PRINCÍPIO REBUS SIC STANTIBUS
MEDIDA DE COAÇÃO
FUNDAMENTAÇÃO DO DESPACHO
Sumário

I - As medidas de coacção regem-se pelo princípio rebus sic standibus, só podendo ser alteradas, ou revogadas, se houver alteração nos pressupostos que determinaram a sua aplicação.
II - Tal não significa, contudo, que não haja um dever elementar de fundamentar o despacho que revê a medida de coacção, ademais quando essa revisão é solicitada pelo próprio arguido através de requerimento onde invoca factos novos ou circunstâncias diferentes, incumbindo ao Tribunal, ainda que de forma sucinta, responder aos argumentos oferecidos sob pena da decisão em apreço ser nula nos termos do art.º 379º nº 1 al. c) do CPP aplicável e vi o art.º 97º do mesmo CPP.
III - Tendo o arguido, a quem se aplicou, entre outras medidas de coacção, a medida de proibição de saída do País, requerido autorização para poder se deslocar a Marrocos de dois em dois meses para acompanhar negócios que aí tem, deve o Tribunal pronunciar-se especificamente sobre o eventual perigo de fuga, ainda que considere manterem-se os outros perigos previstos no art.º 204º do CPP pelos quais se aplicaram ao arguido medidas de coacção.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. A) No âmbito do inquérito (Actos Jurisdicionais), que corre termos pelo Juiz 2 do Juízo de Instrução Criminal de Sintra, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, na sequência de requerimento apresentado pelo co-arguido VML__, em 06-09-2019, foi proferido despacho em 26-09-2019, com a refª 121288911, constante a fls. 13 da certidão que instrui os presentes autos, nos seguintes termos:

“VML__ encontra-se sujeito, desde 27 de março de 2019 às medidas de coação de T1R, proibição de se ausentar do concelho de Mafra, obrigação de apresentações diárias, proibição de contatos com os ofendidos, proibição de se ausentar para o estrangeiro com obrigação de entrega do passaporte, autorização de residência em Marrocos e carta de condução marroquina.
Na sequência de requerimento apresentado em 19 de julho de 2019, viu tais medidas serem alteradas em 16 de agosto de 2019 mediante a revogação da medida de obrigação de apresentações diárias e substituição pela medida de obrigação de apresentações bissemanais (2ªs e 5ªs feiras) mantendo-se as demais.
Em 6 de setembro de 2019 veio interpor recurso da referida decisão e apresentar novo requerimento visando a alteração das medidas de coação pretendendo alteração para se deslocar pontualmente a Marrocos.
O Ministério Público opôs-se à sua pretensão.
Cumpre decidir
As medidas de coação estão sujeitas à condição “rebus sic stantibus” , da qual decorre que a substituição de uma medida de coação por outra menos grave apenas se justifica quando se verifique uma atenuação das exigências cautelares que tenham determinado a sua aplicação (art.º 212º do CPP). Para que tal aconteça é necessário que algo tenha mudado entre a primeira e a segunda decisão, conforme vem sendo acentuado pela jurisprudência. Em caso algum pode o juiz, sem alteração dos dados de facto ou de direito, “repensar” o despacho anterior ou, simplesmente, revogar a anterior decisão. É que, também aqui, proferida a decisão, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto ao seu objecto - art.º 666.º, nºs 1 e 3 do CPC (entre outros, ac TRL de 13/10/2009 in dgsi.pt).
O arguido não se conformou a com a decisão de 16 de agosto e dela interpôs recurso que terá de ser apreciado na sede própria.
O requerimento de 6 de setembro visa o mesmo objetivo e estriba-se nas mesmas razões já conhecidas pelo tribunal que sobre elas se pronunciou na decisão objeto de recurso.
Não sendo alegados factos de que o tribunal não tivesse tido conhecimento ou que sejam supervenientes e concorram para uma atenuação das exigências cautelares deverá o arguido continuar sujeito às referidas medidas, indeferindo-se, por consequência o requerido.
Porque se mostra acompanhado da respetiva motivação, tendo o recorrente legitimidade para o efeito, admite-se o recurso que subirá de imediato, em separado e com efeito devolutivo (artigos 219º n.º l, 406º n.º 2, 407º n.º 2 al c) e 408º “a contrario” todos do C.P.Penal).
Para conhecimento do recurso instrua um apenso com certidão do auto de Io interrogatório judicial dos elementos probatórios aí relacionados, do requerimento de interposição do recurso e bem assim desta decisão, apenso no qual serão processados os demais atos processuais que respeitam ao recurso agora admitido.”
B) Tal despacho viria a ser alvo de uma rectificação em 03-10-2019 nos seguintes termos:
“Retificação da decisão de 26 de setembro, pp
A decisão que antecede enferma de lapso na origem do qual se encontra a similitude do nome dos arguidos, que se impõe que seja retificado.
VML__ e VAL___ encontram-se sujeitos às medidas de coação de
-TIR já prestado;
- Obrigação de apresentações periódicas, que se propõem diárias ao arguido VML___ e bi-semanais, às terças e quintas, relativamente aos arguidos VAL___ e B_______;
- Não permanecer no Concelho de Mafra, área de residência dos ofendidos;
- Não se ausentarem para o estrangeiro, implicando a entrega do passaporte de todos os arguidos, título de autorização de residência, e carta de condução Marroquinas dos arguidos VML__ e VAL__;
- Não contactar por qualquer meio com qualquer um dos ofendidos e bem assim com as testemunhas já inquiridas nos autos,
VML___ requereu a alteração da medida, em 19 de julho de 2019.
Na sequência do seu requerimento foi designado o dia 16 de agosto de 2019 para interrogatório judicial. Teve lugar na data designada o interrogatório do arguido findo o qual foi proferida decisão que, deferindo parcialmente o seu pedido, determinou que aguardasse os ulteriores termos do processo à medida de coação de obrigação de apresentações bissemanais mantendo as demais, como inicialmente determinado.
O arguido não se conformou com tal decisão e dela veio a interpor recurso admitido em 26 de setembro de 2019.
*
Em 6 de setembro de 2019 veio o arguido VAL___ requerer a alteração da medida de coação, pretensão que o tribunal indeferiu, porém, fundamentando-se em pressupostos errados. Na verdade, contrariamente ao que consta da decisão que antecede, não foi VAL___ quem, em 19 de julho, requereu a alteração da medida nem interpôs recurso da decisão que conheceu desse requerimento.
Cumpre apreciar da sua pretensão que, segundo alega, fundamenta-se em facos novos, a saber, Escrupuloso cumprimento pelo arguido de todas as obrigações e medidas de coação impostas, a forte indiciação da sua versão apresentada no interrogatório judicial, a conclusão das diligências de prova atinente ao apuramento da sua responsabilidade, o indeferimento da autorização de deslocação ao estrangeiro do arguido VML__.
Cumpre decidir.
As medidas de coação não são imutáveis. No entanto, o seu desagravamento só pode ter lugar se se verificar uma atenuação das exigências cautelares que as determinaram. Não pode o juiz, sem mais, repensar anterior decisão e proceder à alteração da medida.
Ora subsistem as razões que impeliram o arguido à prática do crime:
- VML___ continua desapossado dos valores que entregou ao ofendido. A forte indiciação da sua versão apresentada no interrogatório judicial é uma apreciação subjetiva e desde já não se vislumbra qualquer causa de exclusão da ilicitude.
Em todo o caso, por uma questão de justiça relativa afigura-se-nos que à semelhança do que foi determinado quanto ao arguido VML__ e pelas mesmas razões poderá beneficiar de um desagravamento da medida, como peticionado.
Pelos motivos expostos defere-se ao requerido determinando-se uma alteração na periodicidade de cumprimento da medida de coação de obrigação de apresentação de diárias para quinzenais, mantendo-se as demais como determinado no despacho de 27 de março com o qual os arguidos se conformaram.”

C) Os despachos em apreço visavam responder ao requerimento apresentado pelo co-arguido VML___, apresentado em 06-09-2019, com a ref.ª 15348431, através do qual, o mesmo, pede o seguinte:
“Nestes termos e nos demais de direito aplicável (e por se entender que, no caso concreto, se verifica uma atenuação das exigências cautelares), vem o arguido REQUERER, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 212º do Código de Processo Penal, que as medidas de coacção de apresentações diárias e de proibição de se ausentar para o estrangeiro sejam alteradas e atenuadas, sendo determinada uma forma menos gravosa de execução das mesmas, permitindo-se que:
- a obrigação de apresentações perante os órgãos de polícia criminal seja cumprida num período temporal mais espaçado, designadamente, quinzenal;
- o Arguido se desloque, de dois em dois meses, e durante um período temporal a designar pela Meritíssima Juíza de Instrução Criminal, ao estrangeiro, e, concretamente, a Marrocos, para cumprimento de obrigações indispensáveis para conseguir dar continuidade aos negócios familiares em Portugal e manter a sua actividade profissional.”
II. Inconformado com o despacho rectificado, veio o arguido interpor recurso nos termos que constam a fls. 3 e ss da certidão que instrui os presentes autos, através do qual oferece as seguintes conclusões:
1. “Após ser decidida a aplicação ao arguido da medida de coacção de proibição de deslocação ao estrangeiro, verificou-se/constata-se:
- O escrupuloso cumprimento pelo arguido de todas as obrigações e medidas de coacção que lhe foram impostas no âmbito destes autos, desde o primeiro momento e quando já são decorridos aproximadamente cinco meses;
- A forte indiciação da versão apresentada pelo arguido (e os demais) no seu primeiro interrogatório judiciai, de acordo com a qual expressou que apenas acompanhou o seu pai na data e lugar da prática do alegado crime; ou seja, não foi o arguido ora requerente que praticou os ilícitos criminais.
A conclusão das diligências de prova na parte atinente ao apuramento da responsabilidade criminal do arguido, posto que as diligências que ainda se encontrama decorrer visam o(s) crime(s) perpetrado(s) pelo ofendido J_________ e B_________ e que terão estado na origem do crime de ofensas à integridade física ora indiciados;
-    O indeferimento da autorização de deslocação ao estrangeiro ao arguido VML____, pai do ora requerente.
2. Estas circunstâncias novas, aliadas às que já eram conhecidas nos autos, permitem agora ter por nulos ou atenuados os perigos de perturbação da ordem e tranquilidade públicas e de continuação da actividade criminosa, de perturbação do inquérito e de fuga.
3. Em face da inexistência ou atenuação desses perigos, deve ser alterada a medida de proibição de deslocação do arguido para o estrangeiro para uma forma menos gravosa da sua execução, nomeadamente sendo autorizada a sua deslocação a Marrocos, no tempo e com a duração a determinar pelo Tribunal, e se necessário for mediante a prestação de caução económica pelo arguido, tendo em vista o cumprimento de afazeres profissionais.
4. A decisão recorrida violou ou fez errada aplicação, pois, das seguintes disposições legais do CPP: artigos 192º, nº 1 e 6; 193º, nºs 1, 2 e 3; 204º e 212º, nº 3.
Nestes termos e nos demais de direito aplicável, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogado o despacho de 26-09-2019, na parte ora recorrida, e ser o mesmo substituído por outro que permita a deslocação do arguido a Marrocos de dois em dois meses ou noutros moldes a determinar pelo Tribunal.
Assim decidindo, V. Exas. farão a costumada JUSTIÇA!”

III. O recurso foi admitido por despacho de 25-10-2019 (refª 121891386) de fls. 15 da certidão tendo sido fixado efeito devolutivo.
IV. Respondeu o MºPº através das contra-alegações constantes a fls. 280 e ss, juntas em 04-11-2019 (refª 15725155), nas quais oferece as seguintes conclusões:

 “I. A 28/03/2019, em sede de primeiro de arguido detido foram aplicadas aos arguidos ora recorrentes, além do mais, a medida de coacção de proibição de se ausentar para o estrangeiro;
II. Face aos factos que lhes eram imputados, e, bem assim, a gravidade dos ilícitos em causa, foi determinado que os arguidos entregassem os documentos que lhes permitiam viagens recorrentes a Marrocos, por só assim poder ao perigo de fuga elevado que se faz sentir no caso concreto;
III. Ao contrário do alegado pelos recorrentes, verificam-se no caso concreto fortes exigências cautelares, consubstanciadas no perigo de fuga, de perturbação do decurso do inquérito e de continuação da actividade criminosa;
IV. A decisão recorrida não violou, de forma alguma, o disposto nos artigos 18º, nº 2, 27º, 28º nº 2 e 32º da Constituição da República Portuguesa e 191º, 193º, nºs 1, 2 e 3 do CPP.
V. Razões pelas quais não deve merecer provimento o recurso do recorrente, devendo manter-se, por legal, as medidas de coacção aplicadas ao arguido nos presentes autos, entre as quais a de proibição de se ausentar para o estrangeiro em virude de se manterem inalterados os pressupostos que a determinaram.”

V. Foi aberta vista nos termos do disposto no art.º 416º nº 1 do CPP, não tendo o Exmo. Sr. Procurador-Geral Adjunto proferido qualquer parecer.

VI. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VII: Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos art.ºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no art.º 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]

Das disposições conjugadas dos art.ºs 368º e 369º, por remissão do art.º 424º nº 2, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:
1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do art.º 412º do CPP, a que se seguem os vícios enumerados no art.º 410º nº 2 do mesmo diploma;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

O Arguido/Recorrente pretende que se determine uma forma de execução menos gravosa da medida de proibição de deslocação ao estrangeiro, uma vez que pretende, por motivos profissionais, viajar para Marrocos, de dois em dois meses.

  Assim, o objecto deste recurso é saber se há circunstâncias novas que permitem concluir-se por uma alteração nos pressupostos que determinaram a medida de coacção aplicada ao arguido/recorrente de proibição de deslocação ao estrangeiro, ou, mais concretamente, se se verifica uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação daquela medida de coacção em concreto.

Vejamos qual a solução imposta pelo quadro legal, doutrinal e jurisprudencial, tendo em atenção os factos que são imputados ao Arguido, bem como o iter processual.

No âmbito do 1º interrogatório judicial, realizado nos dias 27 e 28 de Março de 2019 (documentado nas actas de fls. 16 e ss desta certidão com as ref.ªs 118551781 e 118576222) foi aplicado ex novo ao Arguido/Recorrente (e a outros dois arguidos), as seguintes medidas de coacção:
-TIR já prestado;
- Obrigação de apresentações periódicas, que se propõem diárias ao arguido VML____ e bi-semanais, às terças e quintas, relativamente aos arguidos VAL__ e B_______;
- Não permanecer no Concelho de Mafra, área de residência dos ofendidos;
- Não se ausentarem para o estrangeiro, implicando a entrega do passaporte de todos os arguidos, título de autorização de residência, e carta de condução Marroquinas dos arguidos VML___ e VAL___;
- Não contactar por qualquer meio com qualquer um dos ofendidos e bem assim com as testemunhas já inquiridas nos autos.

Os factos indiciariamente apurados em sede de interrogatório judicial e que determinou a aplicação ao Arguido/Recorrente das medidas de coacção acima referidas são os que seguem (transcrição):
“1) No dia 29 de Novembro de 2018, pelas 08M5, na sequência de um plano previamente delineado e em conjugação de esforços, os arguidos VML__ , o seu filho VAL____, bem como o funcionário daquele B______, dirigiram-se junto da residência do ofendido J________ sita na Rua ______, em três viaturas distintas, o Range Rover, com matrícula marroquina, mais concretamente de Rabat, com a inscrição _________, propriedade de VML____, e o Porsche Cayenne, com a matrícula ________, registado em nome da empresa __________, Lda e uma terceira viatura.
2) Ao avistarem o ofendido no logradouro da sua casa, os arguidos pararam as viaturas que conduziam junto da mesma e saíram do seu interior, sendo que VAL____ empunhava uma arma de fogo.
3) Em ato continuo, o arguido VML____ abordou o ofendido, e prontamente o esmurrou, atirou ao chão, ao mesmo tempo que lhe dizia “paga-me, pagam-me!” aparecendo a posteriori os outros arguidos que também lhe desferiram socos, pontapés e pisões, enquanto o arguido VAL___ lhe colocou o cano da arma de fogo que empunhava dentro da boca do ofendido.
4) De seguida, apesar do ofendido já sangrar abundantemente, dois dos denunciados arrastaram o ofendido para o interior da viatura Range Rover, em concreto nos bancos traseiros onde o continuaram a agredir violentamente com murros e pontapés.
5) Esta viatura de imediato abandonou o local e colocou-se em fuga para parte incerta, tendo seguido pela Nacional 8, na direção Malveira/Lisboa, sendo seguida pelos demais denunciados nas respetivas viaturas.
6) Antes, porém, com o propósito de evitar que o seu marido fosse levado, a esposa deste, a ofendida A________, colocou-se em frente da viatura, sendo abalroada e projetada com violência para o chão.
7) Em consequência a ofendida sofreu escoriações várias quer nos membros superiores quer nos membros inferiores.
8)Ao atuar da forma descrita, os arguidos atuaram sabendo que necessariamente com a sua conduta iriam molestar fisicamente a ofendida, como veio a ocorrer, e utilizando uma viatura automóvel contra a sua pessoa, tudo com a intenção de facilitar a fuga dos arguidos tendo em vista a execução do rapto do marido da mesma como viria a ocorrer.
9) Em resultado das agressões sofridas, maioritariamente na zona da cabeça, J__________ perdeu os sentidos, só os recuperando à berma da estrada Nacional 8 Km 30, onde foi largado e encontrado pelas 10:35 horas por dois populares.
10) O ofendido foi de imediato transportado pela VMER para o Hospital de Santa Maria, tendo permanecido internado até ao final do dia seguinte, e seguido em consultas de neurocirurgia e ortopedia.
11) Em consequência das agressões perpetradas pelos arguidos, o ofendido sofreu diversos hematomas e escoriações e dores dispersos pela face, tórax, membros superiores e membros superiores, ferida contusa frontal à direita e hematoma periorbitrário à direita, fratura no membro superior direito do epicôndilo direito.
12) O ofendido sofreu ainda uma fratura da base do crânio (do frontal esquerdo até à grande asa do esfenoide), que lhe provocou perigo para a vida.
13) Os arguidos e os outros indivíduos atuaram com a intenção de privarem o ofendido da liberdade mediante o uso de violência, com a intenção de o obrigarem a uma disposição patrimonial ilegítima a VML____.
14) Além do mais, no dia 26 de Março, pelas 10h30, o arguido B_______ detinha na sua posse, em concreto na viatura de sua propriedade, de marca e modelo AUDI A 4 Avant de matrícula ____, em concreto no interior da Consola Central do respetivo habitáculo, sita entre os bancos dianteiros 01 (uma) placa retangular de Haxixe com 24,68grs de peso.
15) Foram ainda encontrados na posse dos arguidos, no dia 26 de Março, em concreto na residência de VML____ o telemóvel da marca SAMSUNG, com um cartão SIM correspondente ao número ______, e na residência de B_______ o telemóvel da marca SAMSUNG, com o cartão SIM inserido, ao qual corresponde o número _______.
16) Em todas as suas condutas, os arguidos atuaram livre, voluntária e conscientemente, sabendo que as suas condutas lhe estavam vedadas por lei.”
Foi assim imputado, a nível indiciário, ao arguido/recorrente e aos restantes dois arguidos, a prática em co-autoria e em concurso efectivo de um crime de rapto agravado, p. e p. pelo art.º 161º nº 1 al. a) e nº 2 al. a), um crime de extorsão tentada, p. e p. pelo artigo 223º, nº 1 e 3, al. a), 204º, nº 2 al. f) e 23º nº 1 todos do Código Penal (quanto ao ofendido J__________) bem como um crime de ofensas à integridade física qualificada (quanto à ofendida A________), p. e p. pelo artigo 143º nº 1 e 145º nº 1 al. a) e nº 2 e 132º, nº 2 als. g) e h) do mesmo diploma legal.

As medidas de coacção aplicadas ao arguido/recorrente tiveram por base a seguinte fundamentação (transcrição):
“(…)as declarações prestadas pelos arguidos, admitindo parte dos factos, cuja motivação enquadram no cometimento de um "processo burlão" pelo ofendido J__________, em conjugação com um referido B____ "Mocho", que determinou VML____ a entregar àquele a quantia total de 38.500,00€, sendo numa ocasião 10.000,00€ e em outra 28.500,00€, em dinheiro, nas traseiras da sede da CGD, para concretização de aquisição de imóveis através de empresas de licitação em leilões.
Uma vez que nem J__________, nem o referido B______ "Mocho" efectuavam a marcação da escritura pública para aquisição dos referidos imóveis, furtando-se a contactos e fornecendo uma série de desculpas e adiando essa concretização, VML____, em conjunto com VAL____ e B_______, decidiram deslocar-se à residência de J__________, com o fito de o confrontarem com o seu comportamento e tentarem recuperar a referida quantia monetária (38.500,00€), não indo desde logo com o intuito de ocorrerem agressões ou qualquer outro comportamento mais grave.
Porém, referiu VML___, perante o comportamento adoptado por J__________, este arguido VML___ perdeu a razão, ficou enfurecido e bateu em J________ com muita violência, "dando-lhe" muita porrada.
O seu filho VAL____ e o B_______ não participaram nestes actos, porventura apenas tendo o primeiro auxiliado a colocar J__________ no interior do veículo.
Ambos os arguidos VAL___ e B_______ negaram ter batido no ofendido, tendo ficado nos seus veículos junto ao muro da propriedade de J__________, apenas se tendo deslocaram ao pátio da mesma quando ouviram gritos e foram apartar VML___ e J__________, referiram.
VAL____ acaba por referir não saber se deu algum soco ou não em J__________.
O arguido B_______ também acabou por referir que "puseram-no dentro do carro e foram”.
Os três arguidos negam que tivessem levado arma alguma quando foram abordar J__________.
VML____ assumiu poder ter focado em Cristina Farias de raspão, com o pára-choques do seu veículo, quando arrancou do seu quintal.
B_______ admitiu a detenção do haxixe para seu consumo, diz que uma vez por mês, para descontrair, em virtude da pressão psicológica que o seu trabalho, sempre nocturno, lhe impõe.
Todos os arguidos reiteraram que apenas pretendiam reaver a quantia em que VML____ ficara lesado, sendo que, após os factos, o aludido B_______ "pagou” a VML____ 7.500,00€ em duas vezes, perfazendo 15.000,00€.
Sem prejuízo destas declarações, em súmula, prestadas pelos arguidos, a verdade é que o acervo probatório compilado nos autos nos permite manter a indiciação supra efectuada.
Importa ao Tribunal concatenar as inquirições dos ofendidos e das demais testemunhas ouvidas nos autos, sem interesse nos mesmos e certamente sem conhecimento do enquadramento que determinou este episódio; os reconhecimentos efectuados e na sua quase totalidade resultando positivos para os três arguidos; os elementos de prova encontrados e apreendidos junto ao local onde J__________ foi encontrado; as transcrições relevantes efectuadas das intercepções telefónicas; as informações remetidas pelas operadoras telefónicas móveis; os autos de busca e de apreensão, nos termos doutamente sumulados pela Digna Procuradora-Adjunta.
Importa reiterar a gravidade das agressões e do seu resultado, nas lesões sofridas pelo ofendido J__________, com perigo para a vida.
Inexistem, neste momento processual, dúvidas quanto ao enquadramento jurídico supra efectuado, olhando a que, contrariamehte ao alegado pela defesa dos arguidos, não tinham estes direito a reaver a quantia de que alegadamente foi VML___ desapossado por via de uma alegada burla por este modo que decidiram tomar, ao invés de seguir as vias legais, através do competente procedimento criminal, mostrando-se evidente não ter direito, por este modo, a “reaver" a quantia de que se reclama lesado, o que consubstanciaria um prejuízo patrimonial, não fora estarmos perante um crime tentado.
Também não enfrentamos dúvidas quanto à subsunção ao crime de rapto, pois que não se exige qualquer delonga na privação da liberdade, logo que esta tenha um objectivo específico, como no caso o foi, o da extorsão, ainda que, no caso concreto, não se tenha ultrapassado a tentativa de obtenção patrimonial ilegítima por aquele modo.
No elencar dos perigos que urge salvaguardar, nos permitimos aqui dar por reproduzida a douta promoção que antecede, apenas ora se destacando, para além da gravidade dos factos e das penas aplicáveis, a motivação que esteve na sua base, que neste momento se cifra ainda em 23.500,00€,
Os arguidos poderão, não obstante os presentes autos e a sua detenção, e até por causa desta, tendo demonstrado a sua capacidade de movimentação e de violência sobre as pessoas, tornar a atingir os ofendidos ou as testemunhas em ordem a conseguirem os seus objectivos - perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação do decurso do inquérito, mormente para aquisição, conservação ou veracidade da prova.
VML___ e VAL____ possuem títulos de residência e de condução em Marrocos, onde também têm familiares e uma boa parte de negócios, pelo que facilmente poderão fugir de Portugal, evitando sujeitar-se a julgamento e a eventual condenação privativa da liberdade.
A ordem e a tranquilidade públicas igualmente não se aquietarão com a manutenção dos arguidos, libertos de adequado estatuto coactivo, que igualmente terá que ser proporcional e necessário.
Os três arguidos encontram-se familiar, social e laboralmente inseridos, sendo que VML___ e B_______ têm filhos menores ao seu encargo.
Nenhum dos arguidos possui condenações prévias,
Assumiram parcialmente os factos e revelaram alguma permeabilidade às normas penais que violaram, não obstante a revolta pela factualidade que os determinou, por parte dos referidos B_______ “Mocho", foi visível o pesar peia conduta que levaram a cabo.” – sublinhados nosso

Em 16-08-2019 foi realizado um segundo interrogatório ao co-arguido VML___, pai do arguido/recorrente, por o respectivo co-arguido ter pedido a alteração das medidas de coacção, no âmbito do qual foi proferida a seguinte decisão (transcrição):
“Vem o arguido VML___ requerer, ao abrigo do disposto no art.º 212 do C. P. Penal, a alteração das medidas de coacção que lhe foram aplicadas e consequentemente que a obrigação de apresentações periódicas perante órgão de polícia criminal passe a ser cumprida em período temporal mais espaçado e que cesse a medida de proibição de deslocações para o estrangeiro. Para tanto, e em síntese, refere que as medidas de coacção em questão são susceptíveis de causar importante prejuízo à sua actividade empresarial, uma vez que, adquirindo peixe em Marrocos e Mauritânia para venda em território nacional, necessita de se deslocar com frequência a esses países, sendo que a sua actividade poderá sofrer importantes prejuízos caso não o faça. Por outro lado, refere terem-lhe sido aplicadas as medidas de coacção em questão, no passado mês de Março, e que se encontram visivelmente atenuadas as exigências cautelares verificadas nesse momento, tendo designadamente em conta o seu comportamento cooperante, que se traduziu além do mais no estrito cumprimento da obrigação de apresentações periódicas diárias que lhe foram impostas.
Tomadas declarações ao arguido o mesmo confirmou, no essencial, o invocado quanto à natureza da sua actividade empresarial e à necessidade, em face da mesma, de se deslocar frequentemente a Marrocos e à Mauritânia, países onde segundo referiu tem empresas e trabalhadores, e onde precisa deslocar-se frequentemente para compra de peixe, uma vez que os negócios em questão, em tais países, realizam-se preferencialmente com base na confiança e na presença física, e que tem fornecedores com quem costuma contactar, sendo difícil delegar designadamente em funcionários seus tais contactos.
Prevê, efectivamente, o artigo 212.º do C. Processo Penal, que as medidas de coacção sejam revogadas quando se verifiquem uma das situações previstas no respectivo n.º 1, designadamente, terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação e prevê-se também no n.º 3 do referido preceito que, quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o Juiz a substitui por outra menos grave, ou determina uma forma menos gravosa da sua execução. Como se pode aferir da norma em apreço, o que está em causa é, por ora, do eventual desaparecimento ou alteração das circunstâncias que levaram à aplicação das medidas.
Compulsado o despacho de aplicação das medidas de coacção em apreço, proferido em Março deste ano, verifica-se em face do mesmo e dos elementos constantes dos autos, nada de novo ter sido trazido aos mesmos quanto às exigências cautelares que motivaram a aplicação destas medidas, não podendo olvidar-se que os critérios determinantes das mesmas são, no essencial, os que vêm previstos no artigo 204.º do C. P. Penal e que se referem aos perigos aí previstos que as medidas de coacção visam acautelar. Não se encontrando previsto, quer no referido preceito artigo 204.º, quer no art.º 212, a propósito da possibilidade da revogação ou de substituição das medidas, o acautelar de interesses económicos ou outros do arguido, que possam eventualmente ser postos em causa pelas medidas de coacção. Aliás, de outra forma não poderia ser, uma vez que as medidas de coacção diversas do TIR são medidas excepcionais e que visam precisamente acautelar um dos perigos previstos no art.º 204, caso este se mostre suficientemente intenso para justificar a sua aplicação. Do que se acaba de expor e do próprio teor das declarações do arguido, cuja veracidade não se põe sequer em causa, resulta que nada se apurou que não pudesse já ter sido ponderando aquando do primeiro interrogatório judicial de arguido detido e que possa levar a concluir terem deixado de subsistir as circunstâncias que fundamentaram a aplicação das medidas de coacção em vigor, ou terem sido significativamente atenuadas as exigências cautelares relacionadas com os perigos referidos no art.º 204 do C. P. Penal que justificaram a aplicação das medidas, não se tendo assim por verificada qualquer das hipóteses que nos termos do disposto do art.º 212 do C.P. Penal imponha ou sequer permita a revogação ou substituição das medidas.
Contudo, e no que no respeita concretamente da obrigação de apresentação periódica no posto policial da área de residência do arguido, importa sim ponderar que a medida de coacção em causa se encontra em vigor desde Março de 2019 e que não há noticia de qualquer incumprimento da mesma. Pelo contrário, foi mesmo junto aos autos um mapa de apresentações periódicas do qual resulta que a medida em questão tem sido escrupulosamente cumprida pelo arguido, razão pela qual se entende, em face do tempo decorrido e do apontado cumprimento, ser de substituir estas apresentações diárias por apresentações bissemanais conforme promovido pelo Ministério Público.
Em face do exposto:
- por se entender não se verificar qualquer alteração nas exigências cautelares que fundamentaram a aplicação da medida de coacção em questão, decide-se indeferir o requerido, mantendo-se as medidas de coacção aplicadas ao arguido quanto à proibição de deslocação para o estrangeiro.
- ao abrigo do disposto no art.º 212 n.º 3 do C. P. Penal, altera-se a medida de coacção de obrigação de apresentação periódica diária para apresentações bissemanais (às segundas e quintas-feiras) por se entender que desta forma se encontra suficientemente salvaguardada a exigência cautelar visada a assegurar com a referida medida de coacção.
Notifique.”

Ora, o Arguido/Recorrente entende que se mostram atenuadas as exigências cautelares desde o momento em que a medida de coacção em apreço – proibição de deslocação ao estrangeiro – foi aplicada em sede de primeiro interrogatório porquanto se verificará:
a) O escrupuloso cumprimento pelo arguido de todas as obrigações e medidas de coacção que lhe foram impostas no âmbito destes autos, desde o primeiro momento e quando já são decorridos aproximadamente cinco meses;
b) A forte indiciação da versão apresentada pelo arguido (e os demais) no seu primeiro interrogatório judicial, de acordo com a qual expressou que apenas acompanhou o seu pai na data e lugar da prática do alegado crime; ou seja, não foi o arguido ora requerente que praticou os ilícitos criminais.
c) A conclusão das diligências de prova na parte atinente ao apuramento da responsabilidade criminal do arguido, posto que as diligências que ainda se encontram a decorrer visam o(s) crime(s) perpetrado(s) pelo ofendido J__________ e B_________ e que terão estado na origem do crime de ofensas à integridade física ora indiciados;
d) O indeferimento da autorização de deslocação ao estrangeiro ao arguido VML____, pai do ora requerente.
A estes elementos alia a alegação, que efectuou no seu requerimento de 06-09-2019, de que há negócios familiares que implicam deslocações frequentes e regulares a Marrocos para negociar a aquisição de peixe, negócios esses que empregam mais de duas centenas de trabalhadores e que a sua falta na gestão desses negócios poderá implicar prejuízos para esses trabalhadores.

Não sabemos, por nada constar nos autos que nos foram distribuídos, nem da consulta electrónica que efectuámos ao inquérito, se o Arguido/Recorrente tem cumprido escrupulosamente com as apresentações periódicas, mas admite-se que esse elemento se verifique atento o teor da decisão proferida em sede de segundo interrogatório judicial onde se constatou que o pai do Arguido/Recorrente, também ele arguido, tem cumprido com tais apresentações, o que motivou a alteração desta medida de coacção em conformidade.

E no que tange a esta medida de coacção – apresentações periódicas – o despacho ora sob escrutínio desagravou a sua execução, tendo reduzido a frequência dessas apresentações nos termos peticionados, não sendo alvo de recurso.

O que importa saber é se em relação à medida de proibição de se deslocar para o estrangeiro o despacho ora recorrido violou o disposto no art.º 212º do CPP.

Vejamos.

Diz o art.º 212º do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “revogação e substituição de medidas” o seguinte:
“1. As medidas de coacção são imediatamente revogadas, por despacho do juiz, sempre que se verificar:
a) Terem sido aplicadas fora das hipóteses ou das condições previstas na lei;
b) Terem deixado de subsistir as circunstâncias que justificaram a sua aplicação.
2. As medidas revogadas podem de novo ser aplicadas, sem prejuízo da unidade dos prazos que a lei estabelecer, se sobrevierem motivos que legalmente justifiquem a sua aplicação.
3. Quando se verificar uma atenuação das exigências cautelares que determinaram a aplicação de uma medida de coacção, o juiz substitui-a por outra menos grave ou determina uma forma menos gravosa da sua execução.
4. A revogação e a substituição previstas neste artigo têm lugar oficiosamente ou a requerimento do Ministério Público ou do arguido, devendo este ser ouvidos salvo nos casos de impossibilidade devidamente fundamentada, e devendo ser ainda ouvida a vítima, sempre que necessário, mesmo que não se tenha constituído assistente.”

Como se sabe as medidas de coacção regem-se pelo princípio rebus sic standibus, só podendo ser alteradas, ou revogadas, se houver alteração nos pressupostos que determinaram a sua aplicação.

Ora, no despacho recorrido o Tribunal a quo entendeu que, apesar do alegado pelo Arguido/Recorrente no seu requerimento de 06-09-2019:
- subsistem as razões que impeliram o arguido à prática do crime (uma vez que o arguido VML__ continua desapossado dos valores que entregou o ofendido);
- a forte indiciação da sua versão apresentada no interrogatório judicial é uma apreciação subjectiva;
- não se vislumbra qualquer causa de exclusão da ilicitude.

Ou seja, o Tribunal a quo entendeu que não havia uma alteração nos pressupostos que determinaram a aplicação das medidas de coacção tendo apenas aceite desagravar a medida de coacção de apresentações periódicas, apenas por uma questão de justiça relativa uma vez que, em 16-08-2019, o pai do recorrente tinha beneficiado dessa alteração.

Entende o Arguido/Recorrente que os fundamentos oferecidos pelo Tribunal a quo para indeferir a sua pretensão assentam, por um lado, em erro, e por outro não se debruçam sobre o concreto ponto em discussão.

Quanto ao erro o Arguido/Recorrente entende que foi invocado um fundamento que não lhe diz respeito a si mas, antes ao seu pai – o de continuar desapossado dos valores entregues à vítima (e que estaria na base da actuação dos arguidos) – bem como o Tribunal a quo terá entendido que o que era pretendido era a revogação pura e simples da medida de proibição de deslocação o estrangeiro, quando o que se pretende é um simples desagravamento de tal medida.

Quanto à falta de análise em concreto do peticionado em 06-09-2019 entende o Arguido/Recorrente que o Tribunal a quo desconsiderou por completo o que foi alegado no requerimento de 06-09-2019 onde se despendeu inúmeros parágrafos a explicar a necessidade do Arguido/Recorrente acompanhar os negócios da família em Morrocos.

Vejamos.

Quanto ao erro, afigura-se-nos que o mesmo não se verifica na realidade uma vez que o facto de ter sido o pai do Arguido/Recorrente a pessoa desapossada de valores que teriam sido entregues à vítima não significa que o interesse não seja partilhado pelo filho que não deixou tal facto impedi-lo de acompanhar o pai no dia em que a vítima fora agredida.

Aliás, o que resulta dos autos em termos indiciários é que houve uma conjugação de esforços entre os três arguidos que agiram com o intuito de atingir o ofendido, ainda que o interesse primordial tivesse sido apenas do pai do Recorrente.

Por outro lado, da argumentação despendida pelo Arguido/Recorrente para justificar a sua necessidade de, no lugar do seu pai, viajar com regularidade a Marrocos para salvaguardar os negócios familiares, se verifica que os co-arguidos, pai e filho, partilham os mesmos interesses, não sendo seguramente irrelevante para o Recorrente o destino dos dinheiros que o pai teria entregue ao ofendido.

Quanto à falta de entendimento por parte do Tribunal a quo da pretensão do Arguido/Recorrente no sentido deste querer apenas uma forma menos gravosa de execução da medida de proibição de deslocação ao estrangeiro não resulta da análise do despacho sob escrutínio nada que aponte para essa falta de entendimento, uma vez que o Tribunal a quo limita-se a manter a respectiva medida de coacção.

Já no que tange à não relevação pelo Tribunal a quo dos argumentos despendidos no requerimento do 06-09-2019, afigura-se-nos que assiste razão ao Arguido/Recorrente na medida em que o despacho recorrido não se debruça sobre os respectivos argumentos, mantendo a sua fundamentação circunscrita ao perigo de continuação da actividade criminosa, nada referindo quanto ao perigo de fuga que estaria na base da proibição da deslocação ao estrangeiro, conforme se retira da fundamentação do despacho proferido em sede de primeiro interrogatório judicial.

Ora, em nosso entender, e pese embora o princípio do rebus sic standibus, o despacho recorrido mostra-se demasiado sucinto, sendo insuficiente quanto à sua fundamentação (ao contrário do que sucede com o despacho proferido em 16-08-2019), não se tendo referido à verificação de todos os perigos que determinaram a aplicação das várias medidas de coacção ao arguido/recorrente, sendo de notar que foram aplicadas várias medidas, cada uma destinada a salvaguardar um perigo em concreto, estando claro que a medida de proibição de deslocação ao estrangeiro, com a consequente entrega do passaporte, título de residência e carta de condução Marroquinas que os arguidos Louro possuem, visava evitar uma possível fuga para esse país, pelos mesmos.

O requerimento do Arguido/Recorrente de 06-09-2019 era específico na sua fundamentação quanto ao desagravamento da medida de deslocação ao estrangeiro, tendo o Arguido VAL___ invocado, o que no seu entender, eram factos novos, incluindo o facto resultante do despacho proferido em sede de segundo interrogatório judicial do seu pai, ocorrido em 16-08-2019, que indeferiu a autorização solicitada por este para viajar pontualmente a Marrocos, por causa do negócio de família, pelo que não faz sentido o Tribunal a quo, no despacho recorrido, ter oferecido como único fundamento para o indeferimento de alteração da medida de proibição de deslocação ao estrangeiro o facto dos arguidos se terem conformado com as medidas decretadas em sede de primeiro interrogatório.

É que os fundamentos oferecidos pelo Tribunal a quo centram-se apenas nas circunstâncias que justificariam os perigos de continuação da actividade criminosa e de perturbação de inquérito/obtenção de prova.

No entanto, o que o Arguido/Recorrente pretendia no seu requerimento de 06-09-2019 era uma autorização para poder viajar pontualmente a Marrocos, e pelo tempo determinado pelo Tribunal, para assegurar o normal desenvolvimento do negócio de família.

Tendo o Arguido/Recorrente referido ainda que este aspecto da necessidade de se deslocar a Marrocos por causa de negócios não foi abordado em sede de primeiro interrogatório e que resulta agora mais premente porquanto foi negado ao seu pai essa possibilidade em sede do interrogatório de 16-08-2019.

O Tribunal a quo deveria ao menos ter abordado, ainda que sucintamente, estes argumentos, para concluir pelo deferimento ou indeferimento da pretensão do arguido/recorrente, tanto mais que o arguido efectivamente não veio pedir a revogação das medidas de coacção mas apenas, em relação à medida de apresentações periódicas, uma temporalidade mais espaçada, e em relação à proibição de se deslocar ao estrangeiro, uma autorização judicial para se poder deslocar especificamente a Marrocos, nos termos determinados pelo Tribunal.

São estes os pedidos que o Tribunal a quo estava incumbido de analisar e decidir.

Ora, olhando o despacho recorrido, é perceptível –  até porque o despacho já é uma correcção de um despacho anterior que já havia confundido os dois arguidos, pai e filho, e as suas respectivas pretensões – que o mesmo, aborda de forma muito ligeira e sem atender aos concretos argumentos oferecidos pelo arguido/recorrente, a existência dos indícios do crime, focando-se apenas no perigo de continuação da actividade criminosa, sem abordar o perigo que estaria na base do pedido do arguido, ou seja, o perigo de fuga.

Em nosso entendimento, o despacho recorrido padece da nulidade prevista no artº 379º nº 1 al. c) do CPP, aplicável ex vi o art.º 97º do mesmo CPP, pois que o despacho sob escrutínio não se pronunciou sobre questão que devesse ter se pronunciado.

Esta nulidade, embora não invocada pelo arguido/recorrente nas suas conclusões, é de conhecimento oficioso e impede este Tribunal de recurso de se debruçar, com seriedade, sobre o mérito da questão, ou seja, se ao arguido/recorrente deve ou não ser concedida autorização judicial para se deslocar pontualmente a Marrocos.

A nulidade em apreço só pode ser corrigida pelo Tribunal a quo que deverá substituir o despacho recorrido por um que se debruce sobre as questões suscitadas pelo arguido/recorrente, concluindo pelo deferimento ou indeferimento da respectiva pretensão conforme os fundamentos jurídicos e de facto de que dispuser.

Decisão:
Em face do acima exposto anula-se o despacho recorrido por existência do vício previsto no art.º 379º nº 1 al. c) do Código de Processo Penal, aplicável ex vi o art.º 97º do mesmo CPP e, em consequência, determina-se a devolução dos autos à 1ª instância para suprir, nos termos do nº 2 do art.º 379º CPP, a nulidade em apreço.
Sem Tributação.

           
Lisboa, 29 de Janeiro de 2020.
Florbela Sebastião e Silva
Alfredo Costa
_______________________________________________________
[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art.º 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art.º 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art.º 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc. 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc. 05P1577,] (art.ºs 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art.º 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.