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COMUNICAÇÃO DE ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DA ACUSAÇÃO
INDICAÇÃO DOS MEIOS DE PROVA
INCONSTITUCIONALIDADE
HOMICÍDIO
MOTIVO FÚTIL
Sumário
I. O regime da alteração não substancial dos factos da acusação do nº 1 do artigo 358º do CPP traduz-se numa concessão ao princípio da investigação da verdade material em prejuízo do princípio do acusatório, na medida em que permite, por razões de celeridade processual e com vista a alcançar a paz jurídica do arguido, ao juiz de julgamento simultaneamente investigar, por forma esgotante o objeto do processo definido pela acusação, introduzindo-lhe alterações pontuais que decorram no desenrolar da audiência de julgamento. II. Porque os novos factos comunicados decorrem do decurso da audiência de julgamento, a sua indiciação necessariamente decorre da prova nela produzida. Isto é, pese embora os factos comunicados sejam novos, porque não constam da acusação, as provas que os sustentam não são novas, sendo, pois, do conhecimento dos sujeitos processuais, não tendo, por isso, que ser comunicadas. III. O artigo 358º, nº 1 do CPP na interpretação segundo a qual a comunicação de novos factos não carece de ser acompanhada da referência especificada aos meios de prova a em que se fundamenta não viola o disposto no artigo 32º, nº 5 da CRP, conforme já decidido pelo Tribunal Constitucional . IV. A circunstância qualificativa do crime de homicídio motivo fútil é a que surge fundada num profundo desprezo do valor da vida humana, ação que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta; é um motivo que de tão pouco ou impercetível relevo revelador de inadequação e que faz avultar a desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objetivou.
Texto Integral
Acordam, em audiência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:
I- RELATÓRIO 1. No processo comum, com intervenção de tribunal coletivo nº 2257/21...., do Tribunal Judicial da Comarca ..., Juízo Central Criminal ... – Juiz ..., em que são arguidos AA e BB e assistentes CC e DD, todos com os demais sinais nos autos, com data de 15.12.2022, foi proferido despacho pelo qual se indeferiu a irregularidade e as nulidades suscitadas pelo arguido AA em 09.12.2022, relativamente à alteração não substancial dos factos descritos na acusação comunicada pelo tribunal na sessão da audiência de julgamento de 06.12.2022. 2. Não se conformando com o aludido despacho, dele interpôs recurso o arguido AA, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição)[1]:
A) O presente recurso tem por objeto o despacho judicial que indeferiu as irregularidades arguidas pelo recorrente logo após comunicação da alteração não substancial dos factos, designadamente as decorrência da falta de indicação dos concretos meios de prova em que se estriba o Tribunal para concluir por uma alteração (ainda que não substancial) de factos, bem como a irregularidade decorrente do uso do disposto no artigo 358º, nº 1 do C.P.P. fora dos condicionalismos legais.
B) Finda a produção da prova apresentada a julgamento, e já após o término das alegações finais, na data designada para a leitura do acórdão, o Tribunal Coletivo procedeu a uma comunicação da alteração não substancial de factos que vinham descritos na acusação aos restantes sujeitos processuais.
C) Limitando-se o despacho judicial a comunicar que tal alteração factual resulta «da prova produzida em julgamento», não indicando quais os meios probatórios que concretamente impõem tal alteração.
D) Assim, o Recorrente, fazendo uso da faculdade concebida no artigo 358º, nº 1, in fine, requereu prazo para defesa, onde, entre outras coisas, argui a irregularidade decorrente da falta de fundamentação do despacho em crise, tudo conforme o disposto nos artigos 97º, nº 5, 123º e 358º, nº 1, todos do C.P.P.
E) A qual foi indeferida pelo Tribunal a quo.
F) Em consideração da estrutura maioritariamente acusatória do processo penal português (cf. artigo 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa – doravante “C.R.P.”) e, como sua decorrência axiológica, do princípio da vinculação temática, em princípio há que desconsiderar no processo quaisquer outros factos ou circunstâncias que não constassem do objeto do processo, o qual, por sua vez, é fixado pela acusação.
G) Todavia, um processo penal como o nosso, de estrutura maioritariamente acusatória, mas integrado por um princípio de investigação, admite, porém, que, sendo a descrição dos factos da acusação uma narração sintética, nem todos os factos ou circunstâncias factuais relativas ao crime acusado possam constar dessa peça, podendo surgir durante a discussão de julgamento factos NOVOS que traduzam alteração dos anteriormente descritos, os quais poderão ser tomados em conta pelo Tribunal, para efeitos de condenação, através do mecanismo da alteração não substancial dos factos.
H) No entanto, sendo o mecanismo da alteração (não substancial) dos factos um regime excecional, e de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido, maxime o exercício do contraditório, o qual tem tutela constitucional (cf. artigo 32º, nº 5, da C.R.P.), o Tribunal terá de comunicar ao arguido tal alteração factual, concedendo-lhe, se tal for requerido, o prazo necessário para a preparação da sua defesa (cf. artigo 358º, nº 1, in fine, do C.P.P.).
I) Importa, assim, salvaguardar que, caso no decurso da audiência seja o arguido colocado perante a possibilidade de o tribunal levar avante uma alteração, in casu não substancial, dos factos descritos na acusação, terão de lhe ser assegurados todos os direitos de defesa também quanto à alteração anunciada.
J) Aliás, o legislador, ao remeter, no artigo 358º, nº 1, in fine, do C.P.P., para momento posterior a oportunidade de defesa, está nada mais nada menos que a fazer tábua rasa do princípio do contraditório, que pressupõe que o juízo sobre a veracidade de um facto seja sempre e necessariamente posterior à oportunidade de defesa e contradição.
K) Ora, tal impõe que a comunicação da alteração não substancial dos factos imposta no artigo 358º, nº 1, do C.P.P. contenha a indicação dos concretos meios de prova em que se alicerça essa alteração factual, pois só a partir desse momento é que o arguido pode verdadeiramente exercero seu direito de defesa, maxime o contraditório.
L) Assim, o despacho em curso teria de indicar concretamente os meios de prova de onde extrai os novos factos, o que não sucedeu.
M) Tal gera a invalidade do despacho em crise, por ausência de fundamentação, tudo nos termos do disposto nos artigos 97º, nº 5 e 123º, do C.P.P.
N) Além disso, o despacho em crise, ao não indicar concretamente os meios de prova em que o Tribunal se estriba para concluir por uma alteração factual (ainda que não substancial) está a violar a oportunidade do exercício do contraditório pelo arguido e, concomitantemente, o disposto no artigo 32º, nº 5, da C.R.P.
O) Repare-se que a própria Acusação Pública terá de conter, sob pena de nulidade, a indicação discriminada de todos os elementos probatórios a produzir em julgamento.
P) E tal sucede precisamente para que o exercício do contraditório possa ser efetivo, quer através da eventual fase instrutória, quer, sobretudo, através da apresentação da contestação e respetivo requerimento probatório a submeter a julgamento que, como se sabe, é a fase processual por excelência no que ao exercício do contraditório diz respeito.
Q) Mais a mais, como tem sido o entendimento maioritário da jurisprudência, de forma a respeitar o princípio do acusatório, a alteração substancial ou não substancial de factos só pode ocorrer depois da produção de prova.
R) O que reforça a necessidade de a comunicação a que alude o artigo 358º, nº 1, do C.P.P. ter de indicar quais os concretos meios de prova que impõem uma alteração da factualidade do despacho de acusação.
S) Não podendo o despacho em crise limitar-se a estipular que tal alteração factual ocorre «face à prova produzida» que é o mesmo que nada dizer!
T) E que faz com que a comunicação da alteração factual nos termos do disposto no artigo 358.º n.º 1 do C.P.P. – que tem como objetivo primordial garantir a efetiva preparação da defesa do arguido – seja reduzido à realização de uma mera formalidade processual, sem qualquer conteúdo material tangível para a defesa.
U) Em sentido próximo ao aqui defendido, veja-se o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, de 23-10-2019 (Relator: Luís Teixeira), para quem: «I – A comunicação a fazer ao arguido na situação prevista no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, da alteração não substancial dos factos, deve abranger não só o facto ou factos objeto da alteração, mas também a indicação ou concretização dos meios de prova de onde resulta a indiciação dos novos factos com relevo para a decisão. II - Só esta concretização permitirá ao arguido identificar o objeto da sua defesa, contraditando os meios de prova já produzidos e oferecendo quiçá outros que, em seu entender, possam abalar os indícios até então existentes e entretanto comunicados».
V) Acresce, ainda, que, verifica-se por parte do Tribunal a quo um uso indevido do mecanismo previsto para a descoberta superveniente de factos.
W) Na verdade, da prova produzida não resulta qualquer alteração factual com relevo para a decisão da causa diferente da anteriormente fixada na acusação.
X) Aquilo que o Tribunal a quo fez foi “reoarganizar” os factos que já estavam na acusação, embora de uma forma não tão detalhada, para permitir uma interpretação da prova de acordo com a tese acusatória.
Y) Ora, salvo melhor opinião, a figura processual da alteração não substancial dos factos não possui o alcance pretendido no despacho em crise, nem deverá ser usada com esse fim, uma vez que tal mecanismo processual foi, apenas e só, concebido para a descoberta superveniente de factos que não eram conhecidos da investigação ao tempo da dedução da acusação.
Z) Os factos em causa eram já do conhecimento da entidade acusatória e, inclusive, constam, na sua grande maioria, do despacho de acusação, embora de forma não tão detalhada e com momento cronológicos e espaciais diferentes.
AA) Portanto, estava já na disponibilidade do Ministério Público, enquanto «dominus» do Inquérito, a possibilidade de alegar tais factos, como, aliás, pressupõe a estrutura acusatória do processo penal, que impõe, ao demais, uma clara separação entre a entidade que investiga e acusa e a entidade que julga.
BB) Não é lícito que, perante acusações genericamente formuladas, o Tribunal possa colmatar tal lacuna recorrendo ao mecanismo da alteração não substancial dos factos, e que este se transforme, em claro prejuízo dos direitos de defesa dos Arguidos, num expediente de consubstanciação de Acusações genericamente formuladas.
CC) Os factos elencados no despacho em crise não chegaram ao processo supervenientemente, como erradamente consta do despacho em recurso.
DD) Aquela factualidade já existia nos autos e pode ser vista como integradora da factualidade típica do crime imputado aos Arguidos, pelo que a sua narração deveria constar na acusação.
EE) O recurso à alteração não substancial dos factos, com esta finalidade, constituí um incentivo à formulação genérica e inconsubstanciada das acusações, pois estas desenham um objeto tão lasso que se torna quase impraticável alargá-lo mais, obliterando as garantias dos Arguidos no que toca ao alargamento da factualidade imputável.
FF) E qualquer dificuldade probatória advinda de tal estratégia, seria facilmente sanada pelo julgador, como se faz no despacho aqui em causa – ora, tal viciação da lógica acusatória não parece de sufragar. Isto é, se a Acusação não contém os factos de que carece a condenação nos termos pretendidos, sibi imputet.
GG) Ao contrário do que consta no despacho em crise, a questão em causa não é saber se aqueles factos que se pretendeu introduzir têm ou não uma relação com os que já constavam da acusação pública, antes sim, saber se aquela factualidade já era conhecida à data em que foi deduzida a acusação e, por opção técnica, seja ela certa ou errada, foi deixada de fora do libelo acusatório.
HH) Seguindo de perto o raciocínio expresso no despacho em crise, tal significará que o Tribunal de julgamento, ao coberto do instituto da alteração não substancial de factos, pode desconsiderar as opções técnicas que foram tomadas pelo M.P. enquanto titular da ação penal na fase investigatória.
II) Podendo, em plena fase de julgamento, alterar a acusação – dentro dos limites da alteração não substancial de factos – modificando-a, até em desacordo com o que resultou indiciado na fase de inquérito.
JJ) O que revela ser um raciocínio inadmissível do ponto de vista legal, na medida em que viola, de forma inegável, princípios estruturantes do processo penal português, como é o caso do princípio do acusatório, com expressa consagração no artigo 32º, nº 5, da C.R.P.
KK) Em sentido próximo, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 26 de Janeiro de 2017 (Processo Nº 89/12.0EACBR), o qual defende que: «I – os institutos de alteração não substancial dos factos não visam colmatar lacunas da acusação ou pronúncia, com origem na desconsideração de elementos que já aquando da respectiva prolação constavam dos autos, imprescindíveis à conformação do ilícito penal…II – Por conseguinte, a questão situa-se a montante do preceito convocado (artigo 358.º do CPP), norma que surgiu a justificar a alteração dos factos, prendendo-se, sim, com a estrutura acusatória que, por imposição constitucional, domina o processo criminal e que, grosso modo, se revela no facto do julgamento se circunscrever dentro dos limites ditados por uma acusação deduzida por entidade diferenciada…».
LL) Também Damião da Cunha escrevera que «não pode o Tribunal conhecer de facto (ou, mais correctamente, de questões de direito e de facto) que os órgão de polícia criminal e o MP deveriam, por dever de ofício e segundo as regras de uma investigação devida e exaustiva ou (caso não se queira utilizar uma formulação tão ‘forte’) de uma investigação minimamente diligente, ter conhecido e decidido».
MM) Per summa capita, o despacho em crise, ao lançar mão do mecanismo da alteração não substancial dos factos fora das hipóteses previstas no artigo 358º, nº 1, do C.P.P., padece de uma irregularidade – atento o princípio da taxatividade das nulidades processuais – a qual expressamente se invoca ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 118º, nº 2 e 123º, do C.P.P.
NN) Ao demais, a pretexto de um mecanismo concebido para a descoberta superveniente de factos, ao tentar colmatar as lacunas de uma acusação genericamente formulada e, bem assim, sub-rogar-se às funções da entidade acusadora, o Tribunal a quo violou o disposto no artigo 32º, nº 5, da C.R.P. e, bem assim, a estrutura acusatória do processo penal.
IV – Pedido
Nestes termos, e nos melhores de Direito aplicáveis, deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e substituindo-se por outra que:
A) Declare irregular o despacho de comunicação de alteração não substancial de factos, por ausência de fundamentação decorrente da não indicação dos concretos meios de prova em que se estriba tal alteração factual, conforme o disposto nos artigos 97º, nº 5, 118º, nº 2 e 123º, do C.P.P. e artigo 32º, nº 1 e 5, da C.R.P.;
B) Declare irregular o despacho em virtude de o Tribunal a quo ter lançado mão do mecanismo da alteração não substancial dos factos fora das hipóteses previstas no artigo 358º, nº 1, do C.P.P
3. Entretanto foi proferido acórdão, lido e depositado em 12.01.2023, de cujo dispositivo resulta, nomeadamente, no que para aqui releva, ter o tribunal decidido o seguinte (transcrição):
Pelo exposto, acordam os Juízes que compõem o Tribunal Colectivo, em julgar:
A) A acusação parcialmente procedente e:
1) Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma consumada, p. e p. pelos artºs 131º, 132º, nº 1 e 2, al e), ambos do CP, e 86º, nº 3, do RJAM, na pena de 18 (dezoito) anos e 6 (seis) meses de prisão;
2) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, al. c) do RJAM, na pena de um ano e seis meses de prisão;
3) Condenar o mesmo arguido AA, em cúmulo jurídico das penas parcelares atrás referidas, na pena única de 19 (dezanove) anos de prisão.
4) Absolver o arguido BB da prática, em co-autoria, de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma consumada, p. e p. pelos artºs 131º, 132º, nº 1 e 2, al e), ambos do CP, e 86º, nº 3, do RJAM, de que vinha acusado;
5) Absolver o arguido BB da prática, em co-autoria, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, al. c) e al. e), do RJAM, de que vinha acusado;
6) Condenar o arguido BB pela prática, como cúmplice, de um crime de homicídio, na forma consumada, agravado pelo uso da arma, p. e p. pelos artºs 131º e 27º, ambos do Código Penal, e 86º, nº 3, do RJAM, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão.
B) Julgar procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital de ..., EPE relativamente ao arguido demandado BB, condenando-o solidariamente (com o demandando arguido AA, que celebrou transacção com o demandante) a pagar ao demandante a quantia de 21 293,64 € (vinte e um mil duzentos e noventa e três euros e sessenta e quatro cêntimos) relativo aos encargos dos tratamentos e cuidados de saúde prestados a DD, acrescida de juros de mora desde a data da notificação do pedido, tudo sem prejuízo da extinção desta obrigação, caso a satisfação do direito do credor venha a ter lugar em consequência da transacção celebrada com o arguido AA.
C) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD e condenar solidariamente os arguidos demandados a pagarem ao demandante a quantia de noventa mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão;
D) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por CC e condenar solidariamente os arguidos demandados a pagarem à demandante a quantia de oitenta mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão.
*
Custas na parte criminal pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC`s.
Custas dos pedidos de indemnização civil deduzidos por DD e CC, pelos demandantes e demandados, na proporção do decaimento.
4. Não se conformando com o sobredito acórdão condenatório, dele interpuseram recurso os arguidos AA e BB e a assistente CC, extraindo das respetivas motivações, as seguintes conclusões (transcrição):
- Conclusões do recurso interposto pelo arguido AA 1º
O presente recursoversa sobre todo o teor doacórdão proferido em primeira instância, que condenou o aqui Recorrente na prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, p.p. 131º, 132º, nº 1 e 2, al. e), ambos do Código Penal e 86º, nº 3, do RJAM), em concurso com um crime de detenção de arma, p. p. pelo artigo 86º, nº 1, al. c) do RJAM), em cúmulo jurídico, na pena única de 19 anos de pena de prisão.
2º
O presente recurso versa sobre matéria de facto e de direito, visando, no que à matéria de facto diz respeito, a reapreciação da prova gravada. 3º
Antes de mais, entende o Recorrente que o acórdão proferido em primeira instância é nulo, por violação do disposto no artigo 358.º, n.º 1, ex vi do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P., em consequência de, na comunicação proferida em audiência de julgamento, de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, não se mencionar os concretos elementos probatórios em que o Tribunal se estriba para concluir por tal alteração factual.
4º
Sendo que tal viola a estrutura acusatória do nosso processo penal, designadamente o direito ao contraditório e, em consequência, o disposto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa (doravante “C.R.P.”).
5º
E, ainda, o disposto nos artigos 97.º n,º 5, 283.°, n.os 2 e 3, 358.°, n.º 1, todos do C.P.P. e 205.º da C.R.P.
6º
E, como exposto ao longo da motivação de recurso, vários são os Arestos que referem a necessidade de a comunicação da alteração não substancial dos factos imposta no artigo 358º, nº 1, do C.P.P. ter de indicar os concreto meios de prova em que se alicerça essa alteração factual (v.g., acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, de 23-10-2019 (Relator: Luís Teixeira); Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 13-12-2011 (Proc. N.º 878/07.7TACBR.C1); Acórdão do STJ, de 16-1-2003, proferido no proc. nº 02P4420 (Relator: Pereira Madeira); Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 08-02-2017, proferido no processo n.º 196/13.1PAACB.C1 (Relator: Vasques Osório).
7º
Assim, por aplicação do disposto no 379.º, n.º 1, alínea b), ex vi do disposto no artigo 358º, nº 1, ambos do C.P.P., é nulo o acórdão do qual se recorre, por o mesmo assentar em tais factos que, aliás, foram todos dados como provados no acórdão em crise, nulidade essa, que, expressamente se invoca. 8º
Desde já, para os devidos efeitos, se suscitando a inconstitucionalidade do artigo 358º, nº 1, do C.P.P., por violação do artigo 32º, nºs 1 e 5 da C.R.P., na medida em que seja interpretado em sentido contrário ao defendido, designadamente que o despacho que comunica a alteração não substancial de factos deve indicar os concretos meios de prova que sustentam tal alteração, como garantia de um efetivo exercício do contraditório.
9º
Em relação à impugnação da matéria de facto, entende o Recorrente que devem os factos 1.8., 1.9., 1.11., 1.12., 1.13., na parte em que refere «local que sabiam ser frequentado pela vítima», 1.15., na parte em que refere «quando se encontrava a cerca de dois metros de EE», 1.26., na parte em que refere que o arguido AA sabia estar a «direcionar os disparos à zona abdominal da vítima, que sabia alojar órgãos vitais», 1.27., 1.28. e 1.29. serem dados como não provados.
10º
Desde logo, no que diz respeito ao facto 1.27. da matéria de facto dada como provada, o qual sustenta a qualificação do homicídio, não resultou da prova produzida em audiência, de forma suficiente e para lá da dúvida razoável, que a desavença existente desde o ano de 2019 entre a vítima e o Recorrente tenha sido o motivo do homicídio.
11º
Das declarações do arguido/Recorrente resulta que o mesmo já se tinha vingado do aquando sucedido, expondo, logo aí, as declarações da vítima perante o grupo de amigos de ambos (aliás, cf. facto 1.53 da matéria de facto dada como provada), e que tais declarações prestadas pelo Sr. EE no processo 173/17.... não assumiram grande importância, estando tal assunto há muito resolvido entre ambos, o que, aliás, resulta, também, da prova documental junta aos autos, designadamente da certidão do processo nº 173/17...., em concreto, do acórdão condenatório proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca ... – Juízo Central Criminal – Juiz ... (gravação nº. 20220926101739_6063392_2870514 das declarações do Recorrente, prestadas a 26 de setembro de 2022 – minuto 3:23 a 4:42; minuto 46:54 a 47:28; minuto1:06:19 a 1:07:31; minuto 1:08:16 a 1:09:10).
12º
Das declarações do co-arguido BB resulta que o mesmo sabia da desavença entre o Recorrente e a vítima, afirmando, também, que, na altura do sucedido, o arguido AA terá espalhado pelo grupo de amigos que EE o tinha «delatado», o que levou a que as pessoas não lhe passassem «tanta confiança» (gravação n.º 20221020150834_6063392_2870514, de declarações prestadas a 20 de outubro de 2022 – minuto 2:23 a 2:58).
13º
A testemunha FF, que pertencia ao mesmo grupo que a vítima e o arguido, afirmou, também, não ter a noção que o desentendimento entre o Sr. GG e o Sr. EE se mantinha (cf. gravação nº 20220926155950_6063392_2870514, de depoimento prestado a 26 de setembro de 2022 – minuto 1:47 a 2:37; minuto 3:24 a 3:44).
14º
Ao contrário do que fundamenta o Tribunal a quo, quanto a este ponto da matéria de facto, reveste importância o depoimento de HH, pois esta testemunha referiu que, no âmbito do processo 173/17...., um outro co-arguido, II, também tinha denunciado o aqui Recorrente, mas há muito que para este a situação estava resolvida, tendo, até, ambos ido juntos a um jogo de voleibol (gravação 20221006165022_6063392_2870514, de depoimento prestado a 6 de outubro de 2022 – minuto 1:08 a 3:15).
15º
Assim, o facto 1.27., foi incorretamente julgado, tendo o Tribunal a quo, ao dar tal facto como provado, violado o princípio da livre apreciação da prova e, bem assim, o artigo 127º do C.P.P. e, ainda, o princípio do in dubio pro reo e, como seu corolário, a presunção da inocência, princípios previstos constitucionalmente no artigo 32.º, n.º 2, da C.R.P.
16º
Foi, também, incorretamente julgado o facto 1.8. da matéria de facto dada como provada, e tal é patente, quer através as declarações do Recorrente, que afirmou ter tomado conhecimento da contenda entre o co-arguido BB e a vítima apenas quando já se encontrava com aquele (declarações prestadas a 26 de setembro de 2022, gravação 20220926101739_6063392_2870514 – minuto 7:00 a 7:45; minuto 9:19 a 9:27; minuto 9:54 a 10:25), quer das declarações do co-arguido BB (declarações prestadas a 20 de outubro de 2022, gravação 20221020150834_6063392_2870514 – minuto 17:10 a 17:46), quer do depoimento da testemunha FF, de onde resulta que o combinado seria, após o jantar, irem todos a uma festa de música eletrónica em ..., referindo, ainda, esta testemunha, que, quando chegou ao café a vítima já tinha ido embora com outro amigo, regressando mais tarde, o que torna forçoso concluir que não era todo expectável que a vítima se encontrasse junto ao café Snack-Bar ... à hora dos factos (gravação 20220926155950_6063392_2870514, do depoimento prestado a 26 de setembro de 2022 – minuto 11:12 a 11:55; minuto 13:21 a 14:10).
17º
Devendo, igualmente, ser dado como não provado o facto 1.11. e o facto 1.13., na parte em que se refere «local que sabiam ser frequentado pela vítima» e, bem assim, ser dado como provado os factos 2.6. e 2.26.
18º
Igualmente, através de uma análise global da prova, deve ser dado como não provado o facto 1.14. e o facto 1.15., na parte em que refere que o arguido AA terá disparado quando se encontrava a cerca de dois metros de EE, e que, propositadamente, apontou a arma à zona do abdómen da vítima pois, das declarações do Recorrente, resulta que o mesmo estaria a uma distância entre 2 a 3 metros (gravação 20220926101739_6063392_2870514, das declarações prestadas a 26 de setembro de 2022 – minutos 1:16 a 2:33; minutos 10:57 a 12:25) o que é também corroborado pelo depoimento do Sr. Inspetor JJ (gravação 20220926152239_6063392_2870514, depoimento prestado a 26 de setembro de 2022 – minutos 12:42 a 12:57) e pela prova documental junta aos autos, designadamente prova por reconstituição de facto e exame pericial a fls. 21-31 dos autos.
19º
Se a dúvida está em os disparos terem decorrido a cerca de dois ou três metros da vítima, impunha-se, por força do in dubio pro reo, que o Tribunal a quo desse como provado que os disparos ocorreram a cerca de 3 metros; no limite, teria o Tribunal de dar como provado que o arguido disparou a uma distância não concretamente apurada, mas entre 2 e 3 metros da vítima.
20º
Finalmente, deve, também, ser dado como não provado o facto 1.35. relativo ao pedido de indemnização cível da Assistente CC, na parte em que se menciona que «a demandante mantinha um contacto regular e estável e uma relação de proximidade com a vítima», pois das suas declarações é patente que, pese embora a relação de mãe e filho, entre ambos não foram constituídos laços afetivos e emocionais tão forte como os que a vítima estabeleceu com o pai, o Assistente DD, com quem, aliás, vivia na cidade ... há mais de 10 anos, enquanto a mãe vivia em Lisboa (cf. gravação 20221006154420_6063392_2870514, das declarações da Assistente, prestadas a 26 de setembro de 2022 – minutos 1:55 a minuto 2:15; minutos 3:27 a 3:53; minutos 4:19 a 4:23; minutos 8:08 a 8:13).
21º
Entende o Recorrente, por outro lado, que deveriam os factos 2.7., 2.8., 2.9., 2.10., 2.12. terem sido dados como provados pelo Tribunal a quo.
22º
Desde logo, resulta do depoimento da testemunha KK que, assim que a vítima EE vê o Recorrente, movimenta-se, referindo, ainda, a testemunha, que, quando a vítima leva os tiros, cai onde se encontra o «senhor agente» na fotografia nº 5 da prova por reconstituição de facto, que coincide, precisamente, com o local onde estava estacionado o veículo BMW, propriedade da testemunha LL (gravação 20220926113808_6063392_2870514 de depoimento prestado a 26 de setembro de 2022 – minutos 23:24 a 23:51; minutos 24:57 a 25:44; minutos 45:01 a 46:48), o que é, também, corroborado pelo depoimento da testemunha DD que menciona que todos estariam no patamar superior do muro e que todos saltaram quando avistaram os arguidos (gravação 20221020142805_6063392_2870514, de depoimento prestado a 20 de outubro de 2022 – minuto 19:51 a 21:59). 23º
O facto de a vítima se encontrar num patamar superior/posição mais elevada, é também mencionado no depoimento do Sr. Inspetor JJ (gravação 20220926152239_6063392_2870514 – minutos 28:51 a 29:57) e resulta, igualmente, da inspeção judicial feita ao local.
24º
Deveria, também, o Tribunal a quo ter dado como provado o facto 2.13., de que «a vítima EE fosse uma pessoa muito violenta e conflituosa, traços de personalidade conhecidos de toda a gente», incluindo do Recorrente, pois tal resulta da prova documental, designadamente da certidão judicial do processo 387/18...., constante a fls. 293 a 296, bem como do elenco dos factos dados como provados, designadamente do facto 1.5., na parte em que refere que a vítima terá agredido fisicamente o co-arguido BB.
25º
Deve, também, ser dado como provado o facto 2.16., ou seja, que «o arguido AA detivesse a arma de fogo na madrugada do dia 5 de Outubro de 2021 por motivo do clima de conflitualidade existente entre jovens do Bairro ... e jovens do Bairro ...», pois tal resulta quer das suas declarações (gravação 20220926101739_6063392_2870514, das declarações prestadas a 26 de setembro de 2022 – minutos 7:46 a 9:01; minutos 28:25 a 30:22; minutos 39:56 a 40:10) quer do depoimento da testemunha KK, que refere ter conhecimento que o Recorrente terá comprado uma arma devidos aos conflitos existentes entre Bairros rivais (gravação 20220926113808_6063392_2870514, de depoimento prestado a 26 de setembro de 2022 – minutos 20:10 a 20:36), quer, ainda, do elenco da matéria de facto dada como provada, designadamente o facto 1.50.
26º
Ao ter decidido como decidiu, o tribunal a quo incorreu em erro de julgado sobre a matéria de facto, violando, assim, o princípio da livre apreciação da prova e, bem assim, o artigo 127º do C.P.P. e, ainda, o princípio do in dubio pro reo e, como seu corolário, a presunção da inocência, princípios previstos constitucionalmente no artigo 32º, nº 2, da C.R.P., devendo proceder-se a uma alteração factual nos termos propugnados. 27º
Desta feita, o facto de a vítima se estar a movimentar em direção aos co-arguidos assim que se apercebe da presença dos mesmos a chegar à Rua ..., o facto de o Recorrente conhecer bem a personalidade impulsiva e violenta da vítima, em virtude de ambos pertencerem ao mesmo grupo, o facto de a vítima estar naquele local, àquela hora – o que não era, de todo, expectável –, o facto de o arguido se encontrar armado, pois era prática comum sempre que se dirigia à zona do ..., contribuíram para o trágico desfecho dos autos, sendo o homicídio circunstancial e não motivacional.
28º
Ou, quando muito, teria o Tribunal que dar como provado que «o arguido agiu com o propósito de tirar a vida a EE, por motivo não concretamente apurado», pois, como se disse, não se produziu prova suficiente que a motivação do homicídio esteja relacionada com a condenação no processo 173/17.....
29º
O que impede o preenchimento do exemplo-padrão a que alude a alínea e), do nº 2, do artigo 132º, do Código Penal, designadamente o «motivo fútil», posto que, para o preenchimento deste conceito indeterminado, teria, antes de mais, de se determinar o concreto motivo que subjaz à atuação do agente, para, posteriormente, se concluir que o mesmo é «fútil», o que no caso sub judice, atenta a prova produzida, não sucede. 30º
Sem prejuízo, a determinação da verificação da circunstância de o agente ser determinado por qualquer «motivo fútil», prevista na al. e) do nº 2 do artigo 132º do C.P., requer a ponderação de elementos de contextualização sociocultural da ação do arguido para se poder concluir se esta foi determinada por um motivo pesadamente gratuito, insignificante, sem qualquer importância, desprezível ou repugnante, até pela inclusão sistemática deste exemplo-padrão na norma incriminadora, «ser determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil».
31º
Assim, mesmo tendo em consideração o elenco dos factos que o Tribunal a quo considerou provados, de onde resulta que o arguido e a vítima mantinham um diferendo, com cerca de 2 anos, a propósito de EE, que à data era seu amigo, o ter denunciado num processo de tráfico de estupefacientes, não permitem que se verifique aquela circunstância qualificativa, pelo que, também por este motivo, o comportamento do agente não preenche o exemplo-padrão a que alude a alínea e), do nº 2, ao artigo 132º, do C.P.
32º
Finalmente, a qualificação do homicídio, por assentar num especial tipo de culpa, exige, para o seu preenchimento, além da verificação de um dos exemplos-padrão, a comprovação da «especial censurabilidade ou perversidade do agente», e isso exige, necessariamente, uma ponderação final da atitude deste.
33º
Assim, tendo em conta a imagem global do facto – desde logo o arguido ter surgido de frente para a vítima, de esta se ter apercebido da sua presença a chegar à Rua ..., tendo oportunidade de se defender, ou de, pelo menos, encetar a fuga, de a vítima se ter movimentado na direção do arguido, da situação de inferioridade numérica em que se encontravam os co-arguidos face ao grupo de amigos que estava à porta do café Snack-Bar ..., da personalidade violenta e conturbada da vítima, que nessa mesma noite tinha agredido o co-arguido BB, do «contributo» que o co-arguido BB fornece à prática do crime, seguindo o raciocínio do tribunal a quo – não se pode concluir por um especial tipo de culpa agravado, merecedor de uma maior censura.
33º
Assim, entende-se que os factos pelos quais foi o arguido condenado, ainda que não se proceda a uma alteração da matéria factual, integram, tão só, o crime de homicídio simples, no caso agravado pelo uso de arma de fogo (cf. artigos 131º do C.P. e 86º, nº 3, da Lei nº 5/2006, de 23 de fevereiro).
34º
Ao ter condenado o aqui Recorrente pela prática de um crime de homicídio qualificado tribunal a quo violou o artigo 132.º, n.os 1 e 2, artigo 40º, nº 2, ambos do C.P. e o artigo 18º, nº 2, da Lei Fundamental.
35º
Independente de tudo quanto fica exposto, entende o Recorrente que a pena de 18 anos e 6 meses de prisão, no que ao crime de homicídio qualificado diz respeito, não é consentida pelo grau de culpa do Recorrente, nem assegura, nos limites da estrita necessidade, as finalidades de prevenção especial/ressocialização do agente, revelando-se excessiva e, como tal, desproporcional.
36º
Ademais, o tribunal a quo não teve em conta as circunstâncias qualificativas que depuseram a favor do Recorrente, designadamente a sua tenra idade, a sua inserção social, familiar e profissional e, mais importante ainda, o facto de o Recorrente se ter entregado voluntariamente às autoridades poucas horas após ter cometido o crime, de ter participado no inquérito, de forma totalmente voluntária, em diligências de prova, designadamente a prova por reconstituição de facto, e de ter confessado, ainda que parcialmente, os factos de que vinha acusado, sendo certo que o fez logo em sede de primeiro interrogatório judicial, bem como de ter transacionado com o lesado Hospital de ..., prontificando-se a custear os danos por si causados.
37º
Pelo que o Tribunal a quo, ao demais, desrespeitou os critérios de determinação da medida concreta da pena e as finalidades subjacentes à mesma e, bem assim, violou o disposto nos artigos 40º, 71º, nº 1 e nº 2 do C.P., bem como o disposto no artigo 18º, nº 2, da C.R.P.
38º
Pese embora o Recorrente tenha antecedentes criminais, designadamente por um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, o crime em causa nestes autos, além de comportar uma natureza jurídica completamente distinta daqueloutro, diz respeito a um episódio infeliz, mas isolado na vida do Recorrente.
39º
Assim, deve o quantum da pena ser alterado e fixado nos seus limites mínimos (que, no caso, já será bastante elevado, atendendo a que o mínimo da pena é fixado em 16 anos), pois tal espelha o grau de culpa do Recorrente e é perfeitamente consentâneo com as exigência de prevenção geral e especial.
40º
Sendo certo que tal raciocínio vale, mutatis mutandis, para a escolha da pena a aplicar ao crime de detenção de arma, p. e p. pelo artigo 86º, nº 1, al. c) do RJAM, que, no caso, deverá ser alterada para uma pena de multa, atenta, não só a político-criminal da pena não privativa da liberdade na pequena e média criminalidade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da prevenção (cf. artigo 70.º do Código Penal), bem como ao facto de o arguido não ter antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza, o que, quanto a nós, permite um juízo de prognose favorável.
41º
Mais a mais, o facto de o crime de homicídio ter sido cometido com arma de fogo pressupõe, já, uma agravação no limite mínimo e máximo da medida da pena (cf. artigo 86º, nº 3, do RJAM).
42º
Pelo que o acórdão em crise, ao não ter dado preferência à pena de multa em detrimento da pena de prisão, violou o disposto no n.º 1 do artigo 71º., bem como do artigo 40º do C.P. e, ainda, o artigo 18º, nº 2, da C.R.P.
43º
Finalmente, em relação ao quantum do montante indemnizatório fixado pelo Tribunal a quo, no que diz respeito aos danos morais atribuídos à Assistente CC, entende o Recorrente que o mesmo é excessivo, pelo que a decisão em crise violou, também, o disposto no artigo 496º, nº 4, do Código Civil (doravante “C.C.”)., e, bem assim, o disposto no artigo 18º, nº nº, 2, da C.R.P.
44º
É que, pese embora a Assistente seja mãe da vítima, é patente da sua inquirição que entre ambos não foram construídos laços afetivos e emocionais tão forte como os que a vítima estabeleceu com o pai, o Assistente DD, com quem vivia, aliás, há mais de 10 anos na cidade ..., enquanto a mãe vive em Lisboa.
45º
Sendo que o montante indemnizatório atribuído à Assistente, que se computa em €30.000, não respeitou os critérios da equidade a que deverá atender o julgador, até por equiparação ao montante indemnizatório que foi fixado ao pai, o Assistente DD (em sentido próximo, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24-02-2022 – Relator: Judite Pires).
46º
O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou o disposto nos artigos 18.º 2, 32.º n.º 1, 2 e 5 da Constituição da República Portuguesa, os artigos 61º, nº 2, alínea c), 127º, 358º nº 1, 379º, nº 1, alínea b), todos do C.P.P. e, ainda, os artigos 40º, 70º, 71º nº 1 e 2 e 132º n.º 1 e 2, alínea e), do C.P.
47º
O Recorrente mantém o interesse no recurso por si interposto em 23 de janeiro de 2023, com a referência CITIUS ...54.
IX – Pedido:
Nestes termos, e nos melhores de Direito que V.as Ex.as doutamente suprirão, deve ser concedido provimento ao recurso interposto pelo Arguido AA e, bem assim:
a) Deve julgar-se nulo o acórdão por violação do disposto no artigo 358º, nº 1, ex vi do artigo 379º, nº 1, alínea b), do C.P.P.;
b) Deve proceder-se à alteração da matéria de facto nos termos acima propugnados e, concomitantemente,
c) Deve alterar-se a qualificação jurídica dos factos em causa para um crime de homicídio simples, por não se verificar a circunstância qualificativa «motivo fútil»;
d) Caso assim não se entenda, deve alterar-se a qualificação jurídica dos factos em causa para um crime de homicídio simples, por o comportamento do Recorrente, atenta a imagem global do facto, não revelar uma «especial censurabilidade», ou
e) Subsidiariamente, deve alterar-se a moldura penal do crime de homicídio qualificado para os limites mínimos, atentas as circunstâncias, anteriores e posteriores ao facto criminoso, que depuseram a favor do Recorrente;
f) Bem assim, deve alterar-se a pena de prisão de 1 ano e 6 meses no que ao crime de detenção de arma proibida diz respeito, para uma pena de multa;
g) Deve proceder-se à alteração da matéria factual respeitante ao Pedido de Indemnização Civil fixado pela Assistente CC, nos moldes acima propostos e, bem assim, diminuir-se o quantum indemnizatório dos danos não patrimoniais reclamados por este sujeito processual.
Agindo desta forma, V.as Ex.as farão a devida JUSTIÇA!
- Conclusões do recurso interposto pelo arguido BB: 1.º O presente recurso vem interposto do acórdão condenatório proferido em primeira instância, respeitando quer à matéria de facto quer à matéria de direito. 2.º O acórdão recorrido condenou o arguido, ora recorrente, “pela prática, como cúmplice, de um crime de homicídio, na forma consumada, agravado pelo uso da arma, p. e p. pelos artºs 131º e 27º, ambos do Código Penal, e 86º, nº 3, do RJAM, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão, julgou procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital de ..., EPE relativamente ao arguido demandado BB, condenando-o solidariamente (com o demandando arguido AA; julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD e condenar solidariamente os arguidos demandados a pagarem ao demandante a quantia de noventa mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão; e julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por CC e condenar solidariamente os arguidos demandados a pagarem à demandante a quantia de oitenta mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão.” 3.º O recorrente não se conforma com a decisão, e entende que os factos 1.7, 1.8, 1.9, 1.11, 1.12, 1.28 e 1.29 foram erradamente dados como provados; 4.º e os factos 2.20, 2.25 e 2.26 foram erradamente dados como não provados. 5.º Seguimos com as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida:
Declarações do Arguido BB;
Declarações do Arguido AA (Max), em particular as prestadas na última sessão de julgamento (6ª sessão);
Depoimentos das testemunhas MM, FF, NN (Pena), Inspetor JJ, OO, PP e QQ;
Certidão de registo criminal do Arguido BB;
Relatório Social do Arguido.
NULIDADES. 6.º Entende o recorrente que o acórdão de que ora se recorre padece de nulidade por falta de fundamentação, violando os artigos 97.º, n. º4, 374° n° 2, 379º, n.º 1, alínea a), b) e c) do CPP, bem como os artigos 32º, 202.º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa. 7.º Na matéria fixada que sustenta a alteração não substancial dos factos o Tribunal a quo “perdeu-se” nos indícios, em provas circunstâncias e indiretas, levando a que em sede de fundamentação não se perceba como é que foi possível o Tribunal chegar à decisão. 8.º O Tribunal a quo refere que os factos aconteceram de determinada maneira e fá-lo na ausência de prova e a situação é ainda mais flagrante nas situações em que foi produzida prova em sentido contrário, como, se alcança, por exemplo, do depoimento do coarguido AA em sede de audiência de julgamento (6ª sessão, datada de 05.01.2023), registado no ficheiro: 20230105144248_6063392_2670514.wma - 00:01-21:47. 9.º Entende o recorrente que o Acórdão tem de conter os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido, ou seja, um exame crítico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do tribunal num determinado sentido. 10.º O Tribunal tem de fazer um exame crítico das provas com a indicação dos motivos que determinaram que o tribunal formasse a convicção probatória num determinado sentido, aceitando um e afastando outro, indicando porque é que certas provas são mais credíveis do que outras, servindo de substrato lógico-racional da decisão. 11.º O Tribunal a quo teve a preocupação de referir que os factos provados 1.3 a 1.6 e os 1.13 a 1.16 resultaram da conjugação de elementos probatórios que descreveu, ao passo que a factualidade que aqui colocamos em crise (1.7, 1.8, 1.9, 1.11, 1.11, 1.12, 1.28 e 1.29) não aparece individualizada, sem que possa o arguido alcançar concretamente que partes dos depoimentos motivaram a decisão de dar como provado cada um destes factos. 12.º A factualidade que prescreve a condenação do recorrente parece resultar toda ela da conjugação do depoimento de 3 testemunhas e, em parte, das declarações do próprio arguido, sem, no entanto, lendo-se e relendo-se as duas folhas do acórdão que se dedicam a esta matéria (fls. 15 e 16 do acórdão, se impresso frente e verso) se alcançar que parte entende o Tribunal a quo relevante para a decisão que tomou em todos aqueles factos que considerou provados e sustentam a condenação do arguido recorrente. 13.º Conclui o recorrente que o Tribunal a quo se funda na conjugação de algumas das provas “à luz das regras da experiência comum e do raciocínio lógico-dedutivo”, sem, contudo, fundamentar devidamente as razões de facto e de direito que levam a decidir dessa forma, violando, assim, o artigo 379º nº 1, alínea b) do CPP bem como o artigo 71º do CP e, ainda, o artigo 32º da CRP. 14.º Não se aceita que o tribunal a quo subdivida o facto número 4 da acusação e não dê a conhecer essa divisão na alteração onde comunicou tal facto aos intervenientes processuais, surpreendendo o arguido com a inclusão do facto que consubstancia o 1.7 do elenco dos factos provados, pelo que só se pode concluir que o Tribunal se decidiu pela alteração daquela factualidade errando agora ao julgá-la. 15.º A acusação refere “a vítima chegou a dar um soco ao arguido, tendo este abandonando o local, dizendo, em tom sério, que ia buscar uma arma” e foi alterada para “tendo o EE, no decurso dessa contenda, atingido no rosto o arguido BB, que ficou ferido”. 16.º A decisão que recaiu sobre esta factualidade, entende o recorrente, consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do nº 1. Alínea c) do artigo 379 do CPP e cuja apreciação se requer a V. Exas., concluindo pela eliminação daquele facto do elenco dos dados como provados. 17.º Os diversos factos-base, os diversos indícios, tudo a constituir a chamada prova indireta que vem invocada na motivação do acórdão recorrido, sempre permitem outras leituras, outras conclusões, outros factos consequência, pelo que não pode o Tribunal lançar mão da prova indirecta no que respeita aos factos dados como provados que colocamos em crise. 18.º Entende o recorrente que a factualidade que compreende o facto dado como provado 1.7 “Após tal contenda o arguido BB abandonou o local, dizendo que ia buscar uma arma” foi “abandonada” pelo Tribunal aquando da prolação do despacho que comunicou a alteração não substancial dos factos. 19.º Este facto constava do Ponto 4 da acusação do Ministério Público, porém, a factualidade que lhe corresponde no despacho que comunica alteração não substancial “deixa-o cair”, alterando aquela factualidade para: “Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1. da acusação, o arguido BB e EE iniciaram uma discussão no interior do restaurante e, após, deslocaram-se para o exterior, onde continuaram a discutir e se envolveram fisicamente, tendo o EE, no decurso dessa contenda, atingido no rosto o arguido BB, que ficou ferido”. 20.º Não considerando V. Exas. a nulidade que invocamos por respeito a este ponto, sempre teremos que, quando o Acórdão refere que resultou do depoimento do FF que este ouviu o BB dizer qualquer coisa quando abandonava o local; um “qualquer coisa” não pode merecer a força para vincar a condenação do arguido BB. 21.º Desta feita, temos apenas o depoimento da testemunha RR que refere que o arguido recorrente lhe disse que ia buscar uma arma, mas nem ele levou a afirmação a sério, e quando ambos os arguidos se apresentam na Rua ... junto da vítima, a expressão que se ouve é: “Vem aí o Max”, e não vem aí o BB, o que é revelador da irrelevância que deram ao desabafo, se efetivamente tal foi proferido, pelo que tal facto deve ser considerado como NÃO PROVADO. 22.º Não resulta de qualquer documento junto aos autos, nem do depoimento das três testemunhas consideradas, individualmente ou conjugado, nem mesmo do depoimento do arguido, nem tão pouco do coarguido autor confesso do crime, qualquer facto que possa fundamentar a convicção do Tribunal de que o facto 1.8 possa ser dado como provado. 23.º Entende, pois, o recorrente que o “paralelismo” que o tribunal a quo faz ao indicar que “não é plausível que o arguido BB não tenha relatado ao arguido AA, nas mensagens com este trocadas, o que havia sucedido no jantar e a agressão de que foi vitima, por virtude da desavença entre aquele e EE, tanto mais que simultaneamente, trocava, como o mesmo referiu, mensagens com FF sobre o ali sucedido, o que, aliás, este confirmou”, não pode merecer colhimento à luz das regras da experiencia e do normal acontecer. 24.º Da prova produzida, mormente do depoimento da testemunha FF, em sede de audiência de julgamento (1ª sessão, datada de 26.09.2022), registado no ficheiro .... 00:01 - 44:07 percebe-se que as mensagens que o arguido trocou com esta testemunha versavam apenas sobre o que tinha ocorrido na tasquinha do ... e caminhavam no sentido de apurar de que lado estaria a testemunha, não resultando, nem podendo resultar, que a mensagem que se pode considerar que efetivamente foi enviada ao coarguido GG (e não mensagens como refere o acórdão, sem qualquer suporte fáctico) versasse sobre a mesma temática, muito menos que lhe pedisse para vir ao seu encontro. 25.º De igual forma do depoimento da “tendenciosa” testemunha DD, de alcunha Pena, se possa alcançar que o recorrente houvesse chamado o coarguido, ou, tão pouco, que este lhe houvesse dirigido alguma mensagem, que pelas condições em que foi prestado nunca deveria merecer credibilidade. 26.º Razão pela qual entende que o facto descrito como 1.8 deve fazer parte do elenco dos factos NÃO PROVADOS. 27.º Entende o recorrente que o ponto 1.9 dos factos provados deve ver eliminada a expressão “após o que lhe foi transmitido pelo arguido BB”, por não derivar da prova produzida sustentabilidade para esta afirmação ou conclusão. 28.º Não se pode aceitar que o facto do BB estar a trocar mensagens com a testemunha FF sobre o ocorrido ao jantar nos leve a concluir, sem mais, que, certamente o estaria a fazer com o arguido. Inadmissível! 29.º Resulta dos autos, das declarações do arguido recorrente, apenas que o arguido BB enviou uma mensagem ao coarguido GG, sem que o teor da mesma se possa atingir, pelo que errou o Tribunal a quo em dar este facto como provado, devendo, antes, elencar os factos NÃO PROVADOS. 30.º O Ponto 1.11, merece, de igual forma censura, não resultando da prova que o arguido BB dispôs-se a ajudar o arguido AA e acordando ambos em ir ao encontro da vítima. Nem, tão pouco, tal pode resultar da experiência comum ou do normal acontecer. 31.º Do que resulta dos depoimentos das testemunhas não vislumbra o recorrente como o Tribunal a quo alcança que o arguido BB ajudou o arguido GG. 32.º Num raciocínio logico dedutivo resulta até o contrário, porquanto, refere a testemunha FF, e outras, que aquele grupo de amigos pretendia ir a uma festa na discoteca L... sita em ..., e não se vislumbra do depoimento daquela mesma testemunha, nem de qualquer outra, que o BB soubesse da mudança de intentos da vítima. 33.º Deve, pois, também este facto ser eliminado do elenco dos factos dados como provados, figurando como NÃO PROVADO. 34.º O recorrente não aceita como facto provado o ponto 1.12 uma vez que nada ficou demonstrado que se leve a concluir que o arguido BB sabia, tão pouco, que o arguido GG estava munido da arma naquela noite, muito menos que pretendia usar a referida arma contra a vítima e dessa forma tirar-lhe a vida, nem se diga que as regras da experiência e o senso comum alicerçam ou sustentam este facto no elenco dos factos provados, devendo este facto ser considerado como não provado. 35.º Isto porque aquela noite era a última que passariam em Portugal naquele período de férias, e, por conseguinte, não era, expectável para o arguido BB que o GG viesse munido de uma arma, e isto é confirmado pelas declarações do coarguido GG na última sessão da audiência de discussão e julgamento, datada de 5/01/2023 aos minutos 00:08:18 e 00:18:56. 36.º O arguido BB não sabia que o arguido GG vinha munido de uma arma o que só nos leva a concluir que jamais saberia que este a pretendia usar, muito menos que aquele “trazia” o propósito de tirar a vida ao EE, sendo que esta factualidade não tem qualquer suporte probatório e não se alcança como se conjetura esta tese com base no que se demonstrou no julgamento conjugada com as regras da experiência e do normal acontecer! 37.º A testemunha FF refere também que o BB jamais seria capaz de matar alguém, do que se deve extrair, cremos, que jamais o recorrente aceitaria (se soubesse) que o GG tirasse a vida ao EE ou a qualquer outra pessoa. 38.º Não são, portanto, as regras da experiência e o senso comum, aliadas a esta deficitária factualidade, que poderão alicerçar ou sustentar este facto no elenco dos factos provados, pelo que o ponto 1.12, deve ser considerado NÃO PROVADO. 39.º Se diferente for o Douto entendimento de V. Exas., que subsidiariamente seja dado como não provado a parte que refere que o arguido BB “soubesse que o arguido GG pretendia usar a referida arma para atingir com disparos EE e dessa forma tirar-lhe a vida”. 40.º Entende o recorrente que o Ponto 1.28 mais não é que a repetição do ponto 1.11 e 1.12 conjugados, acrescentando-lhe um facto surpreendente, o de considerar que o recorrente por conhecedor da desavença entre o coarguido e a vítima chamou aquele ciente que assim estimulava a animosidade que o coarguido GG experimentava em relação à vítima, o que, efetivamente, é o corolário da publicitação de uma tese imaginária. 41.º A tese que está por trás do ponto 1.28 não encontra suporte em qualquer depoimento, antes resulta de um “achar” que foi assim, ou de suposições que o nosso ordenamento jurídico não pode aceitar como bastantes para motivar uma condenação desta natureza. 42.º Não resulta dos depoimentos das 3 testemunhas que o acórdão refere, nem das declarações prestadas pelo arguido BB, no todo ou em parte, factualidade que possa sustentar tão elaborada tese. 43.º Daqueles depoimentos, apenas um, o do DD, nos indica que ele (testemunha) acha que o BB chamou o GG porque apareceram os dois juntos. Tal não poderá ser considerado bastante para alimentar a tese que consta deste ponto 1.28, pelo que o mesmo deve ser considerado NÃO PROVADO. Depoimento que um Estado de Direito não pode valorar, por tudo quanto deixamos dito! 44.º A expressão ciente indicada no Ponto 1.29 não tem alicerce em nenhuma fundamentação, nem antes, aquando do despacho de alteração não substancial dos factos, nem após, com a prolação do acórdão, não bastando alegar que a sua convicção resulta da conjugação dos depoimentos aliada às regras da experiência comum, sendo estas, como se sabe, como refúgio onde muito se alberga. 45.º Lê-se no Acórdão: Após este episódio, o mesmo arguido contacta o arguido AA, que, então, sai de casa com a arma de fogo pronta a disparar, e juntos dirigem-se em direção ao Café Snack-Bar ..., onde se encontra o grupo de amigos que também tinham estado no jantar, entre os quais o EE, o que o arguido BB estava em condições de saber, designadamente pelo contacto que foi mantendo com FF. 46.º Lendo esta narrativa, percebe-se como são exageradamente forçados os argumentos que o Tribunal recorrido utilizou para escorar a condenação do arguido recorrente, pelo que este facto deve transferir-se para o elenco dos factosNÃO PROVADOS. 47.º Entende o recorrente que o Tribunal a quo incorreu em erro notório na apreciação da prova e, em consequência, deverão declarar-se não provados os factos constantes da factualidade assente sobre os pontos 1.7, 1.8, 1.9, 1.11, 1.12, 1.28 e 1.29; 48.º as provas supra elencadas impõem decisão diversa da recorrida, desde logo no que concerne aos concretos pontos de facto acima enumerados que deverão, todos, passar a ser considerados como não provados, isto nos termos do disposto no art.º 412.º, n.º3, al.s a) e b) do CPP;2.º O acórdão recorrido condenou o arguido, ora recorrente, “pela prática, como cúmplice, de um crime de homicídio, na forma consumada, agravado pelo uso da arma, p. e p. pelos artºs 131º e 27º, ambos do Código Penal, e 86º, nº 3, do RJAM, na pena de 5 (cinco) anos e 3 (três) meses de prisão, julgou procedente o pedido de indemnização civil formulado pelo Hospital de ..., EPE relativamente ao arguido demandado BB, condenando-o solidariamente (com o demandando arguido AA; julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD e condenar solidariamente os arguidos demandados a pagarem ao demandante a quantia de noventa mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão; e julgou parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por CC e condenar solidariamente os arguidos demandados a pagarem à demandante a quantia de oitenta mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão.” 49.º ainda que assim não se entenda, todos os mesmos factos deverão considerar-se incorretamente provados e passarem a integrar a factualidade não provada, com fundamento no erro notório na apreciação da prova, como resulta do art.º 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. 50.º Por outro lado, entende o Recorrente que os Pontos 2.20, 2.25 e o 2.26 elencados nos factos dados como não provados deverão ser considerados como provados. 51.º Resulta do depoimento do seu irmão QQ e demais familiares paternos que o recorrente é pessoa amigável e sociável, nada resultando dos autos que fundamente o contrário, devendo o Ponto 2.20 considerar-se como FACTO PROVADO. 52.º No que concerne ao Ponto 2.25 entende o recorrente que, da factualidade que brotou da audiência de discussão e julgamento, parece ser contrário às regras da experiência, uma vez que não poderia o Tribunal expectar que após o arguido GG ter efetuado os disparos da forma como demonstrou a audiência de discussão e julgamento que o arguido BB ficasse junto da vítima a cuidar dela, sendo certo que a vítima não ficou desacompanhada, estando com ela pelo menos 5 amigos; por outro lado, tinha sido agredido por ela 4 ou 5 horas antes. 53.º O arguido BB estava na companhia do autor dos disparos, o que se houvesse qualquer resposta armada do outro lado poderia também ele ser atingido. Parece ser conforme à natureza humana que numa situação como a que ocorreu naquela madrugada a primeira, ou primária, reação seja a de correr, a de fugir dali. Mas tal reveste ainda mais força quando o relatório social do arguido refere que este tem pleno conhecimento e consciência da ilicitude do facto praticado pela pessoa que o acompanhava, e bem assim de que tal conduta deve ser punida, devendo também este Ponto 2.25 ser considerado como FACTO PROVADO. 54.º Entende também o recorrente que o Ponto 2.26 deverá ser considerado provado, desde logo pelo que nos referiu a testemunha FF, em sede de audiência de julgamento (1ª sessão, datada de 26.09.2022), registado no ficheiro .... 00:01-44:07, na passagem 00:30.25 a 00:31:00. 55.º Em momento algum refere esta testemunha FF que havia contado ao BB que já não iriam para a festa, denotando-se no seu depoimento dúvidas se o disse por mensagem ao Recorrente, referindo apenas que a conversa versou sobre o confronto físico ocorrido no jantar e uma preocupação em saber de que lado estaria esta testemunha por respeito ao sucedido. 56.º Ora, assim, não podem restar dúvidas que o arguido BB estava convencido que EE e demais amigos estariam numa festa (…) admitindo que a parte final daquele facto possa não ter sido provada. Porém, a parte com relevância e que deveria ter sido dada como provada, ainda que parcialmente, não o foi. 57.º O Ponto 2.26 deve ser dado como FACTO PROVADO e com a seguinte redação: O arguido BB estivesse convencido que EE e demais amigos estariam numa festa, numa discoteca em .... 58.º De um modo geral, a decisão, toda ela, assenta em considerações puramente subjectivas, apenas escoradas na íntima convicção do julgador, pois não assentam ou vão, tão pouco, “beber” a qualquer elemento probatório que resultasse da audiência de discussão e julgamento ou da prova documental que compõe os autos.
A cumplicidade. 59.º A alteração da qualificação jurídica imputando ulteriormente ao arguido a cumplicidade não ancora na prova produzida em julgamento e contraia as regras da experiência, e do normal acontecer, como tivemos oportunidade de ir apontando. 60.º A simples presença física sem a prova de qualquer conformação dirigida ao facto não é mais que um não ato, o que ocorreu in casu; o facto de o recorrente permanecer ao lado do autor dos disparos não pode, só por si, ser revelador do dolo de auxílio. E nada mais resultou da prova produzida! 61.º Refere o Acórdão: De igual modo, o dolo e intenção com que o arguido BB agiu resulta dos elementos probatórios acima referidos e da materialidade objetiva da sua conduta e do significado que a mesma assume à luz das regras da experiência e do normal acontecer. 62.º Os elementos probatórios acima referidos são as declarações do próprio arguido e os depoimentos das três testemunhas, que, como vimos já, não têm a força necessária para confirmar a tese do Acórdão. 63.º Não se pode aceitar, porque não se vislumbra de que atividade probatória deriva, que o arguido BB se haja disposto a ajudar o arguido AA a localizar EE, acordando ambos em ir ao encontro deste. 64.º Como não se pode também aceitar que o arguido BB houvesse chamado o arguido AA naquela noite, muito menos que o fizesse com o propósito que resulta da tese do Acórdão, nem que o mesmo estivesse ciente que ao assim proceder estimulava a animosidade que o arguido AA experimentava em relação à vítima. 65.º Inexiste, pois, qualquer prova para considerar o Arguido BB como cúmplice pelo crime ocorrido na madrugada daquele 5 de outubro, nos termos do artigo 131º e 27º, ambos do CP., pelo que, do mesmo, deve ser ABSOLVIDO. In dubio pro reo. 66.º Os factos provados supra enunciados e a consequente condenação do recorrente, ainda que como mero cúmplice, não resultam da prova produzida, a qual, na melhor das hipóteses, apenas criou dúvidas sobre a sua veracidade e não será aqui despiciendo relembrar que a convicção do Tribunal, quanto àqueles factos, assentou apenas nas declarações de testemunhas, amigos dos arguidos, as quais se revelaram tendenciosas, vagas e, em alguns casos, até contraditórias. Sendo, assim, evidente a insuficiência probatória para a decisão da matéria de facto dada como provada e que colocamos em causa. 67.º E isto em todos os pontos que colocamos em crise, o ponto 1.7, 1.8, 1.9, 1.11, 1.12, 1.28, 1.29 e 2.26. 68.º Estamos, sem dúvida, porém, com o merecido respeito, perante a violação do princípio in dúbio pro reo, segundo o qual o Juiz deve decidir “sobre toda a matéria que não se veja afetada pela dúvida”, de forma que, “quanto aos factos duvidosos, o princípio da livre convicção não fornece, não pode fornecer qualquer critério decisório”. 69.º Pese embora a decisão dedique uns parágrafos a esta questão, tentando afastar este instituto, certo é que a certeza que o julgador aponta como objectiva não tem como pedra angular qualquer actividade probatória, antes resulta de ilações cujo julgador parece extrapolar aquilo que são os limites da presunção judicial admissível, colocando em causa as garantias do arguido, uma vez que todos os factos que colocamos em causa dados como provados são apoiados em factos base que também eles presumidos, sem que hajam sido efetivamente provados e, portanto, não são factos certos.
Violação do artigo 127º. 70.º Entende o recorrente, sempre com o devido respeito, que, foi violado o disposto no artigo 127º do C.P.P. 71.º A convicção do Tribunal é livre, mas não arbitrária. A convicção do juiz não deverá ser puramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável. Tal decorre do art.º 374.º, nº 2 do CPP, o qual determina que a sentença deverá conter "uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão,com a indicação e exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal", o que não aconteceu no Acórdão recorrido por tudo quanto se foi deixando exposto. 72.º Este normativo indica-nos um limite à discricionariedade do julgador. Assim, a exposição tanto possível completa sobre os critérios lógicos que constituíram o substrato racional da decisão- art.º 374.º, n.º 2 do CPP- não pode colidir com as regras da experiência. 73.º Acontece, porém, que parte dos juízos dados como assentes na decisão recorrida não são legítimos face ao conteúdo do princípio da livre apreciação da prova e assim sucede, nomeadamente, quanto aos factos dados como provados 1.8, 1.11, 1.12, 1.28.
A medida da pena. 74.º Entendemos que a pena aplicada ao ora recorrente é excessiva, para além de que violou o disposto no art.º 71, nº 2, als. c) a e) do C. Penal, ao não ter em consideração na determinação da sua medida todos os factos que depuseram a favor do arguido, nomeadamente, o grau de ilicitude, a situação pessoal, a sua inserção profissional, a sua integração familiar e social, o seu comportamento anterior e posterior à prática do crime, sendo que o arguido sempre manteve um comportamento lícito, pautando a sua conduta de acordo com as regras da sociedade, a ausência de antecedentes criminais e a idade do arguido – 24 anos. 75.º O Tribunal a quo devia tomar em consideração todo o circunstancialismo exposto e admitindo que o arguido tivesse praticado os atos subsumíveis ao crime pelo qual este foi condenado, o grau da sua culpa, as exigências de prevenção e todas as circunstâncias que a seu favor depõem. Desta forma, cremos, estarem reunidas todas as condições para que o recorrente se volte a integrar social, profissional e familiarmente. 76.º Não se reconhece e aceita que o Arguido houvesse praticado qualquer ato ilícito ou, tão pouco, o potenciasse, todavia, após o processo que vivencia e a condenação a que foi sujeito, é esta a fase da vida que mais necessita de uma oportunidade de “ressocialização”. 77.º Todos os factos acima descritos, determinam um juízo de prognose favorável do arguido, não esquecendo que continua a ter retaguarda familiar que está disposta a apoiá-lo no seu regresso à liberdade, que ambiciona, também, agora, para prosseguir o seu labor na ..., junto do seu pai, o que o afasta, de todo, do meio em que esteve inserido nos últimos anos, cumprindo também assim as indicações do relatório social. 78.º O limite mínimo da pena é de 2 anos 1 mês e 18 dias, pelo que somar-lhe 1 ano para a finalidade da prevenção especial parece-nos já ajustado, tendo em conta tudo o quanto dissemos neste ponto do recurso, o que o condenaria a uma pena de 3 anos, 1 mês e 18 dias. No caso de V. Exas. entenderem ser de manter a condenação entendemos, com o merecido respeito, que a pena deverá ser reduzida para a medida que apontamos. 79.º Por tudo quanto relatamos somos da opinião que a redução da pena em moldes que possa ser suspensa na sua execução irá de encontro à justiça almejada, mesmo que sujeita a condições benéficas para a comunidade. 80.º Suspensão que, mantendo-se a condenação, em inferior medida, subsidiariamente se requer, por tudo quanto deixamos agora referido. A condenação cível. 81.º Sendo o recorrente absolvido do crime pelo qual vem condenado, como se espera, resultado do douto entendimento de V. Exas, deve também ser absolvido de todos os pedidos de indemnização civis formulados. 82.º Caso não seja esse o douto entendimento, sempre se dirá que, o montante indemnizatório ao qual o Recorrente foi condenado solidariamente e que foram fixados ao assistente DD na quantia de 90.000,00 € e à assistente CC na quantia de 80.000,00 €, foram manifestamente excessivos. 83.º Não aceita o arguido que tenha o Tribunal a quo condenado solidariamente o arguido BB, ora recorrente, no mesmo montante indemnizatório que o arguido AA, atendendo à medida e qualidade da participação de cada um na prática dos crimes a que foram condenados. 84.º O arguido BB vem condenado como cúmplice de um crime de homicídio simples; o arguido GG vem condenado por um crime de homicídio qualificado e pelo crime de detenção de arma proibida. Assim, não sendo a condenação uniforme, no que, pelo menos, à qualificação do crime importa, não podem responder ambos na mesma linha, sendo, pois, de refutar a solidariedade da condenação. 85.º Entendemos, assim, que a medida da culpa deverá também pesar na medida do quantum indemnizatório, o que se leva também à douta consideração de V. Exas.
TERMOS EM QUE, E NOS QUE VOSSAS EXCELÊNCIAS BEM MELHOR SABERÃO SUPRIR, DEVE O ACÓRDÃO RECORRIDO SER REVOGADO NOS TERMOS QUE SUPRA DEIXÁMOS EXPOSTOS, COM TODAS AS CONSEQUÊNCIAS LEGAIS, ASSIM SE FAZENDO A HABITUAL JUSTIÇA.
- Conclusões do recurso interposto pela assistente CC:
I. Por acórdão proferido em 12 de janeiro último, o ora recorrido BB, foi absolvido da prática, em coautoria, de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea e) ambos do Código Penal.
II.A ora recorrente entende que o tribunal a quo, atentos os factos provados, incorreu em errada interpretação e aplicação da lei ao subsumir a participação do ora recorrido como cúmplice, pela prática de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea e) e 27.º n.º 1 todos do Código Penal.
III.Decisão com a qual aqui recorrente não se conforma visto considerar tratar-se claramente de um caso típico de coautoria, na modalidade de instigação, p. e p. no artigo 26.º do Código Penal e não uma situação de cumplicidade, p. e p. no artigo 27.º do mesmo diploma, como entendeu o tribunal a quo.
IV.Tal conclusão é facilmente alcançável tendo presente, por um lado, os factos provados e, por outro, atentas as regras de experiência comum que conferem liberdade ao julgador na utilização dos seus conhecimentos de máxima da experiência, alcançando, por procedimentos legítimos, a certeza jurídica, que apesar de não ser uma certeza absoluta é a convicção com génese em material probatório, suficiente para, numa perspetiva processual penal e constitucional, legitimar a condenação, essencialmente por estarmos comportamentos humanos que podem ser motivados por múltiplas razões e comandados pelas mais diversas intenções, não podendo haver medição ou certificação segundo regras e princípios cientificamente estabelecidos.
V.O cúmplice não tem o domínio ou o condomínio do facto, pois este pertence ao autor. Por outras palavras, a participação ou cumplicidade está dependente da existência de um facto que tem outrem como autor, estando a punibilidade da cumplicidade dependente da “existência de um facto principal (doloso) cometido pelo autor (“facto do autor”)”, dependência esta a que na doutrina se dá o nome de acessoriedade da participação - cfr. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, Coimbra Editora, 2007, p. 824 e seguintes.
VI.Já para a existência de coautoria, referida no artigo 26.º do Código Penal, socorrendo-nos do arresto do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19.3.09, disponível para consulta em www.dgsi.pt é «Essencial um acordo, expresso ou tácito, este assente na existência da consciência e vontade de colaboração, aferidas aquelas à luz das regras de experiência comum, bem como a intervenção, maior ou menor, dos coautores na fase executiva do facto, em realização de um plano comum, não sendo senão esse o sentido da locução «tomar parte na sua execução, por acordo ou conjuntamente com outros», como consta do já referido artigo 26.º do Código Penal.
VII.Acordo esse que, desde o início da decisão conjunta, haja o domínio do processo causal que conduz à realização do tipo, de tal modo que o contributo de cada um surja como uma parte da atividade total, nesse sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal cit., págs. 791 a 794).
VIII.Atendendo à sequência e circunstâncias em que decorreram dos factos provados, conjugadas com as regras da experiência comum e com os conceitos doutrinais e jurisprudenciais, forçoso será de concluir que a intervenção do recorrido se enquadra numa situação clara de coautoria na modalidade de instigação, senão vejamos:
IX.Resultou provado que (i) após a contenda havida entre o recorrido BB e o falecido DD, do qual resultou para aquele um ferimento no rosto, o recorrido abandonou o local, dizendo que ia buscar uma arma; (ii) tendo então contactado o arguido AA que sabia estar desavindo com EE, contando-lhe o sucedido, pedindo-lhe que fosse ao seu encontro; (iii) logo após o referido contacto entre o recorrido e o coarguido AA, e na sequencia do que lhe havia sido transmitido pelo aqui recorrido BB, o coarguido AA muniu-se de uma arma que detinha na sua residência, com a intenção de atingir com disparos EE e, assim, lhe tirar a vida; (iv) ambos os arguidos AA e o aqui recorrido vieram a encontrar-se junto à casa do irmão do recorrido levando o arguido AA consigo a referida arma; (v) o recorrido dispôs-se a ajudar o arguido AA a localizar a vitima acordando ambos ir ao encontro daquela; (vi) o recorrido sabia que o arguido AA estava munido de uma arma e que a pretendia usar para atingir com disparos a vitima e desta forma tirar-lhe a vida.
X.Em suma, o recorrido e o arguido AA, após o contacto daquele a este, acordaram encontrar-se no local melhor identificado nos autos, levando consigo a arma supra referida, tendo o recorrido ainda disponibilizando-se a ajudar o arguido AA a localizar EE, acordando ambos a ir ao seu encontro; já na mira da vitima o recorrido e o arguido AA deslocaram-se na sua direção, tendo o arguido AA, munido da referida arma, esticado o braço, apontando a arma à zona do abdómen da vitima e efetuado dois disparos, tendo em ato seguido ambos abandonado o local a correr.
XI.Resulta da factualidade apurada que, o que despoletou a vontade do cometimento do crime de homicídio foi o contacto do recorrido ao coarguido GG, no seguimento da contenda que aquele havida tido com o falecido DD e da própria ameaça que fez, de que iria buscar uma arma em momento imediatamente anterior.
XII.Não consta dos autos qualquer indicação de que o coarguido AA tivesse decidido cometer o crime perpetrado em momento anterior ao contactado realizado pelo recorrido nesse sentido, aliás, a omissão de qualquer comportamento ou verbalização anterior por parte do coarguido AA, atentatória da integridade física ou vida de DD, revela claramente que, apesar da desavença, a qual ocorrera há mais de um ano, inexistem quaisquer outros factos ou indícios nos autos que demonstrem a existência prévia e a determinação em cometer o crime de homicídio, mais a mais atento o passado desviante do arguido AA e o clima recorrente de uso de armas de fogo, se tivesse decidido, em momento anterior, tirar a vida à vitima, seguramente já o teria feito, desde logo quando teve conhecimento de que o falecido o teria denunciado.
XIII.Note-se que o próprio meio utilizado pelo arguido AA, para a realização do crime, ou seja, utilização de arma de fogo, tinha sido anunciado pelo recorrido, após a contenda física tida, nesse mesmo dia, com a vitima.
XIV.Pese embora não se ter provado que os coarguidos - aqui recorrido e o arguido AA - tivessem acordado expressamente entre si atingir EE com disparos de arma de fogo e tirar-lhe a vida, ou que tivessem agido em comunhão de esforços e vontades em termos distintos do que consta da factualidade elencada em 1.8 a 1.16, 1.28 e 1.29, quer das circunstâncias apuradas nos presentes autos, mormente, as circunstâncias em que os arguidos atuaram nos momentos que antecederam a prática do crime revelam, segundo as regras da experiência comum, a existência de um acordo tácito entre os dois arguidos, o que desde logo afasta a participação do recorrido como cúmplice.
XV.Assim, todo o circunstancialismo resultante do comportamento e atuação de ambos, sendo certo que, nenhum deles, se escusou de o fazer, sobre qualquer forma ou reação no sentido de tentar evitar tal desfecho trágico, contribuíram, de modo decisivo, para o êxito do que foi decidido, ainda que tacitamente, sendo que,
XVI.A atuação do recorrido, foi decisiva para a produção do resultado, não se limitando a prestar mero auxílio ao coarguido AA, como entendeu o tribunal a quo,mas criando a vontade deste no cometimento do crime de homicídio qualificado e agravado que inevitavelmente veio a suceder.
XVII.Como habilmente sustentado, pelo Ilustre Professor Figueiredo Dias, em estudos recentes, a instigação assume no direito penal português vigente o estatuto de autoria, sendo aquela uma das modalidades desta.
XVIII.Atenta a Teoria do Domínio do Facto, aceite e aplicável pela nossa jurisprudência e alguma doutrina, especialmente no tocante a crimes dolosos por ação, o domínio do facto pode exercer-se de diferentes formas e fundar-se, por conseguinte, em diferentes modalidades da autoria no domínio da ação, no caso concreto, apontamos a quarta alternativa prevista no artigo 26.º, que pune como autor «quem dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução, ou seja, trata-se do instigador que surge assim como verdadeiro senhor, dono ou dominador se não do ilícito típico como tal, ao menos e seguramente da decisão do instigado de o cometer. Diga-se ainda que sendo inevitavelmente obra pessoal do homem-da-frente, faz aparecer o acontecimento como obra do instigador e dá o seu contributo para o facto o carácter de (co)realização de um ilícito e não de mera "participação (externa ou 'estrangeira') no ilícito de outrem".
XIX.Aplicando a lei e os conceitos doutrinários e jurisprudenciais acima elencados aos factos em escrutínio, haverá que rememorar todo o acervado acima elencado, constante das conclusões XIV. e XV., claramente apto a arredar a punição por cumplicidade do aqui recorrido, subsumindo agora a sua atuação numa das modalidades da coautoria, ou seja, na instigação.
XX.Assim, resulta que o aqui recorrido deteve, desde o início, o domínio do facto, sob forma de domínio da decisão, de modo a que o instigado (coarguido AA), cometesse, naquele dia, o homicídio do qual resultou a morte do filho da recorrente.
XXI.Na verdade, tal conclusão é facilmente alcançável se tivermos presente os factos provados constantes do acórdão em crise, designadamente, que a desavença entre os arguido AA e o falecido DD, se havia iniciado em data bastante anterior - no seguimento das declarações prestadas por este último perante Magistrado do Ministério Publico no âmbito do processo 173/17.... - sendo que tal querela, até então, nunca produzira naquele a decisão de, por si só, atentar contra a vida deste, inexistindo nos presentes autos qualquer facto que possa espelhar ou sequer indiciar a existência de tal propósito.
XXII.Assim, haverá que evocar o que atrás se deixou dito acerca da inexistência nos autos de qualquer elemento que demonstre, ainda que indiciariamente, que o coarguido AA, tivesse decidido antes, atentar contra a vida ou integridade física, desde a data da desavença até ao dia fatídico em que foi instigado pelo aqui recorrido BB, tendo nessa sequencia decidido matar a vítima EE, pese embora os vários episódios com armas de fogo ocorridos no ano de 2021,
XXIII.Sendo certo que o motivo que levou a coarguido AA, naquele dia e hora e local, já após decorrido largo período de tempo desde a data da desavença foi deliberadamente a instigação impressa pelo recorrido hábil a criar no arguido AA, a decisão e vontade de tira a vida ao filho da recorrente.
XXIV.Factualidade claramente evidenciada nos factos provados constante dos pontos 1.3. a 1.12. e 1.28 e 1.29 que, conjugada com as regras de experiência comum, que no caso concreto, permitem o alcance da certeza jurídica, que não é, desde logo, a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspetiva processual penal e constitucional, legitimar a condenação do recorrido em coautoria.
XXV.Se por um lado, atenta matéria provada supra aduzida, o recorrido ao tomar partido da posição do coarguido GG, se envolveu numa contenda física com o falecido EE, da qual resultou um ferimento no rosto, pretendendo, por isso, vingar-se, anunciou que iria buscar uma arma, por outro, sabia que, o meio idóneo a prosseguir tal fim seria envolver e instigar o coarguido GG, reavivando a desavença ocorrida entre este e a vitima EE, estimulando animosidade de forma a criar e causar a resolução criminosa naquele, realizando por intermédio daquele, do crime planeado.
XXVI.Dúvidas não podem subsistir que o “auxílio” que o recorrido prestou foi indispensável à prática do crime, não se limitando a um papel acessório pois, sem essa comparticipação, o coarguido AA, não teria decidido praticado o crime que vitimou fatalmente o filho de ora recorrente.
XXVII.É este entendimento que a recorrente perfilha e que pretende ver apreciado, por este Venerando Tribunal, sendo este o único meio que lhe assiste para, em memória do seu falecido filho, seja feita JUSTIÇA!
Nestes termos e nos demais de direito que V. Exas. doutamente supriram, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser a decisão plasmada no acórdão proferido revogada, substituindo-se por outra que condene o recorrido BB, pela prática, em coautoria, de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alínea e) e parte final artigo 26.º do Código Penal.
Desta forma, farão V. Exas., Venerandos desembargadores deste Tribunal, a tão ansiada JUSTIÇA
5. OM.P., na primeira instância, respondeu aos recursos interpostos pelos arguidos (incluindo o recurso intercalar interposto pelo arguido AA) e pela assistente CC, tendo concluído no sentido de que os referidos recursos deverão ser julgados improcedentes confirmando-se o despacho e o acórdão recorridos. 6- O arguido BB respondeu ao recurso interposto pela assistente CC, tendo concluído no sentido de que deve manter-se a absolvição do recorrido da prática do crime de homicídio qualificado, improcedendo totalmente o recurso interposto pela assistente.
7. Nesta instância, exceto quanto ao recurso do acórdão do arguido AA, o qual requereu a realização da audiência, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, abordando todas as questões suscitadas pelos recursos interpostos, tendo concluído pela improcedência de todos eles, assim confirmando o despacho e o acórdão recorridos. Relativamente ao recurso do acórdão do arguido AA a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta disse que proferirá alegações em sede de audiência. 8. Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP. O arguido BB e a assistente CC responderam ao parecer da Exma. Procuradora Geral Adjunta, pugnando pela procedência dos recursos que interpuseram. 9. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a audiência.
Cumpre apreciar e decidir.
II- FUNDAMENTAÇÃO
1- Objeto dos recursos
O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP.
Assim, considerando o teor das conclusões dos recursos interpostos, as questões a decidir são:
1) Quanto ao recurso intercalar do arguido AA
- Irregularidade do despacho de comunicação de alteração não substancial de factos, por ausência de fundamentação decorrente da não indicação dos concretos meios de prova em que se estriba tal alteração factual, conforme o disposto nos artigos 97º, nº 5, 118º, nº 2 e 123º, do C.P.P. e artigo 32º, nº 1 e 5, da C.R.P.;
- Irregularidade do despacho em virtude de o Tribunal a quo ter lançado mão do mecanismo da alteração não substancial dos factos fora das hipóteses previstas no artigo 358º, nº 1, do C.P.P
2) Quanto aos recursos do acórdão - Recurso do arguido AA
1) Nulidade do acórdão recorrido por violação do disposto no artigo 358.º, n.º 1, ex vi do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P., em virtude de, na comunicação proferida em audiência de julgamento, de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, não se mencionar os concretos elementos probatórios em que o Tribunal se estriba para concluir por tal alteração factual.
2) Inconstitucionalidade do artigo 358º, nº 1, do C.P.P., por violação do artigo 32º, nºs 1 e 5 da C.R.P., na medida em que seja interpretado no sentido de que o despacho que comunica a alteração não substancial de factos não tenha obrigatoriamente que indicar os concretos meios de prova que sustentam tal alteração, como garantia de um efetivo exercício do contraditório.
3) Erro de julgamento da matéria de facto quanto aos pontos dos factos provados e não provados do acórdão recorrido que indica;
4) Erro na qualificação do homicídio, devendo antes ser considerado como homicídio simples;
5) Medida da pena quanto ao crime de homicídio;
6) Aplicação de pena de multa quanto ao crime de detença de arma;
7) Excessividade do montante da indemnização fixada à assistente CC pelos danos por ela sofridos com a morte do filho - Recurso do arguido BB
1) Nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação, violando o disposto nos artigos 97.º, n. º4, 374° n° 2, 379º, n.º 1, alínea a), b) e c) do CPP, bem como o disposto nos artigos 32º, 202.º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
2) Erro de julgamento da matéria de facto
3) Violação do in dubio pro reo
4) Medida da pena de prisão e sua suspensão
5) Pedido de indemnização civil: excessividade dos valores fixados; repartição da sua responsabilidade / solidariedade.
- Recurso da assistente CC
- saber se o arguido BB não deveria ser responsabilizado pelo crime de homicídio, juntamente com o arguido AA, na qualidade de coautor e não apenas como mero cúmplice.
2. As decisões recorridas - Despacho intercalar (despacho recorrido)
I.
Na sequência da comunicação de alteração não substancial de factos e de alteração da qualificação jurídica, e no prazo que foi, face a tal comunicação, requerido e concedido para a preparação da defesa, os arguidos apresentaram os requerimentos refª ...65 e ...04.
1. O arguido BB (requerimento ref.ª ...04) opôs-se à alteração não substancial dos factos por entender que a mesma não resulta de elementos probatórios que permitam sustentar tal alteração, assim como se opôs à alteração da qualificação jurídica, que quanto a ele foi comunicada, pugnando pela absolvição do crime de que vinha acusado.
As razões expostas pelo arguido BB no requerimento em causa, relacionadas com a prova produzida, serão oportunamente apreciadas pelo tribunal colectivo em sede de decisão definitiva da decisão de facto e de direito e em sede de acórdão, certo que, conforme abaixo se explicitará, o despacho que procedeu à comunicação da alteração não substancial dos factos e da alteração da qualificação jurídica tem quanto ao seu conteúdo uma natureza provisória, que se encontra ainda sujeita ao contraditório e à deliberação, então com carácter definitivo.
*
2.Por seu turno, o arguido AA no requerimento (refª ...65) suscita:
- a intempestividade da comunicação da alteração dos factos, invocando que o tribunal, ao admitir aqueles “novos” factos, sem possibilidade legal de se reabrir a audiência para que o arguido possa defender-se e apresentar novos elementos probatórios, adultera o princípio do contraditório, sendo irregular o despacho proferido por violar o disposto nos artigos 358.º n.º 1, 369.º e 371.º do CPP.
- a falta de fundamentação do despacho, nos termos do disposto no art.º 97º, nº 5, do CPP.
- a inexistência de novos factos que consubstanciem uma alteração não substancial da factualidade descrita na acusação, alegando que os factos em causa e eram já do conhecimento da entidade acusatório e, inclusive, constam, na sua grande maioria do despacho de acusação, embora de forma não tão detalhada e em momentos cronológicos diferentes.
Termina pedindo que seja:
- Declarado irregular o despacho proferido por violação do disposto nos artigos n.º 358.º n.º 1, 369.º e 371.º do Código de Processo Penal, ou se assim não entender;
- Declarado irregular o despacho por falta de fundamentação tal como está obrigado nos termos do disposto no artigo 97.º n.º 5 do Código de Processo Penal, ou se assim não entender;
- Revogado o despacho proferido por não se verificar as circunstancias necessárias à verificação e uma alteração não substancial dos factos nos termos do disposto no artigo 350.º n.º 1 do Código de Processo Penal.
Sem embargo do acima requerido, e para a hipótese de o tribunal entender de forma diferente, e nessa conformidade manter o despacho proferido, indica prova complementar, para além de prova documental, requerendo a tomada de declarações ao arguido quanto à matéria constante do despacho proferido e inquirição das testemunhas II e SS, que se compromete a apresentar no dia e hora que vier a ser designado para a sua inquirição;
Apreciando e decidindo:
Quanto à invocada intempestividade da comunicação da alteração não substancial dos factos:
A comunicação de uma alteração não substancial aos sujeitos processuais interessados deve ser efectuada, normalmente, pelo tribunal após o termo da produção da prova, pois só após este momento o tribunal fica em condições de ter uma visão geral e totalizante sobre o conjunto da prova produzida.
Tal decorre desde logo do teor do artº 358º, nº 1 e 2, do CPP, ao dispor se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal pode deles conhecer, desde que, oficiosamente ou a requerimento, comunique tal alteração ao arguido e lhe conceda, se requerido, o prazo necessário para a preparação da respectiva defesa, salvo se os novos factos tiverem sido alegados pela defesa.
Uma vez que a alteração não substancial dos factos é do conhecimento obrigatório pelo tribunal, apenas impondo a lei a sua comunicação, como forma de advertir o arguido da possibilidade de serem considerados na decisão, possibilitando-lhe desta forma a reformulação da sua defesa, se o entender fazer, inexiste qualquer obstáculo legal, a que depois de encerrada a discussão e designado dia para a leitura da decisão, o tribunal reabra a audiência e comunique tal alteração.
Como se refere no Ac. do STJ de 16.06.2005 “(a) observância do disposto nos artigos 358.º e 359.º não tem tempo específico e preciso para ter lugar. Como resulta da lei e do seu escopo, o que importa salvaguardar é que, no decurso da audiência, seja o arguido colocado perante a possibilidade de o tribunal levar avante uma alteração, substancial ou não, dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, com o evidente objectivo de lhe assegurar todos os direitos de defesa também quanto à alteração anunciada. Mas tendo em conta o objectivo da lei - que ao arguido seja proporcionada oportunidade de se defender, em plenitude, dessa alteração de factos aquele decurso da audiência só termina com a prolação da decisão (proferido no processo n.º 05P1576, pelo relator Pereira Madeira, in www.dgsi.pt).
No mesmo sentido, no Ac do STJ de 2.05.2004, Acs. da RG de 17.05.2010 e de 09/03/2009, no qual se refere “[o] mecanismo previsto no artigo 358º do CPP para o caso de alteração não substancial de factos pode ser desencadeado até à publicação da sentença, pois só com esta se encerra a audiência.”
O que é sempre necessário é que seja assegurado o contraditório, a defesa do(s) arguido(s), como o foi no caso em apreço.
Não ocorre, neste particular, qualquer irregularidade, por violação do disposto nos artºs 358.º n.º 1, 369.º e 371.º do CPP.
Quanto à invocada falta de fundamentação do despacho:
Conforme decorre da comunicação efectuada, e constante da respectiva acta, através dela apenas se deu conhecimento aos sujeitos processuais de factos que, não incluídos na acusação, poderiam, eventualmente, vir a ser considerados provados na decisão a proferir oportunamente. Mas sem que tais factos tivessem, necessariamente, que vir a ser considerados provados na decisão. Significa isto que no referido despacho nada se decidiu, apenas se comunicou uma possibilidade, apenas foram os factos novos notificados aos arguidos, como advertência, para lhe possibilitar pensar de novo a sua defesa. Comunicação esta que tem quanto ao seu conteúdo uma natureza provisória, que se encontra ainda «sujeita, ao contraditório, à produção de prova e à deliberação, então com carácter definitivo.»
A defesa fica plenamente assegurada com a notificação dos factos, nada mais exigindo o artº. 358º, nº 1, do C. Processo Penal. A comunicação possibilita ao arguido defender-se dos factos que não constavam da acusação e, por isso, com os quais, não podia legitimamente contar. Se porventura, na decisão vierem tais factos a ser considerados provados, é nesta peça que deve constar a fundamentação bastante para tal.
Não constituiu, assim, tal despacho/comunicação um acto decisório, sendo certo que dele consta a fundamentação exigida face a disposto no artº 358º, nº 1, do CPP.
“Isto mesmo decorre do despacho proferido, constante da acta respectiva, onde se fez constar no inicio “Deliberou o tribunal colectivo, face à produção de prova realizada, introduzir na materialidade sob julgamento a seguinte factualidade, que consubstancia uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação…”
Improcede, deste modo, também a arguida irregularidade por falta de fundamentação.
Quanto à inexistência de novos factos que consubstanciem uma alteração não substancial da factualidade descrita na acusação:
É sabido que a acusação delimita tecnicamente o objecto do processo e da decisão jurisdicional .
No entanto, a lei, por razões de economia processual, e também no próprio interesse da paz do arguido, permite que o tribunal possa considerar factos novos desde que «daí não resulte insuportavelmente afectada a defesa, enquanto o núcleo essencial da acusação se mantém o mesmo»- cf. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, tomo III, pág. 273
No que à «a alteração não substancial dos factos» respeita - artº 358º, nº 1, do CPP - referira-se que para além dos factos constantes da acusação (que, como já referido, constituem o objecto do processo em sentido técnico), podem existir outros factos que não foram formalmente vertidos na acusação, mas que têm “com aqueles uma relação de unidade sob o ponto de vista subjectivo, histórico, normativo, finalista, sociológico, médico, temporal, psicológico, etc.” Esses factos novos fazem parte do chamado «objecto do processo em sentido amplo». Não têm como efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, mas por serem relevantes para a decisão, o seu conhecimento pressupõe o recurso ao mecanismo previsto no artº 358º, nº 1 do CPP, ou seja, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa - cfr. Marques Ferreira, da Alteração dos Factos Objecto do Processo Penal, RPCC, ano I, tomo 2, pág. 226.
Não estando os factos comunicados elencados formalmente naqueles termos na acusação, mas contendo-se no objecto desta, o tribunal, ao proceder à sua comunicação, observou as normas legais atinentes, tendo possibilitado o exercício do contraditório e o pleno exercício do direito de defesa, pelo que também nesta parte improcede a arguição de irregularidade, inexistindo razão para revogar o despacho proferido.
Pelo exposto, indeferem-se as irregularidades suscitadas pelo arguido AA, bem como se indefere a pretensão de revogação do despacho proferido, que se mantém.
- Acórdão recorrido
No acórdão recorrido foram considerados como provados e não provados os seguintes factos, seguidos da respetiva motivação de facto (transcrição):
II - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
1.FACTOS PROVADOS:
Resultaram provados os seguintes factos, com relevo para a decisão da causa:
Da Acusação:
1.1.O arguido AA e DD foram ambos acusados e condenados no processo 173/17...., pela prática de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º do Dec-Lei 15/93, em penas de prisão suspensas na sua execução, por acórdão proferido em 21.12.2020 e transitado em julgado, quanto ao arguido AA, em 19.04.2021.
1.2. Em virtude das declarações prestadas perante Magistrado do Ministério Publico por EE, este e o arguido AA, até então amigos, ficaram desavindos, acusando o arguido AA o EE de o ter delatado, e de ser um “chibo”.
1.3. No dia 4 de Outubro de 2021, DD e outros amigos estiveram a jantar no estabelecimento “Tasquinha do ...”, situado na Alameda ... – ....
1.4. Nesse restaurante também se encontrava o arguido BB.
1.5. Nas circunstâncias de tempo e lugar acima referidas em 1.3., o arguido BB e EE iniciaram uma discussão no interior do restaurante e, após, deslocaram-se para o exterior, onde continuaram a discutir e se envolveram fisicamente, tendo o EE, no decurso dessa contenda, atingido no rosto o arguido BB, que ficou ferido.
1.6. Tal discussão e contenda teve na sua origem a desavença que existia entre o arguido AA e o EE em virtude das declarações por este prestadas no processo 173/17...., acima referido em 1.1.
1.7. Após tal contenda, o arguido BB abandonou o local, dizendo que ia buscar uma arma.
1.8. O arguido BB contactou, de seguida, o arguido AA, que sabia estar desavindo com EE, contou-lhe o sucedido, referido em 1.5. e 1.6., e pediu-lhe, por esse motivo, que o mesmo fosse ao seu encontro.
1.9. O arguido AA, após o que lhe foi transmitido pelo arguido BB, muniu-se de uma arma que detinha na sua residência, apta a disparar munições de fogo de calibre 6.35 mm, a qual se encontrava municiada com, pelo menos, duas munições de fogo de igual calibre, com a intenção de atingir com disparos daquela arma de fogo EE e, assim, lhe tirar a vida.
1.10. Ambos os arguidos vieram a encontrar-se junto da casa do irmão do arguido BB, onde este pernoitava, sita no Bairro ..., em ..., levando o arguido AA consigo a arma acima referida.
1.11. O arguido BB dispôs-se a ajudar o arguido AA a localizar EE, acordando ambos os arguidos em ir ao encontro deste.
1.12. O arguido BB sabia que o arguido AA estava munido da arma acima referida, assim como sabia que este pretendia usar a referida arma para atingir com disparos EE e dessa forma tirar-lhe a vida.
1.13. Cerca das 2h00 do dia 05 de Outubro de 2021, o arguido BB e o arguido AA, este último munido da arma acima referida, dirigiram-se junto do estabelecimento “Snack-Bar ...”, sito na Rua ..., União das Freguesias ..., ..., ... e ..., ..., local que sabiam ser frequentado pela vítima.
1.14. Ali chegados, ao aperceberem-se da presença de EE, naquele local, juntamente com outros indivíduos seus conhecidos, os dois arguidos deslocaram-se na sua direcção.
1.15. O arguido AA, quando se encontrava a cerca de dois metros de EE, munido da referida arma, esticou o braço, apontou a arma à zona do abdómen daquele e efectuou dois disparos seguidos, vindo a atingi-lo nessa zona do corpo.
1.16. Acto seguido, os dois arguidos abandonaram o local a correr.
1.17. No local, foi encontrado e apreendido, no passeio, um invólucro com os dizeres “GECO 6.35” e, no eixo da via, um segundo invólucro com os dizeres “.25 auto CBC”.
1.18. Como consequência directa e necessária da actuação do arguido AA, EE sofreu um ferimento sangrante na região epigástrica, abaixo do apêndice xifóide e um outro ferimento sangrante na região hipogástrica esquerda, sendo transportado de urgência para o Hospital de ..., onde foi submetido a intervenção cirúrgica.
1.19. No decurso dessa intervenção cirúrgica, foi recolhido no interior do corpo da vítima um projéctil, o qual foi, posteriormente, apreendido.
1.20. Não obstante todos os cuidados médicos prestados, EE não resistiu às lesões provocadas pelos disparos acima mencionados, vindo a falecer, no dito hospital, no dia 08.10.2021.
1.21. Realizada autópsia ao corpo da vítima, concluiu-se que a morte foi devida a falência multiorgânica, na sequência de choque hemorrágico/distributivo devido a lesões traumáticas abdomino-pélvicas produzidas por acção de natureza contuso-perfurante por projéctil de arma de fogo.
1.22. No decurso da realização da autópsia, foi recolhido no interior do corpo da vítima um segundo projéctil, o qual foi apreendido.
1.23. Examinados os elementos municiais apreendidos verifica-se que se trata de:
a) um invólucro deflagrado, calibre 6,35mm Browning (.25 ACP pu .25 Auto na designação anglo-americana), marca ..., origem brasileira, inscrições 25 AUTO CBC;
b) um invólucro deflagrado, calibre 6,35mm Browning (.25 ACP pu .25 Auto na designação anglo-americana), marca ..., origem alemã, inscrições GECO 6.35;
c) um projéctil, calibre nominal 6,35mm Browning (.25 ACP pu .25 Auto na designação anglo-americana), marca provável GECO ou Fiocchi;
d) um projéctil, calibre nominal 6,35mm Browning (.25 ACP pu .25 Auto na designação anglo-americana), marca provável ....
1.24. Os dois invólucros acima referidos foram deflagrados por uma mesma arma.
1.25. Os arguidos não são portadores de qualquer licença e/ou autorização que lhes permita deter e/ou usar quaisquer armas e/ou munições não tendo quaisquer armas manifestadas e/ou registadas em seu nome.
1.26. Ao actuar da forma descrita, agiu o arguido AA com o propósito concretizado de pôr termo à vida de DD, bem sabendo que ao direcionar os disparos à zona abdominal da vítima, que sabia alojar órgãos vitais, tal conduta era idónea a provocar a morte deste, resultado este querido e aceite como consequência directa e necessária da sua conduta, bem sabendo ainda que o instrumento utilizado era adequado a concretizar aquele resultado.
1.27. O arguido AA agiu do modo descrito motivado pela desavença que mantinha com EE, em razão das declarações prestadas por este prestadas no âmbito do processo n.º 173/17...., reavivada pela contenda que tinha ocorrido entre aquele EE e o arguido BB, poucas horas antes, e que este último lhe contou, bem sabendo que tal conduta lhe era especialmente censurável, por consistir num motivo repugnante e insignificante.
1.28. Por seu turno, o arguido BB, sabendo da desavença existente entre o arguido AA e EE, contou àquele a contenda havida com este e a razão da mesma, chamou, por esse motivo, o arguido AA para ir ao seu encontro, ciente que ao assim proceder estimulava a animosidade que o arguido AA experimentava em relação à vitima, dispôs-se a ajudá-lo a encontrar a vitima, como ajudou, bem sabendo que o arguido AA detinha uma arma de fogo na sua residência, de que se havia munido quando se deslocou ao seu encontro, sabendo ainda que o arguido AA queria atingir com disparos de arma de fogo EE, e, dessa forma, tirar-lhe a vida.
1.29. O arguido BB agiu do modo descrito querendo auxiliar o arguido AA, ciente do propósito deste de tirar a vida a EE.
1.30. O arguido AA sabia ainda que ao levar consigo e usar uma arma apta a disparar munições de fogo do calibre acima indicado e, bem assim, pelo menos duas munições de fogo nos termos acima referidos, o fazia fora das condições legais, por não ter licença para tal.
1.31. Os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, com conhecimento que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Do Pedido de Indemnização Civil formulado por CC:
Para além dos factos elencados em 1.1. a 1.31., provou-se ainda:
1.32. EE nasceu em .../.../1997, em ..., ..., e faleceu em .../.../2021, no estado de solteiro, sem descendência, deixando como sucessores, seus pais, CC e DD.
1.33. EE era um jovem saudável, próximo da família e com uma rede de amigos vasta.
1.34. A demandante sentiu profunda aflição quando soube do sucedido e da necessária hospitalização da vitima, padecendo de enorme angústia durante o período de hospitalização, e seguidamente experimentou uma profunda dor com a confirmação da sua morte.
1.35. Não obstante a vitima não coabitar com a demandante, mantinha um contacto regular e estável e uma relação de proximidade com esta, sendo o elo de ligação entre a demandante e os seus filhos mais novos.
1.36. A morte de EE, filho mais velho da demandante, causou à demandante grande sofrimento, tristeza e angústia, e um sentimento de perda imensurável, que afectou o seu estado psíquico, já débil, importando momentos de total apatia, bem como perda de sono e falta de apetite.
1.37. EE percepcionou as lesões sofridas, sofreu dores, sentiu medo e angústia face ao pressentimento da própria morte.
Do Pedido de Indemnização Civil formulado por DD:
Para além dos factos elencados em 1.1. a 1.31. e 1.32, provou-se ainda que:
1.38. EE era tido pelos demais como pessoa bem disposta, dedicada à família e aos amigos, profissionalmente inserido.
1.39. Ocupava um importante papel na dinâmica familiar, quer para os seus dois irmãos mais novos, quer para seu pai, que o considerava um filho carinhoso, preocupado e presente.
1.40. Tratava-se de um jovem activo e com vontade de viver.
1.41. No momento em que foi atingido pelos dois projécteis na zona do abdómen, DD estava consciente e lúcido.
1.42. Em consequência dos disparos e das lesões sofridas, sentiu fortes e agonizantes dores, e sentiu medo, horror e desespero, e antecipou a própria morte.
1.43. Em virtude da morte do seu filho EE, o demandante passou e ainda passa momentos extremamente desesperadores e infelizes.
1.44. A brutalidade da morte do filho causou-lhe um enorme abalo emocional.
1.45. O demandante desenvolveu uma perturbação do foro psíquico (depressão), tem dificuldade em aceitar o ocorrido, experimenta sentimento de revolta e infelicidade, que lhe dificultam o trabalho e a convivência com familiares e amigos.
Do Pedido de Indemnização Civil formulado pelo Hospital de ..., EPE:
Para além dos factos referidos em 1.1. a 1.31., provou-se ainda que:
1.46. No dia 5 de Outubro de 2021 DD deu entrada no serviço de urgência do Hospital de ..., EPE, em consequência das lesões causadas pelos disparos que o atingiram.
1.47. Nesse dia e nos dias seguintes, EE recebeu a prestação de cuidados e tratamentos de saúde, cujo custo ascendeu a 21 293,64 €.
Da Contestação oferecida pelo arguido AA:
1.48. O café Snack-bar ... encontrava-se fechado à hora dos factos. 1.49. O arguido AA encontrava-se a trabalhar no estrangeiro, apenas regressando a Portugal em períodos de férias e de lazer.
1.50. Em 2001 existia um clima de conflitualidade entre jovens associados ao Bairro ... e jovens associados ao Bairro ..., que deram origem a episódios com armas de fogo.
1.51. No processo comum singular com o nº 387/18...., do Juízo criminal ..., foi deduzida acusação contra DD e o ora arguido AA, imputando, a cada um deles, a prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143°, nª I. do Código Penal, na pessoa de TT, tendo sido declarado extinto o procedimento criminal relativamente a EE, atento o seu decesso, e proferida sentença, transitada em julgado, na qual foi dado como provado, além do mais, que, no dia 20.10.2018, pelas 04h50m, na Praça ..., freguesia ..., município ..., por motivo não concretamente apurado, o arguido DD, entretanto falecido, empurrou TT e desferiu-lhe um número não apurado de murros e pontapés, atingindo-o em várias partes do corpo, designadamente na perna direita, provocando-lhe fractura do tornozelo direito e a sua consequente queda no solo.
1.52. No processo 173/17...., referido em 1.1. EE prestou declarações perante Magistrado do Ministério Público que constam da certidão de fls. 293 a 296 dos autos e cujo conteúdo se dá por reproduzido.
1.53. O arguido AA expôs perante os amigos de ambos as referidas declarações de EE, que considerava uma “delação” por este praticada.
Da contestação oferecida pelo arguido BB:
1.54. O arguido BB e EE nas circunstâncias referidas em 1.5. foram separados pelos demais amigos que ali se encontravam presentes.
1.55. O arguido BB veio a Portugal naquela semana com o propósito de passar uns dias, o que fazia habitualmente, aproveitando a ocasião para se encontrar com seu grupo de amigos.
MAIS SE PROVOU:
1.56. O arguido AA apresentou-se em 5.10.2021 no posto policial da PSP ..., declarando ter sido o autor dos disparos que atingiram EE.
1.57. O arguido AA foi condenado no processo 173/17.... do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., por acórdão proferido em 21.12.2020, transitado em julgado em 19.04.2021, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º do Dec-Lei 15/93, na pena de um ano e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
1.58. A primeira infância de AA decorreu junto dos pais, com residência estabelecida em ..., sendo a dinâmica familiar disfuncional, devido aos comportamentos aditivos do progenitor, motivando a separação dos pais, por volta dos 5 anos de idade do arguido.
Nessa idade, a mãe e o arguido integraram o contexto socio-habitacional dos avós maternos, no concelho ..., onde permaneceram por uma década. O avô era proprietário de uma padaria, estabelecimento onde a mãe ficou a trabalhar. Com o falecimento do avô (a avó já tinha falecido na infância do arguido), o núcleo familiar regressou para o apartamento que a mãe manteve em ..., empregando-se numa unidade residencial para idosos.
O percurso escolar de AA pautou-se por regularidade até ao ingresso no 3º ciclo do ensino básico, fase em que sofreu duas retenções, sendo encaminhado para curso de educação e formação de jovens na área da padaria/pastelaria, com a duração de um ano e que lhe conferiu equivalência escolar ao 9º ano.
O arguido ainda iniciou a frequência de um curso profissional na mesma área, mas abandonou o sistema de ensino antes de concluir a formação.
AA começou a consumir canábis – e mais tarde MDMA e cocaína – durante a adolescência na companhia do grupo de pares, com quem mantinha fortes laços de pertença. Estes pares foram descritos como pouco convencionais, com envolvimento em estilos de vida e contextos problemáticos.
AA ter-se-á paulatinamente afastado destas dinâmicas disruptivas, inserindo-se no mercado de trabalho através de contratos temporários na área da restauração e da climatização/energias.
Seguiram-se algumas experiências de trabalho na ... e em ..., junto de empresas portuguesas de construção civil, até conseguir inserir-se numa empresa de trabalho temporário francesa, em 2019, que lhe deu sempre trabalhos bem remunerados na área da construção civil, primeiro como armador de ferro e depois como cofrador.
1.59. À data dos factos dos autos, AA trabalhava em ..., residindo em localidades diversas, onde desenvolvia a sua atividade profissional.
A estada em Portugal era temporária, por motivos de férias, para visitar a mãe, a namorada e amigos. O coarguido é seu amigo desde a adolescência, tendo-o acompanhado para ..., onde estava a trabalhar na mesma empresa.
1.60. AA foi preso preventivamente em 07.10.2021 à ordem do presente processo.
Após cumprimento de uma sanção disciplinar numa fase inicial, por envolvimento em confrontos físicos com outro detido, o padrão comportamental do arguido tem sido consentâneo com as normas institucionais.
O arguido obteve acompanhamento médico-psicológico e terapêutica psico-farmacológica para o ajudar no processo de autorregulação emocional e comportamental.
O seu quotidiano actual é ocupado com a frequência de módulos escolares de 3º ciclo e com a execução de trabalhos para obter equivalência ao ensino secundário através de reconhecimento, validação e certificação de competências (RVCC), frequentando ainda reuniões semanais de grupo (católicas) onde trabalha gestão emocional e outras competências.
O arguido tem visitas regulares da mãe e da namorada, e ocasionais da mãe da namorada e de amigos.
A mãe e a namorada verbalizaram disponibilidade para lhe prestar apoio, tanto em meio institucional como em liberdade.
O seu projeto de vida passa por trabalhar e melhorar as suas qualificações escolares/profissionais.
A sua situação jurídico-penal está a ter um impacto profundo na sua vida, que estava orientada no sentido do trabalho e de iniciar vida conjunta com a namorada a breve trecho.
1.61. O arguido BB não sofreu quaisquer condenações por ilícito criminal.
1.62. BB é o único filho que os progenitores tiveram em comum, tendo o arguido um irmão uterino mais velho, QQ, e, uma irmã mais nova, do casamento do pai, agregado que vive na ... desde 2003.
O processo de desenvolvimento de BB decorreu junto da mãe e do irmão.
A dinâmica familiar foi negativamente condicionada pelo estilo de vida da progenitora que sofria de problemas de saúde, do foro mental, agravado por problemas de consumo de álcool, os quais davam origem a vários conflitos e desentendimentos, além da desorganização que tal situação despoletava.
A família residia em apartamento arrendado, de tipologia 3, situado em bairro associado a problemáticas sociais na cidade ....
A subsistência do agregado advinha de apoios económicos sociais, contribuindo o progenitor do arguido com pensão de alimentos de 600,00€, pagos trimestralmente.
BB viveu parte da sua vida de criança sem referência nem convívio com a figura paterna. Este relacionamento afetivo desenvolveu-se, no período de tempo em que BB viveu na ... com a família do progenitor, concretamente de Março de 2009 a Fevereiro de 2010.
Desde então, os laços afetivos com o pai foram sendo fortalecidos e extensivos à família paterna, situação que se mantem presentemente e de quem beneficia de apoio e retaguarda.
O seu percurso escolar decorreu, essencialmente, em escolas em ..., tendo concluído o curso profissional de Contabilidade, com equivalência ao 12º ano de escolaridade, não tendo prosseguido os estudos por falta de recursos económicos.
BB tinha 17 anos quando a progenitora saiu de casa para viver com um namorado, encontrando-se o seu irmão, à data, já autonomizado.
O arguido passou, nesta sequência, a viver sozinho no mesmo espaço habitacional.
A progenitora sofreu um acidente de viação grave, do qual esteve longo período em coma e integrada na rede dos cuidados continuados, tendo, entretanto, regressado a casa.
Mais tarde, e por falta de pagamento das rendas, o arguido foi despejado da habitação, seguindo-se um período de instabilidade, acabando por conseguir arrendar um quarto, onde se manteve até Março de 2019, verificando-se também um maior afastamento da progenitora.
BB trabalhou sazonalmente nos sectores da restauração e construção civil, com registos de incompatibilidades com colegas de trabalho. Em 2019, emigrou para ... para trabalhar na área da construção civil, sendo o país onde vivia o coarguido, AA.
BB situa por volta dos 18 anos, a sua iniciação no consumo de estupefacientes, de menor poder aditivo, dizendo que eram práticas em contexto de recreação, de forma individual e junto de pares que acompanhava na sua área de residência/bairro.
1.63. À data dos factos constantes no presente processo, o arguido partilhava com outros trabalhadores um apartamento da empresa de construção civil, em ..., onde trabalhou cerca de 3 anos e 3 meses.
A fim de tratar de assuntos relacionados com a sua documentação pessoal, o mesmo encontrava-se em ..., tendo aproveitado, para o efeito, uma oportunidade de uma viagem de carro conjunta com AA, com quem mantém uma ligação próxima, apesar de não se encontrarem ao tempo a viver na mesma região em ....
Neste país o arguido desenvolvia funções como chefe de equipa, auferindo um vencimento de cerca de 600,00€ por semana.
1.64. Após os factos que deram origem ao presente processo, BB regressou para o seu posto de trabalho em ... e manteve o seu quotidiano naquele país, onde permaneceu até à sua detenção.
1.65. O arguido deu entrada no estabelecimento prisional ..., sujeito à medida de coação de prisão preventiva à ordem do presente processo.
Beneficia de apoio familiar, nomeadamente do irmão e cunhada, que o visitam no estabelecimento prisional, retaguarda extensiva à sua família paterna.
Em meio prisional, o arguido tem evidenciado capacidade de adaptação, sem registos de incumprimentos das regras institucionais e com prática de desporto.
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2. FACTOS NÃO PROVADOS:
Não se provaram quaisquer outros factos, para além dos referidos em 1. supra, ou que os excedam ou contrariem, designadamente não se provou que:
DA ACUSAÇÃO:
2.1. Durante a refeição, no dia 4.01.2021, na Tasquinha do ..., o arguido BB tenha dito várias vezes que EE era um bufo, referindo-se às declarações que este tinha prestado no processo 173/17.....
2.2. Os arguidos AA e BB tivessem acordado entre si atingir EE com disparos de arma de fogo e tirar-lhe a vida, e tivessem agido em comunhão de esforços e vontades, em termos distintos do que consta da factualidade elencada em 1.8. a 1.16, 1.28 e 1.29, ou que contrarie ou exceda tal factualidade.
2.3. O arguido BB tenha direcionado disparos de arma de fogo à zona abdominal da vitima,
Do Pedido de Indemnização Civil formulado pelo assistente DD:
2.4. O assistente tenha despendido a quantia de 2 000,00 € com o funeral da vitima EE.
Da contestação oferecida pelo arguido AA (não se incluindo o que constituiu mera negação ou o exacto oposto dos factos constantes da acusação que se deram como provados, posto que ao juízo de demonstração de um facto invocado pela acusação está ínsito o juízo de não demonstração do seu inverso).
2.5. O arguido AA desconhecesse os hábitos da vitima.
2.6. A informação que o arguido AA tinha era no sentido de que o EE, bem como o seu grupo de amigos, se encontravam numa festa de música electrónica.
2.7. Tenha sido EE que se apercebeu que os arguidos se estavam a aproximar do café snack-bar “...”.
2.8. EE estivesse numa posição mais elevada e atrás de vários vasos com plantas.
2.9. O arguido AA apenas tenha visto EE um instante antes de o mesmo ter saltado bruscamente para o passeio à sua frente.
2.10. EE tenha feito um movimento com os braços, fazendo crer que iria retirar uma arma do bolso.
2.11. Fosse prática habitual de EE andar armado.
2.12. Tenha sido nessas circunstâncias que o arguido AA efectuou dois disparos contra EE.
2.13. A vítima EE fosse uma pessoa muito violenta e conflituosa, traços de personalidade conhecidos de toda a gente.
2.14. EE já tivesse sido julgado pela prática de um crime de ofensa à integridade física sobre, à data, sua namorada.
2.15. EE já tivesse agredido um conhecido do arguido AA, com recurso a uma faca, o qual, com receio de represálias, nunca apresentou queixa-crime por tais factos.
2.16. O arguido AA detivesse a arma de fogo na madrugada do dia 5 de Outubro de 2021 por motivo do clima de conflitualidade existente entre jovens do Bairro ... e jovens do Bairro ....
2.17. EE tenha dito a várias pessoas que se havia de vingar do arguido AA.
2.18. EE, antes dos disparos efectuados em sua direcção pelo arguido AA, tenha introduzido a mão no bolso.
2.19. O arguido AA tenha disparado em direcção a EE porque achou que este se preparava para se apoderar de uma arma e disparar.
Da Contestação oferecida pelo arguido BB: (não se incluindo o que constituiu mera negação ou o exacto oposto dos factos constantes da acusação, que se deram como provados, posto que ao juízo de demonstração de um facto invocado pela acusação está ínsito o juízo de não demonstração do seu inverso)
2.20. O arguido BB seja pessoa de personalidade amigável e sociável, avessa a conflitos e à tendência de iniciar desacatos.
2.21. O arguido BB após ter jantado tenha regressado ao restaurante “tasquinha do ...” para entregar certa quantia em dinheiro que havia recebido de empréstimo de um amigo do grupo.
2.22. EE não aceitou a opinião do arguido sobre alguns comentários que surgiam em desfavor da vitima, mormente que ele estaria a ser um bufo
2.23. O arguido BB se tenha encontrado com o arguido AA na madrugada do dia 5.10.2021 para ultimar a viagem de regresso a ....
2.24. EE se tenha apressadamente dirigido a ambos os arguidos.
2.25. O arguido BB tenha ficado assustado e surpreendido ao percepcionar dois disparos em direcção a EE e tenha reagido instintivamente com a fuga.
2.26. O arguido BB estivesse convencido que EE e demais amigos estariam numa festa onde indivíduos do Bairro ... também iriam estar.
2.27. Dias antes anteriores à data dos disparos que causaram a morte de EE, o arguido BB e aquele jantaram e partilharam mais uma vez um momento de confraternização.
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3. MOTIVAÇÃO da DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO
O tribunal baseou a sua convicção sobre a factualidade provada e não provada com base na análise critica, conjugada e ponderada do conjunto da prova produzida.
Por relevante, no caso em apreço, sublinha-se o seguinte:
Dispõe o art.º 127º do CP que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segunda as regras da experiência comum e livre convicção da entidade competente”.
Ressalvadas as limitações probatórias legalmente impostas, vale, pois, o principio da livre apreciação da prova.
Como é pacífico, o princípio da livre apreciação da prova não significa liberdade não motivada de valoração, constitui antes um modo não estritamente vinculado de valoração da prova e de descoberta da verdade processualmente relevante, isto é, uma conclusão subordinada à lógica e à razão e não limitada por prescrições formais exteriores (cfr. Cavaleiro de Ferreira, "Curso de Processo Penal", II,
A livre apreciação da prova pressupõe, pois, a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação da convicção, que emerge da intervenção de tais critérios objectivos e racionais.
A convicção sobre a realidade de certo facto existirá quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável, sendo certo que, como é sabido, não se procura uma verdade ontológica e absoluta, mas a verdade judicial e prática, na reconstituição possível: ou seja a verdade possível do passado, na base da avaliação e julgamento sobre factos, de acordo com procedimentos, princípios e regras estabelecidas.
Caso após a valoração e apreciação conjugada e crítica da prova produzida, o tribunal, ainda assim, não conseguir concluir se determinado facto ocorreu ou não, por se lhe apresentarem dúvidas que não logrou sanar, então terá que dar tal facto como não provado, como o impõe o principio in dubio por reo.
Ainda sobre o principio da presunção de inocência, e dos direito que dele derivam, nomeadamente o direito ao silencio e direito à não incriminação, tem-se presente que deles decorre que o arguido não pode ser obrigado nem condicionado a contribuir para a sua própria incriminação, assistindo-lhe o direito de não ceder ou fornecer informações que o desfavoreçam ou de não prestar declarações sem que do silêncio possam resultar consequências negativas ou ilacções desfavoráveis no plano da valoração probatória.
Coisa distinta é a de, optando os arguidos por prestarem declarações, se impor ao tribunal a valoração crítica de tais declarações, quer na sua coerência interna, quer no confronto com outros meios de prova.
Importa nesta sede explicitar as razões da decisão sobre a matéria de facto, cumprindo a imposição constitucional e o dever legal de fundamentação, através da indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção.
Indicam-se, de seguida, os elementos de prova que foram ponderados, explicitando-se, depois, as razões de convicção do tribunal relativamente a cada conjunto de factos.
*
3.1. Foi ponderada pelo tribunal a prova documental, pericial, e pessoal (declarações dos arguidos, dos assistentes e depoimentos testemunhais) a seguir referida:
3.1.1. Prova documental:
- Auto de noticia, de fls 204 a 205, e aditamento nº 1, elaborados, em 5.10.2021, pelo agente da PSP ..., UU, dando conta da deslocação à Rua ..., por noticia de crime, onde foi pelo mesmo constatado encontrar-se a vitima deitada no banco traseiro do veículo ..., com ferimentos no abdómen, a ser auxiliado por dois indivíduos, tendo sido vedado o acesso ao local de forma a serem preservados os vestígios do crime.
- Auto de diligências iniciais, de fls. 2 a 9 - na qual se dá conta da deslocação ao local (Rua ..., ...) de elementos da Policia Judiciária, entre os quais, o inspector VV, na sequência de noticia do crime, transmitida pela PSP, tendo sido realizada inspecção ao local dos factos, efectuada a respectiva reportagem fotográfica, e recolhidos os seguintes vestígios: um invólucro com os dizeres “GECO 6.35” no passeio, junto ao local onde se encontrava um veículo BMW (vestígio 1) e um segundo invólucro, com os dizeres “25 auto CBC”, que se encontrava junto ao eixo da via, junto à traseira do referido veículo (vestígio 2). Dá-se, ainda, conta da deslocação dos referido inspector e demais elementos da PJ ao Hospital ..., para onde a vitima DD havia sido transportada, tendo aí sido entregues a t-shirt da vitima, que foi apreendida.
- Comunicação da noticia do crime, de fls 10 e 10 verso;
- Relatório de exame e inspecção ao local, de fls. 21 a 31;
-Auto de diligência no Hospital de ..., de fls. 210 dos autos;
- Auto de apreensão, de fls. 32 dos autos, dos dois invólucros recolhidos no local e da t-shirt que a vitima trajava quando foi atingida, recolhida no Hospital;
- Reportagem fotográfica quanto à t-shirt apreendida, de fls. 33 a 37;
- Aditamento nº 3, de fls. 207, elaborado em 5.10.2021, pelas 19h25h, dando conta da apresentação do arguido AA no posto policial da PSP ..., comunicando ter sido o autor dos disparos com arma de fogo que atingiram EE.
- Auto de fls.66 e 67 e respectiva reportagem fotográfica, a fls. 68 a 73.
- Auto de diligência de fls. 86, nas margens do Rio Este, com vista à localização da arma, o que não foi logrado.
- Auto de diligência e respectiva reportagem fotográfica, de fls. 356 a 366, efectuado em 24.11.2021, com vista à localização da arma utilizada pelo arguido AA, nada tendo sido encontrado;
- Autos de apreensão, de fls. 214 e 230, de 2 projécteis de arma de fogo extraídos à vitima EE, um recolhido durante a intervenção cirúrgica a que foi submetido no Hospital de ... e outro recolhido no Gabinete Médico Legal aquando da autópsia.
- Relatório de exame fotográfico dos referidos projécteis, de fls. 233 a 235;
- Relatório de exame pericial, de fls 503 a 508 verso, efectuado pelo LPC aos invólucros deflagrados recolhidos no local (vestígios 1 e 2) e aos projécteis , que concluiu que os invólucros e os projécteis se constituem como elementos de calibre 6,35 mm Browing, tendo aquele sido disparados pela mesma arma.
- Informação do NAE da PSP de fls. 84, 85 e 457.
- certidão do Processo 173/17...., de fls. 161 a 163, cujo acórdão consta do CD junto a fls. 163, e certidão contendo as declarações prestadas por EE nesses autos perante Magistrado do MP, de fls. 293 a 296;
- Elementos Clínicos e exames relativos à vitima EE, a saber: nota de admissão no Hospital de ..., de fls. 211 e 221; relatório e fls. 212; informação clinica do Hospital de ..., de fls. 218 a 228 verso;
- Relatório de autópsia médico-legal, de fls. 397 a 402 verso, e relatório de anatomia patológica forense, de fls 403 a 403 verso;
- Certidão de óbito de EE, de fls. 299;
- Factura relativa aos cuidados de saúde prestados a EE, de fls. 558.
3.1.3. Prova Pessoal:
Para além das declarações dos arguidos prestadas em audiência, foram ponderados:
Os depoimentos das testemunhas:
KK, FF e NN, que se encontravam na Tasquinha do ... nas circunstâncias referidas em 1.1. a 1.4. da factualidade provada, e junto ao café snack-bar ..., nas circunstâncias referidas em 1.13. a 1.16.
Relativamente ás testemunhas KK e WW, foram ponderados quer os depoimentos prestados em audiência, quer as declarações prestadas perante Magistrado do Ministério Público, que, a requerimento do Ministério Público, foram lidas em audiência, nos termos do artº 356º, nº 3, als. a) e b), do CPP.
XX, que, segundo relatou, chegou à Rua ..., conduzindo veículo automóvel, logo após EE ter sido atingido pelos disparos;
LL, proprietário e condutor do veículo BMW que se encontrava estacionado em frente ao Café Snac-bar ... e que tinha acabado de se dirigir e ingressar no veículo quando ocorreram os disparos;
UU, agente da PSP que elaborou o auto de noticia de fls. 204 e 205 e aditamento de fls. 206;
YY, agente da PSP que elaborou o aditamento de fls. 207;
JJ, inspector da Policia Judiciária que interveio nas diligências efectuadas na fase de inquérito e orientou a investigação levada a cabo pela PJ-
Declarações da assistente CC, quanto à matéria do pedido de indemnização civil por si deduzido;
Depoimento da testemunha arrolada no pedido de indemnização civil deduzido pela referida assistente, ZZ, mãe da assistente e avó da vitima.
Depoimentos das testemunhas que foram arroladas pelo assistente DD e que foram inquiridas quanto à matéria do pedido de indemnização civil deduzido pelo referido assistente, AAA, BBB, CCC e DDD, as primeiras pessoas das relações de amizade do assistente e as duas últimas, respectivamente, companheira do assistente há 10 anos e filho do assistente e irmão da vitima.
Depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido AA: EEE, namorada do arguido, e HH, amigo do arguido.
Depoimentos das testemunhas arroladas pelo arguido BB: FFF, tia por afinidade do arguido, OO, tio do arguido, PP, tio do arguido, QQ, irmão do arguido.
3.2. Explicitando as razões da convicção do tribunal e exame crítico da prova produzida:
A factualidade provada elencada em 1.1. está comprovada pela certidão extraída do processo 173/17...., a fls. 161 a 163 dos autos. O teor das declarações nesse processo prestadas por EE, perante Magistrado do Ministério Público, constam da certidão de fls. 293 a 295.
A desavença existente entre o arguido AA e EE, por virtude das declarações por este prestadas no âmbito do referido processo 173/17...., resulta da apreciação conjugada das declarações dos arguidos e dos depoimentos das testemunhas KK, FF e XX.
A testemunha KK, referiu, a este propósito, que o Max (alcunha como é conhecido o arguido AA) alegava que o EE o tinha “chibado” e, por várias vezes, por esse motivo, manifestou raiva em relação ao EE.
A testemunha FF, de igual modo, referiu que o AA e o EE tinham uma desavença relacionada com um processo de tráfico de droga, que tiveram em conjunto, e que o Max acusava o EE de o ter “chibado”, desavença que também foi assinalada pela testemunha XX.
A este propósito as declarações prestadas pelo arguido AA são elucidativas do seu estado de espirito quanto à conduta do EE naquele processo. Tendo sido confrontado com as declarações prestadas por EE perante Magistrado do MP, constantes de fls. 294 e 296, confirmou tratar-se das declarações que motivaram a desavença entre ambos. Muito embora tenha dito que o assunto para si já estava arrumado, à data dos factos, posto que já anteriormente se tinha vingado de EE mostrando as declarações por este prestadas aos amigos de ambos do Bairro ..., referindo, a este propósito que “a maior vingança que se pode dar a um traficante é mostrar a toda a gente que afinal ele não passava de um chibo”, e que tais declarações se tinham tornado irrelevantes por terem ambos sido condenados em penas suspensas, a verdade é foi patente a indignação que revelou por, segundo disse e reafirmou, em razão daquelas declarações, “ter passado de testemunha a arguido”.
Por sua vez, o arguido BB, nas declarações prestadas em audiência, de igual modo referiu que eram todos amigos, como uma família, e que o AA deixou de falar com o EE, por causa de um processo que tiveram os dois.
Dos depoimentos destas testemunhas, nesta parte coincidentes com as declarações dos arguidos, decorre que os arguidos, o falecido EE a as referidas testemunhas pertenciam ao mesmo grupo de amigos, frequentadores, entre outros locais, do Bairro ..., em ..., e que a relação de amizade que existia entre o arguido AA e EE cessou em virtude das declarações por este prestadas no âmbito do processo 173/17...., e que desde então estavam desavindos, passando a evitar-se, pelo que onde estava um não estava o outro, como também referiram.
O depoimento de HH, amigo do arguido AA, não teve relevância probatória, limitando-se a referir que o arguido AA já tinha ultrapassado um litigio com um individuo de nome II, que tinha sido testemunha num processo em que aquele arguido esteve envolvido.
A factualidade constante de 1.3. a 1.6. resulta da apreciação conjugada dos depoimentos das testemunhas KK, FF e DD, todos eles presentes no jantar que decorreu na “Tasquinha do ...”, bem como, em parte, das declarações do arguido BB.
Denominador comum a todos esses depoimentos e declarações, a circunstância de se iniciado uma discussão entre o arguido BB e EE, que também aí se encontrava a jantar, que teve na sua origem a desavença existente entre o arguido AA e EE, acima referida, discussão que prosseguiu no exterior do restaurante, onde ambos se envolveram fisicamente, tendo o EE atingido no rosto o arguido BB, que ficou ferido e ensanguentado. Mais resulta que foram separados pelas demais jovens que ali se encontravam a conviver, entre os quais as testemunhas referidas.
A testemunha KK referiu, a este propósito, que levou o arguido BB até ao carro, aconselhando-o a ir embora, e que este arguido estava irritado e disse que ia buscar uma arma, o que o depoente comentou com os ali presentes sem, porém, atribuir foros de seriedade a tal afirmação. Este relato é corroborado pela testemunha FF, que referiu ter ouvido o arguido BB dizer algo na altura em que abandonava o local, sem conseguir perceber que palavras em concreto e, tendo indagado os restantes sobre o que tinha sido dito, alguém lhe referiu que o arguido tinha falado qualquer coisa relacionado com arma.
Assinale-se, ainda, que ambas as testemunhas FF e KK mencionaram que lhes tinha sido referido pelos arguidos, em data anterior à dos factos, que haviam comprado uma arma a meias.
Resulta comum ao relato efectuado pelas testemunhas KK, FF, DD que todos eles e, ainda, GGG e EE, nas circunstâncias 1.13. a 1.16. da factualidade provada, estavam, em grupo, a conviver, junto à fachada do Café Snack Bar ..., que já se encontrava fechado.
As características do local, descritas pelas ditas testemunhas e pelos arguidos, são evidenciadas pelas fotografias que instruem o exame efectuado no local pela Policia Judiciária (exame de fls. 21 a 31).
Como se vê dessas imagens, e foi relatado pelas referidas testemunhas e pelos arguidos, o referido café dispõe, junto à fachada, de uma plataforma mais elevada em relação ao passeio, onde funciona uma esplanada, na altura já recolhida.
É também incontroverso, face aos depoimentos das testemunhas referidas, e às declarações dos próprios arguidos, que os arguidos AA e BB subiram a pé a Rua ... e que, ao chegarem junto ao Café Snack-Bar ..., o arguido AA disparou dois tiros com uma arma de fogo, atingindo EE na zona abdominal, o que é confirmado pelos vestígios hemáticos e as duas perfurações existentes na T shirt envergada pela vitima que foi apreendida - cf. auto de apreensão de fls. 32 e fotos de fls. 33 a 36 - e, ainda, pela circunstância de terem sido recolhidos dois invólucros no local, que foram apreendidos - cf. auto de apreensão de fls. 32 - e de terem sido extraídos dois projécteis à vitima EE - um aquando da sua submissão a intervenção cirúrgica no Hospital de ... e outro recolhido aquando da realização da autópsia - cf. auto de apreensão de fls. 214 e 230.
A natureza e características dos invólucros e projécteis referidos e a circunstância de aqueles terem sido disparados por uma mesma arma 6,35mm, resulta do exame pericial de criminalista, cujo relatório consta de fls. 503 a 508 verso.
Que os tiros foram disparados pelo arguido AA quando se encontrava a cerca de dois metros de EE, conforme o referido arguido admitiu, resulta também dos depoimentos das referidas testemunhas KK, FF e DD, conjugado com os vestígios constatados no local, e com o depoimento de LL, proprietário e condutor do veículo BMW cinzento, de matrícula ..-AH-.., veículo que, na altura dos disparos, se encontrava estacionado junto ao Café ..., na posição retratada nas fotos que instruem o exame ao local efectuado pela Policia Judiciária, encontrando-se a traseira do veículo em frente à plataforma e passeio adjacente àquele Café - cf., em particular, fotos nº 4, a fls. 23, fotos nº 6 e 7, a fls. 24.
De assinalar que, como confirmado pela testemunha referida, o veículo ficou na mesma posição até à chegada da autoridade policial e até à conclusão do exame ao local efectuado pela Policia judiciária.
O depoimento desta testemunha LL que não conhecia nem a vitima, nem os arguidos, nem qualquer das testemunhas acima referidas, assume especial relevância.
Assim, LL relatou que tinha estacionado o veículo BMW, em frente ao Café Snack - Bar ..., para se deslocar a casa da sua companheira, residente nas proximidades. Quando regressou ao veículo e se introduziu no mesmo, viu um grupo de rapazes a conviver junto à fachada do Café, uns no passeio e outros no patamar. Apercebeu-se de dois indivíduos a subir a rua, deduzindo que se dirigiam ao encontro daquele grupo. Não viu nada na mão de qualquer dos indivíduos. Ouviu, então, dois disparos, sendo que, nessa altura, os dois indivíduos se encontravam no passeio ao lado do seu veículo. A pessoa atingida pelos disparos tombou contra a parte lateral traseira do dito veículo e ficou aí prostrada no chão. Não se apercebeu se a pessoa que foi atingida estava no passeio ou estava no patamar. De seguida, os dois indivíduos desceram a rua a fugir, em sentido inverso ao que anteriormente tinham percorrido. Ligou de imediato para o 112, pedindo ambulância e a presença da autoridade policial. Relatou que, de seguida, os jovens que ali se encontravam colocaram a vitima na parte de trás de uma viatura de côr escura, tendo-lhes transmitido as indicações dadas pelo INEM no sentido de não transportaram o corpo e aguardarem a chegada da ambulância. Descreveu ainda o estado desespero da vitima, que, ao ser atingido, gritou “vou morrer”, e que se queixava de dores. Cerca de 10 minutos após os tiros, chegou a sua namorada, socorrista, a quem tinha entretanto ligado, estando, nessa altura, a vitima já inconsciente, conseguindo aquela reanimá-lo, mas voltou a perder os sentidos.
Destacou a referida testemunha o curto período de tempo que mediou entre o momento em que se apercebe os dois indivíduos a subir a rua e o momento em que ouviu os tiros, tendo havido uma breve troca de palavras, que não soube precisar, referindo que tudo de passou de forma muito rápida.
Os depoimentos prestados pelas testemunhas KK, FF e DD, são consentâneos entre si e com o depoimento da testemunha LL. Referiram, como se disse, encontrarem-se a conviver junto ao Café .... uns na plataforma e outros no passeio, referindo os do KK e FF que EE se encontrava no passeio. ... que o arguido AA e o arguido BB, subindo a Rua ..., se aproximaram do grupo, e, sem que nada o fizesse prever, o arguido AA levantou o braço e disparou dois tiros em direcção a EE, que tombou, caindo no chão encostado à traseira do veículo automóvel BMW que ali estava estacionado, e gritou “vou morrer, vou morrer”. De seguida, os dois arguidos fugiram ambos na direcção inversa à que tinham percorrido. Mais referiram as mesmas testemunhas e, ainda, a testemunha XX que, tendo este, na ocasião, passado no local, conduzindo um veículo, parou, e, de seguida, colocaram o EE na parte de trás do veículo, com a intenção de o levar ao Hospital, o que acabaram por não fazer, por entretanto terem sido alertados por LL das instruções dadas pelo INEM.
Esta parte do relato é, ainda, corroborado pelo teor do auto de noticia de fls. 204 e 205 e pelo depoimento da testemunha UU, agente da PSP, que o elaborou e cujo conteúdo confirmou.
Foi também relevante, como já decorre do atrás referido, o teor do exame ao local efectuado pela Policia Judiciária, e os esclarecimentos prestados quanto ao mesmo pelo inspector JJ, que interveio nesse exame, designadamente quanto aos vestígios então recolhidos, características do local, e posição do veículo BMW que ali se encontrava estacionado.
A mesma testemunha JJ relatou as demais diligências em que interveio, confirmando os respectivos autos e o seu teor.
Da conjugação de todos os elementos probatórios que se deixaram referidos resultou, sem margem para dúvida, a convicção quanto à dinâmica do acontecido que resulta da factualidade elencada em 1.13. a 1.16.
Assinale-se que a reconstituição do facto, com a participação e segundo as indicações do arguido AA, cujo auto consta de fls. 66 e 67, não espelha com fidelidade a realidade que se apurou.
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O arguido AA nas declarações iniciais que prestou admitiu ter disparado dois tiros em direcção a EE, a cerca de 2 metros, com uma arma de fogo 6,35mm, causando-lhe a morte.
Referiu que agiu do modo descrito em virtude de EE, que se encontrava junto de outros amigos em frente ao Café ..., ter dado um salto na sua direcção, já existindo problemas entre ambos, por virtude dos quais já tinha sido ameaçado, tendo sentido medo. Quando disparou, o EE gritou “Mataste-me”, motivo pelo qual entrou em pânico e fugiu a correr. Em momento mais adiantado das suas declarações, referiu que EE dá um passo grande na sua direcção, com a perna esquerda, ao mesmo tempo que dá um toque no corpo (na zona da anca) com a mão direita, o que o fez pensar que teria uma arma - embora não tivesse visto arma nenhuma - e por isso disparou.
A instâncias do seu Exmo Mandatário, e confrontado com as fotos juntas com a reconstituição do facto referiu que quando viu o grupo em frente ao Café ... não reconheceu ninguém, por ser de noite, por as pessoas serem de raça negra e por virtude das plantas que ali se encontravam, e que EE estava na plataforma, de frente para as plantas, e, ao vê-los, saltou da plataforma. Mais referiu que quando efectuou os disparos EE está mais ou menos em frente ao cabeleireiro ali localizado e visível nas fotos, querendo simplesmente ao disparar que ele (EE) se afastasse, que não viesse para cima de si. Na última sessão de julgamento, reafirmou que EE veio a correr na sua direcção, cerca de 10 metros, e, ao ser atingido pelos disparos, caiu em frente ao cabeleireiro/barbearia.
A dinâmica do sucedido descrita pelo arguido AA é, em si mesma, contraditória e implausível, desde logo face à desconformidade da sua actuação - disparando dois tiros em direcção ao abdómen da vitima, a curta distância desta - perante o motivo que diz ter presidido à sua actuação (afastar a vitima). Tal motivo não é compatível, nem com o número de disparos efectuados, nem com a zona do corpo para a qual direcionou os tiros.
Tal versão é, por outro lado, infirmada pelos depoimentos das testemunhas presenciais do sucedido, não só das testemunhas KK, FF e DD (amigos comuns aos arguidos e à vitima), mas também da testemunha LL, pessoa alheia a qualquer um deles, que não conhecia nenhum dos envolvidos e só por mero acaso presenciou o sucedido, resultando do relato deste último, como acima se referiu, que, na altura dos disparos, os dois indivíduos que visualizou a subir a rua, encontravam-se ao lado do seu veículo.
Acresce que, conforme decorre desses depoimentos, e em particular, do depoimento da testemunha LL, a vitima EE, ao ser atingida, tombou de encontro à parte traseira do veículo BMW, o que também é incompatível com a versão do arguido AA. Também incompatível com a versão do mesmo arguido a localização dos invólucros, assinalada no exame efectuado ao local pela Policia Judiciária.
A descrição efectuada pelo arguido AA não mereceu, assim, credibilidade, não encontrando suporte na demais prova produzida, antes sendo por esta infirmado.
Negou ainda o arguido AA ter agido para se vingar do sucedido com o arguido BB ou para se vingar do EE por ele “ter sido chibo”, afirmando porque “a verdade é o que ele era, mas já me tinha vingado”.
Referiu que se encontrava em casa, com a sua mãe e namorada, sendo que tinha combinado com o arguido BB viajar, na manhã seguinte, para ..., país onde ambos estavam a trabalhar. Por volta da 1 hora da madrugada, recebeu uma mensagem do arguido BB que lhe transmitiu que precisava de falar com ele, com urgência. Nessa sequência, foi ter com o BB, perto da cada dele, no .... Antes de sair de casa pegou no casaco que tinha à mão no cabide e só quando se encontrava exterior é que deu conta que tinha no bolso do casaco a arma de fogo 6,35mm, que havia adquirido cerca de 6 meses antes, e que tinha colocado no bolso do casaco para no dia seguinte a guardar na garagem. Depois de se encontrar com o BB é que este lhe contou o que se tinha passado na Tasquinha do .... Falaram desse assunto e da viagem para ... que estava programada para o dia seguinte, e foram ambos dar uma volta pelo ... para ver se encontravam amigos e, por acaso, depararam com o grupo em frente ao Café ....
Por seu turno, o arguido BB nas declarações que prestou, finda a produção de prova testemunhal, relatou que, após o sucedido na Tasquinha do ..., trocou mensagens com o FF, seu amigo mais chegado de entre aqueles que estavam no jantar, sobre o aí acontecido, assim como trocou mensagens com o arguido AA (Max) sobre a viagem para ..., “e se calhar também de ter sido agredido”, mas sem ter a certeza, por não se lembrar bem. Estava a dirigir-se para casa onde mora o seu irmão, e onde pernoita quando vem a Portugal, e deparou com o AA ali perto, sendo que nada tinha combinado com este. De seguida, foram ambos conversar para o C... e após resolveram dar uma volta no ... para encontrar amigos, enquanto falavam sobre a viagem para ... e também do que se tinha passado antes na tasquinha do ..., embora menos. Ao chegarem ao Café ..., viram o pessoal (FF, DD, EE e outros), e saltaram todos, vindo o EE em direcção ao AA e este em direcção àquele. Mais referiu que viu o AA a esticar o braço em direcção ao EE, a cerca de dois metros, ouviu dois disparos, entrou em pânico e começou a fugir do local, não chegando a ver EE a cair, só tendo sabido do que lhe tinha acontecido na manhã seguinte.
As descritas versões apresentadas pelos arguidos são destituídas de credibilidade, contraditórias entre si e desconformes com a visão global que os demais elementos probatórios oferecem.
Com efeito, não merece credibilidade a explicação fornecida pelo arguido AA para se fazer acompanhar de uma arma de fogo quando sai de casa para se encontrar com o arguido BB, nem faz qualquer sentido que o mesmo arguido, na véspera de viajar para ..., encontrando-se a sua namorada em sua casa, conforme referiu e por esta foi também relatado, resolva deambular no ..., de madrugada, a conversar com o arguido BB com quem viajaria no dia seguinte e à procura de encontrar amigos para conviver.
Nem é plausível que o arguido BB não tenha relatado ao arguido AA, nas mensagens com este trocadas, o que havia sucedido no jantar e a agressão de que foi vitima, por virtude da desavença entre aquele e EE, tanto mais que, simultaneamente, trocava, como o mesmo referiu, mensagens com FF sobre o ali sucedido, o que, aliás, este confirmou.
Assim como não é plausível que o arguido BB não soubesse que o arguido AA tinha consigo a arma de fogo e se não estivesse ciente do propósito deste, atento que encetou a fuga do local, juntamente com o coarguido, sem cuidar sequer de se inteirar do acontecido com a vitima, de quem disse ser amigo, ou de chamar as autoridades.
Como também resultou provado, a arma de fogo de que o arguido AA se muniu quando saiu de sua casa para se encontrar com o arguido BB e depois de ter sido por este contactado, já se encontrava municiada e pronta a disparar.
Por seu turno, o arguido BB, após o episódio ocorrido com EE na Tasquinha do ..., e a agressão de que foi vitima, disse que “ia buscar uma arma”.
Após este episódio, o mesmo arguido contacta o arguido AA, que, então, sai de casa com a arma de fogo pronta a disparar, e juntos dirigem-se em direcção ao Café Snack -Bar ..., onde se encontra o grupo de amigos que também tinham estado no jantar, entre os quais o EE, o que o arguido BB estava em condições de saber, designadamente pelo contacto que foi mantendo com FF. Ao chegarem junto ao Café ..., o arguido AA de forma repentina estica o braço e, com a arma de fogo já municiada, dispara dois tiros em direcção EE, atingindo-o no abdómen, após o que ambos os arguidos se colocam em fuga na mesma direcção.
A visão global que estes factos proporcionam, a conexão temporal e causal que entre eles intercede, apreciados à luz das regras da experiencia comum e do normal acontecer, ancorada nos elementos probatórios recolhidos e que atrás se deixaram referidos, conduziram a convicção positiva, fora de dúvida razoável, que o arguido AA saiu de sua casa com o propósito de atingir EE com disparos da arma de fogo, de que se muniu, depois de ter sido chamado e posto ao corrente do sucedido nesse dia ao jantar pelo arguido BB - o que reavivou a desavença que com aquele mantinha, em razão das declarações prestadas no processo - motivo pelo qual se encontraram ambos, àquela hora da madrugada, no ..., dispondo-se o arguido BB a auxiliar o arguido AA a encontrar EE, e a acompanhá-lo, prestando-lhe deste modo auxílio, ciente do propósito daquele de tirar a vida a EE.
Em suma, foram todos os enunciados elementos probatórios inseridos num todo, globalmente apreciados, e interrelacionados entre si, conjugando o que passou antes, durante e após os disparos que alicerçaram a convicção positiva do tribunal.
A intenção de o arguido AA tirar a vida a EE decorre manifestamente da actuação objectiva do arguido no circunstancialismo que ficou apurado, nomeadamente a zona do corpo da vitima visada e a distância a que foram efectuados os disparos com ama de fogo.
De igual modo, o dolo e intenção com que o arguido BB agiu resulta dos elementos probatórios acima referidos e da materialidade objectiva da sua conduta e do significado que a mesma assume à luz das regras da experiência e do normal acontecer.
As lesões sofridas pela vitima EE, em consequência dos disparos, e a circunstância de terem constituído a causa da sua morte, ocorrida em 8.10.2021, são comprovadas pelos elementos clínicos que acima se deixaram referidos e pelo relatório de autopsia médico-legal.
Os factos relativos ao pedido de indemnização civil deduzido pela assistente CC resultam da certidão de óbito fls. 299 e das declarações da assistente e da testemunha ZZ, mãe da assistente a avó da vitima.
Os factos relativos ao pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente DD, resultam dos depoimentos das testemunhas AAA, BBB, CCC e DDD, os primeiros pessoas das relações de amizade do assistente e dois últimos, respectivamente, companheira do assistente há 10 anos e filho do assistente e irmão da vitima, que demonstraram conhecimendo directo sobre a factualidade em causa.
Os factos relativos ao pedido de indemnização deduzido pelo Hospital resultam da factura junta com o referido pedido, conjugada com os elementos clínicos relativos à assistência prestada naquela unidade hospitalar a EE.
O facto referido em 1.56 resulta do aditamento nº 3, de fls. 207, conjugado com o depoimento do agente da PSP YY e das declarações dos próprios arguidos.
Quanto à factualidade relativa ao percurso de vida e situação pessoal do arguido AA, foi relevante o depoimento de EEE, namorada do arguido, bem como o teor do relatório social elaborado pela DGRSP, cujo teor o arguido confirmou.
A factualidade relativa ao percurso de vida e situação pessoal do arguido BB resulta dos depoimentos das testemunhas FFF, OO, PP, e QQ, e do teor do relatório social, cujo teor o arguido confirmou.
Os factos relativos aos processos 173/17.... e 387/18.... resultam, respectivamente, da certidão de fls. 161 a 163 e de fls. 293 a 296 e da certidão junta pelo arguido AA com o requerimento de 17.10.2022.
Quanto à condenação sofrida pelo arguido AA e ausência de condenações do arguido BB foram relevantes os respectivos certificados de registo criminal.
A factualidade não provada deve-se, em parte, a ausência ou insuficiência de prova, e, noutra parte, ficou infirmada pela prova produzida, conforme resulta do que acima se expôs
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
1.Enquadramento Jurídico:
Aos arguidos AA e BB é imputado na acusação pública a prática, em co-autoria, na forma consumada, e em concurso efectivo, de:
- um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), ambos do Código Penal, agravado pelo uso de arma, nos termos do art.º 86.º, n.º 3 e 4 do Regime Jurídico das Armas e Munições;
- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) e e) do Regime Jurídico das Armas e Munições.
Proceder-se-á, de seguida, à análise, ainda que sucinta, dos elementos que preenchem cada um dos tipos de ilícito e ao enquadramento das condutas dos arguidos que ficaram apuradas.
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1.1. Crime de Homicídio
Dispõe o art.º 131º do Código Penal, que "Quem matar outra pessoa é punido com pena de pisão de 8 a 16 anos".
O tipo legal fundamental matricial do crime de homicídio está aqui consagrado, protegendo-se o bem jurídico vida. O tipo objectivo consiste em matar outra pessoa. No plano subjectivo, trata-se de um crime doloso, abrangendo o dolo em qualquer das suas modalidades.
O artº 132º do Cód. Penal prevê uma forma agravada do homicídio, recorrendo para o efeito a um critério generalizador e descrito com recurso a conceitos indeterminados, determinante de um tipo de culpa agravado, com a técnica dos exemplos – padrão.
Aí se prescreve: “Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido com pena de prisão de 12 a 25 anos.” (nº 1).
“É susceptível de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior,
entre outras, a circunstância de o agente: “(…) e) ser determinado (…) por qualquer motivo torpe ou fútil; (…)
De acordo com o ensinamento da generalidade da doutrina, reiteradamente seguido jurisprudência dos nossos tribunais superiores, a partir do tipo de homicídio do art.º 131º do C. Penal, o art.º 132º do mesmo diploma legal prevê e pune um homicídio qualificado que resulta de a morte ter sido produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade (tipo de culpa, constituído por uma cláusula geral, contida no nº 1), fornecendo o legislador um enunciado, meramente exemplificativo, de circunstâncias susceptíveis de revelarem especial censurabilidade ou perversidade (nº 2)
O método de qualificação combina um critério generalizador, determinante de um especial tipo de culpa, com a técnica dos exemplos-padrão. A qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral, descrito com conceitos indeterminados (n.º 1), cuja verificação é indiciada por circunstâncias, umas relativas ao facto, outras ao autor, elencadas no n.º 2, a título exemplificativo, os renomados exemplos-padrão. São estes que dão estrutura, delimitando-os também, àqueles conceitos abertos de especial censurabilidade ou perversidade, embora de modo não automático.
Por conseguinte, as circunstâncias enunciadas no citado normativo não são taxativas e não operam automaticamente.
A verificação das circunstâncias enunciadas no nº 2 do art.º 132º – ou situação valorativamente análoga - constituiu um indício da existência da especial censurabilidade ou perversidade que fundamenta a moldura penal agravada, impondo-se, sempre, contudo, para o preenchimento do tipo de ilícito homicídio qualificado, a conclusão pela verificação, no caso concreto, da cláusula geral prevista no n.º 1 do referido art.º 132.º, n.º 1, do C.P. , ou seja, pela “especial censurabilidade ou perversidade” (cf. Teresa Serra, in Homicídio Qualificado, Livraria Almedina, 1995, pág. 66).
A “especial censurabilidade” integra aquelas condutas em que “o especial juízo de culpa se fundamenta na refração, ao nível da atitude do agente, de formas de realização do facto especialmente desvaliosas”, e a “especial perversidade”, integra aquelas em que “o especial juízo de culpa se fundamenta diretamente na documentação no facto de qualidades da personalidade do agente especialmente desvaliosas” (cf. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal¸ Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 29).
Por relevante, tendo em conta as circunstâncias que, atento a factualidade provada, o caso concreto convoca, importa ainda referir sucintamente o seguinte:
Motivo torpe ou fútil» é «o motivo da actuação que, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito (…) de tal modo que o facto surge como produto de um profundo desprezo pelo valor da vida humana» (in Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense ao Código Penal¸ Tomo I, Coimbra Editora, 1999, págs. 32-33).
Como se assinala no Ac. do STJ, de 17.01.2007, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro (disponível, como os demais citados sem distinta indicação, em www.dgsi.pt.):
«Na doutrina, tem sido atribuído ao motivo fútil o alcance de uma razão incompreensível para a generalidade das pessoas, que não pode razoavelmente explicar (e muito menos justificar) o crime, revelando o facto, inteiramente desproporcionado, repudiado pelo homem médio, profunda insensibilidade e inconsideração pela vida humana. A nossa jurisprudência, a tal respeito, não se dissocia desse entendimento, identificando o motivo fútil não tanto pelo seu pouco relevo ou importância, mas sim pela «desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal em que ela se objectivou: no fundo o que prefigure a especial censurabilidade que decorre da futilidade»
No mesmo sentido, o Ac. STJ de 27.06.2012, de que foi relator Conselheiro Santos Cabral, de cujo sumário se transcreve o seguinte trecho:
“O homicídio pode ter na sua origem uma situação que face à experiência comum poderia conduzir àquele desenlace. Porém, casos existem em que o homicídio surge numa situação em que de todo não era expectável, em que são mínimos os motivos que lhe estão em causa. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que uma culpa do agente acentuada por um alto grau de censurabilidade leva a tirar a vida a alguém por razões fúteis”.
Ao nível do tipo subjectivo, importa apurar se a situação, correspondente a um exemplo-padrão ou a uma situação substancialmente análoga, foi representada pelo agente e, se assim foi, se a mesma é susceptível de revelar uma situação de especial censurabilidade ou perversidade do agente.
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O crime de homicídio é agravado pelo uso de arma, nos termos do disposto no artº 86º, nº 3 e 4, do RJAM, do seguinte teor:
(…) 3 - As penas aplicáveis a crimes cometidos com arma são agravadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo, excepto se o porte ou uso de arma for elemento do respectivo tipo de crime ou a lei já previr agravação mais elevada para o crime, em função do uso ou porte de arma.
4 - Para os efeitos previstos no número anterior, considera-se que o crime é cometido com arma quando qualquer comparticipante traga, no momento do crime, arma aparente ou oculta prevista nas alíneas a) a d) do n.º 1, mesmo que se encontre autorizado ou dentro das condições legais ou prescrições da autoridade competente».
Trata-se de uma circunstância qualificativa genérica, com aplicação, indistintamente, a qualquer crime, mas de carácter subsidiário, i.e., com a ressalva de aplicação aos regimes legais estabelecidos para determinados tipos penais que integrem já o uso e porte de arma na descrição típica do crime base, ou de tipos qualificados.
Deste regime resulta que, ao contrário, do preenchimento da previsão contida no artigo 132.º, nº 2, al h), do C Penal - que só opera se o uso da arma ocorrer em circunstâncias reveladoras de especial maior grau de culpa - há sempre lugar à agravação, resultante da aplicação do citado nº 3 do artigo 86.º do RJAM - que, por encontrar o seu fundamento num maior grau de ilicitude, se basta com o simples uso da arma na prática do crime - se o crime for cometido com arma.
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1.2. Crime de Detenção de Arma Proibida:
Estipula o artigo 86.º, n.º 1, c) e e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, que comete tal crime “Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trouxer consigo:
(…)
al c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objecto, ou arma de fogo transformada ou modificada, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias. al d) Arma da classe E, arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, estrela de lançar, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão eléctrico, armas eléctricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, silenciador, partes essenciais da arma de fogo, artigos de pirotecnia, excepto os fogos-de-artifício de categoria 1, bem como munições de armas de fogo independentemente do tipo de projéctil utilizado, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias.
e) Silenciador, moderador de som não homologado ou com redução de som acima dos 50 dB, freio de boca ou muzzle brake, componentes essenciais da arma de fogo, carregador apto a ser acoplado a armas de fogo semiautomáticas ou armas de fogo de repetição, de percussão central, cuja capacidade seja superior a 20 munições no caso das armas curtas ou superior a 10 munições, no caso de armas de fogo longas, bem como munições de armas de fogo não constantes na alínea anterior, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias”
O ilícito em apreço configura um crime de perigo abstracto, bastando para a consumação do crime a adopção de uma das condutas típicas, consideradas perigosas, independentemente da lesão do bem jurídico protegido.
O legislador entendeu que estas condutas são de tal modo potencialmente perigosas que antecipa a tutela penal não exigindo a lesão de um bem jurídico para a consumação do crime.
O que se pretende com a incriminação em causa, é assegurar o controlo do Estado sobre a existência de armas em poder de particulares, obviando, assim, à disseminação destas pela sociedade, de forma indiscriminada e incontrolável, assim se prevenindo a lesão de bens jurídicos que podem ser postos em causa com esse tipo de comportamento.
É um crime de realização permanente e de perigo abstracto, em que o que está em causa é a própria perigosidade das armas, visando-se, com a incriminação da sua detenção, tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança e tranquilidades públicas face aos riscos da livre circulação e detenção de armas são elementos objectivos constitutivos do crime de detenção de arma proibida a prática de uma das condutas típicas. Quanto ao elemento subjectivo exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades.
Adopta-se, quanto ao concurso de crimes, o entendimento seguido maioritariamente pelos nossos tribunais superiores (a titulo exemplificativa, cf. Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12.11.2019, da Relação de Coimbra de 22.01.2014, da Relação de Évora de 30..10.2012, da Relação do Porto de 12.05.2010), segundo o qual o detentor de várias armas e/ou munições, havendo unidade de resolução criminosa, identidade do bem jurídico protegido e ocorrendo os factos incriminadores no mesmo contexto espácio - temporal, deverá ser punido apenas por um crime, sendo punível de acordo com a disposição legal mais grave, funcionando as «outras» armas/munições como meras agravantes na determinação da medida concreta da pena, por verificação de uma situação de concurso aparente.
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1.3. Comparticipação:
Segundo o art.º 26.º do C.P., “é punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.
Por seu turno, segundo o art.º 27.º, n.º 1, do C.P., “é punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso”.
Assim, o C.P., nos seus artigos 26.º e 27.º, define as diversas formas de autoria no primeiro daqueles preceitos legais e autonomiza a cumplicidade no segundo.
A teoria do domínio do facto é o eixo fundamental de interpretação da teoria da comparticipação., conforme tem sido consistentemente reconhecido pela doutrina e jurisprudência.
Assumindo-se que a teoria do domínio do facto continua a ser a que melhor se harmoniza com os critérios conformadores da autoria nos crimes dolosos de acção, parte-se de um conceito de autor correspondente a quem domina o facto, dele dependendo o se e o como da realização típica
Autor é, segundo esta concepção, quem toma a execução nas suas próprias mãos de tal modo que dele depende decisivamente o se e o como da realização típica.
Esse domínio pode exercer-se de diferentes formas e fundar, por conseguinte, diferentes modalidades de autoria, concretizadas no art.º 26.º do C.P.: o domínio da ação está presente na autoria imediata, na medida em que o agente realiza ele próprio a ação típica; o domínio da vontade do executante de quem o agente se serve para a realização típica firma a autoria mediata; o domínio funcional do facto constitui o sinal próprio da coautoria, em que o agente decide e executa o facto em conjunto com outro ou outros; e, finalmente, o domínio da decisão que constitui o sinal típico da instigação, já que tendo produzido ou criado no executor a decisão de atentar contra um certo bem jurídico-penal através da comissão de um concreto ilícito típico, não obstante este o executar livremente, ainda aparece como obra daquele.
Para o que no caso releva, importa distinguir a coautoria da cumplicidade.
Nas palavas de Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Questões Fundamentais, A Doutrina Geral do Crime, Gestlegal 3ª edição, 2019, pág. 923 e 924: o que na coautoria existe de característico “é a existência, por um lado, de uma decisão conjunta; por outro lado, de uma determinada medida de significado funcional da contribuição do coautor para a realização típica; muito exatamente realçada pela nossa lei ao impor que o coautor tome parte direta na execução. Deste modo, a atuação de cada coautor, no papel que lhe é destinado, apresenta-se como momento essencial da execução do plano comum, ou, noutras palavras, constituiu a realização da tarefa que lhe cabe na divisão de trabalho que representa mesmo a essência dessa forma de autoria.
A coautoria consiste, assim, numa “divisão de trabalho” que torna possível o facto ou que facilita o risco. Requer, no aspecto subjectivo, que os intervenientes se vinculem entre si mediante uma resolução comum sobre o facto, assumindo cada qual, dentro do plano conjunto (expresso ou tácito, prévio ou não à execução do facto), uma tarefa parcial, mas essencial, que o apresenta como cotitular da responsabilidade pela execução de todo o processo. A resolução comum de realizar o facto é o elo que une num todo as diferentes partes. No aspecto objectivo, a contribuição de cada coautor deve alcançar uma determinada importância funcional, de modo que a cooperação de cada qual no papel que lhe correspondeu constitui uma peça essencial na realização do plano conjunto (domínio funcional), não sendo, porém, indispensável que cada um dos intervenientes participe em todos os actos para obtenção do resultado pretendido, bastando que a actuação de cada um seja um elemento componente do todo indispensável à sua produção - cf. Ac. do STJ de 18.10.2006
A cumplicidade diferencia-se da coautoria pela ausência de domínio do facto que esta traduz.
O cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através de auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se a prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.
Na síntese contida no AC do STJ de 05-06-2012:
“I - A jurisprudência define a co-autoria como envolvendo um acordo prévio com vista à realização do facto, acordo esse que pode ser expresso ou implícito, a inferir razoavelmente dos factos materiais comprovados, ao qual se pode aderir inicial ou sucessivamente, não sendo imprescindível que o co-autor tome parte na execução de todos os actos, mas que aqueles em que participa sejam essenciais à produção do resultado.
II - No plano objectivo, o co-autor torna-se senhor do facto, que domina globalmente, tanto pela positiva, assumindo um poder de direcção, preponderante na execução conjunta do facto, como pela negativa, podendo impedi-lo, sem que se torne necessária, para a comparticipação estabelecida, a prática de todos os actos que integram o iter criminis.
III - No plano subjectivo, é imprescindível, à comparticipação como co-autor, que subsista a consciência da cooperação na acção comum.
IV - Já a cumplicidade pressupõe a existência de um facto praticado dolosamente por outro, estando subordinada ao princípio da acessoriedade. O cúmplice não toma parte no domínio funcional dos actos constitutivos do crime, isto é, tem conhecimento de que favorece a prática de um crime, mas não toma parte nela, limitando-se a facilitar o facto principal”.
O fundamento da punição da cumplicidade “reside (…) no contributo que o comportamento do cúmplice oferece para a realização pelo autor de um facto ilícito típico” - cf. Figueiredo Dias, op. cit. pag. 963.
Trata-se, por outro lado, de um auxílio doloso e um facto doloso: o dolo do cúmplice tem de referir-se à prestação de auxílio, por um lado, e, por outro, à própria acção dolosa do autor.
A cumplicidade tanto por consistir em prestar auxílio material ou moral.
Como é geralmente reconhecido, a prática do facto do autor não tem de ficar na dependência do contributo do cúmplice: basta que este favoreça aquela, sendo aqui de recorrer a um critério paralelo ao da potenciação do risco, bastando que o acto do cúmplice aumente as hipóteses de realização típica por parte do autor - cf. Figueiredo Dias, op. cit., pág. 973.
Por último, por relevante para o caso em apreciação, refira-se que a culpa e os elementos para ela relevante são incomunicáveis entre os comparticipantes, conforme decorre do disposto no art.º 29º do Código Penal.
O artigo 132º do Cód. Penal contempla um tipo de culpa agravada por força da cláusula geral da censurabilidade ou perversidade, concretizada de acordo com um elenco de circunstâncias não automáticas e não taxativas.
As situações dos exemplos - padrão referidos no n.º 2 do artigo 132 do Código Penal são relevantes por via da culpa e não da ilicitude, e, por isso, não são comunicáveis, mas susceptíveis de valoração autónoma em relação a cada comparticipante, aplicando-se, não o artigo 28.º do CP, mas o disposto no artigo 29º do mesmo diploma legal - neste sentido Ac. STJ 17.03.99, Ac. do S.T.J. de 27-05-2010, o Ac. do S.T.J. 19-2-2014. No mesmo sentido, Teresa Serra, op. cit., pag 93 e seg. e Figueiredo Dias, op. cit pag 986 e seg.
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1.4. Apreciando as condutas dos arguidos que resultaram comprovadas, à luz do que acima se expôs.
Face à factualidade provada, não há dúvida que o arguido AA, com a sua conduta, preencheu a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de homicídio, p. e p. pelo artº 131º do CP.
Com efeito, o referido arguido, a cerca de dois metros de EE, munido de arma de fogo de calibre 6,35mm, apontou a arma à zona do abdómen daquele e efectuou dois disparos seguidos, atingindo-o nessa zona do corpo.
A actuação do arguido AA acima descrita foi causa directa e necessária da morte de EE.
Agiu o arguido deliberada, livre e conscientemente, querendo causar a morte de EE, o que logrou.
Agiu assim, com dolo – na modalidade de dolo directo – e com consciência da ilicitude da sua conduta.
Verifica-se a circunstância agravativa prevista no artº 132º, nº 2, al. e) do CP, posto que o arguido AA agiu do modo descrito motivado pela desavença que mantinha com EE, em razão das declarações prestadas por este prestadas no âmbito do processo n.º 173/17...., reavivada pela contenda que tinha ocorrido entre aquele EE e o arguido BB, poucas horas antes, e que este último lhe contou, bem sabendo que tal conduta lhe era especialmente censurável.
E, no caso, o homicídio praticado revela a especial censurabilidade do agente, configurando um tipo de culpa especialmente acentuado, sendo, por um lado, manifesta a desproporção entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal em que ela se objectiva, e, por outro, o motivo que determina a conduta é altamente censurável, segundo as concepções ancoradas na comunidade, revelando a actuação do arguido um profundo desprezo pela vida humana, não só no modo da sua execução, como na motivação que lhe presidiu.
Verifica-se, por outro lado, a agravação do homicídio em razão do uso da arma de fogo, nos termos do disposto no art.º 86º, nº 3 e 4, do RJAM, conducente à agravação de um terço nos limites mínimo e máximo da moldura penal prevista no artº 132º do Código Penal.
Concluiu-se, assim, que o arguido AA praticou, em autoria material, o crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso da arma, p. e p. pelos artºs 131º, 132º, nº 2, alínea e), ambos do Código Penal, e art. 86.º, n.º 3, do Regime Jurídico das Armas e Munições, de que vinha acusado.
Não se provou que os arguidos AA e BB tivessem agido de acordo com uma decisão conjunta e executando em conjunto a acção típica, por conseguinte, em co-autoria, tal como constava da acusação.
Mas já resulta da factualidade provada que o arguido BB prestou e quis prestar o seu auxílio ao arguido AA, ciente de que este pretendia tirar a vida a EE, tendo favorecido a realização do ilícito típico por aquele, não só contactando-o, contando-lhe o sucedido na Tasquinha do ..., e chamando-o, por esse motivo, para ir ao seu encontro, com o que influenciou e reforçou o propósito do arguido AA, como também dispondo-se a ajudá-lo, como ajudou, a encontrar a vitima, acompanhando-o durante a execução do ilícito.
Incorreu, assim, na prática, como cúmplice, do crime de homicídio, agravado pelo uso da arma, por referência ao facto ilícito doloso praticado pelo co-arguido AA na pessoa de EE, não lhe sendo comunicável, nos termos supra expostos, a circunstância agravativa prevista no artº 132º, nº 2, al. e), reveladora da especial censurabilidade da conduta daquele co-arguido.
Assim sendo, o arguido BB deverá ser punido, como cúmplice, da prática do crime de homicídio, agravado pelo uso da arma, previsto e punido pelo artº 131º, nº 1, e 27º, ambos do Código Penal, e 86º, nº 3, do RJAM.
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Praticou, ainda, o arguido AA o crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo art.º 86º, nº 1, al. c) do RJAM, posto que detinha a arma de fogo 6,35mm e as respectivas munições, sem para tanto ser portador de licença ou autorização, tendo agido livre, voluntária e conscientemente, querendo praticar tais factos, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei.
No seguimento do entendimento acima exposto, há um único crime de detenção de arma proibida, a punir pela al. c), por mais grave a punição nela prevista em confronto com a prevista na alínea e) do referido normativo.
Verifica-se uma situação de concurso efectivo entre o crime de detenção de arma e o crime de homicídio qualificado agravado pelo uso da arma, praticados pelo arguido AA.
Com efeito, trata-se da punição de condutas distintas: a agravação prevista no art.º 86.º, n.º 3, da Lei n.º 5/2006, pune de forma mais grave uma conduta com uma maior ilicitude sempre que o agente usa na prática do crime uma arma, independentemente de a arma ser proibida ou não, ser legal ou não (salvo quando o uso ou porte de arma for elemento constitutivo do tipo legal de crime ou o uso ou porte de arma der lugar a uma agravação mais elevada, o que não sucede no caso dos autos, no que ao crime de homicídio concerne).. Acresce que estão em causa bens jurídicos distintos: no caso do homicídio agravado pelo uso da arma tutela-se a especial ilicitude do crime em função do meio usado para a sua prática; no crime de detenção de arma tutela-se a segurança da comunidade - cf., entre outros, Acs STJ de 30.11.2016 e 30.10.2014.
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2. Escolha e Medida das Penas
Feito pela forma descrita o enquadramento jurídico-penal da conduta dos arguidos, importa escolher e determinar a medida das penas a aplicar.
A moldura abstracta das penas aplicáveis aos crimes praticados pelo arguido AA é :
- quanto ao crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma consumada, pena de 16 a 25 anos de prisão;
- quanto ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, al. c) do RJAM, a pena de prisão até cinco anos ou pena de multa.
A moldura abstrata da pena correspondente ao crime de homicídio imputável ao arguido BB, como cúmplice, é de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 14 anos, 2 meses e 20 dias.
A escolha da natureza da pena coloca-se relativamente ao crime de detenção de arma, praticado pelo arguido AA.
Tendo em conta o circunstancialismo que rodeou a prática tal ilícito, as elevadas necessidades de prevenção geral e a desvaliosa faceta da personalidade do arguido que a concreta conduta também neste campo revela, é manifesto que a pena de multa não realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, pelo que se impõe optar pela pena de prisão - artº 70º do CP
A determinação da medida concreta das penas de prisão, dentro dos limites acima referidos, far-se-á em função da culpa dos arguidos e das exigências de prevenção (geral de integração e especial de socialização), nos termos do disposto no nº 1 do art.º 71º do Código Penal, tendo em conta designadamente as circunstâncias enumeradas no nº 2 do citado normativo.
A aplicação das penas e medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artº 40º do Código Penal.
Neste normativo se condensam as três proposições fundamentais quanto à função e aos fins das penas: protecção dos bens jurídicos, reinserção social do agente do crime, a culpa como limite da pena.
A pena deve, assim, ser encontrada numa moldura penal de prevenção geral positiva – com o que se dá satisfação à necessidade comunitariamente sentida de reafirmação da confiança geral na validade da norma violada - definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, em caso algum, ultrapassar a medida concreta da culpa, que estabelece um limite inultrapassável às exigências de prevenção.
São especialmente intensas as exigências de prevenção geral, no que ao crime de homicídio respeita porquanto a violação do bem jurídico fundamental ou primeiro – a vida – é fortemente repudiada pela comunidade. E, por isso, a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na afirmação do direito reclama uma reacção forte do sistema formal de administração da justiça, traduzida na aplicação de uma pena capaz de restabelecer a paz jurídica abalada do direito.
A necessidade de tutela de bens jurídicos há-de constituir um acto de valoração em concreto que o julgador deve levar a efeito tendo em vista as circunstâncias do caso. Como adverte o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal Português – Parte II – As consequências jurídicas do crime, pág. 241) trata-se de “determinar as exigências que ressaltam do caso subjudice, no complexo da sua forma concreta de execução, da sua específica motivação, das consequências que dele resultaram, da situação da vítima, da conduta do agente antes e depois do facto, etc.”.
Estabelecer-se-á deste modo, “o quantum de pena indispensável para que se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais” (op..cit., pág. 243).
Não se esquece, contudo, que por mais fortes que sejam as razões de prevenção geral, a medida concreta da pena não pode nunca ser ultrapassada a medida da culpa, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana.
É muito acentuada ilicitude dos actos praticados e o elevado grau de censurabilidade da conduta dos arguidos, revelada pelas circunstâncias que a rodeou, e a intensidade do dolo que presidiu às suas condutas.
Quanto ao crime de detenção de arma, são como se disse, elevadas as necessidades de prevenção geral, sendo de considerar na medida da pena a circunstância de, para além da arma de fogo que usou, o arguido detinha na sua posse ainda, pelo menos, duas munições.
Pondera-se, por outro lado:
- quanto ao arguido BB, a ausência de condenações criminais, a sua inserção laboral ao tempo dos factos, o apoio familiar de que dispõe e a sua juventude.
- quanto ao arguido AA a circunstância de se ter apresentado voluntariamente à autoridade policial, no dia dos factos, assumindo a autoria dos disparos que atingiram a vitima, a admissão parcial dos factos, a sua inserção laboral e familiar ao tempo e a sua juventude.
Todavia, importa atentar que o arguido AA praticou os ilícitos dos autos no decurso da suspensão da execução da pena aplicada no processo, no qual foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade. Embora se trate de crime de distinta natureza, a prática dos factos destes autos no decurso de suspensão da execução daquela pena revela que a mesma não constituiu suficiente advertência para o afastar da prática de novos ilícitos.
Tudo ponderado, tem-se por adequadas, a aplicação das seguintes penas:
Ao arguido AA:
- pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, agravado pelo uso de arma, na forma consumada, p. e p. pelos artºs 131º, 132º, nº 1 e 2, al e), ambos do CP, a pena de 18 anos e seis meses de prisão;
- pela prática, em autoria material, de um crime de detenção de arma, p. e p. pelo artº 86º, nº 1, al. c) do RJAM, a pena de um ano e seis meses de prisão.
Ao arguido BB:
- pela prática, como cúmplice, de um crime de homicídio, agravado pela uso da arma, p. e p. pelo artº 131º e 27º, ambos do do CP e art.º 86º, nº 3 do RJAM, a pena de cinco anos e três meses de prisão.
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3.Pena única
Encontrando-se os crimes praticados pelo arguido AA, numa situação de concurso efectivo, importa proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas - art.º 77º, nº 1, do C.P.
Estabelece o n.º 2 do artigo 77º do CP, que a moldura penal abstracta do concurso de crimes é encontrada em função das penas concretamente aplicadas aos vários crimes em concurso, correspondendo o limite mínimo à pena mais elevada das penas parcelares e o limite máximo à soma de todas as penas parcelares aplicadas.
Assim, no caso, a moldura abstrata da pena única aplicável ao arguido AA é de dezoito anos e seis meses a vinte anos de prisão.
Considerando o grau de ilicitude global dos factos, a personalidade do arguido neles espelhada, e a censurabilidade do comportamento do arguido deles decorrente, tendo em conta que na ponderação global dos ilícitos emerge a íntima conexão que entre eles se verifica, e o facto de terem sido praticados na mesma ocasião, e ponderando, ainda, todas as demais circunstâncias que atrás se enunciaram, considera-se ajustada a aplicação ao arguido AA da pena única de dezanove anos de prisão.
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4. PEDIDOS DE INDEMNIZAÇÃO CIVIL:
Foram deduzidos, contra os arguidos AA e BB, pedidos de indemnização civil por DD, CC, pais da vitima EE, e pelo Hospital de ..., EPE.
A indemnização de perdas e danos emergente de crime é regida pela lei civil – artº 129º do CP.
Como resulta claramente deste normativo, a indemnização de perdas e danos, ainda que emergente de crime, assume a natureza de uma obrigação civil em sentido técnico, nos termos do art. 397º, do Código Civil, com o seu regime específico.
A remissão da respectiva regulação (abrangendo os pressupostos e o quantitativo da indemnização) que o art.º 129º do C. Penal faz para a lei civil (substantiva) tem como alvo os preceitos reguladores da responsabilidade por factos ilícitos, em concreto os artºs 483º e seguintes do C. Civil.
Já a regulamentação adjectiva e processual do pedido de indemnização civil é a que decorre do Código de Processo Penal, em particular do disposto nos artºs 71º e seg a 84º do CPP (sem prejuízo naturalmente da aplicação subsidiária do regime de processo civil, nos casos omissos ex vi do artº 4º do mesmo diploma legal).
4.1. Pedido de Indemnização civil formulado pelo Hospital de ..., EPE
Hospital de ..., EPE, deduziu pedido de indemnização civil, pedindo a condenação dos arguidos demandados a pagar-lhe a quantia de 21 293,64 € relativo aos encargos dos tratamentos e cuidados de saúde prestados a DD, acrescida de juros de mora desde a data da notificação do pedido.
Foi celebrada transacção, conforme melhor consta da acta de audiência de julgamento, entre o Hospital demandando e o demandado AA, transacção que foi homologada.
Tratando-se de uma situação de litisconsórcio voluntário (cf. artº 32º do CPC e artºs 490º e 497º, 518º e 519º do CC) o efeito da transacção celebrada circunscreve-se ao arguido que a celebrou, conforme decorre do disposto no art.º 288º, nº 1, do CPC, importando, assim conhecer do pedido quanto ao arguido BB.
De harmonia com o disposto no art.º 495º, nº 2, do CC, no caso de lesão corporal, têm direito a ser indemnizados aqueles que socorreram o lesado ou outras pessoas ou entidades que tenham contribuído para a assistência e tratamento da vitima.
Assim, nos termos desta disposição legal, conjugada com o disposto 5º do Dec-lei 218/99, de 15 de Junho, assiste ao demandante Hospital o direito de obter dos demandados o custo da assistência prestada à vitima EE, no montante total de € 21 293,64, sendo a responsabilidade dos arguidos demandados solidária.
Constituiu-se, assim, o arguido BB na obrigação de pagar a referida quantia, tudo sem da extinção desta obrigação, caso a satisfação do direito do credor venha a ter lugar em consequência da transacção celebrada com o arguido AA - artº 523º do CC.
Quantia essa acrescida de juros de mora, desde a notificação do pedido até efectivo e integral pagamento - artºs 801º, nº 1 e 805º, nº 1, do CC.
4.2. Pedidos de Indemnização Civil formulado pelos assistentes DD e CC:
DD, pai da vitima EE, peticiona:
- a quantia de 2 000,00 €, correspondente às despesas com o funeral da vitima;
- a quantia de 60 000,00 € a título de indemnização de supressão do direito à vida de EE;
- a quantia de 20 000,00 € a título de indemnização dos danos sofridos pela própria vitima;
- a quantia de 40 000,00 € a título de indemnização dos danos morais sofridos pelo demandante.
Todas as quantias acrescidas de juros de mora desde a data de notificação do pedido.
Por seu turno, CC, mãe de EE, peticiona:
- a quantia de 80 000,00 € a título de indemnização pela supressão do direito à vida de EE;
- a quantia de 3 000,00 € a título de indemnização pelos danos sofridos pela própria vitima;
- a quantia de 40 000 € a título de indemnização pelos danos morais sofridos pela demandante.
Todas as quantias acrescidas de juros de mora desde a data da decisão até efectivo e integral pagamento.
Não oferece dúvida que se verificam, no caso em apreciação, os pressupostos da responsabilidade civil por facto ilícito, consagrada no artº 483º do CC, a saber: facto ilícito, nexo de imputação do facto aos agentes, dano, e nexo causalidade entre o facto e dano.
Os arguidos, com as suas condutas ilícitas, que lhe são imputáveis a título de dolo, causaram danos na esfera jurídica da vitima e na esfera jurídica dos demandantes, que se conexiam com os factos ilícitos praticados numa relação de causalidade adequada.
Constituíram-se, assim os arguidos, na obrigação de indemnizar, obrigação que sobre eles recai solidariamente – art.º 497º, nº 1, do CC.
Assinale-se que não ficou demonstrado o custo com o funeral da vitima invocado pelo assistente DD, o que conduz necessariamente à improcedência nesta parte do pedido.
Resta apreciar os danos não patrimoniais cujo ressarcimento é peticionado por ambos os demandantes, pais da vitima.
Consagrou o artº 496º, nº 1, do CC, a ressarcibilidade dos danos morais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
É manifesta a gravidade dos danos aqui em causa, aferida, quer à luz de um padrão objectivo, quer em função da tutela do direito violado, estando em causa o ressarcimento de danos decorrentes da supressão do direito à vida, o mais valioso de todos os direitos de personalidade, que a lei, aliás, regula especificamente nesta sede.
Com efeito, dispõe o nº 2, do referido normativo: “por morte da vitima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separada de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”.
Dispõe, por seu turno, o nº 3 do mesmo normativo: “O montante da indemnização é fixado equitativamente, tendo em conta, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no art.º 494º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vitima, com os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos casos dos números anteriores.
Os danos não patrimoniais aqui previstos compreendem, pois, não só os que a vitima tenha sofrido, como os suportados directamente pelas pessoas a quem caiba a indemnização nos termos do citado nº 2.
Questão em tempos controversa foi a de saber se tais danos nascem no património da vitima e se transmitem por via sucessória aos seus herdeiros ou se nascem, por direito próprio, na titularidade das pessoas designadas no nº 2 do artº 496º do CC.
Constituiu hoje posição senão pacífica, pelo menos claramente dominante, esta segunda posição, quer na doutrina, quer na jurisprudência – cf. Pereira Coelho, Direito das Sucessões, II, Coimbra, 1974, pág. 65, Antunes Varela, Das obrigações em Geral, Almedina, 3ª edição, 1980, vol I, pag. 509 e seg, Rodrigues Bastos, Notas ao Código Civil, Lisboa, 1988, vol II, pag. 296, Rabindranath Capelo de Sousa, Lições de Direito das Sucessões, I, Coimbra Editora, Limitada, 3ª edição, págs. 298 a 30],José de Oliveira Ascensão, Direito Civil, Sucessões, 5.ª Edição (2000), pags. 243/247. Na jurisprudência, a título exemplificativo, Acs do STJ de 5.01.2005, 24.05.2007.
De acordo com esta posição, que se acolhe, para tanto aponta o texto do nº 2 do artº 496º do CC, que atribuiu o direito de indemnização no caso de lesão do direito à vida – o único direito ou todo o direito – directamente aos parentes aí determinados, independentemente das regras de sucessão hereditária, sendo esta a interpretação consentânea com os trabalhos preparatórios do Código Civil, que revelam a intenção de fazer afastar a natureza hereditária do direito à reparação pela perda da vida da vitima de lesão.
Outra questão que o preceito suscitou, e que gerou controvérsia, é a de saber se dele decorre a imposição de litisconsórcio necessário activo na formulação de pretensão indemnizatória por lesão do direito à vida.
Para tanto, importa ponderar o significado da expressão “em conjunto”.
Refere a este propósito, Antunes Varela, op. cit. p. 519: “o facto de a lei afirmar que a indemnização cabe, em conjunto, ao cônjuge e descendentes da vitima não impede que o tribunal discrimine, como é, aliás, o seu dever, a parte da indemnização que concretamente cabe a cada um dos beneficiários”.
No sentido que do disposto no artº 496º, nº 2, do CC, designadamente da expressão “em conjunto” não decorre a imposição de litisconsórcio necessário activo se pronunciaram, entre outros, os Acs do STJ de 16.01.2002. 26.03.2015 e de 17.12.2016.
Interpretando a referida expressão no sentido atribuído por Antunes Varela, explicita-se neste último referido Acórdão: “não havendo limite legal do quantitativo indemnizatório global e sendo possível a individualizada determinação da indemnização a que tem direito cada um dos beneficiários – com recurso ao disposto no artº 496º, nº 3 - a decisão que conheça só da parte da indemnização que cabe à beneficiária peticionante produzirá o seu efeito útil normal, porque regulará definitivamente a situação entre peticionante e peticionada, verificando-se, pois, uma situação de litisconsórcio voluntário”.
Esta problemática é trazida aqui à colação uma vez que os pais da vitima EE deduzirem pedidos civis em separado, reclamando ambos indemnização para ressarcimento da perda do direito à vida, do dano intercalar sofrido pela vitima, além dos danos morais próprios..
Na linha do entendimento que acima se expôs, tal circunstância não conduz à verificação de preterição de litisconsórcio necessário activo - que aliás sempre resultaria suprido pela intervenção de ambos os ascendentes - antes será tomada em consideração no mérito dos pedidos a circunstância de o dano da supressão do direito à vida e do dano intercalar sofrido pela vitima caber em conjunto a ambos os ascendentes, sendo fixado de forma unitária e atribuído a cada um deles, de acordo com a quota parte que lhes cabe.
Passando à apreciação em concreto dos pedidos de indemnização formulados:
A lei remete a fixação dos montantes indemnizatórios a este título devidos para critérios de equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – artºs 496º e 494º do C.C.
A indemnização devida para ressarcimento destes danos reveste uma natureza mista, já que, por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada e, por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar, no plano civilistico, e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente – cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 488
Na avaliação do dano decorrente da supressão do direito á vida da vitima, tem-se presente que o direito á vida é o bem superior a todos os demais direitos de personalidade.
Como é evidente, a vida humana não tem preço.
Porém, a indemnização que a este título se arbitra não passa de um expediente compensatório - como, aliás, sucede nos demais danos não patrimoniais - não se pretendendo, por esta via, fixar um preço ao bem vida.
Importa, pois, chegar a um valor, com recurso á equidade, levando em linha de conta as circunstâncias do caso concreto.
No caso, pondera-se o elevado grau de ilicitude dos factos e de culpa dos arguidos, que a factualidade provada bem patenteia. Pondera-se, ainda, o facto de o bem vida constituir o mais valioso dos direitos de personalidade, o facto de a vitima contar 24 anos de idade á data do seu falecimento, sendo um jovem saudável, activo e com vontade de viver, vida essa que foi abruptamente interrompida em condições trágicas.
Perante este circunstancialismo, o grau de culpabilidade dos arguidos, e as demais circunstâncias previstas no artº 494º do CC, tendo em conta os padrões indemnizatórios acolhidos pelos nossos tribunais superiores em caso de perda do direito à vida, e, em particular, em caso de perda do direito à vida por conduta criminosa dos demandados, considera-se adequada a fixação da indemnização pela perda do direito á vida de EE, no montante de € 80 000,00.
Este montante será atribuído na proporção de 50% a cada um dos pais da vitima, ou seja, a quantia de 40 000,00 € a cada um deles.
Quanto aos danos sofridos pela própria vitima, não há dúvida que no presente caso assumiram elevada gravidade, ponderando-se a intensidade das dores e sofrimento físico e psicológico que necessariamente sofreu, a que acresce o pânico, experimentado pela vitima, com a previsão da morte, que anteviu.
Perante este circunstancialismo, afigura-se equitativo e conforme os padrões indemnizatórios correntes, fixar em 20 000,00 € o dano intercalar sofrido pela vitima, competindo a cada um dos demandantes pais da vitima, na quota-parte a que cada um tem direito, a quantia de 10 000,00 €.
Por fim, e em sede de danos morais, importa avaliar os danos sofridos pelos próprios demandantes.
A morte de EE constituiu causa de sofrimento e dor para os demandantes, seus pais, que se prolonga, e que é naturalmente agravada pelas condições trágicas que determinaram a morte da vitima, sabido que o padecimento da vitima se reflecte na dor que os seus familiares sentem.
Trata-se de asserção válida relativamente a ambos os progenitores, havendo, todavia, que ponderar que a vitima vivia com seu pai, sendo, por conseguinte, mais estreito o relacionamento com este mantido, muito embora também contactasse regularmente com sua mãe.
Assim sendo, e atento a factualidade que a este respeito ficou comprovada, entende-se ser de fixar em 30 000,00 € a indemnização a este título a atribuir à demandante e 40 000,00 € a indemnização a atribuir ao demandante. 3- Apreciação dos recursos
- Recurso do despacho intercalar 3.1- O arguido AA, interpôs o presente recurso, insurgindo-se contra o despacho acima transcrito que considerou não se verificarem as irregularidades e a nulidade por ele assacadas ao despacho pelo qual o tribunal recorrido efetuou uma alteração não substancial dos factos da acusação deduzida pelo Ministério Público.
O despacho, proferido na sessão da audiência de julgamento de 06.012.2022, pelo qual foi comunicada uma alteração não substancial da acusação tem o seguinte teor (transcrição):
Deliberou o tribunal colectivo, face à produção de prova realizada, introduzir na materialidade sob julgamento a seguinte factualidade, que consubstancia uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação:
- O arguido AA e DD foram ambos acusados e condenados no processo 173/17...., pela prática de crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo art.º 25º do Dec-Lei 15/93, em penas de prisão suspensas na sua execução, por acórdão proferido em 21.12.2020 e transitado em julgado, quanto ao arguido AA, em 19.04.2021.
- Em virtude das declarações prestadas perante Magistrado do Ministério Publico por EE, este e o arguido AA, até então amigos, ficaram desavindos, acusando o arguido AA o EE de o ter delatado, e de ser um “chibo”.
- Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas no ponto 1. da acusação. o arguido BB e EE iniciaram uma discussão no interior do restaurante e, após, deslocaram-se para o exterior, onde continuaram a discutir e se envolveram fisicamente, tendo o EE, no decurso dessa contenda, atingido no rosto o arguido BB, que ficou ferido.
- Tal discussão e contenda teve na sua origem a desavença que existia entre o arguido AA e o EE em virtude das declarações por este prestadas no processo 173/17...., acima referido em 1.1.
- O arguido BB contactou, de seguida, o arguido AA, que sabia estar desavindo com EE, contou-lhe o sucedido, atrás referido, e pediu-lhe, por esse motivo, que o mesmo fosse ao seu encontro.
- O arguido AA, após o que lhe foi transmitido pelo arguido BB, muniu-se de uma arma que detinha na sua residência, apta a disparar munições de fogo de calibre 6.35 mm, a qual se encontrava municiada com, pelo menos, duas munições de fogo de igual calibre, com a intenção de atingir com disparos daquela arma de fogo EE e, assim, lhe tirar a vida.
- Ambos os arguidos vieram a encontrar-se junto da casa do irmão do arguido BB, onde este pernoitava, sita no Bairro ..., em ..., levando o arguido AA consigo a arma acima referida.
- O arguido BB dispôs-se a ajudar o arguido AA a localizar EE, acordando ambos os arguidos em ir ao encontro deste.
- O arguido BB sabia que o arguido AA estava munido da arma acima referida, assim como sabia que este pretendia usar a referida arma para atingir com disparos EE e dessa forma tirar-lhe a vida.
- O arguido AA agiu do modo descrito motivado pela desavença que mantinha com EE, em razão das declarações prestadas por este prestadas no âmbito do processo n.º 173/17...., reavivada pela contenda que tinha ocorrido entre aquele EE e o arguido BB, poucas horas antes, bem sabendo que tal conduta lhe era especialmente censurável, por consistir num motivo repugnante e insignificante.
- Por seu turno, o arguido BB, sabendo da desavença existente entre o arguido AA e EE, contou àquele a contenda havida com este e a razão da mesma, chamou, por esse motivo, o arguido AA para ir ao seu encontro, ciente que ao assim proceder estimulava a animosidade que o arguido AA experimentava em relação à vitima, dispôs-se a ajudá-lo a encontrar a vitima, como ajudou, bem sabendo que o arguido AA detinha uma arma de fogo na sua residência, de que se havia munido quando se deslocou ao seu encontro, sabendo ainda que o arguido AA queria atingir com disparos de arma de fogo EE, e, dessa forma, tirar-lhe a vida.
- O arguido BB agiu do modo descrito querendo auxiliar o arguido AA, ciente do propósito deste de tirar a vida a EE.
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Deliberou ainda o tribunal colectivo proceder à comunicação de uma alteração da qualificação jurídica dos factos já descritos na acusação, e dos que constituem alteração não substancial dos factos dessa peça constantes, acima referidos, no que o arguido BB respeita, por forma a imputar-lhe prática, como cúmplice, de um crime de homicídio, agravado pelo uso de arma, previsto e punido no artº 131º, nº 1 e 27º do CP e artº 86º, nº 3 e 4, do Regime Jurídico das Armas e Munições.
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Procede-se a esta comunicação nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 358º, nº 1 e 3, do CPP.
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Notifique.
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Concedida a palavra aos Ilustre Mandatários dos arguidos, pelos mesmos foi requerido prazo, não inferior a 5 dias, nos termos do art. 358º, nº 1. do CPP. 3.1.1- Segundo o recorrente, o despacho acima transcrito padece de irregularidade, por ausência de fundamentação decorrente da não indicação dos concretos meios de prova em que se estriba a comunicada alteração factual, conforme o disposto nos artigos 97º, nº 5, 118º, nº 2 e 123º, do C.P.P. e artigo 32º, nº 1 e 5, da C.R.P..
Todavia, como bem se decidiu no despacho recorrido, não lhe assiste razão, correspondendo a sua tese a uma posição da jurisprudência de que é exemplo o por ele citado Ac. RC de 23.10.2019, processo disponível em www.dgsi.pt
Na verdade, nos termos do disposto no art. 97º, nº 1 als. a) e b) do C. Processo Penal os atos decisórios do juiz tomam a forma de sentença, quando conhecem a final do objeto do processo, e de despacho, quando conhecem de quaisquer questões interlocutórias ou põem termo ao processo sem, contudo, conhecerem do seu objeto.
Ora, quando o tribunal efetua uma comunicação de alteração de factos ao abrigo do disposto no artigo 358º do CPP fá-lo obviamente através de despacho, o qual, porém, não conhece de qualquer questão, exceto naturalmente quanto à qualificação da alteração da acusação como não substancial.
Como sustentou no Ac. RC de 28.05.2008, processo 20/05.9TATMR.C1, disponível em www.dgsi.pt “Através dele (despacho proferido ao abrigo do disposto no nº1 do artigo 358º do CPP), e nos termos impostos pela lei, apenas se deu conhecimento aos sujeitos processuais de factos que, não incluídos na acusação, poderiam, eventualmente, vir a ser considerados provados na sentença a proferir oportunamente. Mas sem que tais factos tivessem, necessariamente, que vir a ser considerados provados na sentença.”
Como se sumariou no Ac. RL de 13.03.2013, processo 33/01.0GBCLD.L1-3, disponível em www.dgsi.pt “As comunicações previstas nos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal não consubstanciam qualquer decisão, constituindo meras advertências para que o direito de defesa possa ser exercido e, consequentemente, o tribunal possa, caso venha a considerar esses factos como provados ou a alterar a qualificação jurídica nos termos anunciados, tomá-los em conta no acórdão que vier a proferir.”.
Efetivamente, o despacho proferido ao abrigo do disposto no artigo 358º, nº 1 do CPP, traduz-se numa imputação de factos novos, mas relacionados com os já descritos na acusação, fazendo parte do objeto do processo em sentido amplo, para que os sujeitos processuais que por eles possam vir a ser afetados tenham a possibilidade de deles se defender, constituindo, a par dos factos descritos na acusação, uma realidade não definitiva, mas antes provisória, na medida em que poderão ou não vir a ser considerados provados na sentença.
Significa isto que no referido despacho nada se decidiu em termos de considerar provados ou não provados os factos, apenas se comunicou uma possibilidade, por forma a permitir aos arguidos pensarem de novo a sua defesa. Ou seja, foi exercido o contraditório quanto a essa questão.
O regime da alteração não substancial dos factos da acusação do nº 1 do artigo 358º do CPP traduz-se numa concessão ao princípio da investigação da verdade material em prejuízo do princípio do acusatório, na medida em que permite, por razões de celeridade processual e com vista a alcançar a paz jurídica do arguido, ao juiz de julgamento simultaneamente investigar, por forma esgotante o objeto do processo definido pela acusação, introduzindo-lhe alterações pontuais que decorram no desenrolar da audiência de julgamento.
Por isso, ou seja, porque os novos factos comunicados decorrem do decurso da audiência de julgamento, a sua indiciação necessariamente decorre da prova nela produzida. Isto é, pese embora os factos comunicados sejam novos, porque não constam da acusação, as provas que os sustentam não são novas, sendo, pois, do conhecimento dos sujeitos processuais, não tendo, por isso, que ser comunicadas.
No sentido de que a lei não obriga a indicação dos meios de prova no despacho em que o tribunal procede a uma alteração não substancial dos factos da causação, para além do acima citado Ac. da Relação de Coimbra, no qual se defende inclusive que não se trata de uma ato decisório, vide v.g. Ac. RC de 14.01.2015, processo 72/11.2GDSRT.C1, disponível em www.dgsi.pt.
Repare-se que a acusação, pese embora tenha de indicar as provas que a suporta, sob pena de nulidade, cfr. alíneas e), f) e g) do nº 3 do artigo 283º do CPP, a lei não vai ao ponto de exigir que a indicação seja feita com referência a cada facto individualizado. Aliás, o mesmo se deverá entender relativamente à fundamentação da matéria de facto da sentença, cfr. artigo 374º, nº 2 do CPP. Neste sentido, vide v.g. Ac RC de 13.06.2018, processo 771/15.0PAMGR.C1, disponível em www.dgsi.pt
No caso de o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação teria de dar cumprimento ao disposto no artigo 340º, nº 2 do CPP, o que não é o caso que nos ocupa.
Assim sendo, por estarem em causa factos novos, mas relacionados com os factos descritos na acusação, os quais necessariamente resultaram da discussão da causa (como da própria comunicação resulta) , não se vislumbra em que medida o direito de defesa do arguido possa ser prejudicado pela não indicação ou melhor dizendo pela não especificação das provas produzidas em audiência com referência aos novos factos comunicados.
No caso vertente, no despacho pelo qual foi comunicada a alteração não substancial dos factos, refere-se expressamente que os factos novos comunicados decorrem da prova produzida em audiência de julgamento. Por isso, nada mais era necessário ter dito quanto a meios de prova em que sustentam os novos factos objeto de comunicação aos sujeitos processuais.
Em decorrência do exposto, em nosso entender, resulta não ter sido violado o contraditório e as garantias de defesa do arguido, pelo que a interpretação que aqui fizemos do artigo 358º, nº 1 do CPP não viola o disposto no artigo 32º, nº 5 da CRP.
De facto, assim decidiu o Tribunal Constitucional no seu acórdão nº 216/2019, disponível em www.tribunalcontitucional.pt, como seguinte dispositivo: “Não julgar inconstitucional a interpretação normativa extraída da conjugação dos artigos 358.º, n.º 1, e 379.º, n.º 1, alínea b), do CPP, no sentido de que a comunicação de alteração não substancial dos factos, efetuada no decurso da audiência de julgamento, não carece de ser acompanhada de referência especificada aos meios de prova indiciária em que se fundamenta.”
Como decorre da fundamentação deste aresto, da omissão especificada dos meios de prova no despacho de comunicação de uma alteração da acusação efetuada ao abrigo do disposto no artigo 358º, nº 1 não reflete uma diminuição das garantias de defesa do arguido “Desde logo porque, nos termos do artigo 283.º, também a peça de acusação não carece de relacionar especificadamente os factos imputados e os meios de prova, bastando-se com a indicação em rol das testemunhas a ouvir e a indicação de outros meios de prova, sem especificação dos concretos factos, isoladamente considerados ou agrupados segundo uma qualquer classificação, a que cada fonte probatória se reporta. O mesmo acontece com o despacho de pronúncia, ao qual são aplicáveis, nessa parte, os requisitos da acusação (artigo 308.º, n.º 2, do CPP).
Mais: a comunicação a que alude o n.º 1 do artigo 358.º do CPP não incorpora um juízo, positivo ou negativo, sobre a comprovação dos factos a que se refere. Apenas exterioriza que, no estado da prova produzida em julgamento, o princípio da descoberta da verdade obriga a que o tribunal se debruce sobre uma realidade não comportada na acusação ou na pronúncia, podendo tais factos vir a ser dados como provados ou não, em função da prova que for ulteriormente produzida ou examinada. Tratam-se, pois, de factos meramente sinalizados aos sujeitos processuais, de índole precária e indiciária, porque ainda sujeitos a eventual contraprova e ao crivo da discussão contraditória em audiência.
A valoração da prova produzida e a decisão sobre a verdade dos factos imputados (os factos que integram a acusação ou pronúncia, assim como os novos factos comunicados em cumprimento do n.º 1 do artigo 358.º do CPP), ocorre apenas com a emissão da sentença ou acórdão, juízo de facto sobre o qual recai uma exigência de fundamentação especificada e tanto quanto possível completa, ainda que concisa, das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º 2 do CPP), com cominação de nulidade do ato judicativo (artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do CPP).
Desta forma, tendo em conta, por um lado, que, não obstante não existir uma indicação especificada dos meios de prova relevantes para o juízo de indiciação conducente à comunicação de factos prevista no artigo 358.º, n.º 1, do CPP, se encontra assegurada a identificação da totalidade dos meios de prova, produzidos ou valoráveis em fase de julgamento, e, por outro lado, que os factos comunicados são apenas indiciados, conclui-se que a interpretação normativa em sindicância não fere o núcleo essencial das garantias de defesa do arguido.” 3.1.2- Segundo o recorrente, o despacho de comunicação de alteração dos factos padece de irregularidade em virtude de o tribunal recorrido ter lançado mão do mecanismo da alteração não substancial dos factos fora das hipóteses previstas no artigo 358º, nº 1, do C.P.P. “Aquilo que o Tribunal a quo fez foi “reoarganizar” os factos que já estavam na acusação, embora de uma forma não tão detalhada, para permitir uma interpretação da prova de acordo com a tese acusatória”, conclusão X); “… a figura processual da alteração não substancial dos factos não possui o alcance pretendido no despacho em crise, nem deverá ser usada com esse fim, uma vez que tal mecanismo processual foi, apenas e só, concebido para a descoberta superveniente de factos que não eram conhecidos da investigação ao tempo da dedução da acusação”, sublinhado nosso cfr. conclusão Y; Não é lícito que, perante acusações genericamente formuladas, o Tribunal possa colmatar tal lacuna recorrendo ao mecanismo da alteração não substancial dos factos, e que este se transforme, em claro prejuízo dos direitos de defesa dos Arguidos, num expediente de consubstanciação de Acusações genericamente formuladas, cfr. conclusão BB).
Também quanto a este ponto não assiste razão ao recorrente, desde logo porque na comunicação de alteração de factos efetuadas pelo tribunal recorrido não se verificam as situações que vêm referidas pelo recorrente.
Os factos descritos na acusação e aqueles que venham a ser considerados provados na sentença não têm necessariamente de coincidir, na sua integralidade.
De facto, de harmonia com o princípio do acusatório, a acusação define e fixa, perante o tribunal, o objeto do processo, exigindo-se uma correlação entre a acusação e a decisão. Essa correlação traduz-se na exigência de que, definido o objeto do processo, o tribunal não possa, como regra, atender a factos que não foram objeto da acusação, estando, por conseguinte, limitada a sua atividade cognitiva e decisória, o que constitui a chamada vinculação temática do tribunal, como ensina o Professor Figueiredo Dias (Direito Processual Penal, 1974, Coimbra Editora, 2004, fls. 144 a 145).
Porém, Figueiredo Dias, também ensina que, de acordo com princípio da investigação, o tribunal tem “poder-dever (…) de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa o «facto» sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão”, na senda da verdade material (cfr. fls. 148, op. cit).
Assim, a lei prevê mesmo a possibilidade de ocorrer modificações nos factos descritos na acusação.
Efetivamente, como decorre do nº 2 do artigo 368º do CPP, “…o presidente enumera discriminada e especificadamente e submete a deliberação e votação os factos alegados pela acusação e pela defesa e, bem assim, os que resultarem da discussão da causa…”, negrito nosso.
Contudo, a modificação dos factos descritos na acusação apenas assume relevância quando se apresente como constituindo uma alteração não substancial ou substancial da acusação, por via do disposto nos artigos 1º, al. f), 358º, 359º e 379º, nº 1 al. b), todos do CPP.
É que podem ocorrer “mexidas” nos factos descritos na acusação que, quer pela sua pouca relevância, quer porque resultam da alegação da defesa, não assumem relevo bastante para que, por via delas, se possa afirmar, com rigor, que o direito de defesa do arguido fique prejudicado.
Por isso, nem todas as modificações dos factos descritos na acusação têm de ser previamente dados a conhecer pelo tribunal à defesa. É o que ocorre quando, como recorrentemente é afirmado na jurisprudência[3], os factos descritos na acusação são especificados ou concretizados, ou seja, descritos de forma mais pormenorizada ou circunstanciada.
No caso vertente, ao contrário do que refere o recorrente, a acusação não contém factos genéricos não concretizados que o tribunal tenha sentido necessidade de especificar. Aliás, o recorrente, pese embora a sua alegação, não concretiza quais são os factos genéricos alegados na acusação.
Do mesmo modo, na comunicação de alteração de factos, o tribunal não acrescentou elementos típicos não constantes da acusação, não tendo sido propósito colmatar lacunas da acusação.
Outrossim, também ao contrário do referido pelo recorrente, a comunicação de factos que se traduzam numa alteração não substancial dos factos descritos na acusação são se restringem aos factos supervenientes.
Na verdade, por forma diversa do que sucede noutras jurisdições, no processo penal, por razões de interesse publico, com observância do acusatório e sem prejuízo dos direitos de defesa do arguido, em julgamento domina o princípio da investigação da verdade material.
Os factos objeto de comunicação pelo tribunal recorrido não constam da acusação deduzida pelo M.P., mas fazem parte do objeto do processo em sentido amplo, tendo sido cumprido o formalismo previsto no artigo 358º do CPP, incluindo o contraditório.
Aliás, o próprio recorrente, ao menos implicitamente, considerou os factos objeto de comunicação relevantes, não sendo, pois, uma “reorganização” dos factos descritos na acusação, tanto que solicitou prazo para defesa e apresentou novos meios de prova.
Nesta conformidade, improcede o recurso intercalar interposto pelo arguido AA.
- Recursos do acórdão
Os recursos do acórdão - todos os recursos, ou seja, os recursos interpostos pelos arguidos AA e BB, e pela assistente CC - irão ser apreciados segundo a sequência lógica das questões suscitadas por cada um dos recorrentes e não individual e separadamente. 3.2- O arguido /recorrente AA suscitou a nulidade do acórdão recorrido por violação do disposto no artigo 358.º, n.º 1, ex vi do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do C.P.P., em consequência de, na comunicação proferida em audiência de julgamento, de uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação, não se mencionar os concretos elementos probatórios em que o tribunal recorrido se estriba para concluir por tal alteração factual.
A apreciação desta questão encontra-se prejudicada pela apreciação e decisão do recurso intercalar interposto pelo arguido AA a que procedemos supra. Na verdade, na apreciação deste recurso, pelas razões aí aduzidas, concluímos não ter sido violado o disposto no artigo 358º, nº 1 do CPP, não tendo sido cometida qualquer nulidade e/ou irregularidade. Em consequência lógica do assim apreciado e decidido, o acórdão ulteriormente proferido (acórdão recorrido) não padece de nulidade por violação do disposto no preceito legal mencionado, em conformidade como disposto no artigo 379º, nº 1 al. b) do CPP.
Do mesmo modo se encontra prejudicado, o conhecimento da suscitada inconstitucionalidade do artigo 358º do CPP por violação do contraditório e das garantias de defesa do arguido.
Por conseguinte, improcede este segmento do recurso. 3.3- O arguido / recorrente BBsuscitou a nulidade do acórdão recorrido por falta de fundamentação, por violação do disposto nos artigos 97.º, n. º4, 374° n° 2, 379º, n.º 1, alínea a), b) e c) do CPP, bem como o disposto nos artigos 32º, 202.º e 205º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa.
Segundo o recorrente, o acórdão recorrido é nulo por omissão de pronúncia e por excesso de pronúncia.
Em síntese, quanto à alegada omissão de pronúncia, no entender do recorrente, relativamente aos factos do acórdão que impugnou, ou seja, os factos dos pontos 1.7, 1.8, 1.9, 1.11, 1.12, 1.28 e 1.29, “…não aparece individualizada, sem que possa o arguido alcançar concretamente, que partes dos depoimentos motivaram a decisão de dar como provado cada um destes factos”, cfr. conclusão 11.
Vejamos. 3.3.1- No que se refere ao alegado motivo de nulidade acórdão recorrido por omissão de pronúncia, mas que deverá entender-se que estaria afetado de falta ou de insuficiente exame de crítico da prova quanto aos factos impugnados pelo recorrente[4], importa notar que o dever de fundamentação da sentença /acórdão é uma exigência do Estado de Direito Democrático, como é o nosso, decorrendo tal dever de imposição constitucional, em conformidade com o disposto no artigo 205º da CRP, o qual no seu nº 1 diz que “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei”.
Em consonância com o aludido preceito constitucional, o nº 2 do artigo 374º do C.P. Penal estabelece que da sentença deverá constar: “2 – (…) uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”
“Estes motivos de facto que fundamentam a decisão não são nem os factos provados (thema decidendum) nem os meios de prova (thema probandum) mas os elementos em que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos constituem o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido ou valorasse de determinada forma os diversos meios de prova apresentados em audiência.
A fundamentação ou motivação deve ser tal que, intraprocessualmente, permita aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recuso (…).
E, extraprocessualmente, a fundamentação deve assegurar pelo conteúdo, um respeito efetivo pelo princípio da legalidade na sentença e a própria independência e imparcialidade dos juízes uma vez que os destinatários da decisão não são apenas os sujeitos processuais mas a própria sociedade”, cfr. Marques Ferreira, Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1989, pág. 229 e 230.
Neste sentido, na jurisprudência tem vindo a defender-se, de forma pacífica, que “A obrigatoriedade de indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e do seu exame crítico, destina-se, pois, a garantir que na sentença se seguiu um procedimento de convicção lógico e racional na apreciação das provas, e que a decisão sobre a matéria de facto não é arbitrária, dominada pelas impressões, ou afastada do sentido determinado pelas regras da experiência. Ac STJ de 21.03.2007, processo 07P024, acessível em www.dgsi.pt.
No entanto, as exigências de fundamentação, como foi salientado no Ac. STJ de 23-04-2008, CJ (STJ), 2008, T2, pág.205, não chegam ao ponto de ser exigível que o julgador "explane todas as possibilidades teóricas de conceptualizar a forma como se desenvolveu a dinâmica dos factos em determinada situação e muito menos que equacione todas as complexidades suscitadas pelos sujeitos processuais.”
No que concerne ao conteúdo do exame crítico da prova, como se refere no Ac. RL de 12.10.2018, processo 36/14.4JBLSB.L1-5, disponível em www.dgsi.pt, “Não dizendo a lei em que consiste o exame crítico das provas, esse exame tem de ser aferido com critérios de razoabilidade, sendo fundamental que permita avaliar cabalmente o porquê da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao respetivo conteúdo.”
A fundamentação de facto da sentença, para além de clara, deverá ser completa, ainda que concisa, o que nos reconduz à questão da suficiência da fundamentação, a qual se reveste de capital importância, porquanto “…uma decisão parcialmente fundamentada tem de ser entendida como não fundamentada, posto que inexiste meia fundamentação, tal como inexiste meia comunicação”[5].
“O que está em causa, na insuficiência é uma fundamentação inapropriada, manifestada em omissões na estrutura racional exigida para uma fundamentação adequada”, cfr. José António Mouraz Lopes, A Fundamentação da Sentença no Sistema Penal Português, Almedina, pág. 338.
Na exigência legal de concisão “o que está em causa é um modelo de economia argumentativa onde o que deve ser dito para explicitação do juízo decisório deve sê-lo de uma forma não exaustiva, mas antes sintética e breve, não utilizando mais argumentos dos que os necessários para dizer o que é essencial”, cfr. Mouraz Lopes, ob. cit. pág. 261.
No caso vertente, da motivação do acórdão recorrido, com relevo quanto aos factos impugnados pelo recorrente, para além de ter elencado a prova (cfr. ponto 3.1 da fundamentação da matéria de facto) consta, nomeadamente, que:
“A testemunha KK referiu, a este propósito, que levou o arguido BB até ao carro, aconselhando-o a ir embora, e que este arguido estava irritado e disse que ia buscar uma arma, o que o depoente comentou com os ali presentes sem, porém, atribuir foros de seriedade a tal afirmação. Este relato é corroborado pela testemunha FF, que referiu ter ouvido o arguido BB dizer algo na altura em que abandonava o local, sem conseguir perceber que palavras em concreto e, tendo indagado os restantes sobre o que tinha sido dito, alguém lhe referiu que o arguido tinha falado qualquer coisa relacionado com arma.
Assinale-se, ainda, que ambas as testemunhas FF e KK mencionaram que lhes tinha sido referido pelos arguidos, em data anterior à dos factos, que haviam comprado uma arma a meias.”
Mais adiante acrescentou-se:
“O depoimento desta testemunha LL que não conhecia nem a vitima, nem os arguidos, nem qualquer das testemunhas acima referidas, assume especial relevância.
Assim, LL relatou que tinha estacionado o veículo BMW, em frente ao Café Snack - Bar ..., para se deslocar a casa da sua companheira, residente nas proximidades. Quando regressou ao veículo e se introduziu no mesmo, viu um grupo de rapazes a conviver junto à fachada do Café, uns no passeio e outros no patamar. Apercebeu-se de dois indivíduos a subir a rua, deduzindo que se dirigiam ao encontro daquele grupo. Não viu nada na mão de qualquer dos indivíduos. Ouviu, então, dois disparos, sendo que, nessa altura, os dois indivíduos se encontravam no passeio ao lado do seu veículo. A pessoa atingida pelos disparos tombou contra a parte lateral traseira do dito veículo e ficou aí prostrada no chão. Não se apercebeu se a pessoa que foi atingida estava no passeio ou estava no patamar. De seguida, os dois indivíduos desceram a rua a fugir, em sentido inverso ao que anteriormente tinham percorrido.”.
Por outro lado, o tribunal explicou, efetuando raciocínios lógicos, de acordo com as regras da experiência comum, porque não lhe mereceu credibilidade as declarações prestadas pelos arguidos e explicou os motivos da sua convicção, referindo, nomeadamente, que:
“O arguido AA nas declarações iniciais que prestou admitiu ter disparado dois tiros em direcção a EE, a cerca de 2 metros, com uma arma de fogo 6,35mm, causando-lhe a morte.
Referiu que agiu do modo descrito em virtude de EE, que se encontrava junto de outros amigos em frente ao Café ..., ter dado um salto na sua direcção, já existindo problemas entre ambos, por virtude dos quais já tinha sido ameaçado, tendo sentido medo. Quando disparou, o EE gritou “Mataste-me”, motivo pelo qual entrou em pânico e fugiu a correr. Em momento mais adiantado das suas declarações, referiu que EE dá um passo grande na sua direcção, com a perna esquerda, ao mesmo tempo que dá um toque no corpo (na zona da anca) com a mão direita, o que o fez pensar que teria uma arma - embora não tivesse visto arma nenhuma - e por isso disparou.
A instâncias do seu Exmo Mandatário, e confrontado com as fotos juntas com a reconstituição do facto referiu que quando viu o grupo em frente ao Café ... não reconheceu ninguém, por ser de noite, por as pessoas serem de raça negra e por virtude das plantas que ali se encontravam, e que EE estava na plataforma, de frente para as plantas, e, ao vê-los, saltou da plataforma. Mais referiu que quando efectuou os disparos EE está mais ou menos em frente ao cabeleireiro ali localizado e visível nas fotos, querendo simplesmente ao disparar que ele (EE) se afastasse, que não viesse para cima de si. Na última sessão de julgamento, reafirmou que EE veio a correr na sua direcção, cerca de 10 metros, e, ao ser atingido pelos disparos, caiu em frente ao cabeleireiro/barbearia.
A dinâmica do sucedido descrita pelo arguido AA é, em si mesma, contraditória e implausível, desde logo face à desconformidade da sua actuação - disparando dois tiros em direcção ao abdómen da vitima, a curta distância desta - perante o motivo que diz ter presidido à sua actuação (afastar a vitima). Tal motivo não é compatível, nem com o número de disparos efectuados, nem com a zona do corpo para a qual direcionou os tiros.
Tal versão é, por outro lado, infirmada pelos depoimentos das testemunhas presenciais do sucedido, não só das testemunhas KK, FF e DD (amigos comuns aos arguidos e à vitima), mas também da testemunha LL, pessoa alheia a qualquer um deles, que não conhecia nenhum dos envolvidos e só por mero acaso presenciou o sucedido, resultando do relato deste último, como acima se referiu, que, na altura dos disparos, os dois indivíduos que visualizou a subir a rua, encontravam-se ao lado do seu veículo.
Acresce que, conforme decorre desses depoimentos, e em particular, do depoimento da testemunha LL, a vitima EE, ao ser atingida, tombou de encontro à parte traseira do veículo BMW, o que também é incompatível com a versão do arguido AA. Também incompatível com a versão do mesmo arguido a localização dos invólucros, assinalada no exame efectuado ao local pela Policia Judiciária.
A descrição efectuada pelo arguido AA não mereceu, assim, credibilidade, não encontrando suporte na demais prova produzida, antes sendo por esta infirmado.
Negou ainda o arguido AA ter agido para se vingar do sucedido com o arguido BB ou para se vingar do EE por ele “ter sido chibo”, afirmando porque “a verdade é o que ele era, mas já me tinha vingado”.
Referiu que se encontrava em casa, com a sua mãe e namorada, sendo que tinha combinado com o arguido BB viajar, na manhã seguinte, para ..., país onde ambos estavam a trabalhar. Por volta da 1 hora da madrugada, recebeu uma mensagem do arguido BB que lhe transmitiu que precisava de falar com ele, com urgência. Nessa sequência, foi ter com o BB, perto da cada dele, no .... Antes de sair de casa pegou no casaco que tinha à mão no cabide e só quando se encontrava exterior é que deu conta que tinha no bolso do casaco a arma de fogo 6,35mm, que havia adquirido cerca de 6 meses antes, e que tinha colocado no bolso do casaco para no dia seguinte a guardar na garagem. Depois de se encontrar com o BB é que este lhe contou o que se tinha passado na Tasquinha do .... Falaram desse assunto e da viagem para ... que estava programada para o dia seguinte, e foram ambos dar uma volta pelo ... para ver se encontravam amigos e, por acaso, depararam com o grupo em frente ao Café ....
Por seu turno, o arguido BB nas declarações que prestou, finda a produção de prova testemunhal, relatou que, após o sucedido na Tasquinha do ..., trocou mensagens com o FF, seu amigo mais chegado de entre aqueles que estavam no jantar, sobre o aí acontecido, assim como trocou mensagens com o arguido AA (Max) sobre a viagem para ..., “e se calhar também de ter sido agredido”, mas sem ter a certeza, por não se lembrar bem. Estava a dirigir-se para casa onde mora o seu irmão, e onde pernoita quando vem a Portugal, e deparou com o AA ali perto, sendo que nada tinha combinado com este. De seguida, foram ambos conversar para o C... e após resolveram dar uma volta no ... para encontrar amigos, enquanto falavam sobre a viagem para ... e também do que se tinha passado antes na tasquinha do ..., embora menos. Ao chegarem ao Café ..., viram o pessoal (FF, DD, EE e outros), e saltaram todos, vindo o EE em direcção ao AA e este em direcção àquele. Mais referiu que viu o AA a esticar o braço em direcção ao EE, a cerca de dois metros, ouviu dois disparos, entrou em pânico e começou a fugir do local, não chegando a ver EE a cair, só tendo sabido do que lhe tinha acontecido na manhã seguinte.
As descritas versões apresentadas pelos arguidos são destituídas de credibilidade, contraditórias entre si e desconformes com a visão global que os demais elementos probatórios oferecem.
Com efeito, não merece credibilidade a explicação fornecida pelo arguido AA para se fazer acompanhar de uma arma de fogo quando sai de casa para se encontrar com o arguido BB, nem faz qualquer sentido que o mesmo arguido, na véspera de viajar para ..., encontrando-se a sua namorada em sua casa, conforme referiu e por esta foi também relatado, resolva deambular no ..., de madrugada, a conversar com o arguido BB com quem viajaria no dia seguinte e à procura de encontrar amigos para conviver.
Nem é plausível que o arguido BB não tenha relatado ao arguido AA, nas mensagens com este trocadas, o que havia sucedido no jantar e a agressão de que foi vitima, por virtude da desavença entre aquele e EE, tanto mais que, simultaneamente, trocava, como o mesmo referiu, mensagens com FF sobre o ali sucedido, o que, aliás, este confirmou.
Assim como não é plausível que o arguido BB não soubesse que o arguido AA tinha consigo a arma de fogo e se não estivesse ciente do propósito deste, atento que encetou a fuga do local, juntamente com o coarguido, sem cuidar sequer de se inteirar do acontecido com a vitima, de quem disse ser amigo, ou de chamar as autoridades.
Como também resultou provado, a arma de fogo de que o arguido AA se muniu quando saiu de sua casa para se encontrar com o arguido BB e depois de ter sido por este contactado, já se encontrava municiada e pronta a disparar.
Por seu turno, o arguido BB, após o episódio ocorrido com EE na Tasquinha do ..., e a agressão de que foi vitima, disse que “ia buscar uma arma”.
Após este episódio, o mesmo arguido contacta o arguido AA, que, então, sai de casa com a arma de fogo pronta a disparar, e juntos dirigem-se em direcção ao Café Snack -Bar ..., onde se encontra o grupo de amigos que também tinham estado no jantar, entre os quais o EE, o que o arguido BB estava em condições de saber, designadamente pelo contacto que foi mantendo com FF. Ao chegarem junto ao Café ..., o arguido AA de forma repentina estica o braço e, com a arma de fogo já municiada, dispara dois tiros em direcção EE, atingindo-o no abdómen, após o que ambos os arguidos se colocam em fuga na mesma direcção.
A visão global que estes factos proporcionam, a conexão temporal e causal que entre eles intercede, apreciados à luz das regras da experiencia comum e do normal acontecer, ancorada nos elementos probatórios recolhidos e que atrás se deixaram referidos, conduziram a convicção positiva, fora de dúvida razoável, que o arguido AA saiu de sua casa com o propósito de atingir EE com disparos da arma de fogo, de que se muniu, depois de ter sido chamado e posto ao corrente do sucedido nesse dia ao jantar pelo arguido BB - o que reavivou a desavença que com aquele mantinha, em razão das declarações prestadas no processo - motivo pelo qual se encontraram ambos, àquela hora da madrugada, no ..., dispondo-se o arguido BB a auxiliar o arguido AA a encontrar EE, e a acompanhá-lo, prestando-lhe deste modo auxílio, ciente do propósito daquele de tirar a vida a EE.
Em suma, foram todos os enunciados elementos probatórios inseridos num todo, globalmente apreciados, e interrelacionados entre si, conjugando o que passou antes, durante e após os disparos que alicerçaram a convicção positiva do tribunal.
A intenção de o arguido AA tirar a vida a EE decorre manifestamente da actuação objectiva do arguido no circunstancialismo que ficou apurado, nomeadamente a zona do corpo da vitima visada e a distância a que foram efectuados os disparos com ama de fogo.
De igual modo, o dolo e intenção com que o arguido BB agiu resulta dos elementos probatórios acima referidos e da materialidade objectiva da sua conduta e do significado que a mesma assume à luz das regras da experiência e do normal acontecer.”
Ao fundamentar a sua decisão nos termos sobreditos, ao contrário do alegado pelo recorrente o tribunal recorrido evidenciou, de forma percetível, o porquê da sua decisão, pelo que fundamentou de forma cabal e suficiente os factos apontados pelo recorrente.
As exigências de fundamentação da matéria de facto da sentença devem ser aferidas segundo critérios de razoabilidade, sob pena de se transformar numa tarefa fastidiosa e quase impossível.
Como bem se refere no Ac. RE de 19.12.2019, processo 10/18.1GBFTR.E1, acessível em www.dgsi.pt “ O que não se exige, na fundamentação da decisão fáctica (quer na enunciação das provas produzidas, quer no exame crítico das mesmas), é uma qualquer operação épica, em que o juiz tenha de expor, um a um, passo por passo, com inteiro detalhe, todo o seu percurso lógico dedutivo.”
Repara-se que no âmbito da questão em análise - nulidade do acórdão por falta ou insuficiente exame critico da prova - não está em causa saber do acerto da fundamentação, se esta convence ou não, se padece de algum erro de raciocínio, nomeadamente de algum vício, ou de erro de julgamento, v.g. se o arguido ou a testemunha A ou B não disseram o que consta da fundamentação. Este tipo de questões têm outra sede própria de análise, que é os vícios do artigo 410º, nº 2 do CPP e o erro de julgamento da matéria de facto do artigo 412º, nºs 3 e 4 do mesmo código, os quais, aliás, foram suscitados pelo arguido /recorrente BB .
Nesta conformidade, não assiste razão ao recorrente, improcedendo este segmento do recurso. 3.3.2- Segundo o recorrente, quanto à apontada nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia, o qual verifica-se quando o tribunal conhece de questão ou de questões sobre as quais não se pode pronunciar,[6] “Não se aceita que o tribunal a quo subdivida o facto número 4 da acusação e não dê a conhecer essa divisão na alteração onde comunicou tal facto aos intervenientes processuais, surpreendendo o arguido com a inclusão do facto que consubstancia o 1.7 do elenco dos factos provados, pelo que só se pode concluir que o Tribunal se decidiu pela alteração daquela factualidade errando agora ao julgá-la”, cfr. conclusão 14;“A acusação refere “a vítima chegou a dar um soco ao arguido, tendo este abandonando o local, dizendo, em tom sério, que ia buscar uma arma” e foi alterada para “tendo o EE, no decurso dessa contenda, atingido no rosto o arguido BB, que ficou ferido””, cfr. conclusão 15; “A decisão que recaiu sobre esta factualidade, entende o recorrente, consubstancia uma nulidade por excesso de pronúncia, nos termos do nº 1. Alínea c) do artigo 379 do CPP e cuja apreciação se requer a V. Exas., concluindo pela eliminação daquele facto do elenco dos dados como provados”, cfr. conclusão 16.
É manifesto que não assiste razão ao recorrente. Como o próprio reconhece, o facto do ponto 1.7 do acórdão recorrido já constava da acusação, não constituindo, como alega, uma surpresa para si. E não é pelo facto de na acusação constituir o facto nº 4, entretanto alterado, que constitui um facto novo, não tendo que ser comunicado nos termos do disposto no artigo 358º, nº 1 do CPP.
Ora, facto novo relativamente aos factos descritos na acusação, porque dela não consta, reside em que no ponto 1.5 dos factos provados do acórdão refere-se que EE atingiu “no rosto o arguido BB, que ficou ferido”.
Mas este facto novo foi objeto de comunicação nos termos do disposto no artigo 358º, nº 1 do CPP para que pudesse ser considerado ou como provado ou como não provado no acórdão. E veio a ser considerado como provado. Por isso, ao contrário do que defende o recorrente, não se entende porque motivo o tribunal recorrido não poderia considerá-lo como provado.
Em suma, não ocorre qualquer motivo de nulidade do acórdão recorrido quer com fundamento na al. c) quer na alínea b) do artigo 379º, nº 1 do CPP. 3.4. O arguido / recorrente BB alega que o acórdão recorrido padece de erro notório na apreciação da prova da al. c) do nº 2 do artigo 410º do CPP.
Repare-se que, neste âmbito, a impugnação da matéria de facto se situa ao nível da decisão da matéria de facto vertida na sentença, e não no âmbito do erro de julgamento da matéria de facto.
Por isso, a impugnação da matéria de facto, por via da invocação dos vícios de confeção da decisão do nº 2 do artigo 410º do CPP, como decorre expressamente da lei, deverá basear-se no texto da decisão, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, não podendo recorrer-se a elementos que lhe sejam externos. E daí que seja frequentemente designada, na jurisprudência, de impugnação restrita da matéria de facto, ou também de “revista alargada”, porque mais limitada do que a chamada impugnação ampla da matéria de facto do artigo 412º, nºs 3 e 4 do CPP.
No caso vertente, no sentido de evidenciar o indicado vício, o recorrente não se baseou somente no texto do acórdão recorrido.
Ainda assim, e porque se trata de matéria de conhecimento oficioso do tribunal, considerando apenas o texto do acórdão por si ou conjugadamente com e as regras da experiência comum, vejamos se ocorre invocado vício de erro notório na apreciação da prova.
O vício de erro notório na apreciação na prova verifica-se quando, analisada a decisão recorrida na sua globalidade e sem recurso a elementos extrínsecos, resulta de forma inequívoca que o tribunal fez uma apreciação ilógica da prova, em patente oposição às regras básicas da experiência comum, ou seja, sempre que para a generalidade das pessoas seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal. Trata-se de um erro ostensivo, que é detetado pelo homem médio. Através da indicação das provas que serviram para formar a convicção do julgador e do seu exame crítico, o tribunal ad quem verifica se o tribunal a quo seguiu ou não um processo lógico e racional na apreciação da prova.
Como se escreveu no acórdão do STJ de 27/10/2010, “ o erro notório na apreciação da prova, nos termos do artº 410º, nº 2, al. c) do CPP, é uma anomalia de confeção técnica decisória, a resultar do texto da decisão recorrida, quando nela existam ou se revelam distorções de ordem lógica entre factos provados e não provados ou que traduzam uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorreta, que, por isso mesmo não passa despercebida imediatamente a uma verificação e observação sem esforço, tomando-se como ponto de referência o homem médio (…)» - cfr. CJ - ASTJ – Ano XVIII, tomo III, pág. 243 e ss.
Mais recentemente numa interpretação diferente, considerando que o erro não é aquele que é percetível pelo homem médio, sustentou-se que “O erro notório é a falha grosseira percetível pelo juiz em concreto pressuposto pela ordem jurídica”, cfr Ac. STJ de 23.06.2022, processo 11/20.0GACLD.C1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Acresce dizer que para se aferir se o tribunal a quo incorreu em erro notório para efeito da disposição legal em análise, importa notar que o tribunal ad quem não vai analisar o conteúdo da prova, ou seja, saber se, por exemplo, os arguidos e as testemunhas disseram ou não o que consta da fundamentação da sentença recorrida. O tribunal ad quem apenas vai analisar o percurso lógico seguido na apreciação da prova no sentido de dar resposta à questão de saber se os elementos de prova considerados permitiam concluir no sentido em que concluiu.
No caso vertente, segundo o recorrente, o qual refere-se indistintamente ao vício de erro notório na apreciação da prova e à valoração errada da prova, confundindo, desse modo, os vícios decisórios e o erro de julgamento da matéria de facto, a questão coloca-se relativamente aos pontos dos factos provados e não provados do acórdão recorrido que impugna por terem sido incorretamente julgados na apreciação que ele próprio faz da prova.
A verdade é que a questão assim colocada diz respeito apenas ao erro de julgamento da matéria de facto.
No que concerne ao vício de erro notório na apreciação da prova, temos que não se deteta a sua ocorrência no caso, porque da leitura da fundamentação da matéria de facto do acórdão recorrido, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, não se vislumbra qualquer erro, mostrando-se, pois, afastada a verificação de um erro crasso detetável em face de uma simples leitura da decisão.
Por conseguinte, quanto a esta questão não assiste razão ao recorrente. 3.5- Os arguidos /recorrentes AA e HHH suscitaram o erro de julgamento da matéria de facto quanto aos pontos da matéria de facto que indicam.
Assim, segundo o arguido /recorrente AA foram incorretamente julgados os pontos 1.8, 1.11, 1.13 (parte), 1.14,1.15 (parte) e 1.35 dos factos provados, os quais devem ser considerados como não provados; e 2.6, 2.7, 2.8, 2.9, 2.10, 2.12, 2.16 e 2.26 dos factos não provados, os quais no seu entender devem ser considerados provados.
Por seu lado, o arguido / recorrente HHH defende que foram incorretamente julgados os pontos 1.7, 1.8, 1.9, 1.11, 1.12, 1.28 e 1.29 dos factos provados, que deverão ser considerados não provados; e os pontos 2.2, 2.20, 2.25 e 2.26 dos factos não provados, os quais deverão ser considerados provados.
Os recorrentes indicaram os pontos de facto incorretamente julgados do acórdão recorrido, os quais são os pontos acima enunciados que, no seu entender, deveriam ter sido considerados como não provados e /ou provados, cfr. artigo 412º, nº 3 al. a) do CPP.
Outrossim, os recorrentes indicaram também as provas que, no seu entender, impõem decisão diversa da recorrida, cfr. artigo 412º, nº 3 al. b) e nº 4 do CPP.
Assim definido o objeto da impugnação da matéria de facto, constatamos que os recorrentes insurgem-se quanto à forma como o tribunal recorrido procedeu à apreciação da prova, criticando o modo como, em concreto, foi aplicado o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do CPP, o qual estabelece que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
Este princípio assume particular relevo na fase de julgamento. Se é certo que a convicção do juiz não pode ser puramente subjetiva, imotivável e por isso, o art.374.º n.º2 do C.P.Penal exige que a sentença contenha “uma exposição tanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentaram a decisão, com a indicação do exame crítico das provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal” também não se pode esquecer que a decisão do juiz é sempre uma convicção pessoal, «até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais» in Jorge de Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, edição 1974, pág.204.
Ao princípio da livre apreciação da prova, estão intimamente associados os princípios da imediação e da oralidade. Na verdade, o juiz, mercê do contacto direto com a testemunha, ao valorar o seu depoimento tem de atender a vários aspetos que têm a ver, designadamente, com a razão de ciência, a imparcialidade, a espontaneidade do depoimento, as hesitações, as contradições, os gestos, etc.
Em casos como o presente, em que a impugnação da matéria de facto se restringe a um ataque ao princípio da livre apreciação da prova, a impugnação tem necessariamente de ter como fundamento o afrontamento manifesto com as regras da experiência comum, no facto de a convicção do tribunal ter assentado em prova ilegal ou proibida ou no valor probatório de determinados documentos.
Noutros termos, segundo o Tribunal Constitucional, Ac. do TC n.º 198/2004 – DR II série, de 2/6/2004, a impugnação teria de se basear “na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objetivos que se apontam na convicção ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objetivos ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.
Ao tribunal de recurso compete sindicar a aplicação no caso concreto do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 127º do CPP. Para tanto, deverá socorrer-se da motivação em sede de matéria de facto da sentença, por forma a constatar o caminho percorrido pelo tribunal de primeira instância ao abrigo do disposto no artigo 374º, nº 2 do CPP.
Contudo, conforme tem sido, unânime e repetidamente, sustentado pela jurisprudência[7] e doutrina[8], o recurso da matéria de facto visa a deteção do erro de julgamento em matéria de facto, constituindo um remédio jurídico e não um segundo julgamento, como se não tivesse ocorrido um julgamento anterior.
No caso vertente, lendo a motivação da matéria de facto do acórdão recorrido e ouvida a gravação da prova, designadamente os depoimentos indicados pelos recorrentes (não apenas os excertos indicados pelos recorrentes), bem assim os demais depoimentos, em conformidade com o disposto no artigo 412º nº6 do CPP, desde já adiantamos não assistir razão aos recorrentes.
Ambos os recorrentes aceitam os factos descritos nos pontos 1.1 a 1.6 e 1.7 (1ª parte) dos factos provados do acórdão, na medida em que não os impugnaram, o mesmo é dizer a ocorrência de um jantar de amigos na “Tasquinha do ...”, a discussão ocorrida entre o arguido BB e o entretanto falecido EE, o motivo dessa discussão, bem assim o envolvimento físico verificado entre eles, tendo o arguido BB sido atingido pelo referido EE, após o que o BB abandonou aquele local.
A discordância dos recorrentes, mais especificamente do arguido BB começa nas palavras que ele terá ou não dito antes de abandonar aquele local.
No ponto 1.7 dos factos provados, considerou-se provado que o BB disse que “ia buscar uma arma”.
Quanto a este ponto, o tribunal recorrido fundamentou a sua convicção, aduzindo, nomeadamente, que:
“A testemunha KK referiu, a este propósito, que levou o arguido BB até ao carro, aconselhando-o a ir embora, e que este arguido estava irritado e disse que ia buscar uma arma, o que o depoente comentou com os ali presentes sem, porém, atribuir foros de seriedade a tal afirmação. Este relato é corroborado pela testemunha FF, que referiu ter ouvido o arguido BB dizer algo na altura em que abandonava o local, sem conseguir perceber que palavras em concreto e, tendo indagado os restantes sobre o que tinha sido dito, alguém lhe referiu que o arguido tinha falado qualquer coisa relacionado com arma.
Assinale-se, ainda, que ambas as testemunhas FF e KK mencionaram que lhes tinha sido referido pelos arguidos, em data anterior à dos factos, que haviam comprado uma arma a meias.”
O recorrente HHH, depois de analisar os depoimentos efetuados pelas referidas testemunhas (KK e FF), defende que deverá considerar-se não provado que no sobredito contexto tenha dito que “ia busca uma arma”.
Porém, não podemos atender a esta pretensão do recorrente, porque, na verdade, as testemunhas referidas disseram o que vem referido na fundamentação do acórdão, sendo que o tribunal recorrido, que beneficiou da imediação e da oralidade, considerou credíveis os referidos depoimentos. O facto de a testemunha KK não ter levado a sério as palavras do arguido BB é irrelevante para o caso, pois a questão colocada é apenas de saber se ele disse que ia buscar uma arma, e nada mais do que isso. Mas, o certo é que, tendo esta testemunha acompanhado o arguido BB ao carro para que ele se fosse embora daquele local, sem sombra de dúvidas que se encontrava em posição privilegiada para ter ouvido o que ele disse. Por outro lado, o próprio recorrente não adianta um motivo para que esta testemunha esteja a falsear a verdade ao dizer que ele disse que ia buscar uma arma, caso este facto não correspondesse à realidade do ocorrido.
No que se refere ao ponto 1.8, 1.9, 1.10, 11, 12, e 1.13 dos factos provados, para além do anteriormente sucedido, ou seja, a ocorrência de uma discussão, com os contornos descritos nos factos provados, a qual terminou com o abandono do local pelo arguido BB, dizendo que ia buscar uma arma, assumiram relevância para a convicção alcançada pelo tribunal recorrido as declarações dos próprios arguidos e o depoimento efetuado pela testemunha FF, corroborado pelo comportamento posterior dos arguidos.
De facto, depois de ter abandonado o local (“Tasquinha do ...”), o arguido BB contactou por telemóvel a testemunha FF para falar da discussão em que acabara de se envolver ( o que foi confirmado por este). E, na mesma ocasião, também contactou o arguido III. Estes factos (os contactos telefónicos) resultam de prova direta inquestionável, que os próprios arguidos aceitam. A discordância dos arguidos / recorrentes, neste particular, é apenas de que, entre eles, tenham falado sobre o ocorrido na “Tasquinha do ...”.
A verdade é que, segundo as regras da experiência comum, tendo em conta o motivo da discussão, que tinha que ver diretamente com o arguido AA, o estado exaltado do arguido BB por ter sido ferido, e a relação de proximidade dos arguidos um com o outro - o que até decorre nomeadamente do facto de trabalharem ambos em ..., para onde tencionavam ir juntos no dia seguinte – o arguido BB informou o arguido III do recente episódio em que se havia envolvido com a vítima EE (facto que até o próprio arguido BB admite ter sucedido, alegando não ter a certeza). Por outro lado, não foi referido qualquer razão válida para que o arguido BB não falasse ao arguido III sobre o ocorrido.
Acresce dizer que a necessidade e urgência de os arguidos AA e BB se encontrarem naquela madrugada e a concordância daquele em se encontrar com este apenas é explicável, estando o III ao corrente do que havia ocorrido. É claro que não se olvida que os arguidos procuraram escamotear o verdadeiro motivo do encontro entre eles, o que até é expectável e compreensível.
Ora, tendo o arguido BB abandonado o local, dizendo que ia buscar uma arma, para além de ter posto o AA ao corrente do episódio ocorrido ( avivando a desavença existente coma vítima) sabia que ele tinha uma arma (cfr. depoimentos efetuados pelas testemunhas KK e FF na parte em que referem que os arguidos, em data anterior aos factos, tinham comprado uma arma a meias), que a trazia consigo e dispôs-se a ajudá-lo a encontrar o EE, sabendo que ele pretendia usar a referida arma para atingir o EE e tirar-lhe a vida, conforme provado em 1.28 e 1. 29
De facto, segundo as regras da experiência comum não existe outra explicação para os arguidos se terem dirigido, cerca das 02.00 horas, ao estabelecimento “Snack-Bar ...”, nos termos considerados como provados em 1.14, 1.15 e 1.16, em que salienta o pormenor de o arguido AA logo que se aproximou o suficiente da vítima EE apontou a arma na sua direção, efetuando dois disparos, com o propósito obvio de lhe tirar a vida, pondo-se, de seguida ambos, os arguidos em fuga.
Com bem se refere na fundamentação do acórdão acerca da localização da vítima EE, o arguido BB teve a possibilidade de saber através dos contactos que foi mantendo naquela noite com a testemunha FF, que integrou o grupo de amigos da vítima, na companhia do qual, de resto, se encontrava quando ocorreram os disparos.
Acerca da questão de os arguidos estarem convencidos de que a vítima EE e o seu grupo de amigos se encontram numa festa de musica eletrónica em ..., importa salientar que este facto foi referido pela referida testemunha FF, mas o propósito de irem à referida festa, como decorre do depoimento efetuado por esta mesma testemunha, ficou, desde logo, afastado devido ao problema surgido entre o arguido BB e o EE. Por isso, esta questão é inócua, pois que, repete-se, o arguido BB teve a possibilidade de saber através dos contactos que foi mantendo naquela noite com a testemunha FF, onde se encontrava o EE. Por isso, o referido facto foi, e bem, considerado como não provado (cfr. pontos 2.6 e 2.26 dos factos não provados). A este propósito, percebe-se a razão ou o interesse porque os recorrentes pretendem que este facto fosse considerado como provado. Todavia, contrariamente ao que os arguidos pretenderam fazer crer, a circunstância de se terem dirigido ao “Snack – Bar ...”, onde se encontra a vítima, na sequência do encontro prévio entre eles, não foi meramente circunstancial, como foi explicado na fundamentação do acórdão.
Ao contrário do que refere o recorrente AA, a distância de cerca de 2 metros da vítima (distância aproximada, mas curta) a que foram efetuados os disparos pelo arguido AA (cfr. facto provado 1.15) encontra-se devidamente justificada e fundamentada no acórdão recorrido, não se vislumbrando qualquer erro.
No que concerne ao motivo da atuação do arguido AA (cfr. ponto 1.26 dos factos provados) - facto impugnado por este arguido, com fundamento, no essencial, em que os factos denunciados pela vítima era coisa do passado, sem importância, tendo-se já vingado, contando ao grupo de amigos comuns (dele e da vítima) que ele era um “chibo” e que os disparos e a morte da vítima ocorreram por razões meramente circunstanciais - entendemos que o facto foi considerado como provado de acordo com a prova produzida, não sendo, por isso, merecedor de qualquer censura.
Na verdade, por um lado, a dinâmica dos factos teve lugar tal como foi considerado como provado nos pontos 1.14, 1.15 e 1.16, já que a prova com base na qual o tribunal recorrido os considerou provados é credível, isenta e segura, não sendo merecedora de quaisquer criticas ou reparos a apreciação probatória efetuada, não tendo resultado provado, designadamente, a versão dos factos não provados nos pontos 2.8, 2.9, 2.10, 2.11, o que afasta a ideia aventada de o arguido GG ter disparado sobre a vítima por razões meramente circunstanciais, nomeadamente por alegadamente o EE ter feito um movimento com os braços, fazendo crer que iria retirar uma arma do bolso. Aliás, a rapidez com que o arguido AA se aproximou do EE, efetuando os disparos com os quais o atingiu, segundo as regras da experiência comum, nem se percebe como é que tal poderia ter sucedido. O GG tinha a arma já municiada e pronta a disparar, efetuando os disparos que atingiram o EE, tal a rapidez com que o fez, sem entrar em diálogo com este.
Por outro lado, a questão de a vítima EE ter denunciado o arguido AA (cfr. pontos 1.1 e 1.2 dos factos provados) não estava esquecida por este (quanto a este ponto, como referido no acórdão e contrariamente ao sustentado pelo arguido AA, o depoimento da testemunha HH é irrelevante). Na verdade, caso assim fosse, o assunto não seria motivo da discussão entre o arguido BB e a vítima EE na “Tasquinha do ...” (cfr. factos provados 1.3, 1.4 e 1.5.), facto que, sem sombra de dúvidas, fez reavivar aquela desavença. E os arguidos não se teriam encontrado naquela noite, não convencendo o motivo por eles alegado de ainda necessitarem de conversar sobre a deslocação de ambos para ... no dia seguinte. O arguido GG tinha deixado de falar com a vítima por este o ter denunciado, apesar de fazerem parte de um grupo de amigos comuns. E, em tal contexto, obviamente o arguido BB estimulou a animosidade existente entre o arguido GG e a vítima, conforme provado em 1.28 dos factos provados do acórdão e nele devidamente fundamentado.
Acresce que a atitude dos arguidos após os disparos (fugirem imediatamente do local), conjugada com o anteriormente ocorrido também permite concluir acerca dos aspetos subjetivos das suas condutas nos termos em que concluiu o tribunal recorrido. A explicação do recorrente BB para se ausentar do local não convence.
Ora, importa recordar que a apreciação crítica da prova produzida, a efetuar nos termos do disposto no nº 2 do artigo 374º do CPP, deve o tribunal ter em conta não apenas a prova direta dos factos, mas também a chamada prova indireta ou através de presunções simples ou máximas de experiência, conforme é hoje entendimento pacífico, nomeadamente doutrina[9] e na jurisprudência[10].
A prova direta refere-se imediatamente aos factos a provar, ao tema da prova, enquanto a prova indireta ou indiciária se refere a factos diversos do tema da prova, mas que permitem, com auxílio de regras da experiência, uma ilação quanto ao tema da prova[11].
Em processo penal de acordo com o disposto no artigo 125º do CPP, são admissíveis as provas que não forem proibidas, pelo que é legitimo o julgador tirar ilações de um facto conhecido para afirmar um facto desconhecido, cfr. artigo 349º do C. Civil.
Na formação da convicção, não está o juiz impedido de usar presunções baseadas em regras da experiência, ou seja, nos ensinamentos retirados da observação empírica dos factos. Ensina Vaz Serra[12] que “Ao procurar formar a sua convicção acerca dos factos relevantes para a decisão, pode o juiz utilizar a experiência de vida, da qual resulta que um facto é a consequência típica de outro; procede então mediante uma presunção ou regra da experiência (…) ou de uma prova de primeira aparência”.
Todavia, como se salienta no Ac. STJ de 06.10.2010, processo 936/08.JAPRT, disponível em www.dgsi.pt “a ilação derivada de uma presunção natural não pode, porém, formular-se sem exigências de relativa segurança, especialmente em matéria de prova em processo penal em que é necessária a comprovação da existência dos factos para além de toda a dúvida razoável”.
No caso vertente, as ilações retiradas pelo tribunal, segundo as regras da experiência comum, a partir dos factos conhecidos, comprovados através de prova direta credível, quer quanto aos factos objetivos, quer quanto aos factos subjetivos ou do foro intimo dos arguidos, são seguras para além de toda a dúvida razoável.
No que concerne ao ponto 1.35 dos factos provados, ao contrário do que defende o recorrente AA, as declarações prestadas pela assistente CC suportam este facto, do qual já resulta que efetivamente pese embora a vítima não residisse com a mãe, esta mantinha com o filho uma relação de proximidade, sendo que deste facto não se pode concluir que tal relação era igual àquela que existia entre a vítima e o seu pai.
No que se refere aos factos considerados como não provados no acórdão impugnados pelos recorrentes, em particular daqueles que se referem à dinâmica dos factos e suas circunstâncias, temos que eles correspondem, no essencial, à versão dos arguidos, a qual não foi considerada credível pelo tribunal recorrido pelas razões que indicou, as quais não nos merecem qualquer reparo, em face da prova de sentido contrário produzida, quer por tal versão se mostrar contrária às regras da experiência comum.
Relativamente aos pontos 2.13 e 2.20 dos factos não provados, relativos, respetivamente, à personalidade do EE e do arguido BB, para além de serem conclusivos, a prova produzida não permite, por insuficiência, considerá-los como provados. Aliás, quanto ao EE, as testemunhas FF e KK, consideradas credíveis pelo tribunal recorrido, disseram, perentoriamente, que ele não era violento / perigoso. E, quanto ao arguido BB, já foram considerados provados factos sobre elementos da sua caracterização pessoal (cfr. ponto 1.62 dos factos provados).
Nesta conformidade, constata-se que os recorrentes, quanto aos pontos de facto que indicam, em vez de procurarem demonstrar que a convicção dos Senhores Juízes não é possível pelo facto de ocorrer violação concreta do alegado princípio da livre apreciação da prova nalgum dos casos em que este princípio é sindicável em sede recurso, nomeadamente por violação manifesta das regras da experiência comum, limitam-se a criticar tal convicção, evidenciando a sua visão pessoal da prova, pretendendo que este tribunal de recurso a acolha..
Ora, do confronto da parte fundamentação do acórdão acima transcrita, com os excertos das transcrições dos depoimentos efetuadas pelos recorrentes e ouvida a gravação, não se vislumbra onde é que o tribunal recorrido errou na apreciação que fez da prova, designadamente quanto aos factos postos em causa pelos recorrentes.
Efetivamente, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o tribunal é livre de dar credibilidade a determinados depoimentos, em detrimento de outros, desde que essa opção seja explicitada e convincente, como é o caso. Cumprida essa exigência, a livre convicção do juiz torna-se insindicável até porque a documentação dos atos da audiência não se destina a substituir, nem substitui, a oralidade e a imediação da prova”, cfr. Ac. RG de 28.06.2004, processo 575/04-1, acessível em www.dgsi.pt.
Com as suas alegações, os recorrentes pretendem apenas evidenciar que a analise que fazem da prova, a sua convicção, necessariamente parcial e interessada, é a mais acertada. A análise que fazem dos depoimentos efetuados pelas testemunhas e a argumentação por eles usada para que as suas próprias declarações sejam julgadas credíveis é disso elucidativo. A verdade, porém, é que não vemos onde é que errou o tribunal recorrido ao ter concluído, nomeadamente, no sentido de que:
“As descritas versões apresentadas pelos arguidos são destituídas de credibilidade, contraditórias entre si e desconformes com a visão global que os demais elementos probatórios oferecem.
Com efeito, não merece credibilidade a explicação fornecida pelo arguido AA para se fazer acompanhar de uma arma de fogo quando sai de casa para se encontrar com o arguido BB, nem faz qualquer sentido que o mesmo arguido, na véspera de viajar para ..., encontrando-se a sua namorada em sua casa, conforme referiu e por esta foi também relatado, resolva deambular no ..., de madrugada, a conversar com o arguido BB com quem viajaria no dia seguinte e à procura de encontrar amigos para conviver.
Nem é plausível que o arguido BB não tenha relatado ao arguido AA, nas mensagens com este trocadas, o que havia sucedido no jantar e a agressão de que foi vitima, por virtude da desavença entre aquele e EE, tanto mais que, simultaneamente, trocava, como o mesmo referiu, mensagens com FF sobre o ali sucedido, o que, aliás, este confirmou.
Assim como não é plausível que o arguido BB não soubesse que o arguido AA tinha consigo a arma de fogo e se não estivesse ciente do propósito deste, atento que encetou a fuga do local, juntamente com o coarguido, sem cuidar sequer de se inteirar do acontecido com a vitima, de quem disse ser amigo, ou de chamar as autoridades.
Como também resultou provado, a arma de fogo de que o arguido AA se muniu quando saiu de sua casa para se encontrar com o arguido BB e depois de ter sido por este contactado, já se encontrava municiada e pronta a disparar.
Por seu turno, o arguido BB, após o episódio ocorrido com EE na Tasquinha do ..., e a agressão de que foi vitima, disse que “ia buscar uma arma”.
Após este episódio, o mesmo arguido contacta o arguido AA, que, então, sai de casa com a arma de fogo pronta a disparar, e juntos dirigem-se em direcção ao Café Snack -Bar ..., onde se encontra o grupo de amigos que também tinham estado no jantar, entre os quais o EE, o que o arguido BB estava em condições de saber, designadamente pelo contacto que foi mantendo com FF. Ao chegarem junto ao Café ..., o arguido AA de forma repentina estica o braço e, com a arma de fogo já municiada, dispara dois tiros em direcção EE, atingindo-o no abdómen, após o que ambos os arguidos se colocam em fuga na mesma direcção.
A visão global que estes factos proporcionam, a conexão temporal e causal que entre eles intercede, apreciados à luz das regras da experiencia comum e do normal acontecer, ancorada nos elementos probatórios recolhidos e que atrás se deixaram referidos, conduziram a convicção positiva, fora de dúvida razoável, que o arguido AA saiu de sua casa com o propósito de atingir EE com disparos da arma de fogo, de que se muniu, depois de ter sido chamado e posto ao corrente do sucedido nesse dia ao jantar pelo arguido BB - o que reavivou a desavença que com aquele mantinha, em razão das declarações prestadas no processo - motivo pelo qual se encontraram ambos, àquela hora da madrugada, no ..., dispondo-se o arguido BB a auxiliar o arguido AA a encontrar EE, e a acompanhá-lo, prestando-lhe deste modo auxílio, ciente do propósito daquele de tirar a vida a EE.
Em suma, foram todos os enunciados elementos probatórios inseridos num todo, globalmente apreciados, e interrelacionados entre si, conjugando o que passou antes, durante e após os disparos que alicerçaram a convicção positiva do tribunal.
A intenção de o arguido AA tirar a vida a EE decorre manifestamente da actuação objectiva do arguido no circunstancialismo que ficou apurado, nomeadamente a zona do corpo da vitima visada e a distância a que foram efectuados os disparos com ama de fogo.
De igual modo, o dolo e intenção com que o arguido BB agiu resulta dos elementos probatórios acima referidos e da materialidade objectiva da sua conduta e do significado que a mesma assume à luz das regras da experiência e do normal acontecer.”
Nesse sentido e uma vez que a prova se mostra apreciada de acordo com as regras da experiência comum e do normal acontecer, sem que se detete qualquer erro, a conclusão é inevitável: os aspetos evidenciados pelos recorrentes, ao contrário do por eles defendido, não têm a virtualidade de impor uma decisão diversa da decisão recorrida, nos termos do disposto na alínea b) do nº 3 do artigo 412º do CPP. 3.6- Invoca também o arguido / recorrente BB em defesa da sua tese recursiva, mas também o arguido AA quanto à questão da distância da vítima a que foram efetuados os disparos, a violação do princípio da presunção de inocência do arguido e do in dubio pro reo.
A invocação por parte dos recorrentes do princípio da presunção de inocência do arguido e do in dubio pro reo[13] carece totalmente de sentido.
O princípio da presunção de inocência do arguido encontra-se previsto no artigo 32º, nº 2 1ª parte da CRP, sendo o in dubio pro reo uma decorrência daquele, e tem o significado de que o juiz quando não tiver a certeza sobre a ocorrência de factos relevantes que prejudiquem o arguido, e subsistir a dúvida, deverá decidir em favor do arguido[14].
Mas, nesse caso, terá de ser uma dúvida razoável, inultrapassável, que impeça a convicção do tribunal[15].
Como é sabido, em processo penal não existe um ónus da prova que impenda sobre os sujeitos processuais, devendo o tribunal investigar autonomamente o caso submetido a julgamento.
Nas palavras de F. Dias[16] “À luz do princípio da investigação, bem se compreende, efetivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (…) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à «dúvida razoável» do tribunal, também não possam considerar-se como «provados». E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir todas as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova (…) tem de ser sempre valorado a favor do arguido”.
A violação do in dubio pro reo ocorre, nomeadamente, quando o tribunal tendo ficado com dúvidas sobre factos relevantes, mesmo assim, tenha decidido contra o arguido, pelo que, nesta hipótese - como tem sido salientado pela jurisprudência, nomeadamente, do STJ[17] enquanto tribunal de revista - tal como os vícios da sentença do artigo 410º do CPP, o estado de dúvida do julgador terá de resultar do texto da sentença, por si ou conjugadamente com as regras da experiência comum, sendo o caso suscetível de configurar erro notório na apreciação da prova do nº 2 al. c) do artigo 410º do CPP.
Mas, a violação do princípio do in dubio pro reo pode ser analisado em duas perspetivas consoante o estado de dúvida que se considere relevante, ou seja, a dúvida subjetiva sentida pelo tribunal, ou a dúvida em sentido objetivo, não se exigindo, neste caso, a dúvida subjetiva ou histórica, para que possa ocorrer a sua violação[18].
Neste último sentido (dúvida em sentido objetivo), que é em nosso entender o claramente perfilhado pelo legislador, ocorre violação do princípio do in dubio pro reo na hipótese de o tribunal recorrido considerar como provados factos relevantes desfavoráveis que prejudiquem o arguido relativamente aos quais, numa análise racional, objetiva e criteriosa da prova, se impunha que tivesse dúvidas inultrapassáveis.
Por isso, diferentemente do que sucede no caso do STJ enquanto tribunal de revista, o Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, cfr. artigo 428º do CPP. E, sendo assim, mesmo que a violação do princípio in dubio não resulte do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, enquanto erro notório na apreciação da prova da al. c) do n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., pode a mesma ser detetada no âmbito de impugnação ampla da decisão proferida sobre a matéria de facto.
Nesta conformidade, faz todo o sentido afirmar-se que pode acontecer que o tribunal recorrido considere, expressa ou implicitamente, não ter tido dúvidas, quando deveria tê-las,[19] ocorrendo, neste caso, um vício na formação da convicção do tribunal. Nesta hipótese, deverá a questão ser a analisada no âmbito de uma eventual violação do princípio da livre apreciação da prova do artigo 127º do CPP[20], tendo presente, nomeadamente, a possibilidade de violação das regras da experiência comum, isto evidentemente caso tenha sido impugnada, por forma ampla, a matéria de facto.
No caso vertente - em que foi impugnada a matéria de facto com recurso à prova gravada – o tribunal recorrido não teve dúvidas de que os arguidos, aqui recorrentes, praticaram os factos nos moldes em que os considerou provados. A simples leitura da fundamentação de facto da sentença recorrida é clara a este propósito, tendo o tribunal recorrido explicado e evidenciado, as razões porque se convenceu de que efetivamente os arguidos praticaram os factos. E, acrescenta-se, nem tinha que ter tido dúvidas, porquanto logrou convencer-se, em função de juízos de normalidade, segundo as regras da experiência comum, donde resulta não ter sido violado o princípio da livre apreciação da prova, bem assim o princípio a presunção de inocência do arguido e do in dubio pro reo.
O que quer dizer que, no caso em análise, a prova produzida e examinada em audiência de julgamento suporta perfeitamente a convicção que dela formou o tribunal recorrido, sem que tenham ocorrido, consequentemente, quaisquer atropelos às regras legais de apreciação da prova.
Em síntese, a decisão recorrida está devidamente fundamentada, tendo sido claramente explicitados, sendo por isso perfeitamente percetíveis, os motivos da convicção alcançada pelo tribunal. Por outro lado, os aspetos evidenciados pelos recorrentes não têm a virtualidade de impor decisão diversa da proferida, não se verificando, pois, erro de julgamento da matéria de facto.
Nos termos expostos, tem-se como definitivamente fixada a matéria de facto tal como se encontra definida no acórdão recorrido. 3.7- O arguido /recorrente AA insurge-se contra a qualificação do crime de homicídio, defendendo não se verificar no caso a circunstância qualificativa “motivo fútil”, não devendo a conduta ser tido como especialmente censurável.
Vejamos se lhe assiste razão.
Nos termos do disposto no artigo 132º, nº 1 e nº 2 al. e) do C. Penal “1. Se a morte for produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o agente é punido…”
“2. É susceptível de revelar especial censurabilidade ou perversidade a que se refere o número anterior, entre outras, a circunstância de o agente:
e) Ser determinado…por qualquer motivo torpe ou fútil”.
O legislador seguiu em matéria de qualificação do homicídio, o recurso a um critério generalizador determinante de um especial tipo de culpa agravado, assente em conceitos indeterminados, a especial censurabilidade e perversidade, de verificação mediante a técnica da enumeração dos exemplos-padrão, uns referentes ao facto outros ao autor, orientadores do tipo de culpa, de cuja valoração resulta a imagem global do facto agravada – cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Prof. Figueiredo Dias, Tomo I, pág. 26.
A circunstância qualificativa motivo fútil é a que surge fundada num profundo desprezo do valor da vida humana, ação que não pode razoavelmente explicar e muito menos justificar a conduta; é um motivo que de tão pouco ou impercetível relevo revelador de inadequação e que faz avultar a desproporcionalidade entre o que impulsiona a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que aquela se objetivou. Neste sentido, entre tantos, vide Acs STJ de 27.5.2010, P.º n.º 517 /08.9 JACBR.C1.S1, 27.6.2012, Rec.º n.º 127/10.OJABRG.G2.S1, 17.4.2013,P.º n.º 237/11.7JASTB.L1.S1, 12.3.2015, P.º 185 /13.6.GCAL Q.L1.S1, e de 02.12.2005, Processo 1730/14.5 JAPRT-S1, disponíveis em www.dgsi.pt.
Como bem salienta F. Dias, Comentário Conimbricense, Tomo I, pág. 32, é equívoca a repetida afirmação de alguma jurisprudência de que motivo fútil “é o que não é ou nem sequer chega a ser motivo”.
Ora, tal como se salienta no Ac STJ 27.06.2012, proc. 127/10.0JABRG.G2.S1, disponível em www.dgsi.pt “O motivo fútil não é tanto o que passe por dizer-se que, sendo ele de tão pouco ou impercetível relevo, quase que pode nem chegar a ser motivo, mas sim, aquele que realce a inadequação e faça avultar a desproporcionalidade entre o que impulsionou a conduta desenvolvida e o grau de expressão criminal com que ela se objetivou.
O homicídio pode ter na sua origem uma situação que face à experiência comum poderia conduzir àquele desenlace. Porém, casos existem em que o homicídio surge numa situação em que de todo não era expectável, em que são mínimos os motivos que lhe estão em causa. A prática do crime surge aqui como resultado de um processo pautado pela ilógica, ou de plena irracionalidade, em que uma culpa do agente acentuada por um alto grau de censurabilidade leva a tirar a vida a alguém por razões fúteis.”
No mesmo sentido, veja-se o Ac. STJ de 02.02.2022, processo 74/21.0GBRMZ.S1, disponível em www.dgsi.pt, no qual se sustenta que “Motivo fútil é o motivo de importância mínima, o motivo sem valor, insignificante para explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a atuação do agente do crime, desproporcionado e sem sentido perante o senso comum, por ser totalmente irrelevante na adequação ao facto, sem explicação racional plausível, radicando num egoísmo mesquinho e insignificante do agente. O motivo é fútil quando, pela sua insignificância ou frivolidade, é notavelmente desproporcionado, do ponto de vista do homo medius e em relação ao crime. A desproporcionalidade de que se fala é a que se evidencia face ao motivo de “importância mínima”, “sem valor”, dotado de “insignificância” ou “frivolidade”; refere-se à relação entre o motivo e o facto, não caracteriza o motivo que determina o facto.”
No caso em apreciação, os factos provados integram a apontada qualificativa do homicídio “motivo fútil”. O motivo que levou o arguido a tirar a vida ao EE através de dois disparos com arma de fogo efetuados a cerca de dois metros de distância – o facto de a vítima, cerca de dois anos antes, ter declarado num processo judicial, em declarações que prestou perante o M.P., que lhe tinha comprado duas vezes “ganza” pelo preço de €5,00, em cada uma dessas ocasiões, o que conduziu a que tivesse sido condenado em pena prisão suspensa, facto que foi reavivado por uma discussão sobre esta questão ocorrida entre o arguido BB e a vítima – constitui um motivo insignificante, de tão pouco relevo que a sua conduta surge como não expectável, ilógica, irrazoável, sendo, por isso, particularmente censurável, moralmente repugnante, constituindo um motivo fútil.
O próprio arguido / recorrente AA reconheceu a insignificância do referido motivo, de tal forma que qualificou esse facto sem qualquer relevo ou importância, sendo um facto do passado, já por ele esquecido, do qual resultou para si apenas uma pena de prisão suspensa. Nessa medida, procurou demonstrar que não existiu qualquer motivo, sendo o homicídio meramente circunstancial, o que, porém, não teve acolhimento do tribunal de primeira instância e também deste tribunal de recurso. Houve motivo para o homicídio, sendo de todo incompreensível, inusitado, que alguém suprima uma vida humana por a vítima ter, em momento anterior, declarado num processo judicial que lhe tinha comprado duas vezes “ganza”, pelo preço cinco euros em cada uma dessas ocasiões, independentemente de o motivo ter sido reavivado por discussões entre amigos comuns e das consequências que tenham daí resultado, que no caso foi a condenação em pena de prisão suspensa, sendo este tipo de pena, como é sabido, não raras vezes desvalorizada pelos seus destinatários.
Por conseguinte, improcede também este segmento do recurso. 3.8- A assistente CC interpôs recurso do acórdão, sustentando que o arguido BB deveria ser responsabilizado pelo crime de homicídio, juntamente com o arguido AA, na qualidade de coautor, como instigador, e não apenas como mero cúmplice, sendo esta a única questão suscitada no seu recurso.
Segundo a assistente, em síntese, não existia indicação de que o arguido AA quisesse cometer o crime antes de ser contactado pelo arguido BB, após a contenda que o mesmo teve com o EE, tendo sido o BB quem criou a vontade no AA do cometimento do crime, o que veio a suceder. Mais alegou que o arguido BB tinha o domínio do facto sob a forma do domínio da decisão, de modo a que o instigado cometesse naquele dia o homicídio do qual resultou a morte do filho da assistente.
Vejamos.
A resolução da questão assim suscitada não oferece controvérsia, desde logo porque a recorrente não impugnou a matéria de facto, pelo que temos de nos cingir aos factos tal como foram considerados como provados. E, desde já se adianta, que estes são insuficientes para que a tese da recorrente pudesse proceder.
Segundo refere o artigo 26º do CP, “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte direta na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem, dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução.”
Por seu lado o nº1 do artigo 27º do mesmo código refere que “ É punível como cúmplice quem, dolosamente e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso.”
No caso vertente, para que o arguido BB pudesse ser considerado coautor seria necessária que os factos provados permitissem concluir que ele dolosamente determinou o arguido III a disparar sobre o EE, “dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto”, segundo os dizeres da lei.
Ora, a cumplicidade diferencia-se da coautoria pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através de auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se esta prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado ou facilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.
É que «A linha divisória entre autores e cúmplices está em que a lei considera como autores os que realizam a ação típica, direta ou indiretamente, isto é, pessoalmente ou através de terceiros (dão-lhe causa), e como cúmplices aqueles que, não realizando a ação típica nem lhe dando causa, ajudam os autores a praticá-la», cfr. Germano Marques da Silva, in Direito Penal Português, Parte Geral, vol. II, ed. Verbo, pág. 179.
No caso da instigação, a atuação daquele que “…convence o outro a cometer o crime, usando artifícios vários, esgrimindo argumentos a favor do ilícito, ameaçando ainda que veladamente aquele que quer influenciar, não é só causa do crime, enquanto condição necessária da sua realização, uma vez que de outra forma o crime não teria sido praticado, como é particularmente censurável pela forma insidiosa como se move, detendo o instigador uma parte significativa do domínio do facto uma vez que não se limita a apoiar outra pessoa na sua decisão pela prática do crime, mas incita à violação de bens jurídicos que de outra forma se manteriam preservados, justificando-se plenamente, ao que pensamos, o seu enquadramento, em sede de autoria”, cfr Maria Paula Ribeiro Faria, in Formas Especiais do Crime, Universidade Católica Porto, 2017, fls. 327 e segs..
Como bem refere Figueiredo Dias[21] “…instigador no sentido do artigo 26.º é unicamente quem produz ou cria de forma cabal (…) no executor a decisão de atentar contra um certo bem jurídico penal através da comissão de um concreto ilícito típico(…). O instigador possui deste modo-tanto ou mais que, em muitos casos, o autor mediato ou coautor - o domínio do facto, agora aqui sob a forma de domínio da decisão.” “…o instigador surge assim (mas só então) como verdadeiro senhor, dono ou dominador se não do ilícito típico como tal, ao menos e seguramente da decisão do instigado de o cometer; determinação que desta maneira integra, por antecipação, a totalidade dos elementos constitutivos do ilícito típico.”
Existem comportamentos que preencham o conceito de “instigação”, entendido este conceito em sentido comum e corrente, como é o caso de “incentivar, aconselhar, sugerir, reforçar o propósito”[22], ou seja, o “homem-de-trás” com a sua conduta influencia a motivação do homem da frente, sem o verdadeiramente o “determinar”, numa aceção estrita, à realização típica. Porém, tais comportamentos não cabem no conceito jurídico penal de instigação no sentido do artigo 26.º, 4ª alternativa, antes constituem “auxílio” e, por conseguinte, cumplicidade para efeito do artigo 27.º.
No caso vertente, os factos provados apenas permitem concluir pelo mero auxílio material à prática do facto por outrem. Efetivamente, o arguido BB, após o termo da contenda na “Tasquinha do ...”, com o EE, disse que iria buscar uma arma. Mas o que se passou a seguir, a este episódio, apenas permite concluir que a decisão de tirar a vida ao EE pertenceu, em exclusivo, ao arguido III, ao qual o BB contou a contenda ocorrida, sendo que os motivos da mesma apenas a ele lhe diziam respeito. Na na mesma noite, algumas horas depois, o arguido BB, que sabia que o III tinha uma arma, ajudou o arguido III a localizar o EE, acompanhando-o até ao local onde este se encontrava, ou seja, no estabelecimento “Snack-Bar ...” e onde efetivamente aquele efetuou os disparos que atingiram o EE. A presença do arguido BB no local dos disparos, acompanhando o arguido III, não faz dele coautor. 3.9- Segundo o arguido / recorrente III, quanto ao crime de detenção de arma p. e p. pelo artigo 86º, nº 1 al. c) do RJAM, deverá aplicar-se pena de multa, porquanto “… atenta, não só a político-criminal da pena não privativa da liberdade na pequena e média criminalidade, sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da prevenção (cf. artigo 70.º do Código Penal), bem como ao facto de o arguido não ter antecedentes criminais pela prática de crimes da mesma natureza, o que, quanto a nós, permite um juízo de prognose favorável, cfr. Conclusão 40; “Mais a mais, o facto de o crime de homicídio ter sido cometido com arma de fogo pressupõe, já, uma agravação no limite mínimo e máximo da medida da pena (cf. artigo 86º, nº 3, do RJAM)”, cfr. conclusão 41; “Pelo que o acórdão em crise, ao não ter dado preferência à pena de multa em detrimento da pena de prisão, violou o disposto no n.º 1 do artigo 71º., bem como do artigo 40º do C.P. e, ainda, o artigo 18º, nº 2, da C.R.P.”, cfr. conclusão 42.
Vejamos
O crime de detenção de arma do nº1 al. c) do artigo 86º do RJAM configura um crime de perigo abstrato em que o que está em causa é a perigosidade das próprias armas, com a incriminação se visando tutelar o perigo de lesão da ordem, segurança ou tranquilidade públicas.
Segundo Marques Borges, Dos Crimes de Perigo Comum e dos Crimes Contra a Segurança das Comunicações, Rei dos Livros, pág. 22, “O crime de detenção ilegal de arma, sendo um crime de perigo, corresponde a uma categoria de crimescaracterizados pela conduta do agente criar uma situação ou traduzir um comportamento que, de acordo com a experiência comum e os conhecimentos existentes, pode originar um dano não controlável (difuso), com potência expansiva, sendo apto a poder causar alarme social”.
“O ponto crucial destes crimes...reside no facto de que condutas cujo desvalor de acção é de pequena monta se repercutem, amiúde, num desvalor de resultado de efeitos não poucas vezes catastróficos. Clarifique-se que o que (…) está primacialmente em causa não é o dano, mas sim o perigo.
Pune-se logo o perigo, porque tais condutas são de tal modo reprováveis que merecem imediatamente censura ético-social”, cfr. Código Penal, Leal Henriques e Simas Santos, Vol. 3, pág. 242.
Por outro lado, a agravação do artigo 86º, nº 3 do RJAM encontra o seu fundamento no maior grau de ilicitude do facto, no maior desvalor da ação, e opera ope legis. Como se refere no Ac. STJ de 30.10.2014, processo 32/13.9JDLSB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt “O legislador quis, com a agravação prevista naquele art. 86.º, n.º 3 (…) afirmar que há uma ilicitude agravada aquando da prática de um qualquer crime em que se utilize uma arma (no sentido abrangido pela Lei n.º 5/2006 — cf. art. 2.º, n.º 1)”. Sobre esta agravação vide v.g. Ac. STJ de 31.03.2011, processo 361/10.3GBLLE; Ac. RP de 21.09.2011, processo 306/10.0JAPRT.P1; e Ac. STJ de 25.11.2020, processo 1302/19.8JABRG.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
O crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo artigo 81º, nº 1 al. c) da Lei nº 5/2006, de 23.02 é punível com a pena de 1 a 5 anos de prisão ou com pena de multa de 10 a 600 dias.
Para efeitos de escolha da pena, em conformidade com o disposto no artigo 70º do CP, ou seja, da opção entre a aplicação da pena de prisão ou multa, é irrelevante quaisquer considerações relativas à culta ou à ilicitude, sendo de atender somente às exigências de prevenção geral e especial, cfr. artigo 40º, nº 1 do CP.
O crime de detenção de arma, pela frequência com que é praticado, e por estar associado – como muito frequentemente acontece, como é o caso que agora nos ocupa – à prática, com violência contra as pessoas, de outros ilícitos típicos, é gerador de fortes sentimentos de insegurança e intranquilidade social. São, por isso, muito elevadas as exigências de prevenção geral.
No caso vertente, quanto ao crime de detenção de arma, pese embora as exigências de prevenção especial não sejam elevadas, considerando que a arma foi usada no cometimento do crime de homicídio, em conformidade com o disposto no artigo 70º do CP, face às sentidas exigências de prevenção geral, isto é a necessidade de tutela da confiança e das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma violada, quanto o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, impõem a opção pela pena de prisão.
Por isso, quanto ao crime de detenção de arma, bem andou o tribunal recorrido na opção que fez pela pena de prisão em detrimento da pena de multa. 3.10- Os arguidos / recorrentes III e BB insurgem-se contra a medida da pena em que foram condenados quanto ao crime de homicídio, que consideram ser excessiva e desproporcionada.
Assim, importa agora sindicar a medida concreta das penas aplicadas quanto ao crime de homicídio agravado pelo uso de arma, de 18 anos e 6 meses de prisão e de 5 anos e 3 meses, em que os arguidos AA e BB foram, respetivamente, condenados em primeira instância.
Nesta sede, não podemos deixar de salientar - quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso[23] - que entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina[24] e da jurisprudência[25] de que “é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada”[26].
A aplicação da pena visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, cfr. nº 1 do artigo 40º do CP, pelo que, tendo em conta estes desideratos, a determinação da sua medida concreta faz-se de acordo com os critérios fixados no artigo 71º, n.º 1 e n.º 2 do C. Penal. Numa primeira aproximação, a pena deve ser concretizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo ainda, numa segunda fase, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento.
A medida concreta da pena há-de encontrar-se no espaço de liberdade fornecido por uma moldura que tem como limite máximo a culpa do agente e como limite mínimo as exigências de prevenção geral positiva[27].
Na verdade, importa precisar que:
- A culpa do agente assinala o limite máximo da moldura penal, dado que não pode haver pena sem culpa, nem a pena pode ser superior à culpa, de acordo com princípios fundamentais da Constituição da República Portuguesa[28], do Código Penal e no respeito pela dignidade inalienável do agente[29];
- As exigências de prevenção geral (traduzidas na necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto, no respeito pelas legitimas expectativas da comunidade) têm uma medida ótima de proteção, que não pode ser excedida, e um limite mínimo, abaixo do qual não se pode descer, sob pena de se pôr em causa a crença da comunidade na validade da norma violada e os sentimentos de confiança e segurança dos cidadãos nos institutos jurídico-penais; trata-se, aqui, de determinar qual a pena necessária para assegurar o respeito pelos valores violados, pelo que, a pena a aplicar não pode ultrapassar os limites de prevenção geral, uma vez que, como dispõe o artigo 18º, nº2 da C.R.P., só razões de prevenção geral podem justificar a aplicação de reações criminais; e
- Dentro desses dois limites atuam, na graduação da pena concreta, os critérios de prevenção especial de ressocialização, pois só se protege eficazmente os bens jurídico – penais se a pena concreta servir a reintegração do agente ou não evitar a quebra da sua inserção social.
Em suma, a realização da finalidade de prevenção geral que deve orientar a determinação da medida concreta da pena abaixo do limite máximo fornecido pelo grau de culpa, relaciona-se com a prevenção especial de socialização por forma que seja esta finalidade a fixar, em último termo, a medida final da pena[30].
Para graduar concretamente a pena há que respeitar ainda, como supra fico dito, o critério fornecido pelo n.º 2 do artigo 71º do C. P., ou seja, atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. Este critério é fornecido, exemplificativamente, nas suas alíneas e podem e devem ajudar o tribunal a concretizar, no sentido de vir a quantificar, quer a censurabilidade ao facto a título de culpa, quer as exigências de prevenção geral e de prevenção especial.
A exigência de as referidas circunstâncias, favoráveis ou desfavoráveis ao agente (atenuantes ou agravantes), não integrarem o tipo legal de crime, ressalta de já terem sido levadas em conta pelo legislador na determinação da moldura legal, o que, no caso contrário, violaria o princípio ne bis in idem.[31]
No caso vertente, o tribunal de primeira instância condenou os arguidos nas penas acima mencionadas, partindo de uma moldura abstrata de 16 a 25 anos quanto ao crime de homicídio qualificado agravado pelo uso de arma cometido pelo arguido AA, e de uma moldura abstrata de 2 anos, 1 mês e 18 dias a 16 anos de prisão quanto ao crime de homicídio agravado pelo uso de arma cometido pelo arguido BB, enquanto cúmplice.
No sobredito contexto, vejamos então se as penas de prisão fixadas, como pretendem os recorrentes, deverão ser reduzidas.
Da fundamentação do acórdão recorrido, resulta que teve-se em conta cada um dos fatores suscetíveis de influenciar a medida concreta da pena de acordo com dos princípios gerais de determinação acima enunciados.
A ilicitude dos factos – nas vertentes de desvalor da ação e de desvalor de resultado – é a suposta pelo tipo de ilícito perpetrado.
A culpa dos arguidos é intensa, uma vez que agiram com dolo direto: representaram os factos e atuaram com intenção de os realizar – artigo 14º, nº 1 do C. Penal.
As exigências de prevenção geral, não apenas negativa, de intimidação, mas sobretudo positiva ou de integração, isto é de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação das normas ocorrida, fazem-se sentir com particular intensidade no caso concreto face à natureza do crime em presença ( homicídio com uso de arma de fogo) cujo bem jurídico foi violado e constitui causa de enorme insegurança e alarme social.
A violação do bem jurídico fundamental, que é a vida humana, é sempre sentida de forma muito negativa pela comunidade.
No que diz respeito à prevenção especial (negativa e positiva ou de socialização), embora com relevância também por via da culpa, há a considerar:
- A idade dos arguidos (ambos com 23 anos de idade na data dos factos enquanto reveladora de alguma imaturidade das suas personalidades);
- Quanto ao arguido BB pondera-se a ausência de antecedentes criminais, a sua inserção laboral na data dos factos e o suporte familiar de que dispõe;
- No que concerne ao arguido III importa considerar, como foi salientado no acórdão recorrido, a circunstância de se ter apresentado voluntariamente à autoridade policial, no dia dos factos, assumindo a autoria dos disparos que atingiram a vitima, a admissão parcial dos factos, a sua inserção laboral e familiar ao tempo e a sua juventude.
Todavia, importa atentar que o arguido III cometeu o homicídio dos autos no decurso da suspensão da execução da pena de 1 ano e 6 meses de prisão aplicada no processo, no qual foi condenado pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade. Embora se trate de crime de distinta natureza, a prática do homicídio destes autos (factos muitos graves) no decurso de suspensão da execução daquela pena de prisão, em medida relevante, evidencia que a mesma, apesar disso, não constituiu suficiente advertência para o afastar da prática de novos ilícitos. Este facto é, assim, revelador de uma personalidade em larga medida desconforme com o Direito.
Assim, quanto ao crime de homicídio, o quantum das penas aplicadas aos arguidos / recorrentes respeita os princípios da necessidade, proibição de excesso ou proporcionalidade das penas, observando o preceituado no artigo 18º, nº 2, da CRP, sendo adequada à reposição da validade da norma infringida e não ultrapassa a medida da culpa dos arguidos.
Por conseguinte, julgamos ser de manter a medida das penas, quanto ao perpetrado crime de homicídio, nos termos fixados pela primeira instância.
Porque a medida da pena de prisão aplicada ao arguido BB é superior a cinco anos, mostra-se prejudicado o conhecimento da questão da sua eventual suspensão, cfr. artigo 50º, nº 1 do CP. 3.11- No que concerne à instância civil, no que para o caso releva, verificamos que o tribunal recorrido julgou parcialmente procedentes os pedidos de indemnização civis deduzidos pelos demandantes DD e CC, pais da vítima, contra os arguidos /demandados AA e BB nos seguintes termos:
“C) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD e condenar solidariamente os arguidos demandados a pagarem ao demandante a quantia de noventa mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão;
D) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por CC e condenar solidariamente os arguidos demandados a pagarem à demandante a quantia de oitenta mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da presente decisão.”
O arguido /demandado BB, aqui recorrente, entende, a título subsidiário, para a hipótese de não ser absolvido, ou seja, para o caso de improcedência da impugnação da matéria de facto, o que é o caso, que as quantias arbitradas aos demandantes, são manifestamente excessivas. E que, atendendo à diferente qualidade da participação (um como autor e outro como cúmplice) e da culpa de cada dos arguidos na prática dos factos /crime, estas circunstância deverão ser consideradas nos valores fixados, refutando a solidariedade da condenação.
Por seu lado, o arguido /demando III, também aqui recorrente, sustenta que a quantia de €30.000,00 arbitrada à assistente /demandante CC, a título de danos não patrimoniais por ela sofridos com a morte do filho, é excessiva, uma vez que entre ela e o filho não foram construídos laços efetivos e emocionais tão fortes como aqueles que a vítima estabeleceu com o pai, o assistente DD.
Assim, nos termos sobreditos, os recorrentes questionam os montantes arbitrados pelo tribunal recorrido para compensação dos danos não patrimoniais decorrentes da morte da vítima EE.
No caso vertente estão em causa três tipos de danos: o dano pela perda do direito à vida, os danos sofridos pela vítima antes de falecer e o dano sofrido pelos pais da vítima com a morte do seu filho.
Relativamente à fixação dos montantes arbitrados por aqueles danos, o tribunal recorrido fundamentou a sua decisão, aduzindo, nomeadamente, o seguinte:
“A lei remete a fixação dos montantes indemnizatórios a este título devidos para critérios de equidade, tendo em atenção o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso – artºs 496º e 494º do C.C.
A indemnização devida para ressarcimento destes danos reveste uma natureza mista, já que, por um lado, visa compensar de algum modo, mais do que indemnizar, os danos sofridos pela pessoa lesada e, por outro lado, não lhe é estranha a ideia de reprovar, no plano civilistico, e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente – cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, pág. 488
Na avaliação do dano decorrente da supressão do direito á vida da vitima, tem-se presente que o direito á vida é o bem superior a todos os demais direitos de personalidade.
Como é evidente, a vida humana não tem preço.
Porém, a indemnização que a este título se arbitra não passa de um expediente compensatório - como, aliás, sucede nos demais danos não patrimoniais - não se pretendendo, por esta via, fixar um preço ao bem vida.
Importa, pois, chegar a um valor, com recurso á equidade, levando em linha de conta as circunstâncias do caso concreto.
No caso, pondera-se o elevado grau de ilicitude dos factos e de culpa dos arguidos, que a factualidade provada bem patenteia. Pondera-se, ainda, o facto de o bem vida constituir o mais valioso dos direitos de personalidade, o facto de a vitima contar 24 anos de idade á data do seu falecimento, sendo um jovem saudável, activo e com vontade de viver, vida essa que foi abruptamente interrompida em condições trágicas.
Perante este circunstancialismo, o grau de culpabilidade dos arguidos, e as demais circunstâncias previstas no artº 494º do CC, tendo em conta os padrões indemnizatórios acolhidos pelos nossos tribunais superiores em caso de perda do direito à vida, e, em particular, em caso de perda do direito à vida por conduta criminosa dos demandados, considera-se adequada a fixação da indemnização pela perda do direito á vida de EE, no montante de € 80 000,00.
Este montante será atribuído na proporção de 50% a cada um dos pais da vitima, ou seja, a quantia de 40 000,00 € a cada um deles.
Quanto aos danos sofridos pela própria vitima, não há dúvida que no presente caso assumiram elevada gravidade, ponderando-se a intensidade das dores e sofrimento físico e psicológico que necessariamente sofreu, a que acresce o pânico, experimentado pela vitima, com a previsão da morte, que anteviu.
Perante este circunstancialismo, afigura-se equitativo e conforme os padrões indemnizatórios correntes, fixar em 20 000,00 € o dano intercalar sofrido pela vitima, competindo a cada um dos demandantes pais da vitima, na quota-parte a que cada um tem direito, a quantia de 10 000,00 €.
Por fim, e em sede de danos morais, importa avaliar os danos sofridos pelos próprios demandantes.
A morte de EE constituiu causa de sofrimento e dor para os demandantes, seus pais, que se prolonga, e que é naturalmente agravada pelas condições trágicas que determinaram a morte da vitima, sabido que o padecimento da vitima se reflecte na dor que os seus familiares sentem.
Trata-se de asserção válida relativamente a ambos os progenitores, havendo, todavia, que ponderar que a vitima vivia com seu pai, sendo, por conseguinte, mais estreito o relacionamento com este mantido, muito embora também contactasse regularmente com sua mãe.
Assim sendo, e atento a factualidade que a este respeito ficou comprovada, entende-se ser de fixar em 30 000,00 € a indemnização a este título a atribuir à demandante e 40 000,00 € a indemnização a atribuir ao demandante.”
Nos termos do artigo 496º, nº 1 do C.C., na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
“Os bens de personalidade, do mundo interno da pessoa em si mesma considerada, são inestimáveis em dinheiro, dado que, estando estreitamente ligados à individualidade dessa pessoa, são tão importantes para ela própria que não é de considerar a possibilidade de troca. Daqui a ausência de valor patrimonial”, cfr. Diogo Leite de Campos, A Vida, a Morte e a sua Indemnização, Separata do BMJ, nº 365, Lisboa, 1987, p.10 e 11.
Neste tipo de danos não está em causa uma verdadeira indemnização, mas antes a obtenção de uma compensação pela dores e sofrimentos. Como diz Vaz Serra, in RLJ, Ano 113º, pág. 104, “a satisfação ou compensação dos danos não patrimoniais não é uma verdadeira indemnização,visto não ser um equivalente do dano, um valor que reponha as coisas no estado anterior à lesão, tratando-se antes de atribuir ao lesado uma satisfação ou compensação do dano, que não é suscetível de equivalente. É, assim, razoável, que no seu cálculo, se tenham em atenção, além da natureza e intensidade do dano causado, as outras circunstâncias do caso concreto que a equidade aconselhe sejam tomadas em consideração e, em especial, a situação patrimonial das partes e o grau de culpa do lesante”.
O direito à vida, como bem supremo que é, encontra-se protegido pela CRP, pela lei geral, bem assim pelos principais instrumentos de direito internacional. Assim, o nº 1 do artigo 24.º da CRP estatui que “A vida humana é inviolável”, enquanto o nº2 refere “Em caso algum haverá pena de morte”. Por seu lado, o nº1 do artigo 70.º do Código Civil prevê que “A lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça de ofensa à sua personalidade física ou moral”. No plano internacional, o artigo 3.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, bem com o artigo 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, consagram o direito à vida de cada indivíduo.
A vida humana não tem preço, mas deve procurar-se encontrar um montante em dinheiro que, de alguma forma, permita a compensação pela perda desse bem imaterial de natureza suprema.
Para o efeito, e pese embora não haja vidas mais valiosas do que outras, impõe-se fixar o valor dano em termos equitativos, devendo ser consideradas as condições pessoais, sociais e culturais da vítima e as circunstâncias em que a morte ocorreu, em conformidade com o disposto no artigo 494º, ex vi do nº 4 do artigo 496º, ambos do Código Civil.
Acresce que, é entendimento pacífico na jurisprudência de que “Equidade não é sinónimo de arbitrariedade, mas sim um critério para a correção do direito, em ordem a que se tenham em consideração, fundamentalmente, as circunstâncias do caso concreto”, cfr. Ac STJ 12.03.2009, processo 09P0611, disponível em www.dgsi.pt
Na lei não existem tabelas que devam ser obrigatoriamente seguidas pelos tribunais no que se refere à determinação dos danos não patrimoniais. Com efeito, a Portaria n.º 377/2008, de 26.05, alterada pela Portaria n.º 679/2009, de 25.06, serve apenas para efeitos de apresentação aos lesados, por acidente automóvel, de proposta razoável para indemnização do dano corporal, por parte das seguradoras, sendo certo que não está afastada possibilidade de fixação de valores superiores aos nela previstos, cfr nºs 1 e 2 do artigo 1.º da mencionada Portaria.
Na tarefa que lhes está atribuída de fixação do valor dos danos não patrimoniais segundo critérios de equidade e de proporcionalidade, os tribunais recorrem habitualmente a decisões anteriores de outros tribunais em casos análogos, especialmente do Supremo Tribunal de Justiça, em conformidade com o disposto no artigo 8º, nº 3 do C. Civil e no artigo 13º, nº 1 da CRP.
Acresce dizer que, importa atender à orientação consolidada do STJ[32] segundo a qual no que se refere à apreciação por aquele tribunal do montante dos danos não patrimoniais “tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adotado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adotados numa jurisprudência evolutiva e atualista, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade”.
Por outro lado, na jurisprudência desde há muito tempo está consolidado o entendimento de que na fixação do danos não patrimoniais não deverão ser fixados valores meramente simbólicos ou miserabilistas[33].
Assim, volvendo ao caso dos presentes autos, é agora de ponderar a factualidade do caso em apreço. No que se refere às circunstâncias em que a vida da vítima foi suprimida, temos que a morte foi dolosamente causada pelo arguido III, que foi auxiliado pelo arguido BB nos termos referidos nos factos provados, sendo os seus comportamentos deveras censuráveis, tendo provocado a morte à vítima, a qual tinha apenas tinha 24 anos de idade.
Acresce que, como decorre dos factos provados, salienta-se que:
“1.32. EE nasceu em .../.../1997, em ..., ..., e faleceu em .../.../2021, no estado de solteiro, sem descendência, deixando como sucessores, seus pais, CC e DD.
1.33. EE era um jovem saudável, próximo da família e com uma rede de amigos vasta.
1.34. A demandante sentiu profunda aflição quando soube do sucedido e da necessária hospitalização da vitima, padecendo de enorme angústia durante o período de hospitalização, e seguidamente experimentou uma profunda dor com a confirmação da sua morte.
1.35. Não obstante a vitima não coabitar com a demandante, mantinha um contacto regular e estável e uma relação de proximidade com esta, sendo o elo de ligação entre a demandante e os seus filhos mais novos.
1.36. A morte de EE, filho mais velho da demandante, causou à demandante grande sofrimento, tristeza e angústia, e um sentimento de perda imensurável, que afectou o seu estado psíquico, já débil, importando momentos de total apatia, bem como perda de sono e falta de apetite.
1.37. EE percepcionou as lesões sofridas, sofreu dores, sentiu medo e angústia face ao pressentimento da própria morte.
Do Pedido de Indemnização Civil formulado por DD:
Para além dos factos elencados em 1.1. a 1.31. e 1.32, provou-se ainda que:
1.38. EE era tido pelos demais como pessoa bem disposta, dedicada à família e aos amigos, profissionalmente inserido.
1.39. Ocupava um importante papel na dinâmica familiar, quer para os seus dois irmãos mais novos, quer para seu pai, que o considerava um filho carinhoso, preocupado e presente.
1.40. Tratava-se de um jovem activo e com vontade de viver.
1.41. No momento em que foi atingido pelos dois projécteis na zona do abdómen, DD estava consciente e lúcido.
1.42. Em consequência dos disparos e das lesões sofridas, sentiu fortes e agonizantes dores, e sentiu medo, horror e desespero, e antecipou a própria morte.
1.43. Em virtude da morte do seu filho EE, o demandante passou e ainda passa momentos extremamente desesperadores e infelizes.
1.44. A brutalidade da morte do filho causou-lhe um enorme abalo emocional.
1.45. O demandante desenvolveu uma perturbação do foro psíquico (depressão), tem dificuldade em aceitar o ocorrido, experimenta sentimento de revolta e infelicidade, que lhe dificultam o trabalho e a convivência com familiares e amigos.”
No que concerne às condições pessoais, sociais e culturais dos arguidos, apurou-se que são de condição socioeconómica medianas, cfr. 1.58, 1.59, 1.62, 1.63 e 1.64 dos factos provados do acórdão.
Por conseguinte, tendo em consideração às particularidades do caso em apreço, julgamos que o tribunal recorrido, na fixação do valor danos aqui em discussão, nas palavras do nosso mais alto tribunal não se afastou, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adotados numa jurisprudência evolutiva e atualista.
Assim, tudo ponderado, consideramos ser de manter os valores fixados pelo tribunal recorrido para compensar o dano pela perda do direito à vida, dos danos não patrimoniais sofridos pela vítima antes de falecer e os danos sofridos pelos assistentes com a morte do seu filho.
No que se refere ao valor dos danos não patrimoniais sofridos pelos assistentes com a morte do seu filho, contrariamente ao que, decorre das alegações do recorrente III, os factos provados constantes do acórdão recorrido refletem a diferente ligação afetiva que efetivamente existia entre a vítima e os seus progenitores, vivendo no agregado familiar do pai, mas mantendo ligação com a mãe (cfr. v.g. factos provados 1.35 e 138 e 1.39). E, nessa medida, quanto a este ponto, o tribunal recorrido fixou valores diferentes por forma a compensar o diverso dano por cada um deles sofrido.
Efetivamente, é o que resulta da fundamentação do acórdão, a qual não nos merece qualquer reparo, quando se refere que:
“Por fim, e em sede de danos morais, importa avaliar os danos sofridos pelos próprios demandantes.
A morte de EE constituiu causa de sofrimento e dor para os demandantes, seus pais, que se prolonga, e que é naturalmente agravada pelas condições trágicas que determinaram a morte da vitima, sabido que o padecimento da vitima se reflecte na dor que os seus familiares sentem.
Trata-se de asserção válida relativamente a ambos os progenitores, havendo, todavia, que ponderar que a vitima vivia com seu pai, sendo, por conseguinte, mais estreito o relacionamento com este mantido, muito embora também contactasse regularmente com sua mãe.
Assim sendo, e atento a factualidade que a este respeito ficou comprovada, entende-se ser de fixar em 30 000,00 € a indemnização a este título a atribuir à demandante e 40 000,00 € a indemnização a atribuir ao demandante.”
No que concerne à questão suscitada pelo arguido BB, de que, considerando a diferente qualidade da participação (um como autor e outro como cúmplice) e da culpa de cada dos arguidos na prática dos factos /crime a responsabilidade pelos danos também deverá ser diferente, refutando a solidariedade da condenação, importa recordar que o fundamento legal da condenação imposta no acórdão recorrido decorre do disposto no artigo 490º do C. Civil, o qual prescreve: “Se forem vários os autores, instigadores ou auxiliares do ato ilícito, todos eles respondem pelos danos que hajam causado”, e do artigo 497º, do mesmo cógigo, acrescentando este último que: “1- Se forem várias as pessoas responsáveis pelos danos, é solidária a sua responsabilidade. 2- O direito de regresso entre responsáveis existe na medida das respetivas culpas e das consequências que delas advierem, presumindo-se iguais as culpas das pessoas responsáveis”.
Como é sabido, a solidariedade quer dizer que o lesado pode dirigir-se a cada um dos responsáveis e pedir todo o valor da indemnização, sem qualquer limitação.
O nº 1 do artigo 497º do Código Civil ao dizer que a obrigação dos responsáveis para com o lesado é solidária significa que, para este efeito, apenas releva o resultado final do facto ilícito, sendo irrelevante a que titulo os agentes são responsáveis, de que forma colaboraram ou não para os danos, se atuaram em processos paralelos ou entre si.
Porém, o facto de os responsáveis responderem por inteiro perante o lesado não prejudica a existência do direito de regresso do devedor que cumpra, de acordo com a medida da culpa ou da responsabilidade de cada um, e das suas consequências, cfr. nº 2 do artigo 497º do Código Civil.
Por isso, revertendo o exposto para o caso concreto, temos que os arguidos demandados são responsáveis solidariamente perante os lesados, ou seja, são responsáveis pela totalidade dos valores fixados, sem prejuízo do direito de regresso entre eles em caso de cumprimento, em função naturalmente dos diferentes contributos de cada um para os danos causados. Em suma, também quanto a esta questão improcede o recurso do arguido BB.
III – DISPOSITIVO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento aos recursos interpostos (recurso intercalar e recursos do acórdão) pelos arguidos e pela assistente CC e, em consequência, manter integralmente o despacho e o acórdão recorridos.
Custas dos recursos pelos respetivos recorrentes, com taxa de justiça que se fixa em 3 Ucs relativamente ao recurso intercalar e ao recurso do acórdão da assistente, e em 4 Ucs quanto a cada um dos recursos do acórdão interpostos pelos arguidos – artigos 513º, nº 1, 514º, nº 1 e 515º, nº 1 al. b), todos do C.P.P. e artigo 8º, nº 9 do R.C.P. e tabela III anexa a este último diploma legal.
Notifique, remetendo cópia à primeira instância.
Texto integralmente elaborado e revisto pelo seu relator – artigo 94º, nº 2 do CPP, encontrando-se assinado eletronicamente na 1ª página, nos termos do disposto no artigo 19º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.
Notifique.
[1] Em todas as transcrições irá manter-se a ortografia segundo o texto original. [2]De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P.. [3] Cfr. v.g. Ac. RG de 06.10.2008, processo 1741/08-1; Ac RL de 20.09.2017, processo 119/12.5SLLSB.L1-3; e Ac. RP de 18.12. 2018, processo 417/17.1PHGNV.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt [4] Na verdade, a nulidade da sentença resultante da omissão de pronúncia ocorre quando a decisão é omissa ou incompleta relativamente às questões que a lei impõe que o tribunal conheça, ou seja, às questões de conhecimento oficioso e àquelas cuja apreciação é solicitada pelos interessados processuais – artigo 660º, nº 2 do CPC, aplicável ex vi do artigo 4º do CPP”, cfr. Ac. STJ de 14.01.2009, processo 08P3777, acessível em dgsi.pt.
A omissão de pronúncia não se confunde com omissão de fundamentação ou com fundamentação deficiente, cfr. artigo 379º nº 1 al. a) e nº 2 do CPP. [5] Cfr. Paulo Saragoça da Matta, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, 2004, A livre apreciação da Prova, pág. 265. [6] Cfr. Oliveira Mendes, in Código de Processo Penal Comentado, Almedina, 2014, pág. 1182. [7] Cfr., entre outros, Ac. do STJ de 15-12-2005, Proc. nº 05P2951 e Ac. do STJ de 9-03-2006, Proc. nº 06P461, disponíveis em www.dgsi.pt. [8] Segundo o Prof. Germano Marques da Silva “o recurso sobre a matéria de facto não significa um novo julgamento, mas antes um remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância” Forum Justitiae, Maio 99. Em sentido idêntico sustenta Damião Cunha ao afirmar que os recursos “…são entendidos como juízos de censura crítica « e não como «novos julgamentos», in O Caso Julgado Parcial, Publicações Universidade Católica, 2002, pág. 37. [9] Cfr., v.g. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume II, Lisboa, Verbo, 5ª Edição, Revista e atualizada, pág. 144 e segs.. [10] Cfr., entre outros, Acs. STJ de 09.02.12, processo 1/09.3FAHRT.L1.S1, de 17.03.2016, processo 849/12.1JACBR.C1.S1, de 11.07.2007 e de 12.09.2007, respetivamente, processos 07P1416 e 07P4588; Ac. RP de 09.09.2015, processo 2/13.7GCETR.P1; e Ac. RP de 10.05.2017, processo 135/14.2GAVFR.P1, todos disponíveis em www.dgsi.pt. Na jurisprudência espanhola, vide Euclides Dâmaso, Prova Indiciária (Contributos para o seu estudo e desenvolvimento em dez sumários e um apelo premente), Julgar nº 2, 2007. [11] Cfr. Germano Marque da Silva, ob. e loc. cit. [12] Direito Probatório Material – BMJ 112/190. [13] Segundo Gomes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4.ª edição revista, 519, “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”. [14] Este princípio restringe-se ao domínio da apreciação da prova, constituindo um limite ao princípio da livre apreciação da prova, cfr. Ac STJ de 27.05.2010, processo 18/07.2GAAMT.P1.S1, relator Raúl Borges; e Ac. STJ de 12.03.2009, processo 07P1769, relator Soreto de Barros, ambos acessíveis em www.dgsi.pt [15] A dúvida que leva o tribunal a decidir “pro reo” tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda uma dúvida que impeça a convicção do tribunal, cfr. Cristina Líbano Monteiro, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra Editora, 1997, pág. 51. [16] In Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 2004, pág. 213. [17] Assim, vide, v.g., Ac STJ de 12.03.2009, processo 07P1769, relator Soreto de Barros; e Ac STJ de 14.07.2010, processo 149/07.9JELSB.E1.S1, relator Raúl Borges, ambos publicados em www.dgsi.pt [18] Cfr Ac RL de 07.05.2019, processo 485/15.0GABRR.L2-5, relator Jorge Gonçalves; Ac RE de 13.09.2016, processo 89/15.8GTABF.E2, relator António Latas; Ac RE de 30.01.2007, processo 2457/06-1, relator António Latas, todosdisponíveis in www.dgsi.pt. [19] Note-se que, neste caso, trata-se de uma questão de facto que não cabe num recurso restrito à matéria de direito, mesmo que de revista alargada. Neste sentido vide Ac STJ de 12.03.2009, processo 07P1769, relator Soreto de Barros, disponível em www.dgsi.pt [20] Cfr. Ac. STJ de 05.07.2007, proc. 07P22279, rel. Simas Santos, disponível em www.dgsi.pt [21] In Direito Penal Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, 2012, pág. 799 e segs. [22] F. Dias, chama a estes comportamentos “indução”, Ibidem. [23] Note-se que seguimos aqui a posição de que o recurso constitui um remédio jurídico ou um juízo de censura crítico e não um “novo julgamento” como se não tivesse existido um julgamento anterior, cfr. v.g. Damião da Cunha, O caso Julgado Parcial, Universidade Católica, 2002, pág. 37. [24] Vide F. Dias, Direito Penal Português, As consequências do crime, pág. 196 e segs. [25] Vide, entre outros, Ac. STJ de 29.03.2007, proc. 07P1034, relator Simas Santos, Ac. STJ de 19.04.2007, processo 07P445, relator Carmona da Mota, e Ac. RE 22.04.2014, proc 291/13.7GEPTM.E1, relatora Ana Barata Brito, todos acessíveis em www.dgsi.pt [26] Cfr. o atrás citado Ac STJ de 29.03.2007. [27] Vide F. Dias, Direito Penal Português, As Consequências do Crime, Editorial Notícias, p. 227 e ss. [28] Cfr. artigos 1º, 13º, n.º 1 e 25º, n.º 1. [29] Cfr. n.º 2 do artigo 40º do C. Penal. [30]Vide Anabela Rodrigues,"A determinação da medida concreta da pena..., R.P.C.C., nº2 (1991); "Sistema Punitivo Português, Sub Judice, 1996, nº11; da mesma autora vide também “O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 12,n.º 2 Abril – Junho de 2002, 147/182 e F. Dias, Direito Penal Português, ob. cit., pág. 243 . [31] Vide A. Robalo Cordeiro, "Escolha e medida da pena", in Jornadas de Direito Criminal, CEJ, pág. 272. [32] Cfr. Ac STJ de 18.10.2018, processo 3643/13.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi, citando um outro aresto daquele tribunal de 17.05.2018 “ [33] Cfr. Acórdão do STJ, de 16.12-.993, CJ, STJ 1993, t. 3, pág. 181 “É mais que tempo, conforme jurisprudência que hoje vai prevalecendo, de se acabar com miserabilismos indemnizatórios. A indemnização por danos patrimoniais deve ser correta, e a compensação por danos não patrimoniais deve tender, efetivamente, a viabilizar um lenitivo ao lesado, já que tirar-lhe o mal que lhe foi causado, isto, neste âmbito, já ninguém nem nada consegue! Mas – et pour cause – a compensação por danos não patrimoniais deve ter um alcance significativo, e não meramente simbólico.”