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DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Sumário
- Devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto, de acordo com os elementos constantes dos autos, nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima, havendo de procurar-se um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar. - Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça. - Se, no caso concreto, não obstante a gravidade dos factos e a circunstância de, das fichas de avaliação, resultar que esta é uma situação sinalizada com risco levado, a ofendida saiu de casa e está agora a residir noutra localidade estando o denunciado proibido de a contactar, não se vê razão para postergar o princípio da imediação e da concentração da prova que rege a audiência de discussão e julgamento.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 5ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa,
Relatório
No âmbito do Processo Comum com o n.º 689/19.7PCRGR que corre termos no Juízo Local Criminal da Ribeira Grande, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, foi indeferido o requerimento do Ministério Público para que fossem tomadas declarações para memória futura à ofendida.
Inconformado, veio o Ministério Público recorrer do despacho de indeferimento formulando as conclusões que se transcrevem: 1. O Ministério Público, a 17 de Dezembro de 2019 promoveu, ao abrigo do disposto no art.º 33º nº 1 da Lei 112/2009 de 16-9, do art.º 271º nº 2 do CP e da Directiva 5/2019 da PGR, a realização de diligência de tomada de Declarações para Memória Futura à Ofendida AL , visando que as mesmas pudessem ter valor probatório em julgamento, porquanto nos presentes autos se denunciava a prática, por CP de factos integrantes de um crime de Violência Doméstica Agravado p. e p. pelos art.ºs 13º, 14º nº 1, 26º 1ª parte e 152º nº 1 al. b) e nº 2 al. a) do CP e um crime de Coacção Sexual p. e p. pelos art.ºs 13º, 14º nº 1, 26º 1ª parte e 163º nºs 1 e 2 do CP. 2. Na verdade, resulta fortemente indiciada, a seguinte factualidade, integralmente descrita pela Ofendida: "- A Ofendida AL namorou com o denunciado CP durante nove anos, entre datas não concretizadas do Verão de 2010 e de Novembro de 2019. - Na constância desse relacionamento tiveram 3 filhos comuns: GP nascido em 12-12-2012, de 6 anos de idade, JP nascida a 25-8-2014, de 5 anos de idade e RP nascida em 5-4-2016, de 3 anos de idade. - Durante todo esse período viveram como se de marido e mulher se tratassem e em 3 residências distintas: primeiramente na Rua A…, na Ribeira Grande, entre 2010 e 2013, de seguida na Rua …1, na Ribeira Grande entre 2013 e 2017 e por fim, em residência sita na Travessa …, na Ribeira Grande, desde 2017 até Novembro de 2019. - Entre 2014 e, pelo menos, 9 de Novembro de 2019 o denunciado, diariamente, apodou a Ofendida de "puta", "cabra", "nojenta" e dizia-lhe que andava sexualmente envolvida com os outros homens. - Cerca de uma vez por semana, nesse hiato, o denunciado disse à Ofendida que se o deixasse e terminasse o relacionamento iria aparecer morta. - Ainda no referido lapso de tempo, em dias alternados, o denunciado atingiu a Ofendida com socos nas costas, pontapés nas pernas e puxões de cabelos. - No Verão de 2019, em data não concretizada, o denunciado espetou um canivete na coxa esquerda na Ofendida, causando-lhe dores, sem que aquela, contudo, tenha recebido assistência médica ou apresentado queixa. - Desde Julho de 2019 até 9 de Novembro de 2019 o denunciado, por 4 a 5 vezes disse à Ofendida que queria ter relações sexuais consigo. - Porquanto a Ofendida se negou ter relações sexuais com CP, o denunciado despiu-a puxando-lhe a roupa com força, puxou-lhe os cabelos e disse-lhe que se não queria fazê-lo era porque deveria andar sexualmente envolvida com outros homens. - Após, nessas ocasiões, o denunciado colocou o seu corpo em cima do da Ofendida, penetrou-a na vagina com o pénis erecto e realizou movimentos de vai e vem dentro daquela até ejacular, sem que tenha usado preservativo. - Durante as relações sexuais a Ofendida chorava e dizia ao denunciado para parar, mas o denunciado ignorava estes apelos e continuava a penetrá-la até ejacular. - No dia 25 de Agosto de 2019, data do aniversário da filha JP, o denunciado atirou à Ofendida uns copos de vidro atingindo-a na zona da perna direita, cortando-a e causando-lhe sangramento. - Em consequência do sucedido, a Ofendida necessitou de assistência médica no Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, onde foi suturada com 5 pontos, sem que, contudo, tenha apresentado queixa ou ido ao GML. - No dia 9-11-2019, pelas 7h45, o denunciado disse à Ofendida na sequência de uma discussão que se esta saísse de casa iria ser morta. - Porém, no próprio dia a Ofendida saiu de casa e agora está a residir em Rabo de Peixe, na casa da sua avó, com os seus filhos. - O denunciado tem vindo a contactar a Ofendida pedindo-lhe para estar com os filhos e reatar o relacionamento. - A factualidade descrita ocorreu sempre na(s) residência(s) comum(ns) acima indicadas e na presença dos filhos menores - estes apenas não assistiram às relações sexuais nos termos acima descritos. - O Denunciado não tem qualquer dependência do álcool ou de estupefacientes. - A Ofendida tem muito medo de ser agredida pelo Arguido e pretende que aquele seja impedido de se aproximar da sua residência e receia que os seus filhos possam igualmente ser agredidos pelo denunciado. - O denunciado é possuidor um número indeterminado de facas, com lâmina de cerca de 30cm, que usa para a realização de trabalhos esporádicos remunerados em quintas. - O denunciado agiu com a intenção lograda causar sofrimento físico e psicológico a AL , de a molestar fisicamente, de humilhar e ofender a honra e consideração daquela, de causar à Ofendida medo e receio de ser agredida e mesmo morta e, assim, fazer com que aquela receie a sua presença, que fique indecisa quanto aos comportamentos a tomar em cada momento, que as suas manifestações espontâneas fiquem inibidas, fazendo-o no domicílio comum e na presença dos filhos menores, ao longo de cerca de 5 anos. - O denunciado agiu ainda com o propósito concretizado de manter relações sexuais de cópula vaginal com a Ofendida, contra a sua vontade, após colocá-la em situação de não poder reagir àquele, visando satisfazer os seus instintos libidinosos e desrespeitando a liberdade e autodeterminação sexual daquela. - O denunciado agiu sempre de forma livre, voluntária, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta era proibida e punida por lei penal." 3. Descrevia-se no auto de denúncia que o Arguido havia dito à Ofendida, no dia 9-11-2019, na residência comum sita na Travessa …, na Ribeira Grande, na presença dos filhos menores de ambos, GP de 6 anos de idade. JP de 5 anos de idade e RP de 3 anos de idade, "Tu se saíres desta casa tu vais ser morta!"; e, bem assim, que a Ofendida e os três filhos haviam saído da referida habitação. 4. No auto de denúncia são ainda indicados os inquéritos 314/17.0PARGR e 493/18.0 PARGR, onde foram apresentadas queixas por factos da mesma natureza perpetrados pelo mesmo Arguido na pessoa da mesma Ofendida. 5. Na sequência de certidões dos despachos de encerramento de inquérito que nesta data juntamos a este processo, vislumbra-se que o primeiro dos inquéritos foi arquivado, entre o mais, pela circunstância de a Ofendida não ter prestado declarações e que o segundo dos referidos inquéritos foi arquivado porquanto a Ofendida desistiu de queixa. 6. Foi aqui sinalizado "Risco Elevado" para a vítima por parte do digno OPC, consignado em duas Fichas de Avaliação de Risco, mencionando-se expressamente que ocorreu violência física contra a vítima tendo o 1º episódio ocorrido há cerca de 5 anos, que o Arguido já havia usado de violência física contra crianças integrantes do agregado familiar, que já sofreu violência sexual por parte do Arguido, que o número de episódios violentos tem vindo a aumentar, que a Ofendida acredita que o Arguido é capaz de a matar, o que já terá tentado fazê-lo; que o Arguido persegue a vítima, intimidando-a intencionalmente através de mensagens "SMS", entrando na residência ou no local de trabalho da vítima e/ou familiares sem conhecimento destes; que o Arguido revela instabilidade psicológica e que já ameaçou suicidar-se; que o denunciado já foi alvo de queixas criminais anteriores, que o Arguido tem problemas financeiros significativos ou dificuldade em manter um emprego; que existe um conflito relacionado com a guarda/contactos dos filhos; que a vítima se separou do Arguido nos últimos 6 meses. 7. Foram aplicadas ao Arguido as medidas de coacção de Proibição de contactos, por qualquer meio com a Ofendida e Proibição de aproximação a menos de 100 metros da residência daquela. 8. Após foi requerida pelo Ministério Público a tomada de declarações para memória futura, sendo a sua realização judicialmente indeferida, indeferimento com o qual não nos conformamos. 9. A Meritíssima Juíza a quo , após um excurso teórico onde se verte a fundamentação de direito do Acórdão do TRL de 21-3-2018, relatado pelo Venerando Desembargador Francisco Mota Ribeiro, disponível em www.dgsi.pt., indefere a realização da referida diligência estribando a fundamentação do seu despacho no seguinte argumento de facto: que a promoção do Ministério Público é genérica. 10. E refere ainda a decisão recorrida, ao nível da fundamentação de direito, que a prestação de declarações para memória futura em casos de Violência Doméstica não é obrigatória e que o critério para a sua realização "(...) há-de resultar de uma ponderação ente o interesse da vítima de não ser inquirida na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça" (...) e ainda que "(...) a melhor interpretação do artigo 33º da Lei 112/2009 de 16/9 é de que devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto de acordo com os elementos constantes dos autos (nomeadamente a idade, a saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima). Na realidade, a ser procedente a pretensão do Ministério Público, a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica era automática, o que não entendemos seja o caso. Em face do exposto, e porque não vislumbramos, pelo menos por ora, qualquer razão fundada ao nível de protecção dos interesses da vítima, indefiro (...)". 11. Nos termos dos art.ºs 53º nº 2 al. b) e 263º nº 1 do CPP, cabe ao Ministério Público a direcção da acção penal, sendo aquele quem poderá decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito. 12. Com o maior respeito, a Meritíssima Juíza, ao referir que a promoção é genérica ignora os factos fortemente indiciados, acima descritos, desvalorizando-os, num juízo antagónico ao que doutamente foi feito pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal no 1º interrogatório judicial realizado, além de ignorar ainda todos os elementos de prova constantes dos autos, desde o auto de denúncia, às certidões de nascimento, às fichas de avaliação de risco, às declarações da própria Ofendida, em sede de inquérito e perante magistrado do Ministério Público. 13. Não podemos, com o maior respeito, considerando a forte indiciação da prática pelo Arguido do crime de Violência Doméstica Agravado e de crime de natureza sexual sobre a mesma Ofendida, com sinalização de "Risco Elevado" para a vítima, desvalorizar esses factos, referindo, de forma genérica, apenas, que a promoção do Ministério Público é genérica e referindo, de forma conclusiva, após um excurso teórico, que não há qualquer necessidade de protecção dos interesses da vítima. 14. Cremos, face à factualidade fortemente indiciada, que é de todo o interesse da Ofendida ser ouvida em declarações para memória futura, de molde a evitar a sua vitimização secundária em eventual julgamento e assegurar a valoração das suas declarações em todas as outras fases do processo. 15. É evidente a vulnerabilidade da Ofendida, patente no risco existente para a integridade física e psicológica assim como para a vida de AL - e até dos filhos menores da Ofendida e do Arguido - e isso é fundamental para, numa análise concatenada dos factos denunciados, da ficha de avaliação de risco, das declarações da Ofendida, concluir pela necessidade de acautelar o valor probatório futuro das declarações de AL - em julgamento ou noutras fases processuais - assim se assegurando uma lógica sistémica da vertente processual e do valor probatório intrínseco com a natureza pública do crime em causa. 16. A prestação de declarações para memória futura será essencial para, num caso como o vertente, de "Risco Elevado" de potencial continuação e agravamento da actividade criminosa, descrever com a minúcia exigida a factualidade denunciada, para evitar que a mesma seja revitimizada e, assim, se possa lograr, a final, uma efectiva responsabilização penal do Arguido, assim se verifiquem, pois, indícios da prática do crime que de acordo com as regras do direito probatório que permitam sustentar uma condenação. 17. Acresce ainda que através da prestação de declarações para memória futura, estando presente na diligência o Defensor do Arguido, facilmente se assegurará o contraditório quanto àquelas declarações, nos termos legais. 18. Assim, se asseguraria, igualmente, a validade das declarações da Ofendida em caso do eventual acontecimento funesto da morte da vítima com um cabal contraditório prévio na referida diligência, o que não aconteceria nos mesmos termos, dada a falta de contraditório, se as declarações da Ofendida - v.g. prestadas perante magistrado do MP - fossem lidas ao abrigo do disposto no art.º 356º nº 4 do CPP. 19. Cremos, ainda e sobretudo, que os argumentos de direito invocados na douta decisão de indeferimento recorrida, a par dos outros não ali referidos, deveriam servir, salvo o devido respeito por entendimento diverso, para fundamentar precisamente a necessidade de ser realizada a diligência de tomada de declarações para memória futura. 20. Ao contrário do que a Meritíssima Juíza a quo parece considerar - com o maior respeito, atendendo-se demasiado à fundamentação de direito expendida no referido aresto do TRL -, não é necessário estarmos perante uma Ofendida que necessite de especiais cuidados quanto à saúde ou idade que lhe confiram o estatuto de vítima especialmente vulnerável nos termos do art.º 67º-A nº 1 al. b) do CPP, art.º 28º da Lei 93/99 e 33º nº 1 do da lei 112/2009 de 16-9 para que a mesma preste declarações para memória futura. 21. O legislador nada quis dizer expressamente a esse respeito, e a lei não acrescenta esses requisitos! 22. Na verdade, consideramos que tal articulação de normas surge referida pelo referido Juiz Desembargador no citado aresto, salvo o devido respeito, num douto exercício de explanação da lógica do sistema jurídico quanto à protecção de vítimas, sendo no que aresto em causa se decide precisamente em sentido contrário ao aqui decidido. 23. Por outro lado, frisa-se, o Ministério Público é o titular da acção penal, ao qual cabe definir o momento em que as diligências probatórias são realizadas e o meio de prova em causa é absolutamente essencial para a descoberta da verdade material e fulcral para impedir a revitimização da Ofendida, sendo, com o devido respeito, inaceitável que num caso como o vertente, de marcada vulnerabilidade da vítima, continuação da actividade criminosa e de perigo para a vida, não se defira a tomada de declarações para memória futura. 24. Incorreu, pois, a Meritíssima Juíza em erro notório na apreciação da prova ao valorá-la como valorou, nos termos descritos. 25. E, bem assim, apresentou uma fundamentação que poderia e deveria servir para fundamentar o deferimento da pretensão do Ministério Público, mas que, paradoxal e contraditoriamente, é usada para indeferir a promovida prestação de declarações para memória futura, incorrendo numa contradição insanável entre a fundamentação e a decisão proferida. 26. Ao decidir como decidiu, a Meritíssima Juíza violou os art.ºs 16º nº 2 e 33º nº 1 da Lei 112/2009 de 16-9, art.ºs 1º nºs 1 e 3 e 2º al. a), 26º nºs 1 e 2, 28º nº 1 da Lei 93/99, e art.ºs 53º nº 2 al. b), 67º- A nº 1 al. b), 127º, 263º nº 1 e 271º do CPP. 27. Deve, em conformidade, o despacho recorrido ser revogado e ser em sua substituição proferido despacho que determine a prestação de declarações para memória futura, o que se pretende com o presente recurso.
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Não houve contra-alegações.
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Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto apôs o competente “visto".
Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.
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Fundamentação
A decisão sob recurso é a seguinte: Veio o Ministério público promover que seja determinada a tomada de declarações para memória futura de GS requerendo-se que aquela preste declarações quanto a todas as circunstâncias de modo atinentes ao comportamento do Arguido: - Injúrias, ameaças, agressões, actos sexuais de relevo que tenha sofrido por parte do Arguido ou que tenha presenciado o Arguido a levar a cabo; - Circunstâncias de tempo, modo e lugar de tal actuação; - Indicação de outras testemunhas (identidade e paradeiro); - Consequências físicas e psicológicas da actuação do Arguido; - Outros factos que se revelem importantes e pertinentes na sequência do que for declarado pelas Ofendidas. Para o efeito, afirma o Ministério Público que visa assegurar a produção de prova em audiência de discussão e julgamento, entende o Ministério Público que, nos termos do disposto no artigo 33º nº 1 da lei 112/2009 de 16-9, art.º 271º nº 2 do CPP e da Directiva 5/2019da PGR que deve ser realizada a tomada de declarações para memória futura à Assistente. Em primeira linha, importa referir que, certamente por lapso, faz-se referência na promoção a GS. Isto posto, Dispõe o art.º 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09, sob a epígrafe "Declarações para memória futura", que "O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento." Por seu turno, diz o art.º 16º nº 2 do mesmo diploma que "As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal." Por sua vez, a Lei de Proteção de Testemunhas (Lei nº 93/99, de 14 de julho), prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no nº 1 do art.º 1º - cf. art.º 1º, nº 3, do mesmo diploma. Dizendo o art.º 26º nº 1 que "quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal ato decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas. " Acrescentando no nº 2 que "a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência." Por outro lado, nos termos do diploma citado, "durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime" – nº 1 do art.º 28º. E, "Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271º do Código de Processo Penal." Analisada a Lei nº 112/2009, de 16/09, resulta da mesma que no seu artigo 33º se veio prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica - se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do art.º 271º do CPP. Admitindo o art.º 33º da Lei nº 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar. Esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça. Na verdade, a inquirição da vítima, do ponto de vista de quem investiga o crime, não passa obrigatoriamente pela tomada de declarações para memória futura, pois que se há casos em que isso se justifica, nomeadamente pela proximidade física entre vítima e denunciado, relação de parentesco, idades dos intervenientes, etc, outros casos haverá em que não existe essa necessidade premente. Ora, a promoção que antecede, com o devido respeito, é totalmente genérica, não concretizando quaisquer factos que sustentem o pedido em apreciação. Por outro lado, não estamos perante uma vítima com cuidados especiais ao nível da saúde nem da idade, que lhe confiram a qualidade de vítima especialmente vulnerável, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 67º-A, nº 1, al. b), do CPP, e do art.º 28º da Lei nº 93/99, isto é, para que, em reforço da possibilidade de prestação de declarações para memória futura, que já resulta do disposto no art.º 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09, acima citado, seja tomado à vítima depoimento ou declarações, o mais brevemente possível, e de forma a evitar-se a repetição da audição dela como testemunha, com alcance que a este conceito é dado pelo art.º 2º, al. a), da Lei nº 93/99. Entendemos, assim, que a melhor interpretação do artigo 33º, nº 1, da Lei nº 112/2009, de 16/09, é de que devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações
para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto de acordo com os elementos constantes dos autos (nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima). Na realidade, a ser procedente a pretensão do Ministério Público, a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica era automática, o que não se concede, assente que a apreciação, como é evidente, deve ser realizada caso a caso. Em face do exposto, e porque não vislumbramos, pelo menos por ora, qualquer razão fundada ao nível de protecção dos interesses da vítima, indefiro a requerida tomada de declarações para memória futura da Ofendida.
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Apreciando…
De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso.
Em causa está a tomada de declarações para memória futura.
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Como de pode ler no exemplar sumário do Acórdão da Relação de Lisboa de 11.01.2012 (Proc. nº 689/11.5PBPDL-3, pesquisável em www.dgsi.pt): «I. A redacção originária do CPP de 1987, em coerência com o modelo acusatório que adoptou, previa no seu art.º 271.º que, em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a pudesse vir a impedir de ser ouvida em julgamento, o juiz de instrução procedesse à sua inquirição no decurso do inquérito para que o seu depoimento pudesse, se necessário, vir a ser tomado em conta no julgamento. II. Embora o formalismo estabelecido para esse acto possibilitasse, em certa medida, o exercício do contraditório, o acto não decorria em condições idênticas àquelas em que teria lugar se realizado na audiência. III. Este instituto, na versão originária do Código, desempenhava uma função puramente cautelar visando obter uma prova que poderia ser impossível de produzir na audiência de julgamento. IV. A prova assim recolhida somente poderia ser utilizada, através da leitura do respectivo auto, se tal viesse a ser necessário. V. As revisões de 1998 e de 2007 alteraram a natureza meramente cautelar do art.º 271.º do CPP. VI. Conquanto esta finalidade se tenha mantido, as declarações para memória futura passaram a poder ter igualmente lugar para protecção de vítimas de determinados crimes. A partir de 1998, dos crimes sexuais e, a partir de 2007, dos crimes de tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual. VII. Manteve-se, mesmo quanto às vítimas dos indicados crimes, a menção de que as declarações prestadas para memória futura apenas seriam tomadas em conta na audiência se tal fosse necessário, se bem que se tenham restringido os pressupostos da audição dessas testemunhas na audiência através da introdução da exigência suplementar de o respectivo depoimento não pôr em causa a saúde física ou psíquica de quem o devesse prestar. VIII. O art.º 28.º, n.º 2, da Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal, ao estabelecer que, «sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal», veio alargar ainda mais o âmbito de aplicação deste preceito. IX. Deixou de ter uma mera função cautelar e de proteger as vítimas de certo tipo de crimes, passando a abranger todas as pessoas que se incluam no amplo conceito de testemunha, tal como ele se encontra definido pelo art.º 2.º, alínea a), da Lei n.º 93/99, de 14/07, e a abarcar qualquer tipo legal de crime. X. A Lei n.º 112/2009, de 16/09, veio, por sua vez, no seu art.º 33.º, prever um regime formalmente autónomo para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, se bem que esse regime diste pouco do hoje constante do art.º 271.º do CPP.»
Da análise da legislação que versa sobre a possibilidade de tomada de declarações para memória futura (com vista a produzir prova a ser tomada em consideração no julgamento) – a saber: art.º 271º do Cód. Proc. Penal, Lei de Protecção das Testemunhas em Processo Penal (Lei 93/99, de 14 de Julho) e Lei 112/2009, de 16 de Setembro – resulta que esta pode ser levada a cabo:
- em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de pessoa, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento;
- nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual;
- nos casos de testemunha especialmente vulnerável;
- nos casos de vítimas de violência doméstica.
Mas, em todas as elencadas situações, a tomada de declarações para memória futura só é obrigatória nos casos em que estejamos perante vítima menor de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual (cfr. o nº 2 do art.º 271º do Cód. Proc. Penal). Nos outros casos, não só é obrigatória como, acrescentaremos, não pode ser vista como regra. Repare-se que a redacção dos respectivos preceitos utiliza sempre o vocábulo “pode”, querendo, sem dúvida, abrir a porta apenas à possibilidade da tomada de declarações para memória futura nas referidas situações.
Assim é porque as declarações para memória futura constituem uma excepção ao princípio da imediação e da concentração da prova que rege a audiência de discussão e julgamento.
Ora precisamente porque as declarações para memória futura são uma excepção ao regime processual da audiência de julgamento, a decisão sobre a sua tomada tem que ser fundamentada (a menos que se trate de vítima menor de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual, obrigatória, como já vincámos).
Parece por isso evidente, salvo o devido respeito por opinião contrária, que se o despacho que determina a tomada de declarações para memória futura deve ser fundamentado, o requerimento do Ministério Público que a solicita deve ser igualmente fundamentado, independentemente desta magistratura ter a direcção da acção penal e poder decidir da tempestividade e adequação das diligências probatórias em fase de inquérito (como refere o Digno Procurador no recurso) – desde que, diremos nós, a respectiva competência não esteja legalmente atribuída ao Juiz de Instrução Criminal.
De facto, não basta ter a qualidade de vítima de violência doméstica para ser de imediato deferido o requerimento para a sua tomada de declarações para memória futura.
Concordamos plenamente com o despacho recorrido quando afirma que “devem existir razões especiais para que se proceda à tomada de declarações para memória futura, razões que deverão ser analisadas no caso concreto de acordo com os elementos constantes dos autos (nomeadamente a idade, saúde e proximidade física e ascendente do denunciado sobre a vítima)”.
Citando de novo o douto Acórdão da Relação de Lisboa que supra indicámos:
«Admitindo o citado art.º 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16/09, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar. A nosso ver, esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça».
No caso concreto, não obstante a gravidade dos factos e a circunstância de, das fichas de avaliação, resultar que esta é uma situação sinalizada com risco levado, a ofendida saiu de casa e está agora a residir em Rabo de Peixe, na casa da sua avó, com os seus filhos, enquanto o denunciado está proibido de a contactar.
Não vemos, assim, que, mesmo em nome da protecção do interesse da vítima, exista motivo para postergar o princípio da imediação e da concentração da prova que rege a audiência de discussão e julgamento.
Pelo que bem decidiu o despacho recorrido.
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Decisão
Pelo exposto, acordam em julgar improcedente o recurso e mantém a decisão recorrida.
Sem custas dada a qualidade do Recorrente.
Lisboa, 11.02.2020 (processado e revisto pela relatora)
Alda Tomé Casimiro
Anabela Simões Cardoso