I – Nos atos judiciais usa-se, ao menos por via de regra e salvo casos excecionais devidamente comprovados, a língua portuguesa – artº 133º nº1 do CPC.
II – Assim, afora tais casos, a citação deve ser efetivada, mesmo perante citando de nacionalidade estrangeira, em língua portuguesa, competindo a este, no prazo da contestação, diligenciar pela prova de não ter compreendido o seu teor e requerer em conformidade, vg. impetrando a tradução.
ACORDAM OS JUIZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
1.
L..., Ldª, intentou contra AA e marido BB, ação declarativa, de condenação, com processo comum.
Pediu:
a) Seja declarada a resolução do contrato de arrendamento celebrado entre o autor e a ré mulher em 25 de Agosto de 2005;
b) Se decrete o despejo imediato do locado;
c) Os réus sejam condenados a despejarem imediatamente o locado e a entregá-lo imediatamente ao autor, livre, devoluto e desocupado de pessoas e bens e totalmente vago;
d) Os réus sejam solidariamente condenados a pagar ao autor a importância de € 5.886,95, correspondente às rendas vencidas e respectivos juros de mora calculados até 28.10.2022, bem como nas importâncias correspondentes às rendas que se venceram até ao referido despejo e à mencionada entrega efectiva do locado;
e) Os réus sejam condenados, solidariamente, a pagarem ao autor os juros vincendo contados à taxa legal de 4%, desde 28.10.2022 sobre as rendas vencidas e vincendas, desde as datas dos respectivos vencimentos até integral e efectivo pagamento.
Alegou:
No dia 1 de Setembro de 2005, o condomínio do prédio urbano constituído em regime de propriedade horizontal sito na Avenida ..., em ..., representado pela administração, a L..., Ldª, deu de arrendamento à ré mulher a casa da porteira sita no rés-do-chão do referido edifício e que é parte comum do mesmo.
As partes estipularam a renda mensal de € 240,00, tendo acordado, em Março de 2015, a redução da renda para € 200,00 mensais.
Mais convencionaram as partes que a renda mensal é paga na sede da administração do condomínio, no primeiro dia útil do mês imediatamente anterior àquele a que disser respeito.
Todavia, a ré (e marido) não pagou as rendas relativas aos meses de Julho, Agosto, Setembro, Outubro, Novembro e Dezembro de 2020, Janeiro a Dezembro de 2021 e Janeiro a Outubro de 2022.
Os réus são casados, sendo a casa da porteira utilizada como casa de morada de família, sendo aí que os réus e respectivo agregado familiar pernoitam, passam os seus tempos livres, tomas as suas refeições, tratam do seu vestuário, recebem amigos, familiares e conhecidos, recebem e expedem a sua correspondência e aí têm centralizada a vida familiar e doméstica, sendo que entre os réus não vigora o regime da separação de bens.
Os réus, citados, não contestaram, pelo que foram considerados confessados os factos articulados pelo autor.
Cumprido o disposto no artigo 567º, nº 2, do Código de Processo Civil, o autor apresentou alegações, concluindo como na petição inicial.
2.
Seguidamente foi proferida sentença na qual foi decidido:
«Pelo exposto, julgo a presente acção totalmente procedente e, em consequência, condeno os réus no pedido.
Custas pelos réus – artigo 527º, do Código de Processo Civil.»
3.
Inconformada recorreram os réus.
Rematando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1) A Recorrente foi citada em 11 de novembro de 2022, e, conforme o artigo 228º do CPC, é citada do prazo de 30 (trinta) dias para, querendo, contestar a ação identificada.
2) A Recorrente nada disse sobre a questão discutida nos autos, por não ter entendido a finalidade da citação.
3) Ora, em 20 de dezembro de 2022 foi proferida sentença onde se julgou a presente ação totalmente procedente e, em consequência, condenou a Requerente no pedido, sendo o valor da causa de € 11.886,95 (onze mil oitocentos e oitenta e seis euros e noventa e cinco cêntimos).
4) Em 27 de dezembro de 2022, foi junto aos autos um Ofício, pois, a Recorrente enviou missiva postal para o Douto Tribunal a quo, a dar conhecimento do pedido de apoio judiciário, bem como, juntando documentos que considerou relevantes para o processo.
5) Nomeadamente, redigiu uma simples carta a explicar a sua posição, no entanto, se se verificar o conteúdo da carta é percetível que terá sido feita através de um tradutor online.
6) Veja-se que, nesse documento a Recorrente menciona o seguinte: “E pedimos ao tribunal para nos dar um advogado e intérprete gratuito.”.
7) A Requerente desconhecia a finalidade da citação, desconhecia que existia prazo para apresentar contestação, e, acima de tudo, desconhecia totalmente que, caso não apresentasse a contestação os factos alegados pelo Autor consideravam-se confessados.
8) Ora, a Recorrente é de origem ucraniana e, embora se encontre em território português há vários anos, a língua portuguesa continua a ser um obstáculo no seu dia-a-dia.
9) Contudo, é impensável que o direito de defesa da Recorrente seja garantido quando não entende a língua portuguesa, e ademais, não sabe como se organiza e se desenvolve o ordenamento jurídico português~
10) A Recorrente não tem, nem é obrigada a ter, conhecimento que lhe permita entender o conteúdo da citação, por conseguinte e infelizmente, não apresenta capacidade de avaliar se o seu conteúdo é importante ou fundamental para estruturar devidamente a sua defesa.
11) Ora, o Douto Tribunal poderá ordenar a junção de tradução idónea quando o documento dela careça, para que a Recorrente tenha pleno conhecimento do conteúdo da citação e dos seus direitos para apresentar a devida defesa.
12) No caso concreto, por falta de tradução da petição inicial e restantes documentos, deverá ser conhecida e decretada a nulidade da citação.
13) A Recorrente não pode ser privada do seu direito de defesa porque não compreende o teor da citação e da respetiva petição inicial, simplesmente porque, a sua condição social é diferente.
14) Porque não se verificou o respeito pelo princípio da igualdade, feriu, e em grande medida, o princípio do contraditório.
15) O direito fundamental de acesso aos tribunais integra, numa das suas vertentes, o princípio do contraditório, que envolve desde logo a proibição da indefesa.
16) A violação do direito à tutela judicial efetiva, sob o ponto de vista da limitação do direito de defesa, verificar-se-á sobretudo quando a não observância de normas processuais ou de princípios gerais do direito acarreta a impossibilidade de o particular exercer o seu direito de alegar.
17) Ora, devido às circunstâncias já explicadas, da falta de conhecimento dos seus direitos, a Recorrente não pode apresentar a sua contestação, não existindo momento anterior para arguir da nulidade da citação.
18) A referida nulidade colocou em crise o principio do contraditório, cuja inobservância pelo tribunal foi suscetível de influir no exame e decisão da causa, pelo que, devia ter sido aplicado o artigo 195º, n.º1 do CPC, no entanto, não foi cumprida a sua disposição.
19) A Recorrente é ucraniana, residente em Portugal, não fala, lê ou escreve fluentemente o idioma português… entendendo apenas as simples comunicações para manter a sua vida em sociedade.
20) Porque a referida nulidade pode ser arguida em qualquer estado do processo, enquanto não estiver sanada, restou violado o n.º 2 do artigo 198º do CPC.
21) Efetivamente, foi percetível em momento anterior que, a Recorrente não entende a língua portuguesa, pelo menos, o suficiente para apresentar a sua defesa.
22) Ora, por estamos perante a clara e efetiva nulidade da citação, causa a nulidade da sentença, devendo ser aplicado o disposto na alínea d) do artigo 615º do CPC, bem como, da alínea a) do n.º2 do artigo 616º do CPC.
23) Assim, só haverá nulidade da citação se a falta cometida puder prejudicar a defesa do citando, nos termos do n.º 4 do artigo 191º do CPC, cabendo ao citando provar a existência de prejuízo à sua defesa, para que a nulidade seja atendida.
24) E a Recorrente veio demonstrar que efetivamente foi prejudicado o seu direito à defesa.
Contra alegou a autora pugnando pela manutenção do decidido.
4.
Sendo que, por via de regra: artºs 635º nº4 e 639º do CPC - de que o presente caso não constitui exceção - o teor das conclusões define o objeto do recurso, a questão essencial decidenda é a seguinte:
Nulidade da citação por desconhecimento do seu teor, decorrente da não compreensão pela citada da língua portuguesa.
5.
Apreciando.
Estatui o artº 191º do CPC:
«Nulidade da citação
1 - Sem prejuízo do disposto no artigo 188.º, é nula a citação quando não hajam sido, na sua realização, observadas as formalidades prescritas na lei.
2 - O prazo para a arguição da nulidade é o que tiver sido indicado para a contestação;»
E prescreve o artº 133º do mesmo diploma:
«Língua a empregar nos atos
1 - Nos atos judiciais usa-se a língua portuguesa.
2 - Quando hajam de ser ouvidos, os estrangeiros podem, no entanto, exprimir-se em língua diferente, se não conhecerem a portuguesa, devendo nomear-se um intérprete, quando seja necessário, para, sob juramento de fidelidade, estabelecer a comunicação.
3 - A intervenção do intérprete prevista no número anterior é limitada ao que for estritamente indispensável.»
Finalmente expressa o artº Artigo 197º:
«Quem pode invocar e a quem é vedada a arguição da nulidade
1 - Fora dos casos previstos no artigo anterior, a nulidade só pode ser invocada pelo interessado na observância da formalidade ou na repetição ou eliminação do ato.
2 - Não pode arguir a nulidade a parte que lhe deu causa ou que, expressa ou tacitamente, renunciou à arguição.
Perante estes nucleares preceitos a pretensão recursiva meridianamente está votada ao insucesso.
Em primeiro lugar porque, como bem alega a recorrida, é extemporânea.
Os réus foram citados em 2.11.2022.
O prazo para arguir a nulidade é de trinta dias, pois que este foi o prazo concedido para a contestação – cfr. fls. 40.
Ora a arguição apenas foi efetivada em fevereiro de 2013, com o recurso da sentença.
Muito depois do terminus de tal prazo.
E nem se diga que ela podia ser arguida com tal recurso, nos termos dos artºs 615º nº4 e 616º do CPC.
É que esta possibilidade apenas emerge para as nulidades da sentença previstas no artº 615º do CPC.
Obviamente que a presente nulidade não quadra na previsão deste normativo, pois que ela assume o jaez de nulidade procedimental, rectius do próprio e liminar ato da citação, cujo regime de arguição é específico e autónomo, nos termos dos artºs supra mencionados.
Em segundo lugar, e mesmo que assim não fosse ou não se entenda, e o recurso não soçobrasse por motivos formais, a pretensão sucumbiria por motivos substantivos, tal como outrossim é defendido pela recorrida.
A recorrente pugna que a citação é nula porque ela não compreende suficientemente a língua portuguesa, pelo que o teor da citação devia de vir traduzido.
Esta tese assume-se como totalmente peregrina, quer perante a lógica, quer perante os preceitos legais atinentes/pertinentes.
Naquela vertente há a considerar que sendo a citação o primeiro ato processual cuja função é dar a conhecer ao réu a ação contra si instaurada e chamá-lo a juízo, naturalmente que o tribunal não sabe se ele, mesmo sendo a citanda de nacionalidade estrangeira, não tem conhecimento da língua portuguesa.
Quantos imigrantes que chegam a Portugal, passados uns meses ou poucos anos, já dominam a língua portuguesa, ao menos o suficiente para inteligirem o essencial de uma citação judicial, ou seja, que ela vem de um tribunal, que é relativa a um processo identificado por um certo número e que, indo dirigida a si, naturalmente que lhe diz respeito.
Aliás, esse é um dos poderes/deveres de um emigrante que emigra para Portugal ou para qualquer país: aprender o mais rápido possível a língua do país de acolhimento para mais facilmente nele se integrar a todos os níveis: laboral, social, etc.
Ora os réus já estão em Portugal pelo menos desde 2005, ano em que arrendaram o locado, pelo que é suposto, razoável e sensatamente, concluir que eles já dominam a língua portuguesa o suficiente para compreenderem o significado, ou o possível significado, do teor duma citação enviada por um tribunal.
Mesmo que assim não fosse, o mínimo exigível aos réus - recebida a citação e porque ela lhes foi enviada por um tribunal em seu nome e, portando, lhes dizia respeito -, era dirigirem-se ao tribunal, colherem as informações a ela atinentes junto dos respetivos senhores funcionários, e requererem então o que tivessem por necessário.
Nada disto tendo feito e apenas mais de um mês depois e só após a sentença ter sido prolatada e notificada, terem enveredado pela tese da nulidade com o fundamento aduzido, demonstra mero oportunismo e atuação em desespero de causa, aliás, e como se viu, tardia.
Finalmente, e nesta última ótica legal, urge ter presente que, como supra referido, e pelo menos por via de regra, afora casos excecionais devidamente notificados/confirmados, nos atos judiciais usa-se apenas a língua portuguesa como instrumento comunicante.
Nada na lei obriga que estes atos sejam praticados, a priori e liminarmente, na língua da nacionalidade do citando se este for estrangeiro.
É que, reitera-se, a qualidade de estrangeiro não implica, necessariamente, o desconhecimento da língua portuguesa.
Esta regra do uso da sua própria língua, como é intuitivo e do entendimento comum, é a emanação do poder soberano de cada país, e sendo que o uso da língua nacional é o reflexo e um dos fatores agregadores da sua identidade nacional e cultural.
Tal regra vigora em todos os ramos de direito, tanto privado como público.
Assim e para além do Acordão citado pela recorrida, o da RL de 18.06.2015, p. nº 1821/14.2T8CSC-B.L1-6, veja-se o estudo de Artur Flamínio da Silva, sob a epígrafe:
«A obrigatoriedade da utilização da língua portuguesa no procedimento administrativo», in Revista Julgar, on line, http://julgar.pt/wp-content/uploads/2019/12/20191209,
no qual se expende:
«…a consagração do português como a língua do procedimento administrativo, enquanto concretização legislativa do constitucionalmente consagrado direito fundamental dos cidadãos à língua portuguesa, …São razões de eficiência administrativa que justificam a existência desta regra. …Neste contexto, importa reter que é complexa a imposição da utilização de língua estrangeira que exige a tradução de certa documentação, visto que implica um esforço económico que promove a assimetria informativa entre os cidadãos portugueses e a Administração ou, no limite, uma exigência que é desproporcional.»
Esta ideia de que a tradução – de português para língua estrangeira ou vice versa - apenas pode emergir em casos de estrita e comprovada necessidade, estende-se aos próprios documentos juntos com a petição, ou juntos posteriormente.
Assim:
« A citação com entrega de uma petição inicial acompanhada de documentos escritos em língua estrangeira não enferma de nulidade, nem sequer de qualquer outro tipo de irregularidade.
« Tão-pouco é obrigatória a ulterior tradução dos documentos juntos em língua estrangeira; ela só terá de ser feita quando o juiz a ordene e o juiz só deverá ordená-la se, no seu prudente arbítrio, entender que a mesma é necessária, nomeadamente por não dominar a língua em causa.» - Ac. da RL de 28.05.2019, p. 19156/18.0T8LSB-B.L1-7, in dgsi.pt.
Ora no caso vertente, reitera-se, os réus não provaram que não tinham conhecimentos bastante da língua portuguesa para intuíram o teor da citação, minimamente e ao menos para despoletarem ulteriores diligências, vg. junto do tribunal, para, se dúvidas tivessem, as dissiparem, inteirarem plenamente do seu teor e significado junto do tribunal.
E poderiam tê-lo feito, pois que o prazo da contestação de trinta dias era suficiente para o efeito.
Aliás, do que dos autos emerge – docs de fls. 45 e sgs e documentos ora juntos pela recorrida, e cuja junção se justifica considerando o fundamento do recurso, que é novo, porque não apreciado na sentença: artº 423º nº3 do CPC - , é que os réus, rectius a recorrente, conhecem suficientemente a língua portuguesas para se terem apercebido do teor e significado da citação.
Na verdade, tal suficiência foi atestada pelo agente de execução na notificação judicial avulsa para a resolução do contrato.
E a ré, antes da citação, já tinha adquirido a nacionalidade portuguesa nos termos do artº 6º nº 1 da Lei nº 37/81 de 3 de Outubro – Lei da Nacionalidade - o qual, e para além do mais, exige para tal aquisição, os requerentes «conheceram suficientemente a língua portuguesa».
Se, reitera-se, perante tal conhecimento, não encetaram diligências com vista a inteirarem-se plenamente - se algumas dúvidas tinham - do conteúdo, significado e consequências da não contestação no prazo legal, sibi imputat.
Nesta conformidade, a inelutável conclusão final é que, nitidamente, o caso não encerra contornos factuais e jurídicos mínimos dos quais se possa vislumbrar a existência da assacada nulidade da citação por falta de compreensão, decorrente do desconhecimento da língua portuguesa, dos aludidos teor e significado da citação.
Improcede o recurso.
(…)
7.
Deliberação.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, consequentemente, confirmar a sentença.
Custas recursivas pela recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi atribuído
Coimbra, 2023.07.12.