FURTO
ABSOLVIÇÃO
ERRO DE JULGAMENTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
Sumário

1. Existe um erro de julgamento por parte do tribunal recorrido ao descredibilizar os depoimentos objectivos de testemunhas, sem quaisquer elementos que justifiquem a dúvida e contrariando todas as regras de experiência comum.

2. A condenação não deixa de ser segura, ainda que não haja uma prova directa, presencial e ocular dos factos, quando o conjunto dos elementos carreados para os autos, conjugados e à luz das regras de experiência comum, vão todos no mesmo sentido, são assertivos, coerentes e excluem a possibilidade material de ser outra pessoa além da arguida a autora do furto.

3. Vigora no nosso sistema o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art.º 127º CPP que não significa arbítrio ou decisão irracional, mas exige uma apreciação crítica e racional das provas, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, bem como na percepção da personalidade dos depoentes, para que a mencionada convicção resulte perceptível e objectivável.

4. As denominadas presunções judiciais são também aplicáveis em processo penal, com as devidas cautelas já que a prova indiciária também permite condenação.

5. Embora a prova produzida não possa não ser directa, nem muito abundante, basta que seja suficiente o bastante, para se concluir no sentido da imputação da autoria do crime de furto à arguida.

(Sumário elaborado pelo relator)

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 922/18.2T9TVD, que correu termos no Juízo Local Criminal de Torres Vedras, em processo comum singular, foi a arguida, MM...., julgada pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artº 203º nº 1 e 204º nº 1 al. a) ambos do cód. penal, tendo o tribunal decidido nos seguintes termos:
- «Pelo exposto, julgo improcedente, por não provada, a acusação deduzida nos presentes autos e, consequentemente decido:
I. Parte Criminal
a) Absolver a arguida, MM..., da prática em autoria material e na forma consumada, de um (1) crime de furto qualificado, previsto e punido pelos art.º conjugados 203º, nº 1, 204º, nº 1, al. 1), todos do Código Penal;
b) Custas criminais a cargo da assistente - cfr. art.º 515º, nº 1, al. a), 518º e 519º, todos do Código de Processo Penal;
II.. Parte Civil
c) Julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil formulado pela demandante civil contra a arguida e demandada, absolvendo-a da integralidade do pedido contra si formulado;
 d) Custas do pedido civil a cargo da demandante civil, sem prejuízo de eventuais isenções de que possa beneficiar (cfr. artº 527º, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, ex vi do art.º 523º do Código de Processo Penal)».
*
Inconformada com a decisão, veio a Assistente IF... a recorrer nos termos de fls. 134 a 148, terminando com as seguintes conclusões:
«1. A Sentença Recorrida absolveu a Arguida do crime de furto de que vinha acusada, bem como do pedido de indemnização cível: o furto de três envelopes com cinco mil euros cada, que se encontravam escondidos em casa da Assistente, onde aquela exercia as funções de empregada doméstica.
2. A Sentença Recorrida sustentou não haver prova directa dos factos, ter dúvidas sobre o que efectivamente ocorreu e, na dúvida, decidiu aplicar o princípio in dubio pro reo e absolver a Arguida. Invocou o princípio da livre apreciação da prova, mas esqueceu-se de que essa apreciação não pode ser discricionária, visto existir a obrigação de procurar a verdade material - é disso que se trata no presente recurso.
3. Sobre a inexistência de prova directa, dir-se-á, muito simplesmente, que a lei, a doutrina e a jurisprudência, tendo em conta que a maior parte dos crimes é cometida às ocultas precisamente para passarem impunes, desde sempre admitiram a prova indirecta, desde que esta seja suficientemente forte, articulada e lógica para criar no julgador a convicção necessária à condenação. Cremos ser este o caso e por isso se releva em seguida a prova que a Mmª Juiz a quo devia ter relevado e que, ao invés, desconsiderou; do mesmo passo, criticamos os argumentos usados na Sentença Recorrida.
4. A Arguida, depois dos factos, foi confrontada pela assistente e seu marido, tendo negado a prática dos mesmos. Nessa sequência, quando o marido da assistente a levava de automóvel para casa dela, a Arguida acabou por confessar que sim, que tinha sido ela a furtar os três envelopes com o dinheiro. Disse inclusivamente que tinha dado um envelope a cada um dos seus filhos - v. depoimento do marido da assistente, no corpo destas alegações de recurso.
5. Logo a seguir, porém, negou o que tinha dito e manteve-se até hoje, inclusive na audiência, nessa posição de negação. Note-se que, em audiência, ela própria confirmou que tinha confessado, alegando, porém, que estava cansada e tinha sido pressionada e torturada (!), sem, todavia, especificar como, onde e quando - v. seu depoimento em audiência, transcrito no corpo destas alegações na parte que interessa a este episódio.
6. A Mmª Juiz, sem qualquer arrimo probatório senão as próprias declarações da Arguida, entendeu e escreveu que tal confissão havia sido obtida sob pressão e que, portanto, não era sincera e verdadeira. Ou seja, acreditou - ingenuamente, diga-se - nas afirmações da Arguida (repete-se: sem qualquer outra prova) e desconsiderou o teor dessa confissão.
7. Ao invés, entendemos que uma tal confissão, embora depois revertida pela própria, é um elemento probatório da mais alta importância num caso destes (prova indirecta) e como tal deverá ser relevado em sede de motivação para fixação da matéria de facto.
8. Além disso, a Sentença recorrida aponta discrepâncias temporais entre os depoimentos da assistente e de seu marido, a testemunha FF…, bem como não coincidência com a data constante da acusação. Ora, nesta seara, pouco importa o que vem na acusação, mas sim o que se prova em audiência, desde que essa não coincidência não diminua os meios de defesa do arguido, como é o caso.
9. Mas, nesta matéria, o que mais importa não foi valorizado, nem sequer abordado, pela Sentença Recorrida: embora, durante a doença da Arguida, a assistente se tivesse socorrido irregularmente de outra empregada doméstica, o que foi apurado, com total coincidência entre o depoimento da assistente e o de seu marido, foi o seguinte: no fim da baixa médica, a arguida quis voltar experimentalmente ao trabalho, mas acabou por trabalhar apenas dois dias.
10. Acontece que o marido da Assistente, a testemunha FF…, verificou a permanência dos envelopes nos locais escondidos antes de a Arguida retornar ao trabalho e, dias depois de esta ter abandonado o mesmo, suspeitando da sua atitude esquiva, voltou aos locais de esconderijo e os envelopes já lá não se encontravam! A Assistente também o afirmou, coincidentemente com o que disse seu marido - confr. depoimento de ambos, transcritos no corpo destas alegações de recurso.
11. Sendo certo que, nesse espaço de tempo, nenhuma outra empregada doméstica lá esteve (confr. mesma transcrição dos depoimentos) esta verificação ex ante e ex post dos locais dos esconderijos é outro elemento probatório indirecto importantíssimo que deverá levar á conclusão inelutável de que foi a Arguida que retirou os envelopes dos mesmos locais.
12. Anteriormente, já a Arguida tinha retirado dinheiro do bolso do marido da assistente - v. transcrição supra do depoimento deste -, episódio que a assistente e seu marido perdoaram, atento o arrependimento manifestado pela Arguida e o seu pedido de desculpas. A Sentença Recorrida, porém, “estranhou” esta posição da assistente, parecendo desconhecer a generosidade e a capacidade humana de perdoar e dar ao prevaricador uma segunda oportunidade na sua vida...
13. Por todo o exposto, atendendo às duas referidas provas indirectas, de inquestionável valor e importância para a descoberta da verdade, a matéria de facto apurada não devia ser a que consta da Sentença Recorrida. Antes deveria retirar-se da matéria não provada e passar-se para a matéria provada, a seguinte factualidade:
- Em data não concretamente apurada, a arguida decidiu apropriar-se de quantias monetárias que se encontravam na habitação da ofendida;
- Em dia não concretamente apurado de Março de 2018, a arguida retirou da habitação da ofendida, sem autorização da mesma e contra a vontade desta, os quais integrou no seu património: três envelopes contendo no seu interior a quantia de €5.000,00, no valor total de €15.000,00 (quinze mil euros), os quais se encontravam guardados, dois em cima do armário da cozinha e um no armário do quarto, na parte superior;
- Agiu a arguida de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de fazer sua a quantia monetária acima descrita, bem sabendo que não lhe pertencia, que agia contra a vontade do seu proprietário e que a sua conduta lhe estava vedada e era criminalmente punida.
14. Assim decidindo a matéria de facto, a Sentença Recorrida deveria ter condenado a arguida pelo crime de furto qualificado por que vinha acusada, na pena que se mostrar adequada ao seu caso, suspensa na condição de restituir à assistente a referida quantia de €15.000,00 no prazo que o Tribunal entender fixar, bem como deveria ter condenado a Demandada no pedido cível, ou seja, a pagar à Demandante cível essa mesma quantia.
15. Não decidindo assim, usou discricionariamente o princípio da livre apreciação da prova e não procurou a verdade material através da prova indirecta, assim violando o disposto no art.º 127º do Cód.º Proc.º Penal, bem como violando, por mau uso, os princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência (art.º 32º da Constituição da República); violou também, por falta de as aplicar, as disposições dos art.ºs 203º, nº 1 e 204º, nº 1, alínea a) do Código Penal; e violou ainda o disposto no art.º 483º, nº 1 do Código Civil.
Nestes termos e nos mais que V. Exªs doutamente suprirão as insuficiências do patrocínio, deve o presente recurso receber provimento, condenando-se a arguida pela prática do crime por que vinha acusada e nos termos do pedido de indemnização cível, revogando-se consequentemente a absolvição decretada e assim se fazendo Justiça».
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Respondeu a arguida, MM... ao recurso interposto pela Assistente, nos termos de fls. 151 a 157, tendo concluído:
 - «Assim, bem decidiu a douta sentença, que faz a devida valoração crítica das provas e não carece, por isso de qualquer reparo!
 E também assim julgando e mantendo a douta sentença sob recurso, farão Vªs Exªs igualmente, Justiça!»
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O Ministério Público em 1ª instância respondeu à recorrente nos termos de fls. 158 a 162 e pugnou pela procedência do recurso, concluindo:
- «Face ao exposto, entende-se ser de revogar a sentença recorrida e decidir-se pela condenação da arguida pelo cometimento do crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203º nº 1 e 204º, nº 1, alínea a), do Código Penal, na pena de 350 dias de multa, à taxa diária de € 5,50.
Pelo exposto, deverá ser julgado procedente o recurso interposto. Vossas Excelências, revogando a decisão recorrida, farão a costumada Justiça».
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Neste Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu o Douto Parecer de fls. 171 a 173, no qual defendeu a procedência do recurso, com a revogação da sentença recorrida e a condenação da arguida pelo crime de furto qualificado de que vinha acusada.
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O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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FUNDAMENTOS
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelos recorrentes, das respectivas motivações[1], que, no caso "sub judice",se circunscrevem às seguintes:
- Impugnação da matéria de facto – erro de julgamento, relativamente aos factos dados como não provados.
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FACTOS PROVADOS
O Tribunal “a quo”deu como provados os seguintes factos:
1. Entre 2012 e Dezembro de 2017, a arguida MM... desempenhou funções como empregada doméstica, na habitação sita em Avenida General Humberto Delgado, nº …, em Torres Vedras, área da comarca de Lisboa Norte - Torres Vedras, pertença da ofendida IF..., aí se deslocando durante a semana.
2. Em virtude das funções que desempenhava, a arguida tinha livre acesso à habitação da ofendida, percorrendo todas as divisões da mesma.
3. A arguida está a trabalhar como copeira num restaurante auferindo o salário mínimo.
4. Vive sozinha em casa arrendada, pagando pela mesma €350,00 mensais.
5. Tem 6 filhos, todos maiores.
6. Estudou até à 4.ª classe.
7. Não tem condenações anteriores.

Factos Não Provados
Não se provou que:
a) A arguida trabalhou até 27.12.2017.
b) Em data não concretamente apurada, a arguida decidiu apropriar-se de quantias monetárias que se encontrassem na habitação da ofendida.
c) Em dia não concretamente apurado, em Dezembro de 2017, a arguida retirou da habitação da ofendida, sem autorização da mesma e contra a vontade desta, os quais integrou no seu património: três envelopes, contendo no seu interior, a quantia de 5.000€ em notas do BCE, no valor total de 15.000€ (quinze mil euros), os quais se encontravam guardados, dois em cima do armário da cozinha, rente ao tecto e um no armário no quarto, na parte superior.
d) Agiu a arguida de forma livre e voluntária, com o propósito concretizado de fazer sua a quantia monetária acima descrita, bem sabendo que não lhe pertencia, que agia contra a vontade do seu proprietário e que a sua conduta lhe estava vedada e era criminalmente punida.
Não deixaram de se provar quaisquer outros factos com relevância para a boa decisão da causa.
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Motivação da decisão de facto pelo Tribunal “a quo
“O Tribunal gizou a sua convicção atendendo ao conjunto das diligências realizadas em audiência, analisando-as global e criticamente, segundo as regras da experiência comum e segundo a livre convicção do julgador, nos termos do art.º 127º do Código de Processo Penal.
 Em sede de audiência a arguida prestou declarações, confirmando a boa relação que detinha com os patrões e a ajuda que estes lhe haviam prestado, trabalhando para eles desde 2012 e até Dezembro de 2017. Negou de forma peremptória a prática dos factos, não conseguindo perceber o motivo da queixa.
Referiu ter visto em cima do móvel do hall um envelope e alertando a assistente, aquela desvalorizou, permanecendo no local e que passado algum tempo e ao efectuar de novo as limpezas, alertou novamente a assistente para o facto do envelope já não se encontrar naquele local, ao que a mesma nada disse. Referiu também que não efectuava limpezas na parte de cima dos móveis da cozinha por não os conseguir alcançar, mesmo com escadote.
Disse também ter disso confrontada pelo marido da assistente e aqui testemunha com a falta de envelopes em Maio de 2018, sendo que a pressão foi de tal ordem que casada e assustada acabou por admitir, negando de imediato. E foi isso que consta do papel assinado por si a fls. 47.
 A assistente IF… confirmou as quantias monetárias levantadas e escondidas em envelopes, no montante de quinze mil euros, estando dois deles na cozinha e um outro no roupeiro. Mais refere que chegou a ter o dinheiro no hall, mas que não tinha nada a ver com esta situação, tendo retirado e gasto o mesmo.
Estranhando o afastamento e a permanência de baixa da arguida, foram verificar os envelopes e estes haviam desaparecido, tendo confrontado a arguida, através do marido, chegando a mesma a admitir, mas não presenciou a situação.
 Quanto a datas, não conseguiu precisar com rigor. Mais disse que não era a primeira vez, que esta já havia furtado dinheiro dos bolsos e que resolveram dar uma nova oportunidade. Mais admitiu que existia uma firma que ia lá a casa fazer limpezas gerais bianuais e que uma senhora substituiu a arguida nas funções enquanto esta esteve doente.
 Aliás e das declarações da assistente, admitindo problemas de saúde, é notória alguma fragilidade em termos de memória e raciocínio.
Ouvida a testemunha e marido da assistente, igualmente ofendido por o dinheiro também ser seu, FF…, confirmando que a arguida trabalhou lá em casa vários anos, bem como a estima pela mesma e sendo que até ajudaram quando esta teve um problema de saúde, após várias baixas esta veio trabalhar dois ou três dias em Março de 2018 e estranhando o comportamento da mesma e o afastamento, foram verificar os envelopes e deram pela falta dos mesmos, sendo que igualmente o haviam feito imediatamente antes do seu regresso. Nega a hipótese de terem sido terceiros ou outros empregados de limpezas a retirarem o dinheiro, pelo facto de verificar o mesmo com frequência. Mais confirmou que esta não era a primeira vez, sendo que já havia confrontado a arguida por falta de dinheiro de bolso, optando por dar uma nova oportunidade. Refere ainda que tendo tomado conhecimento que a arguida havia visto os envelopes no hall, que trocou os mesmos para a cozinha. Confirma também que confrontando a arguida, esta acamou por admitir. Desconhece a existência de outro dinheiro da mulher e escondido na casa.
 Não podemos deixar de notar estranheza pela certeza adiantada pela testemunha quanto à autoria dos factos.
 Neste concreto ponto, temos sobretudo duas versões, aquela da acusação e a da defesa, sendo que além dos interessados directos no desfecho dos autos, inexiste outra prova testemunhal, pericial ou documental cabal.
 Na verdade, o documento de fls. 47 atesta apenas a versão da arguida, e se é certo que sendo inocente como afirma, o porquê de chegar a admitir os factos, não podemos descurar neste ponto a circunstância de na ocasião em causa a arguida estar sozinha, existindo considerável diferença de condição sócio-económica e de influência e conhecimentos entre as partes. Por outro lado, a mesma arguida refere que negou novamente e de imediato.
 Mais, não podemos deixar de estranhar que os ofendidos, sendo pessoas abastadas com dinheiro e pelo menos com pratas em casa, e tendo ocorrido uma primeira situação de furto, conforme alegam, qual o motivo para não ter ocorrido uma quebra de confiança, dadas as funções da arguida e o acesso que tinha a tais bens de valor? Mais, tendo conhecimento de envelopes, o porquê de não os terem retirado?
 Acresce ainda que a assistente e a testemunha seu marido apresentam discrepâncias quanto à data da prática dos factos, sendo que a mesma não coincide ainda com a data da acusação.
 Ainda nos causa estranheza o facto de a assistente alegar que o dinheiro que esteve no hall nada tinha a ver com esta situação, enquanto a testemunha FF… diz que sim, e que trocou os envelopes de sítio. Então afinal onde estavam os envelopes com os quinze mil euros, de quem era o dinheiro e quem o controlava?
Finalmente não podemos deixar de notar o seguinte, é que nem a arguida, nem a assistente e nem a testemunha FF… se mostram especialmente altos ou com discrepâncias significativas de altura entre si. Mais, sendo os envelopes patentes na cozinha de difícil acesso e sendo necessário ir buscar a escada do prédio, é compatível com a sua retirada pela arguida, sendo que os patrões poderiam estar em casa ou chegar a qualquer momento? Mais, seria crível que o fizesse antes de ser operada, estando doente ou imediatamente a seguir e nos poucos dias que regressava ao serviço? Ou sendo ainda de difícil acesso o local onde estavam os envelopes, era compatível que a testemunha FF… andasse a abrir almofadas ou a trepar escadotes com frequência, sobretudo passados cerca de 8 anos desde o momento em que o dinheiro foi levantado? As regras da experiência e da lógica apontam em sentido negativo.
E se é certo que a testemunha FF… aludiu a não ter interesse em extorquir dinheiro à arguida, pessoa de condição humilde, como pode ter tanta certeza que foi ela a praticar os factos? Tanto mais, que no período em causa foram feitas limpezas gerais por uma firma e esteve ao serviço uma outra pessoa em substituição da arguida, conforme o próprio admitiu.
Não podemos descurar a circunstância de a arguida ter trabalhado vários anos para AM… e EJ… e com total acesso aos bens, inexistindo qualquer facto a apontar ao comportamento da mesma, predispondo-se a serem suas testemunhas e não acreditando que esta possa ter praticado tais factos.
 Estes últimos depoimentos a que aludimos denotaram isenção e distanciamento, revelando-se críveis e sendo ponderados.
 O tribunal valorou ainda o teor da documentação junta aos autos, que não foi posta em crise e em especial a cópia do cheque de fls. 3, os certificados de incapacidade da arguida apresentados a fls. 4 e 5 e aqueles juntos pela arguida com a contestação a fls. 91 a 96 e que atestam que esteve de atestado médico desde 12-12-2017 a 6-6-2018; documento de fls. 47, confirmado pela arguida.
 No entanto, e não obstante tal documentação e depoimentos, existindo fortes suspeitas de que tenha sido a arguida, a verdade é que dada a reduzida prova, designadamente ausência de prova directa e cabal da autoria dos factos ou de indícios de que tenha sido a arguida a praticá-los, na verdade temos apenas meras suspeitas e duas versões opostas, que não foram atestadas de nenhuma outra forma.
 Mais, o documento de fls. 47 foi amplamente justificado pela arguida, revelando-se crível a justificação adiantada.
 E existindo suspeitas, a verdade é que a versão da acusação apresenta falhas, sendo pouco esclarecedora, em especial a assistente e a testemunha seu marido apresentam divergências quanto à data dos factos, detendo já suspeitas anteriores contra a mesma arguida. Por outro lado, foi notório o desconforto dos ofendidos com o facto de a arguida estar de atestado médico e doente há vários meses.
Assim, a demais prova é insuficiente para concluir que foi a arguida o agente dos factos, sendo que pelo menos subsiste a dúvida, que o tribunal não conseguiu superar, e que associado à ausência de outros elementos de prova suficientemente seguros, e, em obediência ao referido princípio in dúbio pro Reo, faz com que o tribunal considere como não provados os demais factos constantes da acusação pública e acima enunciados.
 A situação pessoal da arguida provou-se, atentas as suas declarações, críveis nesta parte e o teor do relatório social.
 A ausência de antecedentes criminais encontra-se certificada e o seu teor não foi posto em crise.
A factualidade negativa resulta da ausência de prova nos moldes acima expostos.”.
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DO DIREITO
 Como já atrás mencionámos, os recursos são delimitados pelas conclusões da recorrente, (art.º 412º do cód. procº penal) extraídas da motivação do respectivo recurso.
Estamos perante uma impugnação ampla da matéria de facto dada como “não provada”, entendendo a Assistente ter havido erro do tribunal recorrido na apreciação e valoração da prova apresentada em audiência de julgamento no que toca à autoria dos factos imputados à arguida.
 Quando o recurso tenha como fundamento a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve dar cumprimento ao disposto no art.º 412º, nº 3, do Cód. Proc.º Penal, especificando:
 a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
 b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
 c) As provas que devem ser renovadas, (cfr. art.º 412º nº 3 do cód. procº penal).
No caso concreto, o que na realidade está em causa são os factos que imputam a autoria do crime de furto à arguida, por terem sido considerados como “não provados”, como base no princípio do in dubio pro reo.
A recorrente põe em causa a valoração da prova feita pelo Tribunal “a quo”, mais especificamente no que concerne à descredibilização concedida aos depoimentos da ofendida e da testemunha FF…, que imputaram a autoria do furto à arguida.
Atenta a natureza do recurso, este Tribunal, usando dos poderes legalmente concedidos procedeu à audição da prova produzida em audiência e de seguida à análise da fundamentação da sentença recorrida, tendo concluído pela verificação de incoerências e falhas notórias de raciocínio por parte do julgador em 1ª instância ao nível da fundamentação e motivação da prova.
Vejamos os factos objectivos.
A arguida trabalhou vários anos para a ofendida/assistente e ao longo desse período, (de acordo com declarações dos queixosos) algumas vezes se apropriou de pequenas quantias em dinheiro que encontrou nos bolsos do vestuário. A própria arguida não negou tais factos em julgamento. Os patrões ter-lhe-ão perdoado, (facto que apropria também aceitou).
Não obstante este facto relevante que evidencia alguma inclinação para se apropriar do que não lhe pertence, o mesmo foi desvalorizado.
Por outro lado, parece o tribunal recorrido não ter acolhido com distanciamento o facto de a ofendida e o marido afirmarem ter “tanta certeza” de que foi a arguida a autora do furto dos envelopes, poi ao invés de tentar indagar o porquê dessa certeza, o tribunal enveredou pela desconfiança dos queixosos e sem fundado motivo.
O tribunal deveria ter em conta que a firme certeza alegada pelos queixosos em tribunal se devia à circunstância de, no contexto descrito, eles garantirem que mais ninguém ter entrado em casa, ou seja, decorreu dos depoimentos conjugados da arguida e das testemunhas que:
- A arguida meteu baixa e antes de o fazer tinha detectado a presença de envelopes com dinheiro em cima de um móvel, dando disso conta aos patrões;
- Durante esse período foi de facto contratada outra empregada;
- Após a baixa, a arguida manifestou vontade de voltar ao serviço, mas antes de voltar e já depois da outra empregada ter cessado funções, a testemunha FF… declarou, sem evidenciar qualquer dúvida, ter verificado que os envelopes com dinheiro ainda se encontravam no local respectivo;
- A arguida só trabalhou “dois ou três” dias e faltou de novo, perante esta atitude que os patrões estranharam e face aos antecedentes de já se ter apropriado de outras quantias[2] para além de que a mesma era conhecedora da existência dos envelopes com dinheiro, a testemunha disse ter ido de imediato a verificar se lá estavam os envelopes e constatou que não.
- Naqueles dois ou três dias, afirmam categoricamente, ninguém mais entrou em casa.  
- Perante tal descoberta, o marido da assistente chamou a arguida e confrontou-a com os factos, pressionando-a a dizer a verdade, tendo esta acabado por confessar. Não consta ter havido qualquer “mau trato” ou “tortura” para obter uma confissão, aliás pela descrição dos intervenientes e da idade dos mesmos, tal nem faria sentido.
- Nesse contexto a arguida assinou uma confissão que o FF… lhe apresentou. Embora depois tenha voltado a negar, o que fez também em tribunal.
O documento só por si não seria suficiente, mas este, conjugado com as declarações, justificações e explicação dos factos em audiência de julgamento, assim como a ausência de explicação da arguida para deixar a casa dos patrões, para quem trabalhara durante anos, não podem deixar de ser analisados criticamente, à luz das regras de experiência comum e ser valorados no sentido da imputação e culpabilidade da arguida.
As interrogações que a srª Juíza deixa na motivação da sentença salvo o devido respeito não fazem nenhum sentido e algumas estão mesmo em desconformidade com o que se relatou no julgamento. 
Por exemplo:
- “E se é certo que a testemunha FF… aludiu a não ter interesse em extorquir dinheiro à arguida, pessoa de condição humilde, como pode ter tanta certeza que foi ela a praticar os factos? Tanto mais, que no período em causa foram feitas limpezas gerais por uma firma e esteve ao serviço uma outra pessoa em substituição da arguida, conforme o próprio admitiu.
Ora neste caso existe um erro de análise dado que, segundo decorre das declarações prestadas em julgamento, a empresa que refere não foi a casa no período em que a arguida voltou a trabalhar, mas antes disso e foi nesse período de 2 ou 3 dias que a arguida trabalhou, que o FF… afirma terem desaparecido os envelopes, daí a sua certeza.
Mais refere:
 “O documento de fls. 47 foi amplamente justificado pela arguida, revelando-se crível a justificação adiantada”.
Ora a arguida a única justificação que deu para assinar a confissão e depois dar o dito por não dito, foi apenas de que foi pressionada… justificação que, para nós, nem foi convincente na forma como relatou os factos.
Sobre este documento referiu ainda:
- “(…) não podemos descurar neste ponto a circunstância de na ocasião em causa a arguida estar sozinha, existindo considerável diferença de condição sócio-económica e de influência e conhecimentos entre as partes”.
O raciocínio da srª Juíza quanto a este facto parece-nos de todo descabido, pois a diferença de condição económica e de conhecimentos, não tem aqui relevância alguma, tanto mais que os queixosos eram amigos da arguida e já lhe teriam perdoado outras condutas menos próprias (pois ambos declararam a existência de pequenos furtos de dinheiro dos bolsos por parte da arguida), pelo que, nos custa admitir que a mesma assinasse uma confissão do que não fizera.
Mais do que isso, não nos parece razoável à luz das regras de experiência comum e do contexto em que se desenrolaram os factos, que os queixosos, (que revelaram sempre algum apreço por ela e a ajudaram) decidissem de um momento para o outro acusar a arguida sem certezas de que fora ela a autora do furto. 
Na fundamentação o tribunal recorrido parece ter apelado ao “princípio da desconfiança” contra os queixosos, duvidando de tudo o que relataram, sem fundamento algum, mesmo em explicações perfeitamente plausíveis e aceitáveis à luz das regras de experiência comum. Veja-se o seguinte trecho (realce nosso):
 - “Ouvida a testemunha e marido da assistente, igualmente ofendido por o dinheiro também ser seu, FF…, confirmando que a arguida trabalhou lá em casa vários anos, bem como a estima pela mesma e sendo que até ajudaram quando esta teve um problema de saúde, após várias baixas esta veio trabalhar dois ou três dias em Março de 2018 e estranhando o comportamento da mesma e o afastamento, foram verificar os envelopes e deram pela falta dos mesmos, sendo que igualmente o haviam feito imediatamente antes do seu regresso. Nega a hipótese de terem sido terceiros ou outros empregados de limpezas a retirarem o dinheiro, pelo facto de verificar o mesmo com frequência. Mais confirmou que esta não era a primeira vez, sendo que já havia confrontado a arguida por falta de dinheiro de bolso, optando por dar uma nova oportunidade. Refere ainda que tendo tomado conhecimento que a arguida havia visto os envelopes no hall, que trocou os mesmos para a cozinha. Confirma também que confrontando a arguida, esta acamou por admitir. Desconhece a existência de outro dinheiro da mulher e escondido na casa.
Perante estas declarações, que foram claras assertivas e fazem recair sobre a arguida a única suspeita possível, não se entende a ilação que a srª Juíza faz de seguida:
- “Não podemos deixar de notar estranheza pela certeza adiantada pela testemunha quanto à autoria dos factos”.
Estranhar a certeza porquê? A testemunha explicou o motivo, é que naquele período do desaparecimento do dinheiro, situado nos 2 ou 3 dias que a arguida regressou ao trabalho e que sem explicação alguma deixou em definitivo, mais ninguém tinha entrado em casa.
 Será preciso prova directa numa situação destas?
Talvez sim, se o tribunal recorrido tivesse apresentado razão válida para duvidar das declarações das testemunhas, mas tal não aconteceu. As ilações que se expuseram na motivação quanto à altura da arguida e dos queixosos, local onde estaria o envelope e alegadas discrepâncias de datas, são meros raciocínios ilógicos e à margem das regras de experiência comum, que contrariam a assertividade dos depoimentos dos queixosos.
Estamos claramente perante um erro de julgamento e contradição na fundamentação da sentença recorrida, pelo que se impõe a sua revogação e alteração da matéria de facto no sentido preconizado pela recorrente.
Os parágrafos que referimos, da fundamentação da sentença recorrida, são para nós inusitados, porquanto não se coadunam, nem com a prova produzida, nem com as regras de experiência comum, extravasando mesmo o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artº 127º do cód. procº penal, (que não se pode confundir com livre arbítrio)[3], na medida em que, uma análise crítica segura da prova constante dos autos, conjugada com as regras de experiência comum impunha que o tribunal recorrido desse como provados os factos que deu como “não provados”, relativamente à arguida. 
A prova deve ser apreciada segundo as regras da experiência comum e a livre convicção da entidade competente. Porém, essa convicção, “não é pura e simplesmente lógico-dedutiva, mas (…) parte de dados objectivos para uma formação lógico-intuitiva”[4].
No nosso sistema jurídico, a regra é a do princípio da livre apreciação da prova, salvo quando a lei dispuser diferentemente, sendo aquela apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Tal princípio não é absoluto, e entre as excepções a tal regra incluem-se o valor probatório dos documentos autênticos e autenticados, o caso julgado, a confissão integral e sem reservas no julgamento e a prova pericial, cfr. Ac. STJ, de 1-10-08, Proc. nº 08P2035, in www.dgsi.pt.
 Esta livre convicção do julgador não significa arbítrio ou decisão irracional, antes pelo contrário, exige-se uma apreciação crítica e racional das provas, fundada nas regras da experiência, da lógica e da ciência, bem como na percepção da personalidade dos depoentes, para que a mencionada convicção resulte perceptível e objectivável. De tal encontra-se indissociada a oralidade e imediação de que beneficia o julgador em 1ª instância, que só assim, em contacto directo com declarantes e testemunhas pode detectar com propriedade a sua razão de ciência, serenidade, distanciamento, certezas, hesitações e contradições, linguagem e cultura, sinais, reacções comportamentais e coerência de raciocínio, estando, pois, em condições de avaliar, individual e globalmente a prova, – cfr. Ac. RL, Proc. nº 1551/05.6PSLSB.L1, de 19.01.2010.
 Ao invés, o tribunal de recurso, sem acesso àquela apreensão directa e emotiva dos mencionados factores relatados por testemunhas e depoentes encontra-se limitado à audição dos depoimentos postos em crise pelos intervenientes processuais e de outras eventualmente consideradas relevantes.
 Daí que, quando a 1ª instância atribui ou não credibilidade a uma determinada prova não vinculada, o tribunal de recurso, em princípio só a deverá censurar se for feita a demonstração de que tal opção carece de razoabilidade ou viola as regras da experiência comum[5].
No caso concreto o Tribunal recorrido errou ao dar como não provados os factos acima referidos, tendo em conta que a prova apresentada se afigura consistente e sem margem de dúvida, para considerar a arguida como o autora dos factos imputados pela acusação.
A Srª Juíza recorrida parece deixar transparecer a ideia de que apenas reconhece como válida a chamada prova directa, mas na verdade assim não é.
Com efeito as chamadas presunções judiciais são também aplicáveis em processo penal, com as devidas cautelas obviamente, como o têm defendido a doutrina e jurisprudência em geral.
Como se refere no Ac. do S.T.J. de 4/11/98, C.J., III, 209, o princípio da livre apreciação da prova “não é, portanto, livre arbítrio ou valoração puramente subjectiva, mas apreciação que, liberta do jugo de um rígido sistema de prova legal, se realiza de acordo com critérios lógicos e objectivos e, dessa forma, determina uma convicção racional, logo, também ela objectivável e motivável”.
A prova indiciária devidamente valorada permite uma condenação criminal”; neste sentido [embora em situação diferente] se pronunciou um acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23.01.2013, no proc. nº 720/11.4PJPRT.P1, da 1ª secção Criminal, e disponível em www.dgsi.pt/trp.
Não obstante estarmos perante um caso em que a prova produzida não é directa, nem muito abundante, ela mostra-se, no entanto, suficiente o bastante para se concluir no sentido da imputação da autoria do crime de furto à arguida.
Por outro lado, convém esclarecer que o princípio do “in dubio pro reo”, também não faz aqui sentido, pois ele não é mais que uma regra de decisão, através da qual, após produção da prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, que tem de ser razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável. Exige-se, portanto, que no espírito do julgador subsista uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto. O Tribunal “a quo” teve essa dúvida legítima, no entanto há que ter conta que na apreciação e valoração da prova, não considerou aqueles pontos essenciais que acima assinalámos, considerando por um lado, “irrelevante” as declarações dos queixosos e por outro lançando dúvidas sobre a certeza que tinham, num contexto em que ela era justamente de primordial importância.
“O ‘in dubio pro reo’ só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa”, - cfr. Ac. Rel. Lisboa de 14.12.2010, disponível in www.dgsi.pt.
Como se salientou no Ac. do Tribunal Constitucional 198/2004 de 24/03/2004, D.R. II Série, de 02/06/2004 - «a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de quaisquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção. De outra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão[6]
Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance das normas penais, deve o aplicador do direito recorrer às regras de interpretação, entre as quais o princípio in dubio pro reo não se inclui; em relação à matéria de facto exige-se ao juiz a certeza, devendo considerar o facto como não provado em caso de dúvida; quanto ao direito, não se exige essa certeza, mas tão só que procure a solução juridicamente correcta de acordo com as regras de interpretação[7];
 Não estamos a censurar a prudência do tribunal recorrido na sua “motivação” e consequente decisão absolutória, mas antes a suprir um vício previsto no artº 410º nº 2 al. c) do Cód. Proc.º Penal e outro que resulta de um erro de julgamento, que necessariamente implica uma alteração substancial da decisão e que está dentro dos poderes deste Tribunal de recurso modificar.
É claro que não temos testemunhas oculares e presenciais da arguida a apropriar-se dos 3 envelopes com dinheiro, mas tal facto é irrelevante, na medida em que, o conjunto de elementos de prova encontrados, não permitem outra conclusão que não seja a imputação da autoria do crime à arguida.
A tese da recorrente merece acolhimento, pois não é pelo facto de ninguém ter visto o acto de apropriação strictu sensu, que o Tribunal não poderia dar como provada a factualidade da acusação.
Não podemos esquecer que as presunções judiciais são um meio de prova lícito, (cfr. art.º 349º e 351º do cód. civil), admissíveis em processo penal por força do disposto no art.º 125º do cód. procº penal. Não sendo meio proibido, pode o julgador, à luz das regras de experiência comum e dentro do princípio da livre apreciação da prova, (artº 127º do cód. procº penal), retirar dos factos conhecidos e objectivos as ilações que se lhe apresentem como óbvias e dar tais factos como provados.  
Este é um dos mecanismos legais na formação da convicção do julgador, em que todos aqueles factos que pela sua própria natureza não são directamente percepcionáveis pelos sentidos do espectador, se podem inferir pela exteriorização da conduta ou da prova de outros factos. Como exemplo, temos a prova da intenção criminosa que, constituindo acontecimento da vida psicológica, não admite prova directa, podendo, no entanto, ser inferido a partir de outros factos que tenham sido diretamente provados.
Como bem se salienta num acórdão do Trib. da Relação do Porto acima citado[8]:
- “A prova por presunção não é uma prova totalmente livre e absoluta, como aliás o não é a livre convicção (…) conhecendo limites que quer a doutrina quer a jurisprudência se têm encarregado de formular:
- Desde logo, é necessário que haja uma relação direta e segura, claramente percetível, sem necessidade de elaboradas conjeturas, entre o facto que serve de base à presunção e o facto que por presunção se atinge (sendo inadmissíveis “saltos” lógicos ou premissas indemonstradas para o estabelecimento dessa relação);
- Por outro lado, há-de exigir-se que a presunção conduza a um facto real, que se desconhece, mas que assim se firma (por exemplo, a autoria – desconhecida – de um facto conhecido, sendo conhecidas também circunstâncias que permitem fazer funcionar a presunção, sem que concomitantemente se verifiquem circunstâncias de facto ou sejam de admitir hipóteses consistentes que permitam pôr em causa o resultado assim atingido);
- Por fim, a presunção não poderá colidir com o princípio in dubio pro reo (é esse, aliás, o sentido da restrição referida na parte final do exemplo que antecede)”.
No mesmo sentido se pronunciou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09.04.2014, Processo nº 17135/08.4TDPRT.P1, por nós relatado.
É certo que a valoração é feita de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, (cfr. artº 127º do Cód. Procº Penal) e segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente. Todavia, estando subjacente um erro notório na apreciação da mesma e um erro de julgamento não pode este Tribunal deixar de suprir tais vícios e decidir em conformidade.                      
Em face do exposto, dentro dos podres concedidos pelos art.ºs 428º e 431º do Cód. Proc.º Penal determina-se que os factos dados como “não provados” pelo tribunal recorrido, passem a constar dos “factos provados”
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Podendo este tribunal decidir, impõe-se a qualificação jurídica dos factos ora dados como provados. A acusação imputou à arguida a prática em autoria material de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos art.º 203º nº 1, conjugado com o art.º 204º nº 1 al. a) e com referência ao art.º 202º al. a) todos do cód. penal.
Em face da factualidade provada e montante apropriado, estamos sem dúvida perante um crime de furto qualificado, conforme normas referidas, já que todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo se encontram verificados.
Para tal crime previu o legislador uma pena de prisão até 5 anos ou uma pena de multa até 600 dias.
A medida concreta das penas, deve ser aferida nos termos do art.º 71º do Cód. Penal, em função da culpa da arguida, tendo em conta as exigências de prevenção de futuros crimes e atendendo a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de ilícito, deponham a seu favor ou contra si.
Com efeito, na determinação da medida da pena, esta tem como primeira referência a culpa e funcionando depois num segundo momento, mas ao mesmo nível, a prevenção. No tocante à culpa, os factos ilícitos são decisivos e devem ser valorados em função do seu efeito externo; a prevenção constitui um fim e deve relevar para a determinação da medida da pena em função da maior ou menor exigência do ponto de vista preventivo.
Na graduação da pena concreta, deve o julgador relevar a sua própria intuição assessorada pelas regras da experiência comum, face ao caso concreto em análise, ponderadas as circunstâncias agravantes e atenuantes provadas; todavia, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Conjugando o disposto nos art.ºs 40º e 70º do Cód. Penal resulta que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e o reforço da consciência jurídica comunitária na validade da norma infringida (prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Quanto às circunstâncias agravantes e atenuantes a ter em conta devemos relevar as seguintes:
- A arguida não confessou os factos e a sua conduta em audiência de julgamento demonstrou uma atitude de ligeireza e despreocupação que não se compadece com a gravidade dos factos que lhe são imputados.
Assim, em sede de medida concreta da pena, importa valorar que:
- As elevadas necessidades de prevenção geral deste tipo de condutas, atendendo à frequência da sua prática, bem como à gravidade dos seus efeitos e sentimento de insegurança que causam na população;
- A intensidade do dolo, que é directo.
- Violação do grau de confiança que os queixosos nela depositaram ao longo dos anos, enquanto foi sua empregada;
- O grau moderado da ilicitude dos factos;
- As exigências de prevenção geral positiva que no caso se fazem sentir são também de ter em conta;
- A seu favor importa realçar a ausência de antecedentes criminais e o facto de se encontrar socialmente inserida.
Tudo devidamente ponderado, fazendo uso de um critério de razoável proporcionalidade, afigura-se-nos adequado optar pela pena e multa em detrimento da pena de prisão.
A pena de multa abstractamente prevista vai de 10 a 600 dias e a taxa diária de 5,00€ a 500€ (cfr. art.º 47º nºs 1 e 2 conjugado com o art.º 204º nº 2 al. a) ambos do Cód. Penal).
Temos como adequado fixar a pena de multa em 200 dias à taxa de 5,00€ diários, ou seja, a multa global de 1.000,00 €uros ou em alternativa 133 dias de prisão, conforme disposto no artº 49º nº 1 do Cód. Penal.
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Pela assistente e demandante civil foi deduzido pedido de indemnização civil contra a arguida e demandada, no valor global de €15.000,00, (referentes apenas a danos patrimoniais), acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal, por danos patrimoniais.
Face ao princípio da plenitude da acção penal consagrado no art.º 71º do Cód. Procº Penal é este meio o próprio e o tribunal o competente para conhecer do pedido de indemnização civil formulado pela assistente.
A indemnização de perdas e danos emergentes de um crime é regulada pela lei civil (artº 128º do Cód. Penal).
A lei civil regula assim as indemnizações a atribuir em consequência de um crime, tanto no respeitante aos pressupostos como ao "quantum".
O princípio geral norteador da responsabilidade civil encontra-se consagrado no artº 483º do c. civil e aí se diz no seu nº 1: "Aquele que com dolo ou mera culpa violar ilicitamente o direito de outrem, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação".
Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação (art.º 562º do Cód. Civil).
Tal indemnização compreende não só o prejuízo causado como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão (art.º 564º do Cód. Civil). E será fixada em dinheiro sempre que a reconstituição natural não seja possível (art.º 566º do Cód. Civil).
Para além dos danos patrimoniais, deve ainda atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito (artº 496º nº 1 do c. civil).
O montante destes danos deve ser equitativamente fixado pelo Tribunal, tendo em conta o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso, como por exemplo o sofrimento, a dor e o desgosto.
Analisados os princípios e critérios legais a ter em conta na quantificação dos danos, impõe-se apreciar o pedido formulado.
Dois tipos fundamentais de danos são susceptíveis de indemnização, ainda que dentro dos danos patrimoniais, vários sub-tipos se individualizem:
- Os danos patrimoniais e morais (ou não patrimoniais).
No caso concreto, apenas temos um pedido por danos patrimoniais no montante de 15.000,00 Euros, correspondente aos valores de que a arguida se apropriou, acrescidos de juros de mora vencidos e vincendos à taxa legal.
A factualidade provada demonstra efectivamente a apropriação ilícita de dinheiro naquele montante (15.000€), pelo que, dúvidas não restam quanto à imposição do ressarcimento por este valor.
À quantia apurada, acresce ainda a responsabilidade da arguida pelo pagamento dos respectivos juros de mora, desde a notificação do pedido, à taxa legal 4% (cfr. art.º 483º, 559º, 798º, 804º, 805º e 806º todos do Cód. Civil, conjugados com a Portaria nº 291/2003 de 8 de Abril), até integral pagamento.              
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DECISÃO
Nestes termos, acordam os juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto pela Assistente, IF... e decidem:
a) Condenar a arguida MM... como autora de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artº 203º nº 1, conjugado com o art.º 204º nº 1 al. a) e com referência ao art.º 202º al. a) todos do Cód. Penal na pena de 190 dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco euros) ou seja, na multa global de 950,00€ (novecentos e cinquenta euros) ou, em alternativa, 126 dias de prisão.
b) Condenar ainda a arguida, MM…, no pagamento de 15.000,00€ (quinze mil euros) de indemnização à assistente e demandante civil, a título de danos patrimoniais, acrescidos do pagamento dos respectivos juros de mora, desde a notificação do pedido, à taxa legal 4% (cfr. art.º 483º, 559º, 798º, 804º, 805º e 806º todos do cód. civil, conjugados com a Portaria nº 291/2003 de 8 de Abril), até integral pagamento. 
c) Condenar ainda a arguida no pagamento das custas, do processo, fixando-se em 4 UC (quatro unidades de conta) a taxa de justiça criminal, (artigos 513º do Cód. Proc.º Penal e 8º, nº 5, do RCP e Tabela III anexa ao mesmo) e nas demais custas cíveis e encargos do processo nos termos do artigo 514º do Cód. Proc.º Penal. 
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Lisboa 29 de Janeiro de 2020
A. Augusto Lourenço
João Lee Ferreira
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[1] - Cfr. Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98.
[2] - Isto, segundo as declarações da Assistente e da testemunha FF….
[3] Este livre arbítrio “não é, nem deve implicar nunca o arbítrio, ou sequer a decisão irracional, puramente impressionista-emocional que se furte, num incondicional subjectivismo, à fundamentação e à comunicação” - A. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, pág. 48.
[4] - Cfr. Ac. do Tribunal Constitucional n° 198/2004 (DR, II Série, de 2 de Junho de 2004.
[5] - Cfr. Acs. TC nº 1165/96, de 19-11, BMJ, 461, pg. 93; do STJ, de 23-10-08, Proc. nº 08P2869, in www.dgsi.pt; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 1993, pgs. 107 a 114; Simas Santos/Leal Henriques, Código de Processo Penal Anotado, vol. I, 3ª ed., pgs. 874 a 879 – citando vários AA. -; e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10ª ed., pg. 322 a 323.
[6] - Cfr. Tribunal Constitucional in www.tribunalconstitucional.pt/acordaos
[7] - Cfr. neste sentido Ac. da Rel. de Lisboa de 01.02.2011, disponível in www.dgsi.pt;
[8] - Cfr. Ac. Trib. Rel. Porto de 23.01.2013, no proc. nº 720/11.4PJPRT.P1, da 1ª secção Criminal, e disponível em www.dgsi.pt/trp.