CRIME DE CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
CARTA CADUCADA
ADMOESTAÇÃO
Sumário


I. A aplicação da pena de admoestação, prevista no artº 60º do CP, implica a verificação cumulativa de 3 requisitos formais e 1 requisito material, sendo os requisitos formais:
- a aplicação de uma pena de multa não superior a 240 dias;
- no caso de produção de dano, a sua respectiva reparação;
- falta de antecedentes criminais nos três anos anteriores;
E o requisito material:
- prognose favorável de que se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
II. Desde que reunidos os requisitos legais da admoestação, a sua aplicação deve depender das específicas circunstâncias do caso concreto, não havendo, a priori, um leque pre-determinado de crimes que, apenas em função da sua natureza, devam ser excluídos da sanção de admoestação, como, por exemplo, o crime de condução sem habilitação legal.
III. As exigências de prevenção geral têm de ser consideradas também perante o caso em concreto pois só as especificidades do caso é que poderão ditar as verdadeiras necessidades de prevenção e as finalidades da punição que é sempre aferida perante o concreto arguido e as concretas circunstâncias da sua actuação.
IV. A segurança rodoviária passa pela garantia de que todas as pessoas que circulam na estrada com veículos automóveis saibam conduzir, e portanto, uma pessoa que não se mostre legalmente habilitada à condução não saberá, a priori, conduzir. Esta é a lógica de base e a premissa primordial, subjacentes, por norma, na esmagadora maioria dos casos das pessoas que não possuem carta de condução.
V. Contudo, há uma pequena minoria, como é o caso dos autos, em que o arguido não possui actualmente carta de condução válida, mas por motivos que nada têm a ver com a sua capacidade de conduzir. Isto é, há situações em que o arguido até já teve carta de condução, já circulou na estrada devidamente habilitado, portanto, já passou o crivo dos exames de código e de prática de condução, já foi considerado apto para a condução mas, por motivos que se prendem única e exclusivamente com a prática de actos burocráticos – renovação da carta que não implica a submissão a novos exames para aferir se a capacidade de conduzir se mantém – perde aquele título.
VI. A premissa lógica subjacente às preocupações do legislador com este tipo de crime deixa de existir, ou pelo menos é muito mitigada, quando estamos perante um condutor experiente que apenas não detém um título formal que ateste a sua capacidade de conduzir.

Texto Integral


Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito de processo sumário, que corre termos pelo Juízo de Competência Genérica ..., do Tribunal Judicial da Comarca ..., sob o nº 18/23...., na sequência de audiência de discussão e julgamento, foi proferida sentença oral em 21-03-2023, com a refª ...64, relativamente ao arguido AA através da qual o mesmo foi condenado nos seguintes termos:

“- DISPOSITIVO -
Pelo exposto, decido:
A. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2 do DL 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo a quantia global de 420,00€ (quatrocentos e vinte euros), a qual será substituída pela pena de admoestação, prevista no artigo 60.º do Código Penal;
B. Condenar o arguido AA no pagamento das custas relativas ao presente processo, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (uma unidade de conta), reduzida a metade por força da sua confissão integral e sem reservas (artigos 344.º, n.º2, alínea c), e 513.º, n.º1, do Código de Processo Penal e artigo 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais, em conjugação com a tabela III anexa) e nos demais encargos com o processo.
- Deposite – artigos 372.º, n.º 5 e 373.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
- Notifique.”

II. Inconformado com a sentença condenatória, no tocante à aplicação de uma pena de admoestação, veio o Ministério Público interpor recurso em 27-03-2023, com a refª ...11, através do qual veio oferecer as seguintes conclusões:
           
“1 – A pena de admoestação aplicada ao arguido revela-se desadequada ao caso concreto.
2 – As elevadas necessidades de prevenção geral impõem a efectiva aplicação da pena de multa, tendo em conta o bem jurídico protegido pela norma.
3 – Por outro lado, não deve ser valorada para aquele efeito a confissão do arguido da prática dos factos, que em nada repara o (potencial) perigo causado pela sua conduta, tendo em consideração âmbito de protecção da norma.
4 – Por errada interpretação, foi violado o artigo 60.º, n.º 2, do Código Penal.
5 – Deve, portanto, ser aplicada ao arguido a pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 6,00 euros, o que perfaz o total de € 420,00.
Termos em que se conclui como supra, julgando-se o presente recurso procedente e proferindo-se douto acórdão que revogue a douta sentença sindicada e condene o arguido nos termos propostos, como é de toda JUSTIÇA!!!”

III. O recurso foi admitido por despacho de 29-03-2023, com a refª ...62, que lhe fixou efeito suspensivo.

IV. Respondeu o arguido nos termos que constam das contra-alegações juntas em 28-04-2023 com a refª ...65, através das quais pugna pela improcedência do recurso e consequente confirmação da decisão recorrida, tendo oferecido as seguintes conclusões:
       
“A – Pese embora a regra geral do disposto no artigo 165.º do CPP e da exceção do art.º 361.º/2 do CPP quanto ao limite temporal na tramitação processual penal para junção de documentos aos autos, deve ser deferido o requerimento do Recorrido de junção de três documentos nesta fase processual de recurso e com as presentes contra-alegações, suscitado a título de questão prévia, em virtude destes documentos não se tratem de prova suplementar – cfr. art.ºs 369.º/2 e 371.º do CPP – e do teor dos mesmos resultarem factos novos ocorridos após a prolação da sentença recorrida, que à luz do direito de defesa consagrado no art.º 32.º/1 da CRP, têm relevo para a justa decisão da causa no que à sanção em concreto a aplicar concerne – pena de multa substituída ou não por pena de admoestação – devendo, inclusive, pela sua relevância para esta finalidade, ser a sua junção ordenada oficiosamente.
B – Das conclusões 1, 2, 4 e 5 formuladas no recurso a que ora se responde, depreende-se que o mesmo consubstancia recurso da matéria de direito, reconduzível ao disposto no art.º 412.º/2, al. c) do CPP para se aferir do preenchimento ou não dos pressupostos legais do art.º 60 do CP na punição do Recorrido em pena de multa substituída pela pena de admoestação.
C – E, quanto à conclusão 3, mais consubstancia recurso da matéria de facto, reconduzível ao disposto no art.º 412.º/3 do CPP, no que concerne à óbvia impugnação dos factos julgados provados pelo Tribunal a quo, através do meio de prova confissão do Recorrido (p.e. o facto de não ter tido intervenção em sinistro rodoviário e com a sua conduta ilícita não ter provocado danos), atinentes aos requisitos de prevenção geral que conduziram a que a Meritíssima Juíza a quo tenha formulado juízo de prognose favorável para aplicação da pena de substituição nos termos do art.º 60.º do CP.
D – Deve, em primeiro lugar, o recurso da matéria de direito, não merecer provimento, em virtude de, alicerçado de forma genérica e abstrata e em conclusões de direito acerca do conceito jurídico “prevenção geral”, não logrou alegar de forma concreta e circunstanciada em que é que a punição do Recorrido em pena de substituição de admoestação, abala e fere a confiança e o sentimento de segurança do cidadão desta comunidade valpacense, na forma mais presente de sentir a efetivação do direito.
E – Em segundo lugar, o recurso da matéria de direito mais não deve merecer provimento porque as alegações foram alicerçadas em jurisprudência que não é actual – Ac. TRG, datado de 28/09/2009, relator o Venerando Desembargador Cruz Bucho, no processo n.º 34/09.0GTVCT.G1; Ac. TRG, datado de 28/09/2009, relator o Venerando Desembargador Estelita de Mendonça, no processo n.º 230/09.0GAEPS.G1; Ac. TRG, datado de 20/04/2009, relator o Venerando Desembargador Filipe Melo, no processo n.º 967/08.0GAEPS.G1 – na medida em que o próprio Desembargador Relator que em 2009 pugnou no sentido invocado pelo Recorrente evolui em 2010 para entendimento jurídico acolhido pelo Tribunal a quo na sentença recorrida – Venerando Desembargador Cruz Bucho no Ac. de 11/01/2010 exarado no processo n.º 941/09.0GBBMR.G1; após o ano de 2009 no mesmo Tribunal superior – Ac. TRG de 11/01/2010 exarado no processo n.º 941/09.0GBBMR.G1 – e noutros Tribunais superiores – Ac. TRL de 17/12/2015 exarado no processo n.º 402/08.4PTLRS.L1-9 – foram exarados acórdãos que contrariam a jurisprudência de 2009 invocada pelo Recorrente, todos no sentido de aplicar pena de admoestação a sujeitos jovens e sem experiência rodoviária dado o carácter excecional do caso relatado que, no caso dos presentes autos mais excecional se mostra dado o Recorrido já ter tido título válido e ter conduzido durante 18 anos, e; o Recorrente ainda realizou interpretação demasiado lacta e extensiva de jurisprudência – Ac. TRG, datado de 13/01/2020, no processo n.º 564/19.5GAFAF.G1 – para sustentar as suas pretensões, quando em rigor, não tem aplicação ao caso dos autos em virtude da ausência de dano, mais sendo certo que também a jurisprudência mais recente vai de encontro à prolatada sentença do Tribunal a quo – Ac. TRP de 30/11/2022, exarado no processo n.º 130/22.8PFVNG.P1.
F – Em terceiro lugar, dado verificar-se que os pressupostos formais de aplicação do art.º 60.º do CP no caso concreto estão preenchidos – condenação em pena de multa inferior a 240 dias, reparação do dano que for falta de ocorrência de um sinistro e que nos crime de perigo abstrato não existe, ausência de antecedentes criminais – ao Recorrente restava, em sede de recurso da matéria de direito, atacar a sentença recorrida, quanto ao juízo de prognose favorável, que o Tribunal a quo realizou que, a admoestação é razoável para realização bastante das finalidades punitivas da pena. Para tanto, o Recorrente teria apenas que alegar que o que levou a julgadora a formular um juízo de prognose favorável da actuação do Recorrido ter caráter verdadeiramente excecional, foi decidido em violação pelas mais elementares regras da experiência comum, pelo que, não tendo realizado tal alegação (circunstanciadamente) não logrou abalar o disposto no art.º 127.º do CPP e o princípio da livre apreciação da prova.
G – O recurso da matéria de facto – por alusão ao ponto 3 da conclusão do recurso – também não deve merecer provimento, por um lado por não ter sido empregue o meio próprio para o efeito – revista alargada, art.º 431.º, al. b) do CPP – e por outro lado, em virtude da notória falta de cumprimento dos pressupostos legais que dimanam das alíneas a), b) e c) do art.º 412.º/3 do CPP, que são um verdadeiro ónus para o Recorrente, mais sendo certo que, nem sequer se lhe deve dirigir o convite ao aperfeiçoamento na medida em que, o ónus de impugnação especificada da decisão proferida sobre matéria de facto não pode considerar-se minimamente cumprido quando o Recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto, pelo que o recurso nesta parte, tem que ser rejeitado.
H – A sentença exarada pelo Tribunal a quo não violou o disposto no art.º 60.º, n.º 2 do CP, nem quaisquer outras normas jurídicas, pelo que, deve ser mantida a decisão de «Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, p. e p. pelo disposto no artigo 3.º, n.º 1 e 2 do DL 2/98 de 3 de Janeiro, na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo a quantia global de 420,00€ (quatrocentos e vinte euros), a qual será substituída pela pena de admoestação, prevista no artigo 60.º do Código Penal».

NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que os Venerandos Desembargadores suprirão, deverão deferir o requerimento de junção de três documentos aos autos nesta fase processual e valorá-los para efeito de acórdão a proferir, devendo, negar provimento ao recurso da matéria de direito e rejeitar o recurso da matéria de facto intentado pelo Recorrente, e, consequentemente, manter a sentença exarada pelo Tribunal a quo que condenou o Recorrido «na pena de 70 (setenta) dias de multa, à taxa diária de 6,00€ (seis euros), perfazendo a quantia global de 420,00€ (quatrocentos e vinte euros), a qual será substituída pela pena de admoestação, prevista no artigo 60.º do Código Penal».» sendo que só assim farão JUSTIÇA!!!”
O arguido juntou três documentos novos.

 V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta, em 20-05-2023, com a refª ...33 emitido douto parecer através do qual, subscrevendo a posição do MºPº de 1ª instância, pugna pela procedência do recurso.

VI. Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do CPP veio o arguido oferecer resposta em 26-05-2023 com a refª ...93 através da qual reitera a posição por si assumida nas suas contra-alegações.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VIII. Analisando e decidindo.

Questão Prévia:
Da junção em fase de recurso de novos documentos:

Com o seu recurso o arguido juntou três documento novos que não havia junto em momento anterior e com vista a provar a sua inscrição, desde 23-03-2023, numa escola de condução com vista a obter nova carta de condução.

A Exmª Srª Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer opôs-se à requerida junção pugnando para que não sejam relevados.

Analisando e decidindo.

A questão que nos ocupa encontra o seu assento legal no artº 165º do Código de Processo Penal que diz o seguinte:

“1 - O documento deve ser junto no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, deve sê-lo até ao encerramento da audiência.
2 - Fica assegurada, em qualquer caso, a possibilidade de contraditório, para realização do qual o tribunal pode conceder um prazo não superior a oito dias.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a pareceres de advogados, de jurisconsultos ou de técnicos, os quais podem sempre ser juntos até ao encerramento da audiência.”

O arguido admite que a junção que oferece é extemporânea mas entende, em face dos ditames constitucionais, mormente os plasmados no artº 32º da CRP, que por ter interesse para aferir da bondade da pena que lhe foi aplicada, ora impugnada em sede de recurso pelo MºPº, devem os documentos ser considerados.

Ora, os documentos em questão reportam-se a factos ocorridos após a prolação da decisão ora sob escrutínio, motivo pelo qual, retratam uma situação – inscrição em escola de condução para obtenção de (nova) carta de condução – que não foi de todo considerada pelo Tribunal a quo embora pudessem permitir a confirmação do juízo de prognose favorável que o Tribunal a quo efectuou quando substituiu a pena de multa pela pena de admoestação.

Contudo, o que nos é pedido analisar no âmbito deste recurso é se a pena de admoestação aplicada pelo Tribunal a quo se revela legal o que implica saber se a prognose efectuada se mostra consentânea com os factos e informação de que o Tribunal a quo possuía ao tempo em que proferiu decisão.

É que no entendimento do MºPº, a admoestação nunca poderia ter sido aplicada em virtude da natureza do crime em causa (condução sem habilitação legal) que, na sua óptica, não admite nunca aquela pena, independentemente das específicas circunstâncias do caso concreto.

Assim, há que avaliar se a decisão recorrida é legal no sentido de saber se respeitou, ou não, o disposto no artº 60º do Código Penal, o que implica saber se o crime imputado ao arguido admite ou não aquela punição.

Ou seja, a questão colocada no recurso é prévia à situação que o arguido visa demonstrar ocorrida em momento posterior à prolação de decisão.

Por tudo isto e, porque não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade na rejeição dos documentos cuja junção é ora recorrida, e porque não se nos afigura fazer sentido mandar desentranhar e devolver documentos juntos electronicamente, determina-se a não relevância de tais documentos, os quais têm-se por não escritos.
 
Do Objecto do Recurso:

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP devendo, contudo, o Tribunal ainda conhecer oficiosamente dos vícios elencados no artº 410º do CPP que possam obstar ao conhecimento do mérito do recurso.[1]

Das disposições conjugadas dos artºs 368º e 369º, por remissão do artº 424º nº 2, e ainda o disposto no artº 426º, todos do Código de Processo Penal, o Tribunal da Relação deve conhecer das questões que constituem objecto do recurso, pela seguinte ordem:

1º: das questões que obstem ao conhecimento do mérito da decisão, aqui incluindo-se as nulidades previstas no artº 379º e os vícios constantes do artº 410º, ambos do CPP;
2º: das questões referentes ao mérito da decisão, desde logo, as que se referem à matéria de facto, começando pela impugnação alargada, se deduzida, nos termos do artº 412º do CPP;
3º: as questões relativas à matéria de Direito.

O digno recorrente apenas impugna a substituição da pena de multa pela pena de admoestação, pelo que o objecto do seu recurso restringe-se à fixação desta pena e os seus requisitos.

Consigna-se que ouvimos na íntegra todo o julgamento realizado nos autos.

Antes de entrarmos na análise do recurso, vejamos, primeiro, os factos que foram dados por provados e por não provados em sede de 1ª instância.
           
Assim:
“1. No dia 10 de Março de 2023, cerca das 19:20 horas, na Estrada Municipal ...74, em ..., ..., o arguido conduzia o veículo automóvel de marca ..., modelo ..., matrícula ..-..-NG.
2. Porém, o arguido não dispunha àquela data de habilitação legal para a condução de veículos a motor na via pública.
3. Não obstante, quis conduzir o referido veículo na via pública, ciente das suas características, e realizou tal propósito, bem sabendo que não estava legalmente habilitado para tal.
4. Agiu livre, voluntária, e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
5. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos.
6. O arguido é casado, vive com a esposa, tem duas filhas no estrangeiro.
7. É agricultor, aufere cerca de € 350,00 mensais, a que acresce o montante de € 250,00 a título de subsídio por ser agricultor, tem as despesas normais de um agregado, não tendo qualquer empréstimo.
8. Não possui antecedentes criminais.”

Apesar de não constar do elenco da matéria de facto, foi ainda considerado pelo Tribunal a quo[2] (e não impugnado pelo MºPº) o teor do print da consulta efectuada no IMT, junta aos autos em 13-03-2023 com a refª ...33, que revela que o arguido teve carta de condução, com o nº ...14, da categoria B (ligeiros) desde 09-07-1993 até 10-12-2011, data em que caducou, ou seja, o arguido foi possuidor de carta de condução válida por 18 anos.
Mais, foi tido em conta pelo Tribunal a quo que o arguido deixou caducar a sua carta de condução por mera inércia da sua parte, isto é, não a renovou, (sendo que do print consta que a carta caducou e não que tivesse sido cassada) e que o arguido é possuidor de carta de tractores, categorias T1, T2 e T3 (com validade desde 07-09-2022) cfr. documento junto aos autos antes do julgamento (em 16-03-2023 com a refª ...53).
           
Vejamos, agora, o objecto do recurso.

Argumenta o Ministério Público que a substituição da pena de multa pela pena de admoestação não cumpre as necessidades de prevenção geral, que considera elevadas para o tipo de crime em causa, e que a pena de admoestação só deve ser residualmente aplicada, em casos de bagatelas penais.

Olhemos, primeiro, o que diz o quadro legal aplicável ao caso sub iudice.

Ao arguido foi imputada a prática de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, previsto e punido pelo disposto no artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro (por referência aos artigos 121.º e ss. do Código da Estrada) que diz o seguinte:

“1 - Quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias.”

O preenchimento deste tipo legal não foi contestado nem pelo arguido nem pelo digno recorrente pelo que temos por assente que o mesmo é autor do crime pelo qual foi condenado.

A determinação da pena segue os princípios e limites estabelecidos no Código Penal, mormente nos artºs 40º, 70º e 71º.

Sendo que, o artº 40º do Código Penal (CP), cuja epígrafe é "finalidades das penas e das medidas de segurança" dispõe o seguinte:

"1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente."

O artº 70º do CP, cuja epígrafe é "critério de escolha da pena" dispõe o seguinte:
"Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição."

E o artº 71º CP, subordinado à epígrafe "determinação da medida da pena" diz o seguinte:
"1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de criem, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) A intensidade do dolo ou da negligência;
c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3. Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena."
           
E, num primeiro momento, o Tribunal a quo fixou ao arguido uma pena de multa uma vez que o mesmo é primário, confessou integralmente e sem reservas os factos e mostrou-se arrependido, revelando inserção socio-familiar.

Contudo, em face do facto do arguido ter tido carta de condução válida por 18 anos, portanto, por ter sido um condutor que apenas deixou caducar o respectivo título que o habilitava a conduzir, e por, ainda, ser detentor de título para conduzir outros veículos, ainda que não os da categoria B – revelando assim que, apesar de não possuir carta válida que o habilitava a conduzir o veículo que conduzia no momento da sua detenção, não era uma pessoa inexperiente na condução, que se lançasse inconscientemente para a estrada sem saber o que estava a fazer – decidiu o Tribunal a quo substituir a pena de multa pela pena de admoestação.

Insurge-se o digno recorrente quanto a esta substituição alegando que:
“Porém (o Tribunal a quo), defendeu, no caso dos autos, a concreta aplicação da pena substitutiva de admoestação, porquanto, sustentou, que o arguido não pode ser considerado como uma pessoa inexperiente na condução, que em tempos frequentou escola de condução, que teve título que o habilitou a conduzir, que o deixou caducar (falta de renovação) por desleixo e, além do mais, confessou os factos, demonstrando arrependimento.
Em suma, (o Tribunal a quo) pugnou por uma brandura na punição.
Ora, esta argumentação, salvo o devido respeito, em momento algum pode ser tida em consideração para a aplicação deste tipo de pena substitutiva considerando a natureza do crime objecto dos presentes autos.”

Vejamos.

O bem jurídico protegido no crime de condução sem habilitação legal é a segurança de circulação rodoviária e indiretamente a tutela de bens jurídicos que se prendem com essa segurança, como a vida, a integridade física de outrem e os bens patrimoniais.[3]

Ora a segurança rodoviária passa pela garantia de que todas as pessoas que circulam na estrada com veículos automóveis saibam conduzir, e portanto, uma pessoa que não se mostre legalmente habilitada à condução não saberá, a priori, conduzir.

Esta é a lógica de base e a premissa primordial, subjacentes, por norma, na esmagadora maioria dos casos das pessoas que não possuem carta de condução.
Contudo, há uma pequena minoria, como é o caso dos autos, em que o arguido não possui actualmente carta de condução válida, mas por motivos que nada têm a ver com a sua capacidade de conduzir.

Ou seja, há situações em que o arguido até já teve carta de condução, já circulou na estrada devidamente habilitado, portanto, já passou o crivo dos exames de código e de prática de condução, já foi considerado apto para a condução mas, por motivos que se prendem única e exclusivamente com a prática de actos burocráticos – renovação da carta  que não implica a submissão a novos exames para aferir se a capacidade de conduzir se mantém – perde aquele título.

Nesta situação, não há dúvida que o arguido passa a não ter título válido para circular na via pública ao volante de uma viatura automóvel mas, não se pode dizer que o arguido não saiba conduzir e, portanto, que coloca em causa a segurança rodoviária, só pelo simples facto de conduzir um carro, pois que sabe conduzir, apenas não detém licença válida.

A renovação da carta de condução, quando efectuada dentro do prazo previsto, não carece de qualquer validação de mérito, não implica a nova sujeição a exames, e quando muito, consoante a idade do condutor, apenas exige um novo exame médico.

Por isso, podemos afirmar que a renovação da carta, dentro dos prazos estabelecidos para o efeito, é praticamente automática e não implica qualquer novo juízo sobre a capacidade de conduzir do respectivo titular.

É claro que, ao deixar caducar a carta, especialmente por mais de um ano, o condutor passa a estar sujeito a nova avaliação, mas isso é uma consequência que é imposta pela lei para garantir que as pessoas não deixem caducar as suas cartas de condução e, assim, vão cumprindo as regras de índole administrativo com vista a salvaguardar a autoridade do Estado.

Ora, no caso em apreço, constata-se que as preocupações subjacentes à norma incriminadora, e que justificam as elevadas exigências de prevenção geral, diluem-se, uma vez que não estamos perante uma pessoa inexperiente na condução que, ao conduzir um veículo automóvel na via pública, em termos abstractos, coloca em potencial perigo a vida e integridade física dos outros, bem como da sua, e ainda o património alheio.

A premissa lógica subjacente às preocupações do legislador com este tipo de crime deixa de existir, ou pelo menos é muito mitigada, quando estamos perante um condutor experiente que apenas não detém um título formal que ateste a sua capacidade de conduzir.

Não estamos perante uma situação em que um condutor viu a sua carta ser-lhe cassada por prática de contra-ordenações, ou mesmo crimes na condução, que levou à retirada de pontos de mérito pois, aí, podemos concluir que, apesar de ter possuído carta, a prática efectiva da condução revelou-se inepta e digno de censura.

Essa situação é bem diferente da que existe nos autos pois que, no caso em apreço, foi o arguido que, por mero desleixo, não renovou a sua carta, enquanto que naquela situação há uma verdadeira e comprovada ineptidão (posterior) para a condução.

Ora, a admoestação pode ser aplicada nos termos previstos no artº 60º do Código Penal que determina o seguinte:
“1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação.
2 - A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
3 - Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos três anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a de admoestação.
4 - A admoestação consiste numa solene censura oral feita ao agente, em audiência, pelo tribunal.”

São, assim, requisitos da admoestação:
- a aplicação de uma pena de multa não superior a 240 dias;
- no caso de produção de dano, a sua respectiva reparação;
- falta de antecedentes criminais nos três anos anteriores;
- prognose favorável de que se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Ora, no caso em apreço, o arguido é primário, foi-lhe aplicada uma pena de multa inferior a 240 dias e nenhum dano resultou da sua actuação uma vez que o arguido foi alvo de uma fiscalização normal, não se tendo envolvido em nenhum acidente.

Pelo que se mostram preenchidos três dos quatros requisitos, em bom rigor, os requisitos formais, faltando verificar se o requisito material se encontra preenchido.

No seu recurso o digno recorrente não contesta a verificação dos requisitos formais mas entende que não se verifica, de todo, o requisito que se prende com a realização de forma adequada e suficiente das finalidades da punição, porquanto, a “argumentação (despendida pelo Tribunal a quo), salvo o devido respeito, em momento algum pode ser tida em consideração para a aplicação deste tipo de pena substitutiva considerando a natureza do crime objecto dos presentes autos.”

Salvo o devido respeito, não podemos sufragar o entendimento do digno recorrente porquanto a natureza do crime objecto dos presentes autos assenta, tal como supra referida, numa premissa que no caso em concreto não se verifica.

A ratio da incriminação legal é a de que uma pessoa sem carta de condução não sabe conduzir e, por isso, é um perigo real para os restantes utentes da via que confiam que todos os condutores, quando circulam, estão devidamente habilitados.

No caso em apreço, estamos perante uma pessoa que sabe conduzir, tendo sido possuidor de carta durante 18 anos consecutivos e que apenas deixou de ter a necessária habilitação em virtude de uma omissão sua, de índole meramente administrativa, em renovar a carta.

Não existe nenhum juízo negativo acerca da capacidade de conduzir do arguido que não viu a sua carta ser-lhe cassada por ineptidão de conduzir constatada posteriormente.

Se considerarmos que o arguido é agricultor, habituado a circular com tractores para os quais está habilitado a conduzir, que tem a 4ª classe e que, tal como acontece com muitas pessoas que vivem a sua vida inteira no campo e na ruralidade, as questões burocráticas de renovação de documentos pode escapar à sua rotina, explicado se mostra, de acordo com o recurso às regras da experiência comum e do bom senso, o eventual motivo pelo qual o arguido poderia ter deixado caducar a sua carta de condução.

Mas isso não permite concluir-se que o mesmo se mostra inapto para conduzir e daí a premissa legal em que se alicerça o digno recorrente se mostrar comprometida.

Assim, se assiste razão ao digno recorrente, e é essa a orientação dominante da nossa jurisprudência, quando diz que a pena de admoestação não deve, por norma, ser aplicada a casos em que está em causa a condução sem habilitação legal, essa orientação tem por base a situação comum de que uma pessoa sem habilitação legal não sabe, de todo, conduzir, o que não é o caso dos autos.

Embora censurável, sem dúvida, porque em bom rigor o arguido não deveria ter deixado caducar a sua carta e ao fazê-lo, colocou-se na situação de não poder conduzir na via pública, ainda que o saiba fazer na prática, a verdade é que a preocupação subjacente a este tipo de crime não se verifica no caso concreto e a justiça só se alcança no caso concreto, não podendo ser transposto para a situação concreta em análise as preocupações gerais, que por norma, são válidas para um universo mais vasto de actuações.

As exigências de prevenção geral têm de ser consideradas também perante o caso em concreto pois só as especificidades do caso é que poderão ditar as verdadeiras necessidades de prevenção e as finalidades da punição que é sempre aferida perante o concreto arguido e as concretas circunstâncias da sua actuação.

Se aliarmos a isto o facto do arguido ter confessado livremente e sem reservas os factos – e pese embora a prova não dependesse dessa confissão a verdade é que a confissão, que não só é tida em consideração a nível de custas, revela uma tomada de consciência por parte do arguido, pelo que não sendo um factor para atenuar especialmente a pena nos termos do atrº 72º do Código Penal, é seguramente um factor (atenuante geral) a considerar na determinação da pena nos termos do artº 71º nº 2 al. e) do Código Penal – e que mostrou arrependimento[4], bem como o facto de estar social e familiarmente inserido, de não possuir quaisquer antecedentes criminais, sendo que conta com 61 anos de idade e, portanto, tem levado uma vida de várias décadas isenta da prática de quaisquer crimes, incluindo de natureza rodoviária, mostra-se, a nosso ver, preenchido o último requisito necessário para que a admoestação pudesse ser aplicada, nada havendo que permita apontar à sentença recorrida qualquer juízo de valor negativo.

Improcede, assim, o recurso do MºPº.
           
DECISÃO:

Em face do exposto, decidem os Juízes Desembargadores da Secção Penal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso interposto pelo MºPº e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Sem custas.

Guimarães, 10 de Julho de 2023.
 
Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Pedro da Cunha Lopes (1º Adjunto)
Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto)                                    
 

[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] Na fundamentação que ofereceu para justificar a fixação da matéria de facto e para fixar a pena, mormente para substituir a pena de multa pela pena de admoestação.
[3] Vide o Acórdão da Relação de Coimbra de 05-04-2017 localizável em:
http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/a47bb04c3787009e802581050048706a?OpenDocument
[4] O Tribunal a quo não fez constar dos factos o arrependimento mas consta da gravação que esse arrependimento foi revelado pelo arguido e que o Tribunal a quo o anotou em especial na determinação da pena.