunhas inquiridas que trabalharam na sociedade O F…, nomeadamente JR, EP, MA, MF e MS, que depuseram de forma clara, coerente e isenta, merecendo credibilidade, afirmaram todas ter ambos os arguidos como patrões, concretizando cada uma os motivos para tal entendimento, explicando que se dirigiam a ambos, indistintamente, como patrões, inclusive a testemunha MA, que foi contabilista certificada da sociedade O F..., acrescentou que enviava e-mails a um qualquer deles com conhecimento ao outro, incluindo sobre estes pagamentos, revelando qualquer destas testemunhas absoluta estupefacção quando confrontadas (as que o foram) com a aludida negação do arguido J___________-, e inclusivamente a testemunha Alfredo Duarte-, pai do arguido J___________- (na “inocência” dos seus 82 anos), que depôs de forma descomprometida e coerente, confirmou a gerência do filho, J___________, e de V________ como se de uma evidência se tratasse, explicando nos termos do arguido V________ o porquê do seu filho não constar oficialmente como gerente (de direito, portanto). No que tange aos pagamentos de ordenados, o que o arguido V________ admitiu foi também confirmado pelas aludidas testemunhas, porém, quanto ao que negou, também estas testemunhas, com maior ou menor certeza, mais mês menos mês, o afirmaram (sendo as declarações do arguido J___________ absolutamente destituídas de credibilidade e contrariadas pela demais prova produzida nos termos dissecados). A testemunha L______, técnica do ISS, limitou-se a confirmar que a sociedade O F… remeteu as declarações com os valores constantes da acusação, adiantando que em Setembro e Outubro de 2016 houve ordenados pagos pelo Fundo de Garantia Salarial, que indicou. Ora, no que tange aos valores concretos em causa, embora o quadro de fls. 7 a 8 seja sistemático e informativo, não tem, por si só, a virtualidade de comprovar que, efectivamente, durante os períodos ali assinalados foram, além de processados, pagos os ordenados aos trabalhadores/corpo gerente, bem como que foi em consequência efectuada a retenção, pela entidade patronal, das contribuições devidas ao ISS. Porém, conjugando tal documentação analisada nos termos infra com o depoimento das testemunhas referidas e com as declarações dos arguidos nos termos analisados, não podem subsistir dúvidas que houve pagamento destes ordenados (à excepção dos após Maio de 2016) e retenção das contribuições respectivas, tendo sido sempre os arguidos V________ e J___________ a decidir conjuntamente que pagamentos efectuavam. Quanto à factualidade assente, por seu lado, resulta a mesma também da análise crítica das certidões permanente e da Conservatória de Registo Comercial referente à sociedade O ., fls. 9 a 15, 52 a 59 e 441 a 444, das notificações efectuadas nos termos do disposto no art.º 105º, n.º 4, alínea b), do Regime Geral das Infracções Tributárias, de fls. 100, 103 e 137, mas também dos extractos das declarações de remunerações de fls. 197 a 244 e dos balancetes de fls. 161 a 196 e 253 a 263. Com efeito, perante a prova produzida, não podem subsistir dúvidas que os ordenados foram sempre pagos aos trabalhadores/corpo gerente, a dúvida, perante a prova enunciada, quanto ao pagamento de ordenados subsiste apenas quanto aos ordenados de 2016 a partir de Junho, pelo que, por aplicação do principio in dubio pro reo se têm estes como não assentes que tenham sido recebidos (e consequentemente descontada aquela prestação). Os factos referentes ao elemento subjectivo resultaram provados também com base nas regras da experiência comum, pois que pertencendo ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida. Os factos atinentes às condições pessoais e à situação económica do(a)(s) arguido(a)(s) provaram-se com base nas suas declarações, que a declaração de fls. 392 verso confirma quanto ao arguido J___________. Finalmente, os antecedentes criminais do(a)(s) arguido(a)(s) encontram-se certificados nos autos. * Quanto à demais factualidade não assente, ou a mesma se encontra em contradição com aquela que ficou assente ou não foi produzida qualquer prova ou esta foi julgada insuficiente. * Consigna-se que não se fez constar dos factos assentes e não assentes factos conclusivos, bem como matéria irrelevante para a boa decisão da causa ou meramente instrumental para a mesma.
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2.3. Da nulidade da sentença por omissão de pronúncia
Alega o recorrente que “apresentou, em sede de audiência de julgamento, um elemento probatório que foi simplesmente ignorado pelo Tribunal a quo, qual seja, a decisão de arquivamento do processo de inquérito instaurado contra o ora Recorrente, pela prática da mesma infração pela qual veio acusado nestes autos”.
Mais à frente, refere, ainda, que “o Tribunal a quo nem sequer fez qualquer tipo de referência à decisão de arquivamento acima identificada, o que inculca no Recorrente a convicção de que a mesma não foi tida em consideração na decisão proferida”.
Invoca, em consequência, a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, ao abrigo do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 379.º, do CPP, devendo tal despacho de arquivamento e os factos e fundamentos que lhe estão subjacentes serem apreciados e, em consonância com os mesmos, ser proferida nova decisão.
Sobre esta questão o MP, na resposta ao recurso, não se pronunciou sobre a questão suscitada.
Apreciemos:
Cotejando os autos constatamos que o arguido requereu (REFª: 32965203) a junção aos autos de uma notificação por via postal simples com prova de depósito referente ao processo 650/18.9IDLSB, onde lhe é dado conhecimento de que foi proferido despacho de arquivamento no inquérito acima referenciado, nos termos do art.º 277º do Código de Processo Penal. Com a notificação referida foi junta cópia do referido despacho de arquivamento.
Sobre a requerida junção de tal documento nunca recaiu nenhum despacho de admissão.
Sobre esta questão suscitada impõe-se-nos trazer à colação o acórdão proferido pelo STJ, processo nº. 2965/06.0TBLLE.E1, sendo seu Relator o Exmo. Sr. Conselheiro SANTOS CABRAL, datado de 24-10-2012, in www.dgsi.pt: I - A omissão de pronúncia significa, fundamentalmente, ausência de posição ou de decisão do tribunal sobre matérias em que a lei imponha que o juiz tome posição expressa. Tais questões são aquelas que os sujeitos processuais interessados submetam à apreciação do tribunal (art.º 660.º, n.º 2, do CPC), e as que sejam de conhecimento oficioso, isto é, de que o tribunal deve conhecer, independentemente de alegação e do conteúdo concreto da questão controvertida, quer digam respeito à relação material, quer à relação processual. II - A «pronúncia» cuja «omissão» determina a consequência prevista no art.º 379.º, n.º 1, al. c), do CPP – nulidade da sentença – deve, pois, incidir sobre problemas e não sobre motivos ou argumentos; é referida ao concreto objecto que é submetido à cognição do tribunal e não aos motivos ou às razões alegadas. III - Invoca o recorrente que existiu omissão de pronúncia por parte do Tribunal da Relação uma vez que este não apreciou a junção de documento por si pretendida nomeadamente o seu passaporte com vista a provar a impossibilidade de se encontrar em Portugal na altura do crime. Tal pedido tem necessariamente subjacente a ideia de que a decisão recorrida não se pronunciou sobre algo em relação ao que se deveria ter pronunciado porque solicitado. IV -O recurso interposto de uma determinada decisão não pode abranger questões que não constam dessa mesma decisão. Assim, reafirma-se a jurisprudência do STJ no sentido de que os recursos se destinam a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquelas jurisdições. V - No caso, não podia nem devia o Tribunal da Relação conhecer de questões que não tinham sido colocado ao tribunal de que recorria. A pronúncia sobre a admissibilidade do documento cuja junção se pretendia consubstancia uma questão prévia situada a montante da decisão recorrida. De facto, o momento daquela apreciação era prévio à decisão recorrida e, a eventual omissão seria não da decisão recorrida, que apreciou o que tinha de apreciar, mas sim de uma omissão situada a seu montante. VI -Mas mesmo que sobre a decisão recorrida incidisse o ónus de se pronunciar sobre a requerida junção, contrariamente ao pretendido pelo recorrente, tal patologia não implica necessariamente a nulidade da decisão recorrida, pois o STJ pode suprir uma eventual omissão de pronúncia em relação à nulidade suscitada.
(…)”
Segundo este entendimento, que sufragamos, a questão colocada coloca-se, efetivamente, a montante da sentença recorrida. Ou seja, coloca-se na omissão de despacho a pronunciar-se sobre a admissão/ou não de documento cuja junção se requereu.
Como tal a questão suscitada não é enquadrável na nulidade da sentença por omissão de pronúncia, no âmbito do disposto na alínea c), do n.º 1, do artigo 379.º, do Código de Processo Penal, pois a omissão de decisão sobre a requerida junção de documento aos autos constituirá motivo para eventual arguição de nulidade, que não da sentença, pois esta apreciou o que tinha de apreciar.
Importa, ainda, referir que, contrariamente ao alegado pelo recorrente, o documento cuja junção aos autos se requereu não foi em sede de audiência de julgamento, mas em momento anterior a esta fase processual. Basta atentar na leitura da ata de audiência de julgamento para se constatar que nenhuma referência é feita à junção do referido documento. Por outro lado, o recorrente em nenhum momento processual suscitou ao tribunal a omissão de despacho sobre a requerida admissão aos autos do documento em causa. Ademais, nem na contestação que deduziu é feita qualquer alusão ao documento que agora elege como crucial para determinar a sua absolvição.
Trata-se de uma nulidade sanável, isto porque nem o legislador referiu tratar-se de uma nulidade insanável, nem a mesma integra o elenco taxativo das situações previstas como nulidades insanáveis do art.º 119.º do Código de Processo Penal.
Compulsados os autos, constata-se que a arguição de nulidade não existiu pelo que se deve ter por sanada.
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Contudo, importa atentar que, também, os vícios elencados nas alíneas a), b) e c) do artigo 410º do Código de Processo Penal são de conhecimento oficioso.
São os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova.
Sobre o da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada iremos desde já apreciar pois afigura-se-nos que é este o vicio que existe no caso dos autos, considerando precisamente o documento que se pretendeu juntar aos autos e que o tribunal olvidou. Ou seja, é patente que o tribunal a quo não considerou todos os factos relevantes para a boa decisão da causa.
Sabido que este vicio existe quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe quando o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tomando a matéria de facto insuscetível de adequada subsunção jurídica, concluindo-se pela existência de factos não apurados que seriam relevantes para a decisão da causa.
A insuficiência a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP é a que decorre da omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão, ou seja, a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão.
Como refere o Prof. Germano Marques da-, no “Curso de Processo Penal”, Vol. III, pag.325/326 «é necessário que a matéria de facto dada como provada não permita uma decisão de direito, necessitando de ser completada. Antes de mais, é necessário que a insuficiência exista internamente, dentro da própria sentença ou acórdão. Para se verificar este fundamento, é necessário que a matéria de facto se apresente como insuficiente para a decisão que deveria ter sido proferida por se verificar lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para uma decisão de direito.”
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem nada a ver com a eventual insuficiência da prova para a decisão de facto proferida.
Ora, uma decisão incorre em tal vício, quando o tribunal recorrido podendo fazê-lo deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa materialidade não permite, por insuficiência a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do tribunal.
Tal insuficiência determina a formulação incorreta de um juízo porque a conclusão ultrapassa as premissas, ou seja, quando os factos provados forem insuficientes para fundamentar a solução de direito encontrada.
Ou seja, há insuficiência para a decisão sobre a matéria de facto provada quando os factos dados como provados não permitem a conclusão de que o arguido praticou ou não um crime, ou não contém, nomeadamente, os elementos necessários ou à graduação da pena ou à elucidação de causa exclusiva da ilicitude ou da culpa ou da imputabilidade do arguido.
Ou seja, verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando da factualidade vertida na decisão se colhe faltarem dados e elementos que, podendo e devendo ser investigados, são necessários para que se possa formular um juízo seguro de condenação (e da medida desta) ou de absolvição.
Fazendo apelo a um juízo de prognose, seria aceitar que os factos que ficaram por apurar, se viessem a ser averiguados pelo Tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis, poderiam ser dados como provados, determinando uma alteração da qualificação jurídica da matéria de facto, ou da medida da pena ou de ambas. In casu, atento o requerimento do arguido para junção aos autos de despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, no processo de inquérito n.º 650/18.9IDLSB, importa saber se foi instaurado relativamente aos mesmos factos e crime pelo quais o recorrente veio a ser condenado na sentença recorrida.
Além do mais, o tribunal recorrido deverá juntar aos autos tal documento e apreciar esse mesmo documento, assegurando previamente o princípio do contraditório, no sentido de valorizar ou desvalorizar o seu conteúdo para efeitos de condenação ou absolvição do recorrente.
Na perspetiva deste Tribunal era relevante e decisivo para o julgamento que a admissão da junção do aludido documento servisse para o tribunal esgotar todas as diligências possíveis no sentido de apurar a responsabilidade criminal do recorrente, o que não fez.
Atentos os princípios da investigação ou da verdade material, e artigo 340º, nº 1 do Código de Processo Penal, impunha-se que o tribunal recorrido admitisse e apreciasse o documento em causa.
Com este mesmo enquadramento confronte-se o teor do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 3.10.2002, processo nº 45.931 in JusNet:
“Há que partir da constatação, já feita no Acórdão nº 584/96, de que o artigo 340º nº 1 do Código de Processo Penal é o lugar de afirmação paradigmática do princípio da investigação ou da verdade material. Este princípio significa, mesmo no quadro de um processo penal orientado pelo princípio acusatório (artigo 32º nº 5 da Constituição), que o tribunal de julgamento tem o poder-dever de investigar por si o facto, isto é, de fazer a sua própria "instrução" sobre o facto, em audiência, atendendo a todos os meios de prova não irrelevantes para a descoberta da verdade, sem estar em absoluto vinculado pelos requerimentos e declarações das partes, com o fim de determinar a verdade material (cfr. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, I, 1955, p. 49; Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, p. 72; Roxin, Strafverfahrensrecht, 20ª edição, 1987, p. 76). É isto mesmo que diz, por outras palavras, o nº 1 do artigo 340º atrás transcrito. Ora não há dúvida de que o princípio da investigação ou da verdade material, sem prejuízo da estrutura acusatória do processo penal português, tem valor constitucional. Quer os fins do direito penal, quer os do processo penal, que são instrumentais daqueles, implicam que as sanções penais, as penas e as medidas de segurança, apenas sejam aplicadas aos verdadeiros agentes de crimes, pelo que a prossecução desses fins, isto é, a realização do direito penal e a própria existência do processo penal só são constitucionalmente legítimas se aquele princípio for respeitado. Desde logo o princípio de culpa, que deriva da própria dignidade da pessoa humana (artigo 1º da Constituição) e é implicado ou pressuposto por outros princípios constitucionais (com o do Estado de direito democrático - artigo 2º -, o direito à integridade moral - artigo 25~ nº. 1 ou o direito à liberdade - artigo 27º) tem uma base ontológica: só quem verdadeiramente é culpado pode ser punido e nunca para lá da medida da sua verdadeira culpa. Também o princípio da necessidade das penas e das medidas de segurança (artigo 18~ nº. 2) implica que só são necessárias tais sanções quando aplicadas aos verdadeiros agentes de crimes, sendo contraproducentes se aplicadas a outras pessoas, por poderem motivar então à revolta, ao desespero, à vingança ou ao desprezo do direito e não contribuírem para a interiorização dos valores jurídicos que é o principal esteio da prevenção geral positiva (e igualmente da prevenção especial). Por outro lado, o princípio da jurisdicionalidade da aplicação do direito penal (artigos 27º nº. 2, 32º nº. 4) justifica-se certamente de um modo essencial pelo fim da descoberta da verdade material, sem prejuízo de visar igualmente o respeito das garantias de defesa (artigo 32º). Finalmente, quando o artigo 202~ nº. 1 atribui aos tribunais competência para administrar a justiça, esta referência em matéria penal tem que entender-se como significando a justiça material baseada na verdade dos factos, que é indisponível, não se admitindo a condenação do arguido perante provas que possam conduzir à sua inocência. Ora o princípio da investigação ou da verdade material tem o seu campo essencial de aplicação na audiência de julgamento. Com efeito, em virtude dos princípios da oralidade e da imediação, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência, com única ressalva, quanto à imediação, de algumas provas contidas em actos processuais cuja leitura em audiência seja permitida pela lei processual (artigos 355º ss. do Código de Processo Penal). (. . .) O Código de Processo não admite - com ressalva dos direitos de defesa do arguido e dos preceitos legais imperativos sobre a admissibilidade de certas provas - qualquer restrição ao poder-dever do juiz de ordenar ou autorizar a produção de prova que considere indispensável para a boa decisão de causa - isto é, para a instrução de facto ou para a descoberta da verdade material acerca dele - como se vê quando prevê expressamente o seu exercício já depois de passado o período normal de produção de prova em audiência, durante as alegações orais, que terão de ser suspensas para o efeito (artigo 360º nº. 4). O Código de Processo Penal harmoniza assim o princípio da investigação ou da verdade material, o princípio do contraditório e as garantias de defesa, de tal forma que nem o primeiro princípio nem as garantias sofrem restrição durante a audiência, mas o segundo princípio não deixa de ser aplicado a qualquer prova que o juiz considere necessária para boa decisão de causa (. . .) Assim sendo, há que entender que também não se verifica uma pretensa inconstitucionalidade orgânica do artigo 340º nº. 1, por violação do princípio de ''parificação do posicionamento jurídico da acusação e da defesa" e da igualdade material de "armas" no processo, recolhido no artigo 2º nº 2, alínea 3) da Lei de Autorização Legislativa nº 43186, de 26 de Setembro de 1986. É que aqueles princípios são acolhidos no Código de Processo Penal na medida em que o princípio do contraditório vigora na audiência nos mesmos termos para a acusação e a defesa, relativamente aos meios de prova que elas ofereçam e que o juiz considera necessário à descoberta da verdade. Por outro lado, também o princípio de investigação é expressamente recolhido na alínea 4) do mesmo nº. 2 do artigo 2º da Lei de Autorização Legislativa nº 43186, pelo que esta deve ser interpretada em conformidade com a Constituição, como consagrando uma harmonização entre os dois princípios, que não implique a exclusão do princípio dispositivo em hipóteses como a dos autos.”.
Em suma, no caso dos autos, só a admissão do documento cuja junção foi requerida e respetiva apreciação pelo tribunal a quo, assegurando o princípio do contraditório devido, pode permitir ao tribunal formular um juízo seguro de condenação ou absolvição.
Não o tendo feito, salvo o devido respeito, como o deveria ter feito, ocorreu o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Em consequência, ocorrido o vicio previsto no artigo 410º, nº 2 a) do Código de Processo Penal determina-se o reenvio dos autos à 1ª Instância para admitir e apreciar o documento que o tribunal recorrido, reabrindo-se, perante a produção de nova prova, a audiência de discussão julgamento e a prolação de nova sentença pelo mesmo tribunal.
Efetivamente, este Tribunal não se encontra em condições de suprir a referida questão porque a questão de facto é da competência do Tribunal do Julgamento.
As demais questões suscitadas no recurso estão prejudicadas atento o teor do decidido.
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III - DECISÃO
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, acordam em considerar verificada na sentença recorrida a existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, prevista na alínea a) do n.º 2 do art.º 410.º do CPP, determinando-se o reenvio dos autos à 1.ª instância (artigo 426º do Código de Processo Penal), para admitir e apreciar o documento referente ao despacho de arquivamento proferido pelo Ministério Público, no processo de inquérito n.º 650/18.9IDLSB, que ficou por apurar, com a consequente reabertura da audiência e com o cumprimento prévio do principio do contraditório.
Sem tributação.
Lisboa e Tribunal da Relação, 29 de janeiro de 2020 Processado e revisto pelo relator (art.º 94º, nº 2 do CPP). Alberto Costa Vasco Freitas