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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
SUSPENSÃO DE EXECUÇÃO DA PENA
CONTROLO
MEIOS TÉCNICOS DE CONTROLO À DISTÂNCIA
Sumário
- No essencial, num quadro em que o arguido beneficiou de uma suspensão da execução da pena em data posterior à dos factos, estando, aquando da prolação da sentença recorrida, em cumprimento dessa pena de substituição mediante a sujeição a regime de prova que envolve a sua integração no Programa para Agressores de Violência Doméstica – PAVD, tendo já decorrido cerca de dois anos sobre a prática dos factos delituosos aqui em questão, afigura-se-nos que ainda é de aplicar a pena substitutiva de suspensão da execução da pena, de forma a permitir que possa ter efeito na conduta do arguido o regime de prova com a integração no referido PAVD e a intervenção ao nível do acompanhamento psicológico sinalizada pela DGRSP. -Através da suspensão pretende-se não frustrar, mediante a prisão do arguido, a possibilidade de reinserção em liberdade que lhe foi facultada pela sentença posterior aos factos de que nos ocupamos, permitindo que opere efeito o regime de prova a que foi sujeito na última condenação, ainda que sendo esta porventura a derradeira hipótese de evitar a prisão caso não conforme o seu comportamento às exigências da lei e do respeito devido a quem seja a sua companheira sentimental do momento. - Se a sentença recorrida não formulou qualquer juízo sobre a imprescindibilidade da utilização de meios técnicos de controlo à distância para fiscalização da pena acessória aplicada, nem aduziu fundamentação que permita a formulação de um tal juízo, “não resultando da matéria de facto provada, na sentença condenatória, factos concretos que o possam sustentar”, não estarão reunidos os pressupostos para que, dispensando o consentimento, haja lugar à utilização dos meios técnicos de controlo à distância como fiscalização da pena acessória – pena de proibição de frequentar a casa habitada pela ofendida e ainda de contactos com esta, pelo período de três anos, que enquanto tal se mantém.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
1. No processo comum com intervenção do tribunal singular n.º 636/17.0GDALM, NP, melhor identificado nos autos, foi acusado da prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p., pelo artigo 152.º, n.º, 1 al. b), n.º 2 do Código Penal, tendo sido requerida pelo Ministério Público a atribuição de uma indemnização à vítima, nos termos do disposto no artigo 82.º-A do Código de Processo Penal.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
«Tudo visto e ponderado, tendo em atenção as considerações expendidas e o quadro legal aplicável, decido:
a) Condenar o arguido NP pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) do Código Penal, na pena de dois anos de prisão;
b) Condenar o arguido na pena acessória de proibição de frequentar a casa habitada pela ofendida e ainda de contactos com esta, pelo período de três anos, devendo tal pena ser sujeita a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância;
c) Condenar o arguido a pagar à ofendida SG a quantia de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros) a título de indemnização, nos termos previstos pelo art.º 21.º, n.º 1 e 2 da Lei 112/2009, de 16/09 e 82.º A do Código de Processo Penal;
(…)»
2. O arguido recorreu da sentença, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1. O Arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152º nº1 b) do CP, na pena de 2 anos de prisão efectiva.
2. Foram incorretamente julgados os pontos n.ºs 2 e 18.º da matéria de facto dada como provada, que devem passar a constar da factualidade não assente.
3. Com efeito, do depoimento prestado pela Ofendida não resulta provado o facto n.º 18, designadamente que “O Arguido foi atrás da ofendida, tendo mudado de caminho em momento não concretamente apurado”, pois que, para além de tal depoimento, em si, ser absolutamente contraditório, a Ofendida afirma que não olhou para trás, o que impossibilita ter visto o Arguido a persegui-la (sessão de julgamento de 22 de maio de 2019, Gravação 20190522110709_19741545_2871160, desde 01:32:27 a 01:32:55).
4. Sendo certo que, por sua vez, o Arguido afirma de forma segura, credível e peremptória que jamais seguiu a Ofendida (sessão de julgamento de 22 de maio de 2019, Gravação 20190522100328_19741545_2871160, desde 38:21 a 40:04) – sendo que tal depoimento determina uma decisão diversa a favor do Arguido.
5. O princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º do CPP, não inibe o julgador do dever de explicitar o processo de formação da sua convição, nem se confunde com a apreciação arbitrária da prova.
6. Ora, o tribunal a quo na respetiva fundamentação da matéria de facto, não explicitou o processo de formação da sua convicção, designadamente, o motivo pelo qual as declarações do Arguido não lhe mereceram credibilidade em confronto com as declarações (nitidamente contraditórias) da Ofendida,
7. Pelo que, face ao exposto, o Tribunal a quo ao dar os factos n.º 2 e 18 como provados, violou o disposto nos artigos 127º, 374º, n.º 2 e 410º, n.º 2, alínea b) todos do CPP.
8. Para além do mais, não respeitou, ao dar como provado tais factos, o princípio basilar que rege o Direito Penal: In dúbio pro reu.
9. O depoimento contraditório da Ofendida, por sua vez, contrário às declarações do Arguido, impunha ao Tribunal a quo, no mínimo, um estado de dúvida acerca da veracidade do facto;
10. O que acarreta, obrigatoriamente, face ao princípio do in dúbio pro reu, que tal facto devia ser dado como não provado (conforme, aliás, o entendimento do Ac. do TRL de 07.05.2019 proferido no âmbito do proc. n. 485/15.0GABRR.L2-5).
11. Pelo que, o Tribunal a quo violou o princípio in dubio pro reu previsto no artigo 32º, n.º 2 da CRP, que impõe que em caso de existência de dúvida sobre quaisquer factos, o tribunal tenha de decidir pro reu.
12. Ainda que assim não fosse, e se mantivesse como provado o facto n.º 18, o que mero dever de patrocínio se aduz, jamais poderia ser dado como provado, na totalidade, o facto n.º 2 da matéria dada como provada, designadamente, que o Arguido “procurava frequentemente a ofendida, pessoalmente (...)”, uma vez que da restante matéria de facto dada como provada, não se encontra a alusão a qualquer outro facto – e nem sequer foi alegado na Acusação - que demonstre que o Arguido perseguiu, mais uma vez que fosse, a Ofendida.
13. Incorreu assim o Tribunal a quo em erro notório na apreciação de prova, conforme previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c) do CPP, suprível pelo Tribunal Ad quem, ao fazer integrar tais factos na matéria dada como não provada.
14. Vício esse que resulta da mera leitura da decisão recorrida (410º, n.º 2 do CPP).
15. Pelo que, o facto n.º 2 da matéria dada como provada deve ser alterado para “Após a separação do casal, o arguido procurava a ofendida, através de chamadas para o telemóvel e para o telefone fixo da residência da mesma, através do envio de mensagens escritas para o telemóvel daquela e através do envio de mensagens escritas pelas redes sociais “facebook” e “whatsapp”.
16. O Julgador a quo deu ainda como provado o facto n.º 34, nos termos do qual, “O Arguido denota como característica de personalidade a impulsividade”, sem indicar, na fundamentação da matéria de facto, em que meio de prova se baseou para dar tal facto como provado.
17. Sendo certo que o Arguido não se caracterizou de tal forma em sede de audiência de julgamento (sessão de julgamento de 22 de maio de 2019, Gravação 20190522100328_19741545_2871160, desde 56:04 a 57:30).
18. Não tendo o Tribunal recorrido indicado, por mera referência que fosse, as provas que serviram para formar a sua convicção, ou o depoimento prestado pelo Arguido, existe insuficiente fundamentação da sentença, o que determina a sua nulidade, nos termos do art.º 379º, nº1, al. a), com referência ao art.º 374.º, nº 2), ambos do CPP.
19. Cuja nulidade deve ser suprida pelo Tribunal ad quem ao eliminar tal facto da matéria de facto dada como provada, ao abrigo do disposto no artigo 379º, n.º 2 do CPP.
20. Face aos factos dados como provados pelo Tribunal recorrido, o Julgador aplicou uma pena manifestamente exagerada face às necessidades de prevenção geral e especial que o presente caso requer, quanto à medida concreta da pena, mas sobretudo quanto à sua execução.
21. Ao contrário do que resulta da Decisão recorrida, o grau de ilicitude é reduzido, não só pela reduzida gravidade de cada um dos factos dados como provados, como pelo tempo em que perduraram.
22. O Arguido encontra-se inserido social e profissionalmente;
23. O Arguido suporta a título de despesas do agregado familiar a quantia mensal de €275,00,
24. O Arguido tem uma filha menor, a quem paga uma pensão de alimentos de €100,00/mensais e €80,00 de explicações;
25. Não atendeu também o tribunal a quo de não existirem atualmente contactos entre a vítima e o Arguido – há mais de um ano e meio.
26. As razões de prevenção geral de que o Tribunal a quo se sustentou no presente caso para a aplicação da medida concreta da pena, mostram-se totalmente alheias aos factos dados como provados.
27. O Arguido não restringiu a liberdade de determinação e a integridade física da Ofendida, sendo, como é sabido e consabido a “média de 50 vítimas mortais”, tais relatórios publicados pela CIG têm sobretudo subjacente os casos de violência física que, infelizmente, culminam em vítimas mortais.
28. Muito menos, em momento algum da matéria de facto dada como provada – ou sequer alegada na contestação - consta que o Arguido utilizou, ou sequer que detém, uma arma.
29. Face à fundamentação do Tribunal a quo no que concerne à aplicação da medida concreta da pena, por um lado, e ao modo da sua execução, por outro, o Arguido está a ser julgado por factos que fundamentaram a condenação no processo n.º 1502/16.2GCALM, violando o Tribunal recorrido o principio ne bis in idem, que se encontra expressamente consagrado no artigo 29º, n.º 5 da CRP.
30. Pelo que se impõe a revogação da pena aplicada ao Arguido, substituindo por outra que, face aos factos efetivamente dados como provados, e aos princípios subjacentes ao Direito Penal, não deve exceder o seu limite mínimo de 1 ano.
31. A decisão recorrida, no que se refere à determinação e aplicação da medida concreta da pena, viola os artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, bem como, o artigo 29º, n.º 5 da CRP.
32. Por seu turno, o Julgador deve dar sempre preferência à pena não privativa da liberdade, face à privativa (art.º 70º do CP).
33. Se o Arguido for condenado em prisão efetiva vai deixar de ter capacidades financeiras para cumprir com as obrigações que tem a cargo, quer sejam profissionais, económicas, quer familiares.
34. A ameaça de prisão, aquando tal condenação suspensa na sua execução, no âmbito do proc. n.º 1502/16.2GCALM cuja sentença transitou em julgado em 21.03.2018, foi suficiente para o Arguido compreender e se consciencializar que jamais iria praticar qualquer ilícito criminal e, de facto, não voltou a adotar conduta semelhante.
35. O Arguido encontra-se a cumprir o regime de prova a que foi condenado por Sentença transitada em julgado em 21.03.2018 (no âmbito do processo nº 1502/16.2GCALM);
36. No âmbito do qual, conforme resulta do Relatório Social de Reinserção frequenta o Programa para Agressores de Violência Doméstica (PAVD).
37. Tendo tal acompanhamento, desde já, surtido efeitos positivos, conforme reconhecido pelo próprio em sede de audiência de julgamento (Gravação 20190522100328_19741545_2871160, desde 56:04 a 57:30)
38. É também acompanhado - após ter sido reencaminhado pelo Instituto de Reinserção Social para a Unidade de Saúde Familiar Vista Tejo -, a nível psicológico; cuja primeira consulta ocorreu em 25.06.2019.
39. Muito embora tenha sido condenado em 21.03.2018, os factos praticados pelo Arguido no âmbito dos presentes autos, ocorreram em momento anterior – outubro a dezembro de 2017.
40. Quando ainda não tinha qualquer tipo de acompanhamento, quer a nível psicológico, quer em cumprimento do PAVD.
41. Pelo que, as razões de prevenção especial consideradas pelo Tribunal recorrido ao condenar o Arguido em pena suspensa, por sentença transitada em julgado em 21.03.2019, mantém-se: o Arguido não voltou a praticar mais nenhum facto ilícito desde tal data,
42. Tendo a ameaça de prisão sido (como continua a ser), suficiente para o Arguido se consciencializar que jamais iria praticar qualquer ilícito penal ou adotar conduta semelhante.
43. Os factos de que o Arguido foi condenado apenas ocorreram desde 23 de outubro (fim do relacionamento entre ambos) até finais desse ano. Menos de dois meses. Não contacta a ofendida há mais de um ano e meio. Pelo que, as razões de prevenção especial encontram-se asseguradas.
44. A condenação do Arguido em prisão efetiva apenas se justificaria se os factos pelos quais foi ora condenado, tivessem ocorrido em momento posterior à condenação no pretérito ano, o que não aconteceu.
45. A suspensão da execução da prisão, com a obrigação de cumprimento de regime de prova, não colide com as finalidades da punição, antes pelo contrário, favorece, in casu, a reinserção social do condenado.
46. A manutenção do regime de prova que se encontra a cumprir, através do regime de prova a que se encontra sujeito e respetiva manutenção do PAVD que frequenta, consubstancia a “medida de conteúdo pedagógico e reeducativo” adequada ao caso em concreto,
47. Dando-lhe assim hipótese de se reeducar.
48. Pelo que, o alarme social gerado com os factos praticados pelo Arguido, coadunam-se, ao nível das razões de prevenção geral que presidem à escolha e determinação da medida da pena e da sua forma de execução, com a sua suspensão.
49. Motivo pelo qual, ao contrário do entendimento do Tribunal recorrido, deve a pena a cumprir pelo Arguido ser suspensa na sua execução, ao abrigo do disposto no artigo 50º do CP.
50. Violou assim o Tribunal recorrido o disposto no artigo 70º e 50º do CP, por se verificarem, no caso em concreto, razões suficientes que justificam a suspensão da execução da pena de prisão a que o Arguido foi condenado.
51. À cautela e sem prescindir, caso assim não se entenda, deve a pena privativa da liberdade a que o Arguido foi condenado ser substituída pela prestação de trabalho a favor da comunidade, ao abrigo do disposto no artigo 58º, n.º 1 do CP.
52. Pois que, a privação parcial da sua liberdade em prol de trabalho gratuito a favor da comunidade, para além de lhe permitir manter as suas ligações familiares, profissionais e económicas, acautela ainda as razões de prevenção especial e geral das penas por um lado, e mantém o conteúdo (também) positivo que a esta pena assiste.
53. Foi ainda o Arguido condenado à sanção acessória de proibição frequentar a casa habitada pela ofendida e ainda de contactos com a mesma pelo período de três anos, cujo cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, ao abrigo do disposto no artigo 152º, n.º 4 do CP.
54. Ao abrigo do disposto no art.º 35º da Lei 112/2009, de 16 de setembro, “O tribunal deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”
55. Sendo que, pode ser prescindido o consentimento do Arguido para o efeito, quando o juiz, de forma fundamentada, determinar que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a proteção dos direitos da vítima (art.º 36º, n.º 7 do mesmo preceito legal).
56. Para além de inexistir qualquer referência à imprescindibilidade de aplicação de tais meios técnicos de controlo à distância, nem haver consentimento do Arguido para o efeito, a fundamentação desse segmento da decisão é inexistente.
57. Por tal motivo, a decisão do Tribunal a quo é nula por falta de fundamentação, ao abrigo do disposto no artigo 374º, n.º 2 por aplicação do art.º 379º, n.º 1, al. b) ambos do CPP.
Nestes termos, e nos mais que o Venerando Tribunal doutamente suprirá, deve ser dado provimento ao presente recurso, nos termos exarados, por violação dos preceitos legais identificados, e, desta forma, ser a Sentença Recorrida revogada na parte em que condenou o Arguido na pena acessória de proibição de contacto com a Ofendida através da fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, bem como, na parte em que condenou o Recorrente na pena de 2 anos de prisão efetiva, por esta ser desproporcional à factualidade concretamente dada como provada e às finalidades da punição e, em consequência, ser substituída por outra Decisão, cuja medida concreta da pena não ultrapasse 1 ano de prisão, suspensa na sua execução.
Caso assim não se entenda e se mantenha a medida concreta da pena aplicada ao Arguido de 2 anos de prisão, requer-se que seja suspensa na sua execução por igual período, com sujeição a regime de prova.
Caso assim também não se entenda e ainda sem prescindir, deve a pena aplicada ao Recorrente ser substituída por outra que condene o Arguido à prestação de trabalho a favor da comunidade, por igual período, ao abrigo do disposto no artigo 58º, n.º 1 do CP.
3. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pelo seu não provimento.
4. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu douto parecer a fls. 529 e seguintes, no sentido do provimento parcial do recurso.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar. Colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, do mesmo diploma.
II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência do recorrente com a decisão impugnada, as questões a apreciar no recurso são:
- Nulidade da sentença por insuficiência da fundamentação da decisão da matéria de facto;
- Impugnação da decisão de facto / erro de julgamento / vícios decisórios do artigo 410.º, n.º 2, alíneas b) e c) / violação do princípio in dubio pro reo;
- Determinação da medida da pena e aplicação de pena de substituição;
- Falta de fundamentação da pena acessória.
2. Da sentença recorrida
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. O arguido NP e a ofendida SG tiveram uma relação de namoro entre data não concretizada do mês de Agosto de 2017 e o dia 23 de Outubro de 2017.
2. Após a separação do casal, o arguido procurava frequentemente a ofendida, pessoalmente e através de chamadas para o telemóvel e para o telefone fixo da residência da mesma, através do envio de mensagens escritas para o telemóvel daquela e através do envio de mensagens escritas pelas redes sociais “facebook” e “Whatsapp”.
3. Numa ocasião, em data não concretamente apurada, após a separação do casal, o arguido disse à ofendida que iria mostrar fotografias íntimas que aquela lhe enviara e onde aparece nua na escola da filha desta, IF, nascida em 18/6/2002.
4. Em datas não concretamente apuradas, após a separação do casal, o arguido disse à ofendida que ela era uma vaca e que andava com todos.
5. O arguido efectuou chamadas e enviou mensagens escritas para o telemóvel do filho da ofendida, PG.
6. No dia 24 de Outubro de 2017, cerca das 23 horas, no Posto Territorial da G.N.R. da Trafaria, a ofendida, devido ao medo que sente do arguido, solicitou acompanhamento até à residência do mesmo, sita na Rua ..., Monte de Caparica, a fim de lhe entregar objectos.
7. Minutos depois, à porta do prédio onde reside, perante o Guarda DB e o Cabo LC, o arguido disse que não queria nada com a ofendida porque estava “farto destas putas”.
8. No dia 25 de Outubro de 2017, cerca das 14 horas, a ofendida deslocou-se ao Posto Territorial da G.N.R. da Trafaria, onde apresentou a denúncia que deu origem aos presentes autos.
9. Durante esse período, o arguido esteve sentado numa esplanada situada em frente àquele Posto Territorial, tendo sido abordado pelos Guardas DB e F.
10. Na sequência do que antecede, dois elementos da G.N.R. acompanharam a ofendida até à sua residência sita na Rua …, Trafaria.
11. Durante aquele percurso, o arguido telefonou para a ofendida, tendo a mesma atendido e colocado o seu telemóvel em alta voz, ouvindo os três presentes: “Eu vou-te apanhar e partir a boca a ti e ao outro. Vou-te dar uma facada a ti e ao teu lindinho. Vou espetar a faca na cabeça pela orelha abaixo. Estou na merda, deste cabo da minha vida.”.
12. No mesmo dia, cerca das 16 horas, a ofendida constatou que o arguido tinha criado uma conta na rede social “facebook” com o seu nome, onde colocou uma fotografia da mesma com o peito nu, acessível a qualquer utilizador daquela rede social.
13. A ofendida tinha enviado fotografias do seu corpo nu apenas ao arguido.
14. Várias pessoas conhecidas da ofendida viram aquela fotografia, circunstância que causou à ofendida enorme vexação.
15. No dia 28 de Outubro de 2017, pelas 16 horas e 32 minutos, o arguido, através do telemóvel com o nº. 934077708 da rede “Nos”, titulado pela filha daquele, BP, na altura com 7 anos de idade, enviou a PG a seguinte mensagem escrita: “Boa tarde, PG! Só quero pedir desculpa por tudo” Não vós desejo mal nenhum! E quero pedir desculpa a tua mãe por as minhas atitudes. É irrelevante dizer isto. Mas eu gosto muito da tua mãe! Perdi o controlo da situação e foi e esta a ser difícil encara que a perdi! A SG merece ser feliz. É uma mulher espetacular! Desculpem por tudo”.
16. No dia 30 de Outubro de 2017, cerca das 13 horas, num corredor do centro comercial “Almada Fórum”, o arguido surpreendeu a ofendida, tocando-lhe com uma mão no ombro e perguntando-lhe se podiam falar.
17. De imediato, a ofendida tentou afastar-se do arguido e telefonou para o seu filho PG que se encontrava num veículo automóvel no parque de estacionamento daquele centro comercial, chamando-o.
18. O arguido foi atrás da ofendida, tendo mudado de caminho em momento não concretamente apurado.
19. No dia 6 de Novembro de 2017, cerca das 13 horas e 30 minutos, o arguido cruzou-se com IF junto ao portão do seu estabelecimento de ensino, a Escola Secundária de Cacilhas – Tejo, olhando para ela.
20. No dia 7 de Novembro de 2017, cerca das 15 horas, a ofendida estacionou o seu veículo automóvel com a matrícula 87…, no parque de estacionamento do centro comercial “Rio Sul Shopping”, sito no Seixal, em cuja loja “…” a mesma trabalha.
21. No dia 8 de Novembro de 2017, cerca da 1 hora, a ofendida regressou para junto do seu veículo automóvel, deparando-se com os dois pneus da frente e um pneu de trás cortados.
22. No hiato dos dois últimos factos acima descritos, naquele parque de estacionamento, o arguido, após ter retirado um objecto do interior de um bolso, deslocou-se junto do veículo automóvel da ofendida e cortou os respectivos dois pneus da frente e um pneu de trás, inutilizando-os.
23. Entre os dias 23 de Outubro de 2017 e 13 de Dezembro de 2017, através da rede social “facebook”, o arguido enviou várias mensagens escritas para MT, colega de trabalho da ofendida, nas quais apelidou a sua ex-namorada de: “Cabra. Puta.”.
24. No período compreendido entre os dias 25 de Outubro de 2017 e 7 de Abril de 2018, a ofendida, através da rede social “Badoo”, recebeu várias propostas de encontros sociais e/ou sexuais, sendo-lhe transmitido que o seu perfil continha uma fotografia sua e o seu número de telemóvel, acessíveis a qualquer utilizador daquela rede social.
25. A ofendida nunca se registou na rede social “Badoo”.
26. Devido ao constante assédio do arguido, a ofendida viu-se obrigada a mudar, por quatro vezes, de número de telemóvel.
27. Devido ao medo que sente do arguido, a ofendida evita sair sozinha e, quando entra na sua rua, tem o cuidado de verificar se o arguido se encontra próximo da sua residência.
28. O arguido NP , ao dirigir-se à ofendida SG nos sobreditos termos e ao agir das formas acima descritas, quis ofendê-la na sua honra, consideração e dignidade, humilhá-la, limitá-la na sua liberdade de movimentos, subjugá-la à sua vontade e fazê-la temer pela sua integridade física, com o propósito de lhe causar sofrimento emocional, prejudicá-la patrimonialmente e diminuí-la como pessoa, o que concretizou.
29. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que as suas condutas são proibidas e punidas por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.
30. O arguido tem antecedentes criminais:
- Por sentença transitada em julgado em 31/3/2014, foi o arguido condenado pela prática, em 28/8/2012, de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, sujeita à condição de pagar a quantia de 7 000 € (sete mil euros) à ofendida [extinta];
- Por sentença transitada em julgado em 21/3/2018, foi o arguido condenado pela prática, em 12/12/2016 e 13/12/2016, de um crime de ameaça e de um crime de violência doméstica, na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por três anos, sujeita à condição de pagar a quantia de 1.500€ (mil e quinhentos euros) à ofendida e de frequentar programa de prevenção contra a violência doméstica e ainda na pena de 150 dias de multa.
31. O arguido completou o 4.º ano de escolaridade e é soldador, auferindo cerca de 750 € mensalmente.
32. Mora com os pais, suportando a título de despesas do agregado familiar a quantia mensal aproximada de 275€.
33. Tem uma filha de 8 anos que mora com a mãe a quem paga alimentos no valor de 100€ e explicações no valor de 80€.
34. O arguido denota como característica de personalidade a impulsividade.
2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado na sentença recorrida (transcrição):
Não resultaram provados quaisquer outros factos com interesse para a decisão da causa, designadamente não se provou que:
A. Nas circunstâncias descritas no ponto 4), o arguido disse à ofendida: que ela era oferecida e que ia ao trabalho dela mostrar quem ela era.
B. O arguido efectuou chamadas para o telemóvel da filha da ofendida, IF.
C. Nas circunstâncias descritas no ponto 9), o arguido mencionou aos militares que tinha conhecimento de que a ofendida estaria a apresentar denúncia contra ele.
D. Os amigos e colegas de trabalho da ofendida, como Susana Patrícia Farinha Almeida, viram a fotografia referida no ponto 12).
E. O arguido perseguiu a ofendida até ver o filho da mesma a aproximar-se da mãe, no corredor da loja “Jumbo”.
F. Nas circunstâncias descritas em 23), o arguido apelidou a ofendida de “Vaca”.
2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
(…)
3. Apreciando
Passamos, agora, a apreciar as questões colocadas no recurso, seguindo uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras.
Na apreciação do thema decidendi proposto pelo recurso, impõe a lógica que, em primeiro lugar, se dilucide a questão da invocada nulidade da sentença por insuficiência de fundamentação da decisão de facto, porquanto, se por procedente for havida, essa conclusão determinará a dispensabilidade de apreciar as demais.
3.1. Alega o recorrente que a sentença recorrida não contém a explicitação do processo de formação da convicção por parte do tribunal, tendo violado, por isso, além do mais, o artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P.
Dispõe o artigo 205.º, n.º 1, da Constituição da República, que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.
O artigo 97.º, n.º 5, do C.P.P., prescreve, em relação aos actos decisórios em geral, que «são sempre fundamentados, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão».
O acto da sentença, nos termos do disposto no artigo 374.º, do C.P.P., exige uma fundamentação especial.
De harmonia com o disposto no artigo 374.º, n.º 2, do C.P.P., ao relatório da sentença segue-se a fundamentação que consta da «enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal».
Por sua vez, estabelece o artigo 379.º, n.º 1, alínea a), do C.P.P., que é nula a sentença que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º3 do referido artigo 374.º.
Exige-se uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto (que, naturalmente, hão-se ser seleccionados de entre os factos provados e não provados) e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Não basta, por conseguinte, indicar os meios de prova utilizados, tornando-se necessário explicitar o processo de formação da convicção do tribunal, a partir desses meios de prova, com apelo às regras de experiência e aos critérios lógicos e racionais que conduziram a que a convicção do tribunal se formasse em determinado sentido. Só assim será possível comprovar se foi seguido um processo lógico e racional na apreciação da prova ou se esta se fundou num subjectivismo incomunicável que abre as portas ao arbítrio.
Mais detidamente sobre o “exame crítico” das provas, disse o Supremo Tribunal de Justiça: «O “exame crítico” das provas constitui uma noção com dimensão normativa, com saliente projecção no campo que pretende regular – a fundamentação em matéria de facto –, mas cuja densificação e integração faz apelo a uma complexidade de elementos que se retiram, não da interpretação de princípios jurídicos ou de normas legais, mas da realidade das coisas, da mundividência dos homens e das regras da experiência; a noção de “exame crítico” apresenta-se, nesta perspectiva fundamental, como categoria complexa, em que são salientes espaços prudenciais fora do âmbito de apreciação próprio das questões de direito. (…) O exame crítico consiste na enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos de credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da convicção, em ordem a que os destinatários (e um homem médio suposto pela ordem jurídica, exterior ao processo, com a experiência razoável da vida e das coisas) fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção» (acórdão de 16 de Março de 2005, Processo: 05P662, disponível em www.dgsi.pt como todos os que venham a ser citados sem outra indicação).
A fundamentação, na parte que respeita à indicação e exame crítico das provas, não tem de ser uma espécie de assentada em que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas inquiridas, ainda que de forma sintética. O exame crítico deve ser aferido com critérios de razoabilidade, não indo ao ponto de exigir uma explanação fastidiosa, com escalpelização descritiva de todas as provas produzidas, o que transformaria o processo oral em escrito, pois o que importa é explicitar o porquê da decisão tomada relativamente aos factos, de modo a permitir aos destinatários da decisão e ao tribunal superior uma avaliação do processo lógico-mental que serviu de base ao respectivo conteúdo (cfr., sobre esta matéria, o acórdão do STJ, de 26 de Março de 2008, Processo: 07P4833, www.dsgi.pt; também com interesse, Sérgio Poças, Da sentença penal – Fundamentação de facto, Revista “Julgar”, n.º3, p. 21 e segs.).
Não devemos confundir ausência ou deficiência de fundamentação com uma fundamentação que não convença o arguido quanto às razões de convicção apresentadas pelo tribunal.
A fundamentação visa permitir a percepção das razões de facto e de direito da decisão judicial e não promover, necessariamente, o convencimento do destinatário da decisão quanto ao bem fundado dessas razões.
Perante as provas cada pessoa formará a sua convicção. O que importa é que o julgador dê a conhecer, de forma clara e no quadro do que é razoável exigir, as razões da sua convicção, de forma que possam ser compreendidas, e não que logre convencer todos da sua razão, pois à convicção do tribunal sempre se contrapõem as convicções divergentes de outros sujeitos processuais.
É por isso que a nulidade, resultante da falta ou insuficiência da fundamentação, só ocorre quando não existir o exame crítico das provas e não também quando forem incorrectas ou passíveis de censura as conclusões a que o tribunal a quo chegou, posto que, percebidas as razões do julgador, podem os sujeitos processuais, com recurso, quando tal for necessário, ao registo da prova, argumentar para que o tribunal de recurso altere a matéria de facto fixada.
No caso em análise, o tribunal a quo explicitou, de forma tão completa quanto lhe foi possível, as razões da sua convicção.
Para além de indicar concretamente as provas consideradas, referenciando declarações, depoimentos e a prova documental, a sentença detém-se no seu exame crítico, expondo as razões pelas quais, com base nas provas, o tribunal formou a sua convicção relativamente à factualidade provada e não provada. A partir dessa exposição, podemos identificar o porquê da decisão de facto e o raciocínio lógico-dedutivo seguido pelo tribunal recorrido na articulação dos meios de prova disponíveis que serviu de suporte a tal decisão, do que resulta a percepção da razão de ciência de cada um e dos motivos de credibilidade dos depoimentos prestados, dando conta.
O arguido-recorrente pode dissentir do julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo, por sustentar que a prova deveria ter sido valorada de modo diverso – matéria também susceptível de ser sindicada por via de recurso -, mas carece de razão quando pretende que a sentença recorrida não se mostra fundamentada, designadamente no que concerne à decisão sobre a matéria de facto, razão por que o recurso, nesta parte, não colhe provimento.
3.2. Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do C.P. Penal.
Quer isto dizer que enquanto os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, são vícios da decisão, evidenciados pelo próprio texto, por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, na impugnação ampla temos a alegação de erros de julgamento por invocação de provas produzidas e erroneamente apreciadas pelo tribunal recorrido, que imponham diversa apreciação. Neste caso, o recorrente pretende que o tribunal de recurso se debruce não apenas sobre o texto da decisão recorrida, mas sobre a prova produzida em 1.ª instância, alegadamente mal apreciada.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os acórdãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, de 29 de Outubro de 2008, Processo 07P1016 e de 20 de Novembro de 2008, Processo 08P3269, inwww.dgsi.pt., como todos os que venham a ser indicados sem outra indicação).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir determinados erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P. Penal:
«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação (não basta a simples remissão para a totalidade de um ou vários depoimentos), pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.), salientando-se que o S.T.J, no seu acórdão N.º 3/2012, publicado no Diário da República, 1.ª série, N.º 77, de 18 de abril de 2012, fixou jurisprudência no seguinte sentido:
«Visando o recurso a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, com reapreciação da prova gravada, basta, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas, na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações».
Assim, o ónus processual de indicação das provas que impõem decisão diversa da recorrida, previsto na alínea b), do n.º 3, do artigo 412.º, do C.P.P., apresenta uma configuração alternativa, conforme a acta da audiência de julgamento contenha ou não a referência do início e do termo de cada declaração gravada, nos seguintes termos:
- se a acta contiver essa referência, a indicação das concretas passagens em que se funda a impugnação faz-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º (n.º 4 do artigo 412.º do C.P.P.);
– se a acta não contiver essa referência, basta a identificação e transcrição nas motivações de recurso das ditas “passagens/excertos” dos meios de prova oral gravados (acórdão da Relação de Évora, de 28/05/2013, processo 94/08.0GGODM.E1).
Resultando do recurso que se pretende sindicar a apreciação da prova, através da impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, procedeu-se à audição da prova gravada indicada, confrontando-a com a restante prova, e bem assim com a motivação da decisão de facto exposta no acórdão recorrido.
Procedeu-se dessa forma tendo sempre em vista que, como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo: 07P4375), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre diversas limitações, entre as quais a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º – também neste sentido o ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3].
Como se diz no acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril de 2008 (processo n.º 360/08-1.ª):
«Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»
Na reapreciação da prova importa articular os poderes de conhecimento do tribunal de recurso com os princípios relativos à produção e à valoração da prova no tribunal de 1.ª instância, especialmente com o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no artigo 127.º do C.P.P., princípio que vale também para o tribunal de recurso. Essa articulação há-de necessariamente ter em conta que as condições de que beneficia a 1.ª instância – em particular, a oralidade e a imediação – para avaliar os depoimentos prestados, no contexto de toda a prova produzida, se não verificam (pelo menos em toda a extensão) quando o tribunal de recurso vai julgar.
Traduzindo-se a livre apreciação das provas numa valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, a falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, com privação da possibilidade de intervir na produção da prova pessoal, serão, por assim dizer, limites epistemológicos a que a Relação deverá atender na sua apreciação, ainda que não barreiras intransponíveis a que faça a ponderação, em concreto e autónoma, das provas identificadas pelo recorrente, que pode conduzir à conclusão de que tais elementos de prova impõem um juízo diverso do da decisão recorrida.
Na impugnação ampla não está em causa proceder-se a um novo julgamento, mas apurar se a convicção expressa pela 1.ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e demais elementos probatórios podem exibir perante si (partindo das concretas provas indicadas pelo recorrente que, na sua tese, impõem decisão diversa, mas não estando por estas limitado).
Não se trata, pois, de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão, importando ter em atenção que os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes devem ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confortam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.
Assim, ouvida a gravação da prova, importa cotejá-la com a motivação da decisão de facto e verificar se as provas indicadas pelo recorrente (e agora reapreciadas) impõem decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.
3.2.1. O recorrente indica como pontos de facto indevidamente dados como provados os n.ºs 2, 18 e 34, indicando, em sustento da sua posição, as suas próprias declarações, que o tribunal, no seu entender, não terá valorizado ao dar preferência ao discurso alegadamente “incoerente” da ofendida.
Diz-se nos pontos de facto questionados:
2. Após a separação do casal, o arguido procurava frequentemente a ofendida, pessoalmente e através de chamadas para o telemóvel e para o telefone fixo da residência da mesma, através do envio de mensagens escritas para o telemóvel daquela e através do envio de mensagens escritas pelas redes sociais “facebook” e “Whatsapp”.
18. O arguido foi atrás da ofendida, tendo mudado de caminho em momento não concretamente apurado.
34. O arguido denota como característica de personalidade a impulsividade.
Vejamos.
O tribunal considerou o relato da ofendida “sincero e credível”, valorizando a sua “precisão”, conjugando-o com os depoimentos das testemunhas, designadamente DB, LC , NP, F e PG , tidos como objectivos, claros e credíveis.
Na tarefa de apreciação da prova, é manifesta a diferença entre a 1.ª instância e o tribunal de recurso, beneficiando aquela da imediação e da oralidade e estando este limitado à prova documental e pericial e ao registo de declarações e depoimentos.
A imediação, que se traduz no contacto pessoal entre o juiz e os diversos meios de prova, podendo também ser definida como «a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá que ter como base da sua decisão» (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, 1984, Volume I, p. 232), confere ao julgador em 1.ª instância meios de apreciação da prova pessoal de que o tribunal de recurso não dispõe. É essencialmente a esse julgador que compete apreciar a credibilidade das declarações e depoimentos, com fundamento no seu conhecimento das reacções humanas, atendendo a uma vasta multiplicidade de factores: as razões de ciência, a espontaneidade, a linguagem (verbal e não verbal), as hesitações, o tom de voz, as contradições, etc. As razões pelas quais se confere credibilidade a determinadas provas e não a outras dependem desse juízo de valoração realizado pelo juiz de 1.ª instância, com base na imediação, ainda que condicionado pela aplicação das regras da experiência comum.
Quer isto dizer que a atribuição de credibilidade, ou não, a uma fonte de prova testemunhal ou por declarações, tem por base uma valoração do julgador que, enquanto fundada na imediação e na oralidade (e nessa medida), o tribunal de recurso, em rigor, só poderá criticar demonstrando que é inadmissível face às regras da experiência comum (cfr. acórdão da Relação do Porto, de 21 de Abril de 2004, Processo: 0314013).
Tal não significa que o tribunal superior não deva analisar os depoimentos prestados e ajuizar sobre a sua verosimilhança e plausibilidade, tendo também em vista que a credibilidade em concreto de cada meio de prova tem subjacente a aplicação de máximas da experiência comum que informam a opção do julgador e podem, e devem ser escrutinadas.
Saliente-se que a existência de versões divergentes não significa que o tribunal tenha de ficar, forçosamente, numa situação de dúvida insolúvel e que não lhe seja legítimo, no quadro da livre apreciação da prova, dentro de parâmetros de racionalidade e experiência comum, determinar como os factos se passaram.
O artigo 127.º do C.P.P. consagra o princípio da livre apreciação da prova, a entender como uma apreciação racional e crítica, de acordo com as regras da lógica, da razão e da experiência comum.
Na tarefa de valoração da prova e de reconstituição dos factos, tendo em vista alcançar a verdade – não a verdade absoluta e ontológica, mas uma verdade histórico-prática ou prático-jurídica e processualmente válida (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1984, p. 194 2 204; Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1968, Coimbra, p. 48-50) –, o julgador não está sujeito a uma “contabilidade das provas”. Não será a circunstância, normal nas lides judiciais, de se contraporem, pela prova pessoal (declarações e testemunhos), versões contraditórias, a impor que o julgador seja conduzido, irremediavelmente, a uma situação de dúvida insuperável.
A função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os depoimentos prestados e não lhe é imposto ter de aceitar ou recusar cada um deles na globalidade, cumprindo-lhe antes a missão, certamente difícil, de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece ou não crédito e em que termos. Contrapondo-se versões diferentes, tal não significa que o tribunal tivesse de ficar, forçosamente, numa situação de dúvida insolúvel e que não lhe fosse legítimo, no quadro da livre apreciação da prova, dentro de parâmetros de racionalidade e experiência comum, determinar como os factos se passaram (acórdão da Relação de Coimbra, de 18/02/2009, Proc. 1019/05.0OGCVIS.C1, do mesmo relator do presente).
Aliás, o tribunal “pode formar a sua convicção com base num único depoimento, mesmo que do ofendido, desde que tal depoimento se lhe afigure credível, importando apenas que, de forma clara e completa, ainda que concisa, explicite as razões do seu convencimento, pois há muito deixou de vigorar a velha regra unus testis, testis nullius, ultrapassado que está o regime da prova legal ou tarifada, substituído pelo princípio da livre apreciação da prova – artigo 127.º” (cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 207; acórdão da Relação de Coimbra, de 27/05/2015, Processo 11/10.8GASJP.C1).
Ouvida a gravação da prova, não se conclui que o juízo formulado pelo tribunal da 1.ª instância seja desprovido de razoabilidade e que houvesse que decidir de forma diversa.
No que toca ao ponto de facto n.º2, da leitura atenta da sentença recorrida resulta que o advérbio “frequentemente” não se reconduz, apenas, ao episódio respeitante ao facto provado no ponto 18, mas obviamente a todos os episódios descritos nos demais pontos de facto provados, como os pontos 9, 11, 12, 15, 19, 22, 23, 24 dos factos provados, não impugnados.
A ofendida SG deu conta de como o arguido, na ocasião a que se reportam os pontos de facto n.º 16 a 18, a surpreendeu num corredor do centro comercial “Almada Fórum”, tocando-lhe com uma mão no ombro e indo atrás de si, tendo a mesma seguido para o corredor do Jumbo, por ser o que tem mais movimento de pessoas e, sentindo-se assustada, ligou primeiro para um primo e depois para o seu filho, PG , dando conta do que se estava a passar.
A testemunha PG acorreu ao local, mas não chegou a ver o arguido.
Por outro lado, a ofendida ao seguir apressadamente para o corredor do Jumbo não logrou aperceber-se do momento concreto em que o arguido deixou de estar atrás de si, razão por que a sentença recorrida deu como não provado (ponto E) que o arguido “perseguiu a ofendida até ver o filho da mesma a aproximar-se da mãe, no corredor da loja Jumbo”.
Não vislumbramos razão para divergir do juízo formulado pelo tribunal recorrido quanto a estes factos e não identificamos a alegada “incoerência” que o recorrente imputa ao discurso da ofendida que, pelo contrário, por via da sua audição, nos parece claro, espontâneo e credível, como se ajuizou no tribunal a quo.
Aparentemente, o arguido/recorrente entende que o tribunal deveria atender apenas às suas declarações – disse, sobre este episódio, que passou pela ofendida ao pé da FNAC, perguntou-lhe se podiam conversar, ao que a mesma disse que não, nada mais acontecendo, não tendo seguido atrás dela - e desconsiderar a restante prova pessoal, o que não podemos aceitar.
Por outro lado, socorre-se o recorrente das suas próprias declarações para argumentar que “em momento algum se caracterizou ou adjectivou como impulsivo”, do que parece inferir que o tribunal estaria, por isso, impossibilitado de dar como provado o que consta do ponto 34. Aparentemente, entende o recorrente que o tribunal teria de conformar-se com a sua (dele, arguido) auto-avaliação.
Ora, o tribunal não estava limitado às declarações do arguido: teve à sua disposição todos os elementos de prova que lhe permitiram ajuizar sobre a personalidade do arguido/recorrente, incluindo o relatório social, expressamente referido na motivação, que além do mais menciona a “impulsividade” do arguido como sua característica pessoal a assinalar.
O que o arguido/recorrente pretende é uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão, sem que a impugnação ampla o ampare nessa pretensão.
Invoca o arguido/recorrente a violação do princípio in dubio e o vício decisório do erro notório na apreciação da prova.
Alega também a verificação do vício decisório previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. b), do C.P.P.
Estabelece o artigo 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Como já se disse, trata-se de vícios decisórios que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e cuja verificação há-de necessariamente, como resulta com clareza do preceito, ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma.
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pp. 71 a 73).
Por sua vez, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a al. c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994).
Analisada a decisão recorrida, os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes; visionando toda a matéria factual, não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão; também não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta.
A discordância entre o que o recorrente entende que deveria ter sido dado como provado e o que na realidade o foi pelo tribunal a quo, não se enquadra nestes vícios, tal como estão na nossa lei estruturados, pelo que, se existe uma discordância, face aos elementos de prova apreciados, entre aquilo que foi dado como provado e aquilo que o recorrente entende não ter resultado da prova produzida – ou que devia ter ficado provado – já estamos no domínio da livre apreciação da prova e não dos vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º 2.
Não descortinamos qualquer qualquer incompatibilidade lógica nas relações entre factos que resulte do texto da decisão (factos provados e respectiva fundamentação), pelo que o recorrente posiciona-se, exclusivamente, no campo da crítica pessoal quanto ao modo como o tribunal recorrido valorou as provas.
É discutível, como é sabido, a inclusão da violação do princípio in dubio pro reo na delimitação positiva do vício decisório do erro notório na apreciação da prova.
Não ignorando a polémica doutrinal que envolve a fundamentação do princípio in dubio e a sua relação com o princípio da presunção de inocência – entre teorias uniformizadoras que identificam os dois princípios e teorias diferenciadoras que distinguem o seu alcance e conteúdo -, temos que perante uma dúvida sobre os factos desfavoráveis ao arguido, que seja insanável, razoável e objectivável, o tribunal deve decidir “pro reo”.
Ensina, sobre a matéria, o Prof. Figueiredo Dias:
«À luz do princípio da investigação bem se compreende, efectivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminoso, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados. E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um non liquet na questão da prova – não permitindo nunca ao juiz, como se sabe, que omita a decisão (...) – tem de ser sempre valorado a favor do arguido. É com este sentido e conteúdo que se afirma o princípio in dubio pro reo» (Direito Processual Penal, reimpressão, 1984 p. 213).
Como se pode ler no Ac. do STJ, de 10/01/2008, Proc. n.º 07P4198, “«a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade»: «no trabalho de verificação dos enunciados factuais, a posição do investigador - juiz pode, de algum modo, assimilar-se à do historiador: tanto um como o outro, irremediavelmente situados num qualquer presente, procuram reconstituir algo que se passou antes e que não é reprodutível». Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given). Pois que «nos actos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a actuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).”
Podendo ainda ler-se no mesmo aresto, a propósito, que “o in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – (…). Até porque «a prova, mais do que uma demonstração racional, é um esforço de razoabilidade» (idem, pág. 17): «O juiz lança-se à procura do «realmente acontecido» conhecendo, por um lado, os limites que o próprio objecto impõe à sua tentativa de o «agarrar» (idem, pág. 13)»”.
O estado de dúvida (insanável, razoável e objectivável) - valorado a favor do arguido por não ter sido ilidida a presunção da sua inocência - pressupõe que, produzida a prova, o tribunal, e só o tribunal, tenha ficado na incerteza quanto à verificação ou não, de factos relevantes para a decisão. Como diz Cristina Líbano Monteiro: «O universo fáctico – de acordo com o “pro reo” – passa a compor-se de dois hemisférios que receberão tratamento distinto no momento da emissão do juízo: o dos factos favoráveis ao arguido e o dos factos que lhe são desfavoráveis. Diz o princípio que os primeiros devem dar-se como provados desde que certos ou duvidosos, ao passo que para a prova dos segundos se exige a certeza.» (Perigosidade de Inimputáveis e «In Dubio Pro Reo», pág. 53).
Pois bem: percorrendo-se a sentença recorrida, desta não resulta que tenha ficado instalada no espírito da Mm.ª Juíza, muito pelo contrário, a mais pequena incerteza quanto a qualquer um dos factos que na decisão considerou provados, ou seja, não se alcança que o tribunal a quo tenha valorado contra o arguido qualquer estado de dúvida sobre a existência dos factos, do mesmo modo que também não se infere que o tribunal recorrido, que não teve dúvidas, as devesse ter, em face do que decorre da própria sentença e da prova reapreciada.
Em síntese, entendemos não ser de concluir que o tribunal recorrido tenha apreciado arbitrariamente a prova e que houvesse que decidir de forma diversa. Da análise efectuada resulta que a prova produzida, que é legalmente permitida, suporta por forma suficiente, racional e coerente, a decisão do tribunal recorrido no que tange à factualidade sob impugnação, sem margem para dúvidas razoáveis, inexistindo, por isso, fundamento para a pretendida alteração da matéria de facto, não podendo proceder a pretensão do recorrente de impor a sua convicção pessoal, face à prova produzida em audiência, em detrimento da convicção do julgador, cuja decisão de facto está devidamente fundamentada e constitui solução plausível segundo as regras da experiência, tendo sido proferida em obediência à lei – artigo 127.º, do C.P.P.
3.2.2. Face ao exposto, nos limites da reapreciação da prova, não vislumbramos quaisquer razões para divergir do juízo formulado pelo tribunal recorrido em sede de decisão de facto, pelo que, inexistindo vícios de conhecimento oficioso, deve manter-se a factualidade provada e não provada.
3.3. Diz-se na sentença recorrida sobre a questão da determinação da pena (por razões de economia, não transcrevemos as notas de rodapé):
«O Código Penal traça um sistema punitivo que se baseia no princípio basilar de que as penas devem ser executadas com um sentido pedagógico e ressocializador.
As finalidades das penas estão previstas no artigo 40.' do referido diploma legal e visam, por um lado, proteger bens jurídicos (prevenção geral e especial) e, por outro, reintegrar socialmente o agente.
Assim, devem ser tidas em consideração as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se as exigências de prevenção geral – que visam o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, na medida do indispensável para estabilizar as expectativas comunitárias na validade da norma violada – e aquelas de prevenção especial – que visam tanto a reintegração do arguido na sociedade, como o evitar a prática de novos crimes, impondo-se, assim, a consideração da conduta e personalidade do agente.
A determinação da medida concreta da pena será efectuada segundo os critérios consignados no artigo 71.' do Código Penal. Este dispositivo impõe o entendimento de que o julgador se encontra limitado pela exigência do respeito pela dignidade da pessoa humana, pelas exigências de prevenção e que toda a pena tem de ter como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta.
Segundo Figueiredo Dias o poder punitivo do Estado exerce-se «primariamente no sentido do controlo do crime; ou vistas as coisas do outro lado, no sentido da protecção das condições essenciais da vida do homem na comunidade e, assim, de livre realização e desenvolvimento da personalidade de cada um».
Defende ainda o insigne penalista que «através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências de prevenção, dá-se lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e, consequentemente, à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada em consideração a culpa do agente, dá-se tradução à exigência de que a vertente pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pela eminente dignidade da pessoa do agente – limite de forma inultrapassável as exigências de prevenção».
Assim, importa proceder à ponderação dos factores relevantes para a determinação da medida concreta da pena, à luz do n.º 2 do artigo 71.º, devendo ser atendidas as seguintes circunstâncias concretas:
- A intensidade do dolo – directo;
- A ilicitude dos factos é média, atento o modo como foram perpetradas as ofensas, ameaças, perseguições e humilhações;
- As condições pessoais do arguido – encontra-se integrado social, profissional e familiarmente;
- Os antecedentes criminais – designadamente por crimes de idêntica natureza.
- A necessidade de prevenção geral – a liberdade de determinação e a integridade física têm uma carga elevadíssima para a sociedade, num país de tradições fortemente enraizadas, onde a violência doméstica é uma realidade quotidiana que se traduz, de acordo com relatórios publicados pela CIG, numa média de 50 vítimas mortais por ano, pelo que os valores fundamentais são fortemente abalados por atitudes como as supra descritas, sendo necessário restaurar a confiança societária na validade da norma; por outro lado, no que respeita à detenção de arma, as necessidades de prevenção geral são de nível elevado pelo alarme social que geram.
Uma vez feita esta balizagem, adiante-se que a moldura penal prevista para o crime de violência doméstica cometido é de um a cinco anos de prisão.
Atenta tal moldura penal, entende este Tribunal que ponderando conjuntamente as circunstâncias atrás referidas, as políticas de reinserção social e as exigências de prevenção quanto à prática de futuros crimes, tem-se por adequado aplicar ao arguido a pena de dois anos de prisão.
Atendendo às circunstâncias do caso concreto, cumpre apurar se se mostram reunidos os pressupostos de aplicação do instituto de suspensão da execução de pena, previsto no artigo 50.º do Código Penal.
Nos termos do n.º 1 deste artigo «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição».
Ensina Figueiredo Dias que «pressuposto da aplicação material do instituto é que o tribunal, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do facto, conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente».
A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, tendo por base o princípio ressocializador que orienta o nosso ordenamento jurídico-penal.
Tendo presente a matéria de facto apurada e os antecedentes criminais do arguido, pode concluir-se que a ideia da prevenção não encontra eco na matéria de facto dada como provada, atenta a personalidade do arguido, as circunstâncias em que o crime foi cometido e a sua postura desculpabilizante.
Com efeito, o arguido não manifesta qualquer arrependimento [além do corte dos pneus] pelos actos por si cometidos, não denotando ter interiorizado a gravidade dos seus comportamentos e persistindo nas suas condutas atentatórias da liberdade de acção/bem-estar psíquico das pessoas com as quais mantém relacionamentos amorosos.
Este facto faz crer ao Tribunal que não subsistem motivos que permitam concluir que a simples ameaça da prisão realiza as finalidades da punição, o que impossibilita o Tribunal de recorrer a tal instituto legal.
Por outro lado, entende o Tribunal que o recurso ao instituto a que alude o artigo 43.º do Código Penal não se mostra adequado no caso concreto, porquanto a permanência na habitação não inibiria o arguido de continuar a perpetrar alguns dos comportamentos atentatórios da liberdade de acção e da dignidade da ofendida, razão pela qual também se afasta tal regime.»
A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas reconduzem-se à protecção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).
Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada (Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).
O juiz começa por determinar a moldura penal abstracta e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para finalmente escolher a espécie da pena que efectivamente deve ser cumprida, tendo em vista as penas de substituição que a lei prevê.
Estabelece o artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, a atender na determinação concreta da pena, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjectiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.
Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstracta procurar-se-á encontrar uma sub-moldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida óptima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção actuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cfr. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e segs.).
Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:
«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo esta inexistente, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»
Como refere o S.T.J., em acórdão de 17 de Abril de 2008, «as circunstâncias e os critérios do artigo 71.º do Código Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente; a idade, a confissão; o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente» (proc. 08P571; também relativamente à questão da determinação da medida da pena, cfr., entre outros, o acórdão do S.T.J. de 9 de Março do 2006, in CJSTJ, tomo I, pp. 212 e ss., e o acórdão do S.T.J., de 29 de Maio de 2008, proc. 08P1145).
Volvendo ao caso concreto em apreciação, o tribunal fixou a pena principal em dois anos de prisão, no quadro de uma moldura penal abstracta de pena de prisão de um a cinco anos.
A sentença recorrida valorou a intensidade do dolo – directo – e a ilicitude dos factos, que considerou média atento o modo como foram perpetradas as ofensas, ameaças, perseguições e humilhações.
No que toca às condições pessoais do arguido, encontra-se integrado social, profissional e familiarmente.
Quanto a antecedentes criminais, o arguido, à data dos factos, contava com uma condenação anterior por crime de violência doméstica, em dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período. Os factos a que se reportam os presentes autos foram perpetrados já após a extinção dessa pena.
Por outro lado, a segunda condenação por violência doméstica, no processo 1502/16.2GCALM, ocorreu por factos anteriores aos que aqui estão em causa, mas sendo a condenação posterior, pois a sentença é de 19 de Fevereiro de 2018 e transitou em 21 de Março do mesmo ano.
Quer isto dizer que, à data da prática dos factos, o arguido tinha uma e não duas condenações anteriores, sendo as ofendidas pessoas distintas nesses processos.
As necessidades de prevenção geral, neste tipo de criminalidade, são prementes, pela frequência, na nossa sociedade, da ocorrência da prática do crime em análise.
A referência na sentença recorrida “à detenção de arma” constitui, manifestamente, um lapso, pois nos presentes autos não se menciona qualquer arma.
Neste quadro, sopesando as circunstâncias face ao binómio da culpa e da prevenção, o tribunal fixou a pena em dois anos de prisão.
Como já se disse, a actividade judicial de determinação da pena apresenta-se como uma actividade juridicamente vinculada, mas não é uma ciência exacta, pelo que, a nosso ver, o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada, sem fundamento, com desvios aos critérios legalmente apontados.
Não é esse o caso: a pena principal aplicada é justa, adequada e proporcional.
O artigo 50.º, n.º1, do Código Penal, dispõe: «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».
Traduzindo-se na não execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos, entendemos, com o apoio da melhor doutrina, que a suspensão constitui uma verdadeira pena autónoma (Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 91, 329, 339).
Já assim se devia entender face à versão originária do Código Penal de 1982, como se infere das discussões no seio da Comissão Revisora do Código Penal, em que a suspensão da execução da pena, sob a designação de sentença condicional ou condenação condicional (que no projecto podia assumir a modalidade de suspensão da determinação concreta da duração da prisão ou de suspensão da execução total da pena concretamente fixada) figurava como uma verdadeira pena, ao lado da prisão, da multa e do regime de prova, no art.º 47.º do projecto de 1963, que continha o elenco das penas principais.
Partindo da noção de que a pena de suspensão de execução da prisão é uma pena de substituição em sentido próprio, temos como pressuposto material da sua aplicação que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, conclua pela formulação de um juízo de prognose favorável ao agente que se traduza na seguinte proposição: a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por sua vez, constitui pressuposto formal de aplicação da suspensão da prisão, que a medida desta não seja superior a 5 anos.
O referido artigo 50.º consagra um poder-dever, ou seja um poder vinculado do julgador, que terá que decretar a suspensão da execução da pena, na modalidade que se afigurar mais conveniente para a realização das finalidades da punição, sempre que se verifiquem os necessários pressupostos (Maia Gonçalves, Código Penal Português Anotado e Comentado, 18.ª edição, p. 215).
Para tal, é preciso, como já se salientou, que o julgador possa fazer um juízo de prognose favorável relativamente ao comportamento do arguido, no sentido de que a ameaça da pena seja adequada e suficiente para realizar tais finalidades.
São finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção geral e de prevenção especial, que determinam a preferência por uma pena de substituição – como é a suspensão da execução da prisão –, sem perder de vista que a finalidade primordial é a de protecção dos bens jurídicos. Não está aqui em causa uma qualquer finalidade de compensação da culpa, mas considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, em função das quais se limita o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto da suspensão da execução da pena (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 344).
No caso vertente, o tribunal recorrido valorizou, essencialmente, os antecedentes criminais do arguido, dizendo que “a ideia da prevenção não encontra eco na matéria de facto dada como provada, atenta a personalidade do arguido, as circunstâncias em que o crime foi cometido e a sua postura desculpabilizante”, e bem assim que “o arguido não manifesta qualquer arrependimento [além do corte dos pneus] pelos actos por si cometidos, não denotando ter interiorizado a gravidade dos seus comportamentos e persistindo nas suas condutas atentatórias da liberdade de acção/bem-estar psíquico das pessoas com as quais mantém relacionamentos amorosos”.
Como já se assinalou, o arguido, à data dos factos, tinha uma e não duas condenações anteriores, pois a condenação no processo 1502/16.2GCALM é de 19 de Fevereiro de 2018 e transitou em 21 de Março desse ano, ainda que por factos anteriores aos que aqui estão em causa.
Quer isto dizer que, após os factos a que os autos se reportam, o arguido foi condenado na pena de três anos de prisão, suspensa na sua execução por idêntico período, sujeita a regime de prova com o dever de frequência de programa relativo à prevenção de violência doméstica.
Estando o arguido em cumprimento dessa pena, a questão que se coloca é se deve, por factos anteriores a essa condenação, ser condenado em pena efectiva.
O relatório social junto aos autos deu conta da sinalização do arguido para consultas de psicologia e da atitude de disponibilidade daquele para cumprir a “medida probatória” imposta no processo 1502716.2GCALM, tendo sido integrado no Programa para Agressores de Violência Doméstica, PAVD, composto por três fases sequenciais, encontrando-se o arguido, à data em que o relatório foi elaborado, na primeira fase, de estabilização e motivação para a alteração do comportamento, a que se seguiria uma segunda fase de vinte sessões de “intervenção psicoeducacional”.
Alude-se nos autos a uma outra queixa, mas por enquanto não é mais do que isso.
O arguido encontra-se integrado social, profissional e familiarmente, parecendo que as suas condutas criminais se projectam apenas no domínio das suas relações sentimentais/amorosas.
O referido relatório refere “um baixo nível de risco” para a ofendida, sendo certo que as condutas aqui imputadas e dadas como provadas não se referem a agressões contra a integridade física daquela.
Neste quadro, em que o arguido beneficiou de uma suspensão da execução da pena em data posterior à dos factos, estando, aquando da prolação da sentença recorrida, em cumprimento dessa pena de substituição mediante a sujeição a regime de prova que envolve a sua integração no Programa para Agressores de Violência Doméstica – PAVD, tendo já decorrido cerca de dois anos sobre a prática dos factos delituosos aqui em questão, afigura-se-nos que ainda é de aplicar a pena substitutiva de suspensão da execução da pena, de forma a permitir que possa ter efeito na conduta do arguido o regime de prova com a integração no referido PAVD e a intervenção ao nível do acompanhamento psicológico sinalizada pela DGRSP.
No essencial, através da suspensão pretende-se não frustrar, mediante a prisão do arguido, a possibilidade de reinserção em liberdade que lhe foi facultada pela sentença posterior aos factos de que nos ocupamos, permitindo que opere efeito o regime de prova a que foi sujeito na última condenação.
Terá o arguido de compreender que esta será porventura a derradeira hipótese de evitar a prisão caso não conforme o seu comportamento às exigências da lei e do respeito devido a quem seja a sua companheira sentimental do momento.
Assim, a pena de prisão será suspensa na sua execução por dois anos (aplicação do regime mais favorável), com sujeição a regime de prova, compreendendo o dever de frequência do programa relativo à prevenção da violência doméstica e o acompanhamento psicológico que lhe seja prescrito, e bem assim com subordinação ao dever de pagamento à ofendida da quantia arbitrada de 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros).
Quanto à pena acessória:
O arguido/recorrente foi condenado na pena acessória de proibição de frequentar a casa habitada pela ofendida e ainda de contactos com esta, pelo período de três anos, devendo tal pena ser sujeita a fiscalização por meios técnicos de controlo à distância.
A sentença recorrida, como fundamentação desta pena, diz o seguinte:
«Atendendo ao disposto no artigo 152.º, n.º 4 do Código Penal, face à matéria de facto apurada, determina-se a condenação do arguido na pena acessória prevista de proibição de frequentar a casa habitada pela ofendida e ainda de contactos com esta pelo período de três anos, devendo o cumprimento da pena ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.»
O artigo 152.º, n.º 4, do Código Penal, dispõe que nos casos previstos nos números anteriores, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.
O n.º5, por sua vez, estabelece que a pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.
De harmonia com os artigos 35.º e 36.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro, a pena acessória de proibição de contactos deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância. Sempre que o juiz, de forma fundamentada, determine que a utilização de meios técnicos de controlo à distância é imprescindível para a protecção dos direitos da vítima, é dispensável o consentimento do arguido.
Atente-se que a Lei n.º 19/2013, de 21 de Fevereiro, que procedeu à alteração na redacção do n.º 5 do artigo 152.º do Código Penal, estabelecendo que o cumprimento da pena acessória deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância, foi o diploma que procedeu à modificação da redacção da Lei n.º 112/2009, prescrevendo o artigo 35.º:
«O tribunal, com vista à aplicação das medidas e penas previstas nos artigos 52.º e 152.º do Código Penal, no artigo 281.º do Código de Processo Penal e no artigo 31.º da presente lei, deve, sempre que tal se mostre imprescindível para a proteção da vítima, determinar que o cumprimento daquelas medidas seja fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância.»
Seguindo o acórdão da Relação de Coimbra, de 10-07-2018, proferido no processo 15/17.0GCLMG.C1, em análise comparativa com as anteriores redacções dos preceitos em referência, assinala-se a substituição no n.º 5 do artigo 152.º do termo «pode» seguido do segmento “ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância”, reportado à pena acessória de proibição de contacto [anterior redação] por «deve» ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância [na redacção aplicável ao caso]; o mesmo se passa com o artigo 35.º da Lei n.º 112/2009, no seio do qual a palavra «pode» foi substituída por «deve», permanecendo, contudo, inalterada a necessidade do juízo de imprescindibilidade da fiscalização por meios técnicos de controlo à distância para proteção da vítima.
A substituição do termo “pode” pelo “deve” na previsão da fiscalização de cumprimento pelos meios de controlo à distância tem um alcance limitado, pois manteve-se a exigência, em todo o caso, de um juízo positivo sobre a imprescindibilidade da utilização desses meios para a protecção da vítima.
Quer isto dizer que, como se entendeu no referido aresto, o recurso aos meios técnicos de controlo à distância da pena acessória depende da verificação de dois requisitos: (i) o juízo de imprescindibilidade da medida para a protecção da vítima; (ii) a obtenção do consentimento do arguido e das restantes pessoas identificadas na norma a não ser que o tribunal, em decisão fundamentada, face às circunstâncias concretas, ponderando os valores em conflito, conclua que a aplicação daqueles [meios técnicos] se torna indispensável/imprescindível para a protecção dos direitos da vítima (com interesse, também o acórdão da Relação de Guimarães, de 21-09-2015, processo 572/14.2GBCL.G1).
No caso em apreço, concordamos com o parecer da Ex.ma Magistrada do Ministério Público nesta Relação, ao assinalar que a sentença recorrida não formulou qualquer juízo sobre a imprescindibilidade da utilização de meios técnicos de controlo à distância para fiscalização da pena acessória aplicada, nem aduziu fundamentação que permita a formulação de um tal juízo, “não resultando da matéria de facto provada, na sentença condenatória, factos concretos que o possam sustentar”.
Por conseguinte, subscrevendo nessa parte a posição do Ministério Público na Relação, julgamos não estarem reunidos os pressupostos para que, dispensando o consentimento, haja lugar à utilização dos meios técnicos de controlo à distância como fiscalização da pena acessória – pena de proibição de frequentar a casa habitada pela ofendida e ainda de contactos com esta, pelo período de três anos, que enquanto tal se mantém.
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III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em conceder provimento parcial ao recurso interposto por NP, e, em consequência, suspendem na sua execução, pelo período de dois anos, a pena de dois anos de prisão que lhe foi imposta pela prática de um crime de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal subordinando a suspensão da execução da pena a regime de prova, compreendendo o dever de frequência de programa relativo à prevenção da violência doméstica, com o acompanhamento psicológico que lhe seja prescrito, e bem assim com subordinação ao dever de pagamento à ofendida da quantia arbitrada de 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros).
Mantém-se a pena acessória imposta ao arguido, que se revoga apenas no segmento relativo à fiscalização por meios técnicos de controlo à distância, devendo o pagamento da quantia arbitrada ser efectuado por meio de terceiro por forma a cumprir a proibição de contactos com a ofendida.
Sem tributação.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2020
(o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º 2, do C.P.P.)